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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975

Psicol. educ.  no.37 São Paulo dez. 2013

 

ARTIGOS

 

Psicologia, linguística e fracasso escolar: percepção de construção de conhecimento e uso da língua1

 

Psychology, linguistic and school failure: perception knowledge construction on the use of language

 

Psicología, lenguaje y fracaso escolar: percepción de la construcción del conocimiento y uso de la lengua

 

 

Tatiana Bezerra Fagundes

Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutoranda em Educação (UERJ). Professora das Séries Iniciais do EF (SME-RIO). tatianabfagundes@hotmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo é um estudo de natureza teórico-conceitual em que se problematizam alguns pressupostos presentes no campo da Psicologia e da Linguística e a sua relação com o fracasso escolar dos sujeitos sociais que se encontram nas escolas atualmente. Busca-se compreender em que medida esses pressupostos ressoam nas teorias que procuram alicerçar as bases da construção do conhecimento e do uso da língua por diferentes sujeitos e como se constituíram como verdade, deixando à margem uma parcela significativa da população, relegada ao submundo do não-falar e não-pensar. A partir dessa análise, tornam-se evidentes os contornos de um projeto sociocientífico que viria a contribuir para justificar os diferentes rendimentos dos alunos e seu fracasso na escola indo de encontro às suas necessidades de aprendizado escolar. Nesse contexto, aponta-se a emergência de estudos que possam gerar juízo críticos e críveis a respeito da pluralidade de construção de conhecimento e de línguas de modo a alargar as possibilidades de desenvolvimento humano e dos processos de ensino-aprendizagem.

Palavras-chave: Psicologia; Linguística; produção de conhecimento; língua; fracasso escolar.


ABSTRACT

This is a study of theoretical-conceptual nature. It problematizes some assumptions current in the psychology and linguistics fields and its relation with the school failure of social subjects who are in schools today. It seeks to understand in what extent these assumptions echoes on theories, which builds the knowledge construction bases of language use, as well as, the use of language by different subjects and how it constituted as true leaving aside a significant portion of the population, relegated to the underworld of those who do not-speak and non-think. This analysis evidentiates contours of a social-scientific project that would contribute to justify different outcome of the students as well as their failure in school concurring against their needs for school learning. The context explain points out to the emergence of studies that generate credible and critical judgment regarding the plurality of the construction of knowledge and language in order to broaden the possibilities for human development and of teaching and learning processes.

Keywords: Psychology; Linguistics; knowledge construction; language school failure.


RESUMEN

Este artículo es un estudio teórico-conceptual en el que si problematiza algunos supuestos presentes en el campo de la psicología y la lingüística y su relación con el fracaso escolar de los sujetos sociales que están en las escuelas de hoy. Buscamos entender en qué medida estos supuestos resuenan en las teorías que buscan apuntalar los soportes de la construcción del conocimiento y el uso del lenguaje por diferentes personas y en su composición como la verdad, dejando a un lado una parte importante de la población, relegada al inframundo de no hablar y no pensar. A partir de este análisis, se hace evidente contornos de un proyecto científico-social que justificaría los diferentes rendimientos de los estudiantes y su fracaso en la escuela. En este contexto, muestra a la urgencia de estudios que generan juicio creíble y crítico con respecto a la pluralidad de la construcción del conocimiento y el lenguaje para ampliar las posibilidades de desarrollo humano y los procesos de enseñanza y aprendizaje.

Palabras clave: Psicología; Lingüística; producción del conocimiento; lenguaje; fracaso escolar.


 

 

Tema recorrente nos estudos educacionais, o fracasso escolar continua se impondo como um padrão na realidade educacional do país (Patto, 1999; Mattos, 2007; Senna, 2007). No entanto, ao longo dos últimos anos, estudos originais começaram a abordar as discussões que o tangenciam a fim de perceber a natureza dos fenômenos que, conjuntamente, contribuem para o fracasso do aluno na escola (Mattos et al., 2011). Entre esses estudos, encontram-se aqueles que têm se dedicado à problematização de teorias que têm grande eloquência e influência na área de humanas, sobretudo em educação, mas que acabam indo de encontro às necessidades de aprendizado dos alunos e, em vez de legitimar suas formas de aprendizagem, tornam-se aliados na manutenção dos mecanismos de exclusão (Senna, 2007; Calhaú, 2008; Lopes, 2010). Este trabalho enquadra-se na categoria de estudos descritos acima e parte do pressuposto de que as ideias que ainda circulam a respeito das dificuldades de aprendizagem das crianças oriundas dos segmentos menos favorecidos da sociedade brasileira não são fruto do momento atual. Elas estão assentadas sobre uma base de construção sociocientífica que viria a justificar os diferentes rendimentos das crianças no que se refere ao aprendizado escolar, causando consequências as mais perversas.

O presente artigo desenvolve-se na tentativa de resgatar essas bases, para que seja possível visualizarem-se os contornos de um projeto educacional que parece não ter sido construído para os sujeitos sociais que se encontram nas escolas atualmente (Senna, 1997).

Tendo as áreas da Psicologia da aprendizagem e dos estudos da linguagem como principais temas de problematização, tenta-se confrontá-los com os sujeitos escolares do país e as suas demandas, no intuito de mostrar a necessidade de desenvolvimento de teorias mais próximas desses sujeitos e, desse modo, buscar alternativas para se repensar tanto a educação, quanto os processos de ensino-aprendizagem para a pluralidade e a interculturalidade (Ribeiro, 2008; Fleuri, 2003).

Possibilitam a sustentação e o desenvolvimento do primeiro tópico desse artigo "A escola, a Psicologia e o fracasso escolar", o estudo de Patto (1999) que trata em profundidade a natureza da relação entre a escola, a Psicologia e o fracasso escolar e os estudos de Senna; Portes (2007) e Coelho (2007) que adotam uma perspectiva crítica diante das teorias que têm servido de suporte às práticas de ensino-aprendizagem no contexto das escolas.

Esses autores ajudam no desvelamento de um tipo ideal de sujeito de conhecimento do qual se afasta o aluno brasileiro e, em alguma medida, justifica o fracasso desse aluno na escola. Os estudos de Vygotsky (1934/1993; 1935/1998) também fazem parte da discussão desse primeiro tópico e nele se encontram alternativas teóricas que permitem repensar o mito do sujeito ideal e a prevalência da cultura científica diante das demais culturas (Hühne, 2008).

O segundo tópico "As ciências da linguagem, a escrita e o fracasso escolar" parte dos estudos de Senna (2002), que discute a natureza das ciências da linguagem e revela seu comprometimento com uma ordem científica a serviço da exclusão. Suas análises são acompanhadas por algumas considerações de Bagno (2010, 2002), Lucchesi (2004) e Candeias (2005) que adotam uma postura de desmistificação diante da existência de uma suposta língua universal capaz de abarcar toda a diversidade humana e ressaltam seu caráter social, bem como sua relação com um contexto de mundo que, via de regra, visa a excluir determinados sujeitos. A partir dessas discussões nota-se a evidente imposição teórica que buscou selecionar para excluir e manter à margem os sujeitos sociais que se afastam da idealidade do sujeito dotado de razão, cujo pensar e o falar deveriam se enquadrar na descrição "correta" do uso da língua e do pensamento.

Inicia-se a problematização proposta a partir do movimento de maior expressão no qual desembocou a cultura científica e nasceram as chamadas ciências humanas, qual seja, o Iluminismo. Tal momento, contribui para situar a relação entre a Psicologia, a Linguística e o fracasso escolar representado, sobretudo, pelo custo de adequação a determinadas formas de produção de conhecimento e uso da língua.

 

A ESCOLA, A PSICOLOGIA E O FRACASSO ESCOLAR

Durante o século XVIII e nas primeiras décadas do século XIX, a classe burguesa ganhou notoriedade pelo seu acúmulo de capital, o que fez com que ela se constituísse como a porta-voz do sonho "humano" de um mundo igualitário, livre e fraterno. Sua visão de mundo fora profundamente marcada pela crença no progresso do conhecimento humano, na racionalidade, na riqueza e no controle sobre a natureza. Essa crença foi disseminada e acompanhada pela certeza de que aquele sonho seria concretizado na sociedade liberal industrial.

No entanto, a ordem feudal que ainda vigia no período de transição da monarquia para a sociedade de classe, passou a fazer frente aos avanços econômicos e políticos da parcela enriquecida da plebe, tornando-se um grande obstáculo à realização das aspirações burguesas. Por conta disso, a burguesia, para alcançar seus objetivos, tenta instalar uma ordem social que, em tese, libertaria todos os cidadãos do "tradicionalismo medieval obscurantista, supersticioso e irracional, que dividia os homens em estruturas hierárquicas segundo critérios indefensáveis" (Patto, 1999, p. 40).

Com o progresso ocorrido na produção e no comércio, cujos resultados eram tributados à racionalidade científica e econômica, o ideário iluminista foi ganhando força. Porém, pouco tempo depois de sua ascensão, a burguesia já se constituía como uma classe que se diferenciava das demais. "Entre as pequenas conquistas de uma minoria do operariado e a acumulação de riqueza da alta burguesia cavara-se um abismo que saltava aos olhos" (Patto, 1999, p. 39) e por mais que se enfatizasse a melhoria geral das condições de vida trazidas pela nova estrutura social, a situação de pobreza predominante entre a maior parte dos trabalhadores era flagrante, de modo que contradizia os ideais da revolução francesa.

Nesse contexto bipartido é que nascem e se oficializam as ciências humanas, trazendo consigo o modelo de produção de conhecimento das ciências exatas (Hühne, 2008) e a observação do fato de que os novos homens bem-sucedidos, aparentemente, o eram por sua habilidade e mérito pessoal e não por algum privilégio marcado por ocasião de seu nascimento. A providência divina passa a ser substituída pela fisiologia, ciência positiva e experimental que, antes da Psicologia, voltou-se para a questão das diferenças raciais e individuais.

Partindo dessa base sociocultural, a Sociologia, a Antropologia e a Psicologia, pretendendo gerar verdades objetivas, legitimam a desigualdade social como algo inerente à sociedade. Caberá especificamente à Psicologia, gestada nos laboratórios de fisiologia experimental e fortemente influenciada pela teoria darwiniana de evolução natural, "descobrir os mais ou menos aptos a trilhar a 'carreira aberta ao talento' supostamente presente na nova organização social" (Patto, 1999, p. 58), o que se iniciou com a Psicologia diferencial.

A partir da Psicologia diferencial, isto é, a Psicologia que queria investigar quantitativa e objetivamente a diferença entre grupos e indivíduos, houve uma preocupação em se determinar as diferenças individuais e distinguir cientificamente os normais dos anormais, os aptos dos não aptos. Nesse escopo, Francis Galton, um dos expoentes da Psicologia diferencial, sustentou que a inteligência era hereditária e motivou a criação dos testes psicológicos: "Medir as 'aptidões naturais' tornara-se o grande desafio que os psicólogos se colocaram na virada do século"2(Patto, 1999, p. 63-64).

Nesse contexto, o professor da Universidade de Genebra e contemporâneo de Piaget no Instituto Jean Jacques Rosseau, Edouard Claparède, se pôs a aprimorar os instrumentos de medida que pudessem rastrear as diferenças individuais e saber, o mais precocemente possível, quem eram os "retardados" e quem eram os "bem dotados". A partir disso, o psicólogo defendeu a criação de classes especiais para os primeiros e escolas especiais para os segundos.

O modelo segregador dos testes psicológicos e da inteligência hereditária como fatores determinantes para se aferir o grau de normalidade dos sujeitos sofreu algumas reformulações quando alguns conceitos oriundos dos estudos psicanalíticos foram incorporados à Psicologia diferencial. Nesses estudos, destacava-se a dimensão afetivo-emocional na determinação do comportamento e a influência ambiental sobre o desenvolvimento da personalidade nos primeiros anos de vida. Tal incorporação, não provocou nenhum tipo de mudança substancial no sentido de reconhecer a mesma capacidade intelectual dos sujeitos sociais tomados como "retardados", diante dos demais. Ela passou somente a ser mais uma justificativa para as dificuldades de aprendizagem que os pobres apresentavam. Essas, de hereditárias, passaram a ser consideradas culturais. Tal cultura fora tomada como primitiva, atrasada e rude em comparação aos grupos culturais dominantes. "A ausência, nas classes dominadas, de normas, padrões, hábitos e práticas presentes nas classes dominantes, foi tomada como indicativa do atraso cultural desses grupos" (Patto, 1999, p. 68).

A visão sobre o caráter hereditário da inteligência viria a ser abalada quando da elaboração da epistemologia genética de Jean Piaget, que sustentou a existência de uma capacidade intelectual universal que independe da hereditariedade. Para ele, "só o funcionamento da inteligência é hereditário, e só gera estruturas mediante uma organização das ações sucessivas, exercidas sobre objetos" (Piaget, 1979/1983, p. 39). A partir dessa premissa, Piaget derivou sua teoria a respeito da organização da mente humana.

De acordo com Senna e Portes (2007), Piaget deu corpo ao conceito científico de mente como um organismo simbólico inerente à natureza ontológica da biofisiologia humana e, a partir disso, defendeu o pressuposto de que a inteligência é inata e sua operacionalidade se desenvolve ao longo da maturação cognitiva por pré-disposição neurofisiológica na ação do sujeito sobre a realidade e dessa sobre ele. A inteligência hereditária e o meio cultural pobre, portanto, não deveriam ser tomados como as razões pelas quais as crianças dos segmentos socialmente desfavorecidos apresentavam "dificuldades para aprender".

A teoria de Piaget universalizava a inteligência partindo do pressuposto de que a experiência de mundo faz parte de um fenômeno de natureza exclusivamente lógico causal. "Assim é que cada coisa é tão somente uma coisa, alijada de conceito social, e cada sistema de coisas é tão somente um sistema de relações lógico-formais, sem qualquer interferência de valores culturais" (Coelho, 2007, p.120).

Dentro do contexto de mundo e de realidade considerado por Piaget, as experiências provocadas sobre os sujeitos e desses sobre o mundo é inequívoca no que se refere à construção de conhecimento, conforme ele descreve. Lembremos que na elaboração de sua teoria estamos lidando com um espaço público urbano que oferece aos sujeitos sociais experiências de mundo cientificamente orientadas (Garin, 1996). Se, de outra maneira, os sujeitos estão à parte da urbanidade científica, eles também irão construir conhecimento, no entanto, esse conhecimento estará orientado por experiências de mundo outras que os levarão a construírem-no em relação com o seu mundo.

A generalização dos pressupostos piagetianos para diferentes contextos, com a suposição de que a inteligência inerente à condição humana levaria a uma construção do conhecimento cientificamente orientada, independente das variadas situações socioculturais, aprofundou a certeza quanto a incapacidade intelectual de determinados grupos, uma vez que:

Há por trás disso a crença em uma suposta condição de normalidade entre aqueles que reagem mentalmente segundo as expectativas da teoria de Piaget, ao passo que, consequentemente, há também a crença em uma suposta anormalidade entre aqueles que, por quaisquer motivos, não reajam mentalmente segundo as expectativas dessa teoria. (Coelho, 2007, p. 121)

As concepções oriundas do trabalho de Piaget seriam reformuladas quando os estudos de Vygotsky foram resgatados e deram à cultura um valor substancial para o processo de construção de conhecimento. Segundo ele, as funções mentais superiores3 são formadas socialmente e transmitidas através da cultura: "se modificarmos os instrumentos de pensamento disponíveis para uma criança, sua mente terá uma estrutura radicalmente diferente" (Vygotsky, 1935/1998, p.169). Diz ainda Vygotsky que o uso de signos "conduz os seres humanos a uma estrutura específica de comportamento que se destaca do desenvolvimento biológico e cria novas formas de processos psicológicos enraizados na cultura" (1998, p. 54).

De acordo com Senna (2007), Vygotsky desloca sua atenção para "os valores agregados a cada uma das coisas pela experiência social, em esfera local e temporalmente determinada" (p. 230). Isso provocaria um novo olhar sobre os sujeitos sociais que, agora, não teriam mais sua inteligência conformada a uma construção científica que eles não poderiam ter fora do espaço da cultura científica, ela seria legítima dentro de seu próprio contexto.

A contribuição de Vygotsky no sentido da revelação de mentes que produzem conhecimentos relativos aos seus contextos de mundo deu a elas a autonomia e a legitimidade necessárias para que fossem reconhecidas em sua absoluta normalidade. Sua teoria dera o pontapé inicial no sentido de dessacralizar a cultura científica em seu papel de construção única da verdade, o que viria a acontecer mais tarde com os movimentos que caracterizam o período que está sendo chamado de pós-moderno.

No entanto, nas circunstâncias de seu tempo, Vygotsky destacou o conhecimento científico, por sua natureza, como aquele que seria capaz de aprimorar e levar o intelecto a um grau mais elevado dando, portanto, uma valorização maior à cultura científica veiculada pela escola diante das demais. De acordo com ele, "a disciplina formal dos conceitos científicos transforma gradualmente a estrutura dos conceitos espontâneos da criança e ajuda a organizá-los num sistema; isso promove a ascensão da criança para níveis mais elevados de desenvolvimento" (Vygotsky, 1934/1993, p. 100).

Nesse contexto, a educação escolar, dado que o "'bom aprendizado' é somente aquele que se adianta ao desenvolvimento" (Vygotsky, 1934/1993, p. 116-117) teria a função precípua de, por intermédio dos conceitos científicos, fazer avançar o desenvolvimento da criança. Apesar desses conceitos não serem absorvidos já prontos, o ensino e a aprendizagem, segundo Vygotsky (1934/1993), desempenhariam um importante papel na sua aquisição (p.75).

Nos tempos atuais, em que vivemos sob os princípios de uma educação para todos, numa perspectiva inclusiva, "buscando dar sentido a uma ciência sócio-histórica e hipertextual" (Senna, 2007, p. 167), a educação deve ter clareza de que ninguém, sobretudo no Brasil, tem o desejo de se desenvolver para ser como o outro, "mas para construir um terceiro, formado com um pouco de cada um e por um tanto de ineditismo" (Senna, 2007, p. 224).

Nesse sentido, a aprendizagem deveria "incluir o princípio de que os sujeitos buscam transformar-se mutuamente para se integrarem e constituírem um grupo social" (Senna, 2007, p. 51). Ensinar, por sua vez, deveria ser compreendido como o princípio pelo qual se leva o outro a viver novos conceitos e a incorporá-los aos anteriores. Dessa maneira, ensinar e aprender tornam-se elementos indissociáveis de um processo de educação para a vida social (Senna, 2007, p. 53).

Se por um lado a perspectiva de Vygotsky pode ser adotada para desenvolver práticas escolares que levem em consideração as formas de produção do conhecimento do aluno, atestando, inclusive, sua normalidade do ponto de vista cognitivo, por outro lado, essa mesma perspectiva pode ser utilizada para forçar a entrada do aluno na ordem científica de mundo, de maneira que ele venha a "progredir" em seu desenvolvimento. Caso isso não aconteça, o aluno pode ser apenado por uma suposta "dificuldade de aprendizagem" que só se caracteriza no campo de conhecimento puramente científico.

A teoria vygotskyana vista por esse prisma poderia conduzir ao uso do conceito de zona de desenvolvimento proximal4 exclusivamente para levar o aluno a construir conceitos científicos, tentando formatá-lo para ser um igual, nos parâmetros de igualdade modernos, isto é, erigir o homem universal carregado de virtudes e comportamentos que o torne comparáveis ao cidadão da urbanidade científica, fazendo com que ele pareça o que não é, ou não quer ser: burguês (Senna, 1997, p. 12).

Progredir no desenvolvimento e na construção de conhecimento não se resume à forma científica de se perceber o mundo. Todavia, não se pode negar ao aluno as possibilidades de ajuizamento trazidos por essa percepção e a possibilidade de ele avançar a partir dela. No entanto, tal avanço, não deve pretender a negação e ruptura com os modos como ele também avança no sentido do entendimento e do aprendizado do e no contexto sociocultural em que vive (Fagundes, 2012). Daí deriva a necessidade de se discutirem alternativas teóricas para que seja possível ao aluno transitar entre a cultura científica e sua cultura, sem fazer com que uma se sobreponha a outra. Essa importante temática merece uma discussão à parte e ultrapassa os limites propostos para o presente texto. Cumpre ressaltar, todavia, que partindo dela, possivelmente novas abordagens teóricas podem emergir, contribuindo para a construção de bases inovadoras e inclusivas de produção do conhecimento.

 

AS CIÊNCIAS DA LINGUAGEM, A ESCRITA E O FRACASSO ESCOLAR

Outra área de produção de conhecimento que veio a reboque da cultura científica a ser problematizada nesse artigo é a Linguística, cuja influência sobre o campo da Educação é tão significativa quanto a Psicologia. Trata-se de uma área de onde provêm os estudos que dão sustentação à teoria da gramática5 e, em alguns aspectos, à alfabetização. Esses estudos, por seu turno, ao se sustentarem em um único modelo de engenharia humana, nos quais, mais uma vez, não cabem a pluralidade e a interculturalidade, acabam se constituindo como agravadores da cultura do fracasso escolar pelos motivos que se busca elucidar a seguir.

Os estudos da linguagem, parte das ciências humanas, inserem-se, tal como a Psicologia, na lógica de produção científica moderna. Entretanto, antes de entrar na modernidade e ganhar o status de ciência, algumas características dos estudos linguísticos merecem ser observadas a fim de tornar mais claros os processos de produção de uma cultura escrita, construída para a sociedade científica, relativamente oposta à oralidade e de onde se alimentam justificativas para nutrir a cultura do fracasso na escola. Conforme salienta Senna (2002), mesmo quando se propuseram a descrever e estudar a oralidade, as ciências da linguagem contribuíram para o processo de exclusão social.

