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Psicologia da Educação
versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520
Psicol. educ. no.38 São Paulo jun. 2014
ARTIGOS
Disponibilidade ao outro: construindo novas formas de autoridade entre adultos e crianças
Being available to the other: building new forms of authority between adults and children
La disponibilidad a lo otro: construcción de nuevas formas de autoridad entre adultos y niños
Maria Carmen Euler TorresI; Lucia Rabello de CastroII
IUniversidade Federal do Rio de Janeiro. meuler@uol.com.br
IIUniversidade Federal do Rio de Janeiro. lrcastro@infolink.com.br
RESUMO
O artigo discute como a crise de autoridade hoje se apresenta de forma singular. Por um lado, lamenta-se a "autoridade perdida", pois cria-se uma imagem da ordenação dos lugares da criança e do adulto como se fossem necessários e universais. Por outro, ressente-se da perda daquela autoridade porque não se conseguiu reconstruir as relações com a geração mais nova a partir de outra configuração de direitos e deveres de ambas as partes. Partindo de contribuições de Arendt, Levinás, Benjamim, Jonas e Castro, entre outros, analisa-se como essa crise de autoridade pode conduzir a outras possibilidades de construção de uma autoridade legítima, considerando que a autoridade a ser exercida pelos adultos deve investi-los de um lugar de referência e cuidado reconhecido pelas crianças que lhes possibilite uma maior participação nos assuntos de seu entorno.
Palavras-chave: crise de autoridade; responsabilidade; alteridade.
ABSTRACT
This paper discusses the crisis of authority currently presented in a singular form. On the one hand, people complain the "lost authority" since it is created an image of border between child and adult as necessary and universal. On the other hand, we regret the loss of that authority because we have been unable to rebuild relations with the younger generation with another configuration of rights and duties of both parties. Starting from contributions from Arendt, Levinás, Benjamin, Jonas and Castro,and others, it is analyzed how this crisis of authority may lead to other possibilities of building a legitimate authority, taking into consideration that the authority exerted among adults must invest them with a reference locus and care, recognized by children, which allows them a greater participation in the affairs that surround them.
Keywords: crisis of authority; responsibility; otherness.
RESUMEN
El articulo analiza cómo la crisis de autoridad que hoy se presenta en forma singular. Por una parte, lamenta-se la " pérdida de autoridad" porque se crea una imagen de orden entre el niño y el adulto como necesaria y universal. De otra parte, lamenta-se la pérdida de esa autoridad porque no se é capaces de reconstruir las relaciones con la joven generación de otra configuración de derechos y deberes de ambas partes. A partir de las aportaciones de Arendt, Levinás, Benjamin, Jonas y Castro, entre otros, analizamos cómo esta crisis de autoridad puede conducir a otras posibilidades de la construcción de una autoridad legítima ejercida por los adultos investidos como sitio de referencia y de cuidados reconocido por los niños que les permita una mayor participación en los asuntos de su entorno.
Palabras clave: crisis de autoridad; responsabilidad; alteridad.
Todos os dias, assustam a variedade de casos de violência ou negligência contra crianças. Não é possível ficar indiferentes a essa situação totalmente absurda principalmente pelo fato de ver que os adultos - que deveriam ser os protetores das crianças - são seus maiores algozes. Em outros momentos, eles se mostram indiferentes e incapazes de se colocarem em uma posição de referência para as crianças que estão sob sua responsabilidade.
As relações entre adultos e crianças vêm despertando o interesse daqueles que se preocupam com o presente e o futuro da infância e os rumos que daremos ao mundo que receberá essas novas gerações. Essa crise se evidencia quando se percebe que a autoridade dos adultos se mostra diferente no contemporâneo, uma vez que as antigas expressões de autoridade, pautadas na hierarquia e no poder inquestionáveis das gerações mais velhas sobre as mais novas perdem, espaço e sentido.
A crise da autoridade na contemporaneidade merece destaque na discussão das relações intergeracionais e na produção das subjetividades, uma vez que exige rever a posição natural de autoridade do adulto e sua superioridade em relação à juventude.
Os primeiros escritos de Arendt (1968/2005), que tratam sobre autoridade e participação política, não consideravam que crianças e jovens tivessem qualquer possibilidade de fazer parte das decisões mais coletivas, pois estariam em um nível inferior em relação a seus pais e professores, nem poderiam decidir ou participar de forma mais efetiva nos assuntos da polis. Tal exercício de autoridade estaria relacionado a situações nas quais adultos, autorizados a exercer seu papel político, estariam lidando com sujeitos ainda excluídos da participação nos assuntos da cultura. "(...) em educação lidamos com pessoas que não podem ainda ser admitidas na política e na igualdade por estarem sendo preparadas para elas" (Arendt, 1968/2005b, p. 160). Crianças e jovens seriam, então, um vir a ser, pois só quando chegassem à vida adulta poderiam participar ativamente da vida coletiva e dos assuntos comuns.
Do ponto de vista arendtiano, e por uma perspectiva da filosofia clássica, a autoridade estaria sempre ligada à hierarquia quando exercida por sujeitos de natureza diferentes. As relações de autoridade colocavam os adultos em um lugar de referência incontestável. Nesse sentido, a autoridade garantiria não apenas a convivência harmoniosa entre diferentes, mas também que aquele que fosse mais capaz e mais preparado tomasse a seu cargo a responsabilidade por aqueles que ainda não tivessem o entendimento completo sobre o mundo.
O mundo contemporâneo, no entanto, tem colocado as pessoas diante de um dilema no que se refere às relações de autoridade entre gerações diferentes e leva a interrogar sobre essa ordenação de lugares. Como são desempenhados, hoje, os papéis da criança e do adulto quando precisam se relacionar na escola, na família e em outros espaços de convivência?
Entende-se que a crise de autoridade vivida por todos vem a reboque das mudanças sociais, econômicas, ideológicas e culturais que vivemos. Os avanços da tecnologia e a influência dos meios de comunicação em massa parecem colocar todos diante de iguais desafios, e as novas gerações, no aspecto tecnológico, principalmente, quase sempre saem em vantagem em relação aos adultos. Também o consumo desenfreado e a descartabilidade de bens e valores vêm produzindo subjetividades cada vez mais fluidas e em constante mutação. Sente-se como se tudo precisasse ser descartado a todo o momento e que o valor dado à história dos objetos e dos sujeitos não fizesse mais nenhum sentido. Tradição e experiência (Benjamