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Psicologia da Educação
versão impressa ISSN 1414-6975
Psicol. educ. no.34 São Paulo jun. 2012
Modernidade anômala e pré-escola: análise de uma relação pedagógica e sua repercussão na ontogênese da consciência infantil
Anomalous modernity and preschool education: analysis of a pedagogical relationship and its effects on ontogenesis of child consciousness
Modernidad anómala y preescola: análisis de una relación pedagógica y sus efectos en la ontogénesis de la conciencia infantil
Gisele Toassa
Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás gtoassa@gmail.com
RESUMO
Relata-se, neste artigo, pesquisa em uma escola pública de educação infantil localizada no interior de São Paulo. A partir de um referencial teórico histórico-cultural, os principais conceitos utilizados foram consciência, significado (significação), sentido, posição interna, atividade e jogo protagonizado. À guisa de métodos, realizaram-se: uma entrevista, observação participante, análise das atividades escolares e seus produtos, e três situações experimentais. Os resultados apontam a ontogênese de consciências caracterizadas pela submissão e individualismo, produtoras de sentidos nos quais se evidenciava a constituição de uma hierarquia social clientelista, na qual público e privado se sobrepunham. Esses aspectos foram mote para análise da inserção da escola pesquisada na história e presente da educação infantil - parte de uma sociedade compreensível por meio do conceito de "modernidade anômala", elaborado pelo sociólogo José de Souza Martins.
Palavras-chave: psicologia histórico-cultural; consciência; desenvolvimento psicossocial; modernidade anômala; educação infantil.
ABSTRACT
This article reports research in a public school kindergarten located in the state of São Paulo. In a cultural-historical theoretical framework, the main concepts employed were consciousness, meaning, sense, internal position, activity and role-playing. Methods: interview, participant observation, analysis of school activities and their products, and three experimental situations. The results indicate the development of consciousnesses characterized by submission and individualism, producers of senses in which there was evidence of the formation of an unjust social hierarchy, in which public and private overlap. These aspects were tone for the analysis of school's insertion in the history of Brazilian early childhood education - part of a society which we strive for understanding through the concept of "modernity anomalous" prepared by the sociologist José de Souza Martins.
Keywords: historical-cultural psychology; consciousness; psychosocial development; anomalous modernity; early childhood education.
RESUMEN
En este artículo se reporta investigación en un jardín de infancia público, ubicado en ciudad del interior del Estado de São Paulo. A partir de un marco teórico histórico-cultural, los principales conceptos utilizados fueron conciencia, significado, posición interna, actividad y juego protagonizado. En la metodología, se efectuaron: entrevista, observación participante, análisis de las actividades escolares y de sus productos y tres situaciones experimentales. Los resultados indican el desarrollo de conciencias caracterizadas por sumisión y individualismo. En la producción de sentidos para las actividades se evidenciaba la formación de una jerarquía social clientelista, con superposición de aspectos públicos y privados. Estos aspectos fueron tema para comprensión de la escuela en el conjunto de la educación de la infancia en el Brasil - sociedad entendida a través del concepto de "modernidad anómala", elaborado por el sociólogo José de Souza Martins.
Palabras clave: psicología historico-cultural; conciencia; desarrollo psicosocial; modernidad anómala; educación infantil
Considerando que toda psicologia individual é psicologia social (Vigotski, 1925/2001b), Vigotski propôs determinar de que modo a consciência, em sua filo, sócio e ontogênese, desenvolve-se como processo histórico e cultural (Vygotski, 1931/1995). Mas qual é essa história e cultura, no campo de nossa educação infantil? Sendo o trabalho educativo esfera fundamental para produção da individualidade a partir da humanidade produzida histórica e coletivamente pelos homens (Saviani, 2003), perguntamo-nos: quais são os processos mediadores de que se utiliza, e os produtos por ela constituídos na forma de consciências individuais? Em uma primeira aproximação às relações entre psicologia histórico-cultural e a delimitação da essência cultural do Brasil a partir do conceito de "modernidade anômala", apresentamos, por meio de uma síntese materialista histórica, a essência da ontogênese da consciência de crianças matriculadas em uma Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) no interior do estado de São Paulo por meio de atividades pedagógicas e situações emergentes no contexto em que se desenvolveram. Constitui-se, portanto, em busca de análise da consciência como processo multideterminado - aproximação a uma "psicologia concreta do homem" (Vigotski, 1929/2000).
Elementos de História, Educação e Psicologia
Kuhlmann (1998) salienta que o objetivo principal da criação de instituições de educação popular, nos séculos XIX e XX, era apaziguar as relações de classe, universalizando a moral burguesa. Também, transmitiam-se conhecimentos básicos, destinados ao trabalho braçal: a baixa qualidade era fundamento da educação pública. Mediante o novo padrão educativo centrado na figura da mãe burguesa, as mais pobres eram julgadas incompetentes para criar seus filhos. Desses pressupostos que se espraiaram em todo o Ocidente, surgem as primeiras instituições de educação infantil voltadas às classes populares, tidas como centros salutares para evitar a criminalidade e propagar a civilização na terra brasileira, tendo como ingredientes os saberes médico, jurídico e religioso.
As rotinas, os rituais, a vigilância dos adultos permeavam o formato das primeiras instituições. Em amplo estudo sobre as Escolas Municipais de Educação Infantil da cidade de São Paulo, Kishimoto (2001) nota presença marcante de atividades destinadas à escrita e ao cálculo. As brincadeiras livres do estrito controle adulto, essenciais à ontogênese da consciência infantil, são abordadas apenas como descanso de atividades dirigidas, sem sentido pedagógico próprio. A educação infantil pública inseriu-se no processo preparatório de entrada no mundo do trabalho: trabalho de pobre, que exige alfabetização, aritmética e muita obediência.
Os principais conceitos histórico-culturais utilizados na pesquisa foram consciência, significado (significação), sentido, posição interna, atividade e jogo protagonizado, os quais serão brevemente delineados a seguir. Vigotski, segundo Luria (1988), teorizava a consciência como sistema estrutural com função semântica, em contínuo e gradual desenvolvimento: sistema único, composto pelas estruturas de conduta consciente, como memória, hábitos, percepção, pensamento e outras condutas, todas mediadas pela linguagem. A consciência é funcional, selecionando, de certo meio físico e social multideterminado, informações sensórias necessárias às práticas grupais, que se generalizam em significações determinadas, razão pela qual a consciência: 1) não se constitui em "cópia carbono" da realidade particular; 2) para usar termo de Lukács (1966), pode não se constituir em "consciência reta", expressão da essência da realidade objetiva, mas, sim, relação (impregnada de afetividade) do indivíduo com seu meio social.
Vigotski (1934/2001a) considera o significado como traço indispensável da palavra, seu aspecto interior. Sob essa relação se realizam a comunicação e o pensamento. Os significados são unidades mínimas do pensamento e também da comunicação sobre a realidade, socialmente compartilhada ou não. Como unidade mínima do pensamento, o significado representa um processo de generalização e diferenciação entre os objetos. Já o sentido é definido como soma dos fatos psíquicos que uma palavra desperta em nossa consciência, o qual predomina sobre o significado da palavra na linguagem interior. Inesgotável, mutável, o sentido da palavra remete-nos à condição do indivíduo como sujeito e objeto da realidade particular; produto e produtor da história. A relação entre os sentidos e significações (ou significados) são os principais componentes da consciência, para Leontiev (1959/1978), mediadora da relação do indivíduo com os demais, bem como consigo próprio: segundo Bozhóvich (1987), nas várias atividades da infância, a criança compreende-se como ser distinto dos objetos circundantes. Já na primeira infância, toma consciência de si mesma como sujeito independente e dotado de uma posição no meio social - essa tomada de consciência ou atribuição de sentido sobre si é a posição interna. O autoconceito constrói-se sobre a base de generalizações intelectuais e afetivas.
Segundo Leontiev: "Por atividade, designamos os processos psicologicamente caracterizados por aquilo a que o processo, como um todo, se dirige (seu objeto), coincidindo sempre com o objetivo que estimula o sujeito a executar esta atividade, isto é, o motivo" (original sem data/1988, p. 68). Para Leontiev (1959/1978), a primeira condição de toda a atividade é uma necessidade, na sua determinação: o motivo. Unidade básica da vida social, as atividades medeiam a formação da consciência de si, dos outros e das coisas, embebidas em uma situação social de desenvolvimento mais abrangente. Atividade principal da idade pré-escolar, Elkonin (1998, p.12) define o "jogo protagonizado" (jogo de papéis) como brincadeira na qual a criança protagoniza uma representação das atividades das pessoas, seu trabalho e relações: é jogo social, cooperativo, de reconstituição dos papéis e interações dos adultos, cujos temas variam profundamente em função da sociedade na qual vive a criança.
Em sua determinação, sua seletividade, a consciência de todos os indivíduos envolvidos na vida escolar pesquisada mediava-se pela realidade particular da pré-escola, na qual se objetivava uma cultura individualista e autoritária. Nesse processo, de formação de uma linguagem em comum mediada por consciências individuais, ressalta-se a contribuição de Leontiev (1959/1978), segundo a qual a significação fixa-se num vetor sensível: palavra ou locução, que se torna parte da esfera de representações de uma sociedade, de sua língua e a forma como cada grupo social faz uso desta língua.
Metodologia, resultados e discussão
A pesquisa aqui relatada teve curso em uma Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) dirigida a um público majoritariamente de classe média-baixa, em cidade do interior paulista com cerca de 300.000 habitantes, fundamentalmente durante o primeiro semestre de 2003. Contemplou: 1) entrevista semiaberta com uma educadora, realizada em dezembro de 2002, tratada com análise de enunciação (Bardin, 1977); 2) estudo da ontogênese da consciência de três crianças selecionadas pela diferença de idade (tinham entre quatro e cinco anos de vida, com diferença aproximada de seis meses entre si, sendo duas meninas e um menino), em janeiro de 2003. Mediante incentivo da pesquisadora e no decorrer de visita da mesma às suas casas, as crianças elaboraram desenhos sobre a escola e com ela brincaram, em situações de jogo protagonizado; 3) 71 horas de observação participante, na turma de Jardim II frequentada pelas três crianças; 4) três situações experimentais, executadas com os três sujeitos de pesquisa (cuja descrição e relato completo não será possível realizar neste artigo). Tanto a professora quanto as três crianças e suas famílias, concordaram em participar e assinaram termo de consentimento livre e esclarecido.
As crianças permaneciam três horas diárias sob responsabilidade da professora, fonte para organização de um diário de campo que mediou o posterior mapeamento de possíveis correlações e desenho dos experimentos. O processo de observação analisou o modo pela qual as pessoas e as coisas (estímulos-objetos) eram expressos no discurso concreto, feito de emoções, motivos e conceitos. Essa atribuição de sentido abrangia não apenas os fazeres observáveis, mas também a relação das crianças entre si e sua posição interna, tornando sentidos os significados. Dada a ampla convivência com a pré-escola, a pesquisa transitou especialmente entre a particularidade (das situações escolares estudadas) e a singularidade (das suas repercussões na consciência das crianças).
Como as primeiras escolas de educação infantil popular, a EMEI pesquisada assemelhava-se à modernidade das fábricas na organização do tempo e da produtividade: a professora distribuía crachás para os secretários do dia, solicitava produções em série, mas as significações incidentes sobre as crianças eram curiosamente domésticos. A despeito da atmosfera de produção em série de diversos pequenos produtos, a disciplina burguesa não se estabelecia com muito rigor - pois a defesa das regras pela educadora variava significativamente de acordo com seu humor, fenômeno também observado por Patto (2010) em São Paulo, Capital. Não se identificou distanciamento ético-pedagógico entre professoras e alunos.
Trecho 1- Entrevista com a educadora
Entrevistadora: [Você se envolve com tudo] - O que tá relacionado com a criança?
Professora: - Acho que é por aí eu... sabe não consigo ver se que ele tá com uma carência em casa, que ele apanhou, que os pais tão separados, que ele tá aqui, tenho mesmo esse ano tenho um aluno meu que vem todo dia falar assim: "Ah eu tô muito feliz, meu pai tá voltando com a minha mãe". Outro dia e ele chega triste e fala: "Meu pai está separando de novo". Então eu não consigo deixar de perguntar como vai, de dar uma atenção melhor, de tá observando se ele tá mais agressivo, se ele não tá com o outro, se ele tá... entendeu com problema de apre... aprendizagem dele, no caderno, no que eu tô falando ... Eu não consigo separar, eu não, ah, separo, ele tá lá o problema lá... É um todo, não tem jeito.
Como principais determinações da formação da consciência infantil no espaço escolar, podemos destacar: 1) a relação entre a professora e a instituição escolar1 (e, em segundo plano, com a Secretaria Municipal de Educação); 2) a história singular da formação cultural da educadora (pertencente à pequena burguesia); 3) o estágio de desenvolvimento ontogenético da consciência das crianças, identificável com a idade pré-escolar (Pasqualini, 2009; Elkonin, 1998), que pode ser, sinteticamente, caracterizada pela espontaneidade, prevalência do jogo protagonizado como atividade principal e pela memória como principal função psíquica superior em desenvolvimento (Vygotski, 1931/1995; Elkonin, 1998).
A educadora já ultrapassara os quarenta anos de idade e trabalhava há vinte naquela mesma EMEI, tendo concluído o antigo magistério de segundo grau2. Praticante de religião evangélica pentecostal, casou-se apenas uma vez e vivia nas imediações da escola, com marido e filha, requerendo, no decorrer da entrevista realizada, que as crianças fossem "normais" - ou seja, pertencessem a famílias como a sua. As diferenças eram pejorativamente interpretadas como "desestrutura", de forma convergente com as professoras presentes nos estudos sintetizados na metanálise de Campos, Füllgraf & Wiggers (2006).
A crença no mau estado das relações familiares contemporâneas, bem como a necessidade de ler para as reuniões pedagógicas, levava-a a estudar: por recomendação de uma colega, recentemente lera trabalho de Içami Tiba, acreditando que seria interessante tanto para a educação dos alunos quanto da filha adolescente. Manifestava opor-se a quem "estaciona" perto da aposentadoria, afirmando sua necessidade de "melhorar" profissionalmente embora, antes, reconhecesse que já sabia trabalhar (sendo desnecessário estudar para isto).
Em acréscimo a esses estudos, referências culturais que se sobressaíam no discurso da educadora, como no das demais educadoras da EMEI, eram a religião pentecostal e as novelas de televisão.
Trecho 2 - Entrevista com a educadora
Professora: - Então, esse amor assim, que às vezes não sente lá eu não perco a oportunidade de dizer. Entendeu? E, como eu sou evangélica, eu não perco nenhum minuto a oportunidade de falar de Deus pra eles. Eu não sei se depois eles vão ter essa oportunidade. Daí eu falo assim ah, 'mas lá no Jardim I eles esquece', mas não esquece... Acho que eu, não importa se esquece. Que depois ele nunca mais vai ouvir falar de Jesus, por exemplo. Não me importa, eu tô fazendo a minha parte!
Desorientada quanto à prática profissional com crianças ao ser aprovada no concurso para professora, restou-lhe a possibilidade de aprender com a prática: a sua aprendizagem profissional contemplou três processos fundamentais, assim definidos:
1) "lidando com eles" (os alunos);
2) "estudando", "pesquisando"; e
3) "troca de experiência com colegas".
O primeiro e o terceiro processos foram também identificados por Campos et al. (2006) na análise da formação docente em educação infantil. A história singular da educadora, combinada à burocratização das práticas e à concepção inatista de infância vigente na EMEI (cujas professoras, antes de tudo, identificavam-se com a condição de funcionários públicos municipais), abria espaço para que a oração3 fosse a atividade mais frequentemente observada no decorrer da pesquisa (30 vezes), seguida pela conversa (24 vezes), em 23 dos dias de observação participante. A regulação das condutas, escamoteada pela própria professora (que rotineiramente se punha a palrar com os pequenos sobre temas não relacionados às atividades), era o centro da situação pedagógica. As atividades trabalhadas com as crianças eram bastante simples (colar, recortar, cantar determinadas músicas, propor brincadeiras de competição, etc.), verdadeira tradição da educação infantil pública - a tomar por Kuhlmann (1998) - imitadas pelas professoras recém-contratadas (mesmo as que frequentavam cursos de pedagogia).
Segundo a educadora, o desenvolvimento infantil processar-se-ia à sua revelia, eximindo-a de responsabilidade e plano pedagógico. Esse desconhecimento sobre a ontogênese também apareceu nos estudos com educadoras infantis empreendidos por Smith et al. (2009) e Palmieri e Branco (2007). Seu discurso carregava termos teóricos próximos do construtivismo (conceitos como "zona de desenvolvimento próximo" e "avaliação de acordo com os progressos individuais do aluno"), sendo sua prática - bem como a educação infantil brasileira em geral, a tomar por Campos et al. (2006) - tendencialmente esvaziada de conteúdos científicos e artísticos, na contramão do marco legal constituído pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. A sala de aula, com carteiras sempre enfileiradas e pobre em materiais para exploração, era espaço pouco atrativo, e os recursos pedagógicos ficavam guardados em armários, sendo raramente utilizados no decorrer de nossa pesquisa.
A profissional não sabia dizer qual era a origem, ou os objetivos, dos conteúdos que trabalhava com as crianças. No seu discurso, termos contemporâneos como LDB (Lei de Diretrizes e Bases), RCNEI (Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil), "psicologia do desenvolvimento" e "conteúdos enviados pela prefeitura" confundiam-se. A realidade macrossocial era representada como sucessão de ordens indistintas, configurando processo de alienação com respeito à vida política (que confere sentido às leis de cada momento histórico). A legislação para a educação infantil, bem como as diversas ideologias pedagógicas "despencavam" de instâncias superiores, sem exercer efeitos reais na prática educativa - relação de estranhamento que nos pareceu característica de um processo de trabalho alienado. A insatisfação no decorrer do trabalho educativo também se identificou em Maimone e Tomás (2005), além de Patto (2010).
O amor das crianças pela profissional era a principal fonte motivacional para a ontogênese da sua consciência, no meio social em análise. Já o da educadora para com as crianças, desigualmente manifesto e distribuído, foi motivo para que se definisse uma verdadeira hierarquia social em sala de aula, das crianças mais às menos queridas. A partir da observação, concluiu-se que os alunos eram avaliados tanto pelo seu desempenho na conversação cotidiana com a educadora quanto por seus precedentes na escola e na família (informações sobre a vida privada das crianças e suas famílias circulavam livremente, sem propósito pedagógico). As crianças mais velhas, com maior experiência de narração e conversação, alçaram-se à posição mais vantajosa na preferência da educadora. A partir disso, as crianças eram caracterizadas segundo termos cotidianos, generalizando conceitos simplificados: eram quietas, bagunceiras, gracinhas, etc.; palavras que, não raramente, sustentavam certa violência psicológica contra os pequenos4. Presenciamos, por exemplo, a grande educadora ameaçar as pequenas crianças com internação na Fundação para o Bem-Estar do Menor (FEBEM, hoje Fundação Casa), se não desempenhassem corretamente as atividades por ela determinadas.
Também, orientando a formação de consciências ontologicamente caracterizadas pela seletividade e pela generalização, a significação que a professora imprimia sobre cada criança alimentava a percepção de certas ações e falas das crianças, em detrimento de outras, que contradissessem a mesma significação. Não obstante, segundo juízo da pesquisadora, o desempenho das crianças mais e menos queridas nas atividades pedagógicas era bastante semelhante.
Extrato do dia 23/04/03 - Observação participante
Atividade: Preenchimento de calendário
Professora: - Quem tá batendo na mesa?
Uma criança: - A Marcela.
Outra criança: - Tinha que ser ela.
Professora: - Não, não tinha que ser ela, não. Mas foi, né, Marcela? O que que a gente conversou ontem?
Marcela: - Que eu vou voltar pro maternalzinho.
A formação de sistemas de conceitos e progresso das crianças na aprendizagem das atividades tinha como principal recurso o elogio ou a censura verbal como peças-chave da regulação das ações e falas da turma. O castigo é recurso educacional criticado por Vigotski (1926/2003), para quem ele só ensina o medo, tendo efeitos rápidos e superficiais. Outro recurso bastante utilizado pela educadora era a indicação de modelos de comportamento.
Além disso, ao final de cada trabalho com papel, a educadora carimbava um personagem de desenho animado nas folhas das crianças. Considerávamos tais carimbos, em preto-e-branco, como pouco atrativos visualmente, mas as crianças a eles reagiam com grande satisfação. Com frequência gabavam-se, diante dos demais colegas, da existência de impressões carimbadas no próprio trabalho: significantes da aprovação da educadora. A competição e a obediência eram bastante estimuladas (tendendo a aumentar ao longo do semestre, como mostra de que as crianças não competem "naturalmente" pela atenção do adulto) servindo como motivo principal para várias atividades, ou mesmo falta de atividade, já que o silêncio era muito prezado pela educadora, de modo similar ao observado por Iza e Mello (2009).
Um dos protagonistas da cena pedagógica era "Deus", personagem que ocasionalmente aparecia com ameaça de punição para justificar a necessidade de as crianças não mentirem ou roubarem. As crianças internalizaram significações religiosas originárias do discurso dos adultos atribuindo-lhes sentidos pessoais.
15/04/2003 - Experimento 3: narração de histórias e opinião das crianças
Pesquisadora: - Você acha que papai do céu gosta de vocês? [sobre si e as amigas]
Júlia: - É, porque a gente somo menina educada. (...)
Entrevistadora: - Você acha que papai do céu gosta mais da Lili ou da Lalá? [Lili: criança "bagunceira" da história narrada pela pesquisadora durante o experimento.]
Júlia: - [A Lalá] Porque sim, porque ela não bate nos outro, não responde pa pofessola.
Extrato do dia 28/04/03 - Observação participante
Conversa: a professora retorna após o lanche
(Uma das meninas beliscou Júlia; os colegas delatam o ocorrido)
Eiko: - Mas ela deve ter feito alguma coisa pra ela.
Professora M: - E daí, tudo o que vocês me fazem, eu teria que bater a cada dois minutos aqui.
Yasmin: - Não fiz nada, tia!
Professora M: - Não fez nada? Parabéns Yasmin.
(Outras crianças também dizem: "Eu não fiz nada, tia".)
No trecho acima, a recompensa verbal para uma conduta bem-sucedida incentivou a imitação das demais crianças, criando uma relação de estranhamento entre processo e produto das atividades, que eram construídas visando a prêmios extrínsecos às próprias ações. Embora, segundo nossa perspectiva, fossem excessivamente obedientes, a professora costumava dizer que as crianças a agrediam, e ocasionalmente mencionava seu desejo de bater nos educandos5.
O trecho também indica um fenômeno que se acentuou ao longo do semestre: a delação das "infrações" no grupo, acompanhada pela discriminação das crianças menos queridas pela professora, imitando-a (Cláudia, a menina mais querida pela docente, chegou a internalizar gestos e expressões faciais da professora, a quem imitava com perfeição ao brincar de escolinha). Esses elementos configuraram a instauração de um regime jurídico-religioso na turma, tal como relata Ratto (2002) após análise dos livros de ocorrência de escola pública curitibana.
Participando do desenvolvimento concreto da consciência dos alunos, as significações que a educadora portava generalizaram-se no grupo, por meio da elaboração de sentidos pessoais por parte de cada criança acerca de seus pares e de si próprias. As que gozavam de melhor posição na hierarquia da classe eram mais procuradas pelos colegas no parque; quem estava em pior posição, ficava de lado. Sem prejuízo de outras causas, esse fenômeno determinou-se pelas relações escolares em 2003: as crianças (que nunca se encontravam fora da escola), no início do ano, não formavam subgrupos para brincar.
Marcela desenvolveu posição interna que visava a alterar sua posição no meio social: as atividades por ela realizadas, de modo muito mais frequente do que as das demais crianças, dirigia-se a buscar elogios de uma professora hostil à sua pessoa.
Extrato do dia 23/06/03 - Observação participante
Atividade: Cópia
(Marcela está sentada ao lado de Lucas. Sopra a borracha da carteira.)
Professora: - Não é pra soprar nada, não.
Marcela (para Lucas): - Fala pa tia que o Marcelinho tá me soprando.
Lucas: - Ô tia, o Marcelinho tá soprando ela.
(A professora repreende Marcela.)
Marcela: - É o Lucas que tá falando.
Professora: - Não é pra falar. É lousa, caderno, lousa.
(Lucas copia só as letras. Olha o trabalho de Marcela, e ela olha o dele.)
Professora: - Vai trabalhar o seu, deixa o Lucas fazer o dele.
(Bela levanta-se e leva o cabeçalho para que a professora veja, antes de acabá-lo. Marcela levanta-se e mostra de longe para a professora.)
Professora (para Marcela): - Não, não vejo nada daqui, pode terminar.
(Lucas começa a 'embromar'. Brinca com o lápis e a borracha. Marcela levanta-se de novo e mostra o cabeçalho para a professora.)
Professora: - Tá ficando lindo, Marcela, pode fazer. (Marcela sorri largo.)
Marcela: - Ô tia, o Lucas tá furando a borracha dele!
Professora (elevando o tom de voz): - Ô Marcela, CUIDA DA SUA VIDA. Lucas, para de furar a borracha.
(Marcela diz algo a Lucas, que agora canta.)
Professora: - Marcela, para de cutucar o Lucas.
Marcela: - O Lucas não quer parar de cantar. (A professora não responde.)
O amor das crianças para com a professora manifestou-se de outras formas6. No Experimento 2, em que deviam realizar vários desenhos, os pequenos interessaram-se pela atividade apenas quando lhes foi dito que desenhariam para a professora. Faziam-no, inclusive, sem que ninguém o pedisse imediatamente, realizando também ações antes solicitadas pela educadora, como baixar a cabeça sobre a carteira - em seguida, demandando a aprovação da docente (cena que lembra o disciplinamento dos corpos retratado em Foucault, 1977). Cremos que o extraordinário poder adquirido sobre as crianças, que faziam quase tudo que lhes era ordenado, pode ser relacionado à organização das relações escolares, na qual não havia muito tempo para atividades relativamente livres da influência da educadora. Além disso, na idade pré-escolar, os estímulos-objeto retêm ainda as crianças no tempo-espaço do meio social, predominando sobre seu alheamento subjetivo com relação ao mesmo. Notável observar que, no decorrer do jogo protagonizado, as narrativas que as crianças elaboravam sobre a relação pedagógica sempre conciliavam a submissão aos adultos com a satisfação dos próprios desejos, de modo convergente com Vygotsky (1931/1994).
Seus jogos protagonizados expressavam relações contratuais que, por vezes, se originavam no discurso escolar hegemônico: a educadora com frequência falava de sua dedicação pelas crianças, exigindo-lhes a contrapartida em obediência. A domesticidade de tal relação, expressiva de uma educação infantil que não vem se profissionalizando de modo satisfatório, (conforme relatam Campos et al., 2006), expressava-se no jogo protagonizado: observamos, por duas vezes, o incentivo delas para que a "professora" de suas brincadeiras também representasse o papel de "mãe".
As crianças internalizavam não apenas as condutas necessárias às "atividades pedagógicas" esvaziadas de conteúdo, mas também o papel de alunos dessa professora em particular. O adulto, a princípio existente na exterioridade da consciência, tornava-se parte concreta da individualidade da criança. As crianças precisavam, antes de tudo, dominar: 1) o corpo; 2) a memória operacional (programação e revisão das ações); 3) a atenção (verbal às instruções; visual, aos modelos de atividade); 4) a percepção do processo de execução das atividades. Assim se evidenciava a internalização das ações proibidas, a função reguladora da linguagem como aspecto mediador de sua conduta. Construíam-se relações de oposição entre núcleos de significação, os quais opunham ações permitidas e proibidas, fossem elas no presente (sincronicamente) ou no passado (diacronicamente), pela professora (Cláudia já sabia vários elementos gerais da atividade, antes de começá-la).
Pudemos identificar a instauração de uma normatização moral e regulação das funções corporais: fundamentos de uma prática moderna, civilizatória que, especialmente a partir do século XIX, passou a modelar a educação infantil, regulando as distâncias e as condições de aproximação entre as pessoas. Conforme aponta Ratto (2007, p. 104): "Trata-se de explorar as variadas maneiras por meio das quais a escola direciona o que vemos em nós, como nos dizemos - discursando e narrando sobre o que e quem somos -, como nos julgamos e nos governamos". No início do ano, as crianças tocavam-se ao brincar, beijavam-se, abraçavam-se. Gradativamente, sua convivência tornava-as mais distantes física (a professora condenava os carinhos entre elas) e psicologicamente. Frequentemente vigiando as relações entre as crianças, a educadora traduzia-lhes as falas e ações em termos de certo e errado. A escola parecia, gradativamente, tornar-se um local mais triste, meio social essencialmente competitivo e não cooperativo, à semelhança daquela analisada por Palmieri e Branco (2007).
As contínuas solicitações de silêncio feitas pela professora solapavam a comunicação e, consequentemente, a ontogênese da posição interna e da linguagem a partir da relação com os seus pares. Esse processo tende a dificultar a aquisição de novos modelos de comportamento e a identificação com outros indivíduos, alienando quanto à variedade e riqueza da consciência humana: há tendência à formação de indivíduos sensíveis fundamentalmente às significações denotativas de poder. Assim, vemos a propriedade das colocações de Martins (2000): o lugar público não é de pessoas reais, mas apenas supostas. A partir de frágeis indícios, mormente de preconceitos, imagina-se o "outro" de uma relação. Nessa desagregação das relações de pertencimento comunitário - aspecto notável, pois incidente sobre crianças moradoras de um mesmo bairro, com perfil socioeconômico semelhante - identificamos um elemento próprio das sociedades modernas (Heller, 2000).
Como conclusão desse tópico, podemos perceber que, na ontogênese da consciência pela mediação das relações pedagógicas, esboça-se o retrato de um país algo anômalo, cujos habitantes revelam contradições históricas macrossociais. Muitas crianças brincavam com telefone celular e vídeo-game, competiam entre si, assistiam a programas adultos na televisão, mas internalizavam a exigência da submissão incondicional à palavra da professora, sem grandes contrapartidas de aprendizagem. Com isso, pode-se supor que o sentido das palavras comporta memórias e sentimentos contraditórios, inesgotáveis, compondo uma das várias fases da ontogênese, a partir das quais se forma a posição interna e a consciência do meio social. Ou seja: "capas" ontogenéticas de distinta antiguidade:
O indivíduo em sua conduta manifesta em forma cristalizada diversas fases de desenvolvimento já acabadas. Os múltiplos planos genéticos do indivíduo, que incluem capas de distinta antigüidade, conferem-lhe uma estrutura sumamente complexa e por sua vez lhe servem de escada genética que une, através de uma série de formas de transição, as funções superiores do indivíduo com a conduta primitiva na onto e na filogênese. A existência das funções rudimentares confirma do melhor modo possível a idéia da estrutura geológica do indivíduo e introduz essa estrutura no contexto genético da história da conduta. (Vygotski, 1931/1995, p. 68, trad. nossa)
Considerações finais
Com Martins, consideramos que os cientistas analisam a interpretação do sujeito sobre os processos interativos nos quais vive, embora, geralmente, as origens de seu cotidiano lhe estejam
incompreensíveis: "A interferência interpretativa do pesquisador se dá no desvendamento das conexões entre o visível e o invisível, entre o que chega à consciência e o que se oculta na alienação própria da vida social" (2008b, p. 13-14). Neste trabalho, procuramos nos orientar por esse pressuposto. A sociologia de Martins fundamenta-se em tentativa de desvelar a historicidade do cotidiano e da cultura que nele se objetiva, muitas vezes, ocultando-se para os olhos dos seus próprios agentes.