De acordo com o autor, existem três grandes marcos nos estudos da linguagem, que aconteceram em momentos de significativas transformações sociais e nos levam ao entendimento da natureza desses estudos. O primeiro deles situa-se na época clássica. Foi nessa época que os filósofos estoicos se propuseram a deter a perda de status da civilização grega, fato que, para eles, era consequência da perda de capacidade de os gregos produzirem conhecimento, pois a língua grega falada nas ruas vinha sofrendo uma série de transformações ao longo dos séculos. Como para os estoicos a capacidade de pensar e produzir conhecimento estava diretamente relacionada a capacidade de falar, eles compilaram a primeira gramática ocidental com o objetivo de ensinar as propriedades gramaticais que levariam o povo a falar corretamente e, assim, a pensar corretamente.

A partir de então, a gramática normativa grega passa a se sobrepor à oralidade, por considerá-la incapaz de expressar o pensamento de forma correta. Em seu lugar, impõe-se a língua escrita, retomando os estudos dos grandes pensadores do passado, tais como Sócrates, Platão e Aristóteles.

Mais adiante, já na Idade Moderna, a escrita fora tomada como a representação de um pensamento mais elevado e legítimo, encontrando respaldo na incipiente sociedade científica que valorizava uma realidade idealizada. Tal sociedade incorporou a escrita como parte da natureza humana. É neste período que, para Senna (2002), insere-se o segundo marco nos estudos da linguagem. Nele se apresenta a necessidade de os estados nacionais compilarem uma gramática das línguas que foram emergindo desde a Idade Média, agora não só para fazer o povo pensar, mas antes para evidenciar a capacidade de cada nova sociedade nacional produzir conhecimento. Nesse escopo, duas situações se colocavam como empecilho à realização do projeto nacionalista. A primeira delas é dada pela inexistência de um aparato ortográfico que permitisse a escrita de cada uma das línguas representativas dos novos Estados-Nação. Tal fato pode ser observado, por exemplo, na tentativa de escrita de uma legislação portuguesa do século XII, na qual em apenas um fragmento, a palavra "senhores" aparece escrita de três formas distintas e a palavra "homem" de duas maneiras, entre outras peculiaridades que podem ser notadas:

Homẽes da Guarda non pagen pen[h]ora polho nõ sem[h]or da Guarda, nõ por meyrẽo, nẽ seyã pennorados seno por seu uizẽo. (...) Omẽes de uopssos termos qne severẽ em uossas herdades ou em uossos solares e seus senores no forẽ y, uenã ao synal do iuiz e dẽ fiadores que respõda o dereyto, quando ueerẽ seus seores. E, se fezerem coomya peytẽ-na e a VIIª ao paaço, e nõ seruiã outro homẽ seno a seus senhores em cuio solares seuerẽ. (Senna, 2010, p. 58)6

A segunda foi marcada pela inexistência de uma tradição escrita que desse legitimidade a cada Estado para que produzisse um conhecimento relevante.

Uma vez superada a barreira da ortografia, os escritos clássicos começaram a ser traduzidos para as línguas modernas a fim de que se preenchesse a lacuna da falta de tradição escrita. Em tais escritos, em princípio, depositara-se a crença de que trouxessem saberes legítimos. No entanto, à medida que a capacidade de escrever foi se propagando, ela passou a se relacionar com a capacidade de pensar e de produzir conhecimento. O que vai se assistir, a partir de então "é um processo perverso de construção de uma cultura escrita para a sociedade científica" (Senna, 2002, p. 413).

Segundo Candeias (2005), a cultura escrita foi se estabelecendo até se tornar dominante no século XX a partir de três fatores: o primeiro diz respeito aos processos de transformação social que tem como marco a Revolução Industrial, seguido do entrelaçamento entre a Reforma Protestante e a Cultura das Luzes, do qual emerge a "cultura do cidadão". O terceiro fator, por fim, refere-se a consolidação do Estado-Nação que resulta no aperfeiçoamento e criação de aparelhos estatais cujo objetivo é inculcar uma base cultural ao mesmo tempo unificadora e geradora de consensos com a finalidade de "nacionalizar as massas":

A utilização da palavra escrita aparece, pois, como um instrumento crucial na disseminação e consolidação dos processos sociopolíticos modernos, quer nos refiramos ao incremento da mobilidade social que acompanha o desenvolvimento do capitalismo contemporâneo, quer aos processos de integração que sustentaram a 'cultura do cidadão', que está na base dos regimes liberais do século XIX. (Candeias, 2005, p. 485)

Da evolução dos dois marcos dos estudos da linguagem, pode-se levantar duas premissas: a primeira é que, estando a capacidade de pensar atrelada à capacidade de falar, de acordo com uma determinada norma gramatical, o fato de certos sujeitos sociais não falarem como pressupõe tal norma, asseveram a constatação quanto a sua incapacidade de pensar; a segunda é que só produz conhecimento quem escreve consoante aos parâmetros da cultura científica.

A língua falada fora da norma padrão passa a ser considerada uma corruptela da língua escrita e, dessa maneira, ratifica a inaptidão dos marginais da cultura científica de pensarem e de produzirem algum tipo de conhecimento. É nesse sentido que construções gramaticais do tipo "O suco não põe muito açúcar!" que pode ser uma das construções encontradas entre os sujeitos sociais que têm uma vivência cotidiana marcada pela interação oral, vão ser tomadas como reveladoras de certa limitação linguística desses sujeitos, pois o correto seria falar "Não coloque muito açúcar nesse suco".

A fala, da maneira como se expressa na oralidade, continuaria em sua condição marginal perante os estudos científicos até o início do século XX, quando Ferdinand de Saussure viria a construir os conceitos que permitiriam o tratamento da oralidade tirando dela o ranço de ser um desvio da fala correta. Esse é o terceiro grande marco nos estudos da linguagem destacado por Senna (2002).

Para Saussure, os estudos da linguagem comportam duas partes: uma que tem por objeto a língua, que é social em sua essência e independente do indivíduo, e outra que tem por objeto a parte individual da linguagem, isto é, a fala (Curso: 27, 1995 apud Lucchesi, 2004, p. 44).

Embora Saussure considere a língua como fato social, para ele, existem duas dimensões indissociáveis no estudo da língua: sua modificação ao longo do tempo (diacronia) em relação ao seu estado anterior (sincronia)7. Além disso, Saussure sustenta que a faculdade da linguagem, que é a propriedade humana de construir e empregar sistemas simbólicos, é o que permite o desenvolvimento da língua. Todavia, a distinção que importa apresentar para se entender a contribuição saussuriana para o entendimento da oralidade e a sua manifestação legítima é a dicotomia entre langue (língua) e parole (fala), em que langue é o sistema linguístico objetivado e parole é a atividade linguística concreta (Lucchesi, 2004, p. 44).

Ao apresentar a dicotomia língua e fala, Saussure revoluciona o entendimento sobre a relação entre a fala e pensamento, introduzindo a convicção de que os produtos acústicos da fala não são uma tradução direta dos processos mentais que produzem o pensamento e a forma gramatical da língua. Abordando a língua e a fala dessa maneira, Saussure abriria o caminho para que os povos de culturas de base predominantemente oral tivessem voz no contexto da sociedade, sem que sua fala viesse a ser tomada como reveladora de um pensamento anômalo (Senna, 2002).

Entretanto, apesar do reconhecimento da legitimidade da fala, as práticas correntes no campo da linguística, seguiram seu caminho no sentido de aprofundar os estudos sobre a langue (língua) saussuriana, de onde se poderiam derivar os sentidos mais universais, na tentativa de comprovar que a verdade da cultura científica era parte da humanidade.

Um exemplo que nos cabe, no que se refere às categorias gramaticais oriundas da tradição clássica transmitida a nós em sua versão elaborada pelos romanos, pode ser encontrado em Bagno (2002, p. 32). Assim vejamos.

Quando se tenta classificar a palavra "bonito" num enunciado do tipo "Ela canta muito bonito", a classificação pela forma levaria a incluir "bonito" entre os adjetivos, apesar de no enunciado ela exercer a clara função de advérbio. Segundo Bagno (2002), o apego à classificação tradicional, que não leva em consideração os papéis desempenhados pelas palavras no contexto em que se inserem, é uma das razões que levam a condenação de enunciados do tipo exemplificado como "errados", alegando que o certo, apesar de sua obsolescência seria "Ele canta muito bonitamente", ou numa versal mais atual "Ele canta muito bem".

Vale ressaltar, de acordo com Bagno (2010, p. 74), que a gramática normativa é, antes de tudo, portadora de um discurso em que o que sobressai, mais do que uma análise de língua, ou mesmo a prescrição de formas "corretas" de seu uso, é uma tentativa de selecionar para excluir. Tal seleção, no entanto, não se refere à escolha de uma forma linguística em detrimento de outras, refere-se, isso sim, a uma forma de selecionar determinados cidadãos e excluir a grande maioria dos outros lançados ao submundo do "falar errado", do "não saber pensar direito" e, consequentemente, não poder falar, fato que, muitas vezes, significa o mesmo que não-poder-ser.