Tanto da análise desse cotidiano como da história do Brasil, Martins (2000) capta as várias contradições que, ao longo da história, tornaram o nosso país um expoente da modernidade anômala. Anômala como, por exemplo, é - no interior de uma ordem social capitalista - a aceitação submissa de grandes corporações financeiras que se valeram do trabalho escravo no seu processo de expansão durante o século XX. O autor descreve, em comparação com a Inglaterra:
o mundo brasileiro é mais o mundo da fé e da festa do que o mundo das regras nas relações de trabalho, do direito costumeiro e dos privilégios ligados às corporações profissionais. Sociedade originada da escravidão e da desigualdade étnica e social institucionalizada nos estamentos [...] nunca dispôs de um código de direitos sociais. Foi mais a sociedade do castigo e da privação do que a sociedade do privilégio. [...] E mesmo o Brasil independente, até o Brasil republicano, foi e tem sido lento e tardio no reconhecimento da igualdade social de todos, negros e brancos, mulheres e homens, pobres e ricos. (Martins, 2000, p. 33)
Martins (2000) ressalta o perfil epidérmico e desconfortável da modernidade brasileira - ela é o fardo nas costas do escravo negro, aparente negação do capitalismo industrial; o panóptico em uma vila de operários da São Paulo Railway, que um século depois ainda lança às ruas o ameaçador olhar fantasma da disciplina e do poder do capital. Esse mundo colonial persiste, a despeito das interpretações positivistas que relegaram ao passado aspectos tradicionais da cultura popular, projetando-nos um falso autoconceito de modernidade. O panóptico ergue-se robustamente, vigilância quase-transcendente, em uma cultura do medo no qual ainda se afirma o poder religioso, pelo qual: "a cristandade concebe-se como cidadela permanentemente sitiada pelo inimigo do gênero humano: o Diabo" (Chaui, 2011, p. 139). Tanto na fábrica de Martins (2008a) quanto na escola infantil que investigamos - ali travestido de futuro interno da FEBEM - o tinhoso ainda tem feito das suas.
A formação privatista de nosso Estado realizou-se na forma inicial das capitanias hereditárias, sob o fiel escudo da Santa Sé (Chaui, 2000) - instaurando religiosidade, domesticidade, familismo e clientelismo em nossas relações sociais, elementos complementados pelo Estado como Poder Maior, "quase transcendental"; anterior e exterior à sociedade, situado em território desconhecido para o sujeito da vida cotidiana. Chaui observa ainda que desde os anos 1980 as ideias de nação e nacionalidade mostraram-se consolidadas, tendo, entre suas tarefas, "legitimar nossa sociedade autoritária, oferecer mecanismos para tolerar várias formas de violência e servir de parâmetro para aferir ou avaliar as autodenominadas políticas de modernização do país" (idem, p. 29).
A professora participante de nossa pesquisa, que ignorava os fundamentos políticos de sua prática, reproduzia uma cultura conservadora, religiosa e clientelista, aparecendo como liderança injusta, que distribuía aleatoriamente suas preferências pessoais. Sendo sociedade lenta no reconhecimento dos direitos humanos em geral, expõem-se as crianças a possíveis abusos nos espaços institucionais, e o educador infantil - a um só tempo agente e paciente de violência - participa de um regime pedagógico autoritário, precocemente instaurado na vida consciente dos alunos. Como sintetizam Campos et al.:
Velhas concepções, preconceitos provenientes de uma história de colonização e escravidão que ainda marca o presente, rotinas e práticas herdadas de tradições assistencialistas, convivem e resistem às propostas mais generosas que presidiram as novas diretrizes legais, baseadas em uma visão da criança como sujeito de direitos, orientada pelos conhecimentos da Psicologia do Desenvolvimento e informada pelas noções de respeito à diversidade. (2006, p. 117)
Imersas nesse universo cultural e relativamente esvaziado de tensões políticas, nem sempre as educadoras infantis percebem problemas significativos em seu trabalho. Pesquisa de Piotto et al. (1998), com quatro tipos de creches em Ribeirão Preto (particular, universitária, municipal e filantrópica), mostrou que o julgamento das equipes sobre seu trabalho era bastante positivo, não obstante a realidade das instituições não primasse pela qualidade, pensada a partir dos parâmetros Interações; Programa, Nutrição, Saúde e Práticas de Segurança; Direção da Creche e Desenvolvimento da Equipe.
De modo similar, é possível afirmar que a equipe da EMEI pesquisada não notava aspectos a alterar em suas práticas. A professora participante negou que houvesse problemas importantes no processo de trabalho, embora tivesse manifestado, repetidas vezes, insatisfação ao realizá-lo, o que, como discutido anteriormente, pode se relacionar ao seu momento no ciclo de vida profissional. As crianças ficavam sob controle dos adultos, as famílias requeriam apenas cuidados corporais/aprendizagem básica, e as professoras não participavam de processos de formação amplos e sistemáticos, nos quais fosse possível participar de práticas grupais organizadas para romper com a naturalização própria do trabalho alienado e modelos de política fundados no clientelismo. Daí a reprodução de um Brasil essencialmente arcaico na vida pré-escolar pública, sendo a história de formação singular à professora a determinação (imediatamente) mais influente na ontogênese da consciência infantil.
Mas esse estado de relativo "equilíbrio" educacional não pode ser durável. Hipoteticamente falando, não seriam as situações de violência psicológica na infância uma das determinações das futuras agressões dos adolescentes contra professores, relatos que abundam na escola pública brasileira? Com o desenvolvimento da consciência dos alunos, é ilusória a expectativa de que sua submissão pudesse persistir durante longo tempo. E, uma vez que se tenham desenvolvido consciências reprodutoras de papéis sociais que autorizam o uso do poder em uma hierarquia social de talhe desigual na distribuição de favores, podemos compreender a explosão da violência na relação de adolescentes que disputam poder com seus professores, agridem-nos e vandalizam a escola (note-se o relato de Patto, 2010, segundo quem eram principalmente os ex-alunos com história de fracasso escolar que rondavam ameaçadoramente sua antiga escola).
Compreender a natureza social e histórica da consciência é elemento prioritário tanto para educadores, como para psicólogos escolares e outros profissionais, repensando os conteúdos e as oportunidades para formação de professores que, tal como os que participaram de nossa pesquisa, não têm acesso a cursos regulares, tampouco a ensino superior de qualidade. Havia tempo para a preparação das atividades, mas não formação ou organização escolar participativas, necessárias ao trabalho criativo que caracteriza algumas experiências pioneiras da educação infantil no mundo (como as de Reggio Emilia e as da pedagogia Freinet, conforme assinalam Edwards et al., 1999, e Groupe Maternel Liégeois, s/d), tornando o meio social da educação infantil um espaço de cuidados, vivência, exploração do mundo e das relações sociais.
Ainda são escassos os estudos que procuram interpretar o desenvolvimento infantil na sociedade brasileira. Cumpre trabalhar na evolução de uma psicologia concreta do indivíduo brasileiro, realizando uma apropriação criativa da psicologia histórico-cultural, que, cada vez mais, afirma-se como quadro teórico-metodológico extremamente rico para os estudos do desenvolvimento social e da personalidade.
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1 As professoras, no início do ano, decidiam qual nível de ensino se responsabilizaria por quais conteúdos: o Jardim II se responsabilizaria pelo ensino dos números até o 5, além de algumas letras, datas comemorativas, hábitos psicomotores (cortar, colar, pintar), autonomia da criança no cotidiano escolar (guardar mochilas, etc).
2 Em ampla pesquisa sobre violência psicológica nas escolas de Guaratinguetá (Koehler, 2003), os alunos identificam que as professoras acima dos quarenta anos são as que mais gritam. Apoiando-se em Huberman, Koehler aponta essa idade como de tendência ao desinvestimento na carreira docente, acompanhado por sentimentos de irritabilidade e ansiedade, além de sintomas psicossomáticos. Podemos, certamente, atribuir irritabilidade à professora participante da pesquisa, acompanhada de esperanças reiteradamente manifestas de se aposentar já no ano de 2007.
3 As orações duravam, em média, 15 segundos e tinham a função de agradecer ou pedir proteção a "Deus" no lanche, parque, na pré-escola em geral.
4 Segundo Koehler (2003), dentro da instituição escolar ocorre uma violência que não deixa marcas explícitas - a violência que por meio de palavras, gestos e que pode ser denominada violência psicológica. A partir de Tomkiewicz, Koehler (2003) assinala a violência escolar como modalidade da violência institucional que se define como ação cometida dentro de uma instituição, ou ausência de ação que cause à criança sofrimento físico ou psicológico inútil e/ou bloqueie seu desenvolvimento posterior.
5 Sendo sempre colocadas na posição de agressoras, e tendo suas ações negativamente interpretadas pela educadora como atos de brincadeira e fuga à aula, pareceu-nos que as reprovações revestiam de culpa as ações infantis. As crianças não podiam se furtar ao prazer de brincar, mas esse prazer era alquebrado pela reprovação da educadora.
6 Podemos recorrer à definição de Espinosa, para quem "o amor nada mais é que a alegria, acompanhada da idéia de uma causa exterior, e o ódio nada mais é do que a tristeza, acompanhada da idéia de uma causa exterior. Vemos, além disso, que aquele que ama esforça-se, necessariamente, por ter presente e conservar a coisa que ama" (1677/2008, p. 181). A doutrina dos afetos espinosana era de grande interesse para o futuro da psicologia histórico-cultural, razão pela qual aqui a utilizamos, a despeito da necessidade de maiores estudos, tal como observa Toassa (2011).