Ao assinalar alguns dos marcos dos estudos linguísticos, pode-se perceber como, desde a muito, a linguística esteve comprometida com a implementação e defesa de uma determinada língua, a escrita. Essa considerada de domínio universal e, por conta disso, apontando a falta de significado e coerência entre outras construções possíveis que não estivessem arroladas em seu modelo; reveladoras de uma incapacidade de pensar que, aliada a incapacidade de escrever, no âmbito da cultura cientifica, mostrara também a incapacidade de produzir conhecimento.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em que pesem os esforços na tentativa de alterar uma estrutura social e educacional excludente, persistem invariantes alguns pressupostos considerados universais traçados a partir do nascedouro das ciências humanas, notadamente na área de Psicologia e Linguística, que se fazem presente na atualidade, tanto nos contextos escolares, quanto nos sentidos que são produzidos pelos sujeitos que permeiam esse espaço.

Embora haja uma movimentação importante no sentido de desconstruir e, ao mesmo tempo, desmistificar os modos de produção de conhecimento e uso da língua por sujeitos sociais que se desenvolvem à margem da cultura científica e escrita (Senna, 2007; Calhau, 2008; Lopes, 2011), os ranços de uma sociedade livre, igualitária e fraterna, nos moldes como o Iluminismo as perpetuou, arrastam um número significativo de sujeitos para o submundo do não-poder-ser, como afirma Bagno (2010).

Esses sujeitos, cada vez mais, têm ocupado nas instituições de ensino o lugar que durante muito tempo lhes foi negado. Cabe, nesse momento, um esforço intelectual que se oriente no sentido de gerar juízos críticos e críveis a respeito da pluralidade de produção de conhecimento (esteira que nos deixou Vygotsky) e de línguas que permitam alargar as possibilidades de desenvolvimento humano e dos processos de ensino-aprendizagem.

Neste artigo, buscou-se contribuir com esse alargamento a partir da problematização dos pressupostos de duas áreas de conhecimento que têm grande entrada e aceitação no âmbito socioeducacional. Essas áreas, confrontadas com o cenário da educação na atualidade, remetem à emergência em se buscar construir um substrato teórico gestado numa ciência que considere o sujeito, a autonomia e a liberdade (Morin, et al. 2005, p.74); que se ponha em diálogo com diferentes concepções de mundo e que abarque o plural e o intercultural.

 

REFERÊNCIAS

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1 Este trabalho teve apoio do Programa de Cooperação e Capacitação Técnica (FAPERJ- 2012), sob forma de bolsa de estudo.
2 Trata-se da passagem do século XIX para o século XX.
3 As funções psicológicas superiores são aquelas que têm relação com a memória, a imaginação, a atenção, o pensamento e a linguagem. De acordo com Oliveira (1992), as funções psicológicas superiores referem-se a processos voluntários, ações conscientemente controladas e mecanismos intencionais (p. 68).
4 A zona de desenvolvimento proximal é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes (Vygotsky, 1998, p. 112).
5 A teoria da gramática, grosso modo, diz respeito ao conjunto das regras gramaticais normatizadas para orientar seu uso de acordo com um padrão e definir as variantes desse padrão.
6 "Homens da guarda não paguem penhora [para] nem o Senhor da Guarda, nem por meirinho, nem sejam penhoradas senão por seu juízo (...). Homens de vossas [herdades = propriedades] ou em vossos solares e seus senhores não forem ali, venham ao sinal do juiz e [deem = apresentem] fiadores que respondam a direito, quando virem seus senhores. E, se fizerem colônia paguem-na a VIIª ao paço, e não serviam outro homem senão a seus senhores em cujos solares servem" (tradução livre).
7 A dimensão diacrônica é o tipo de estudo que leva em consideração as transformações ocorridas nos objetos ao longo de sua história no tempo, buscando-se, desse modo, analisar as dinâmicas que provocam mudanças no sistema; opõe-se a sincronia que estuda o sistema dentro de um só recorte no tempo, estaticamente, sem se preocupar com sua perspectiva evolutiva. Saussure, no entanto, buscava compreender, considerando a dimensão diacrônica da língua, como ele se encontrava em determinado momento na sincronia. Em Saussure, a sincronicidade não exclui a mutabilidade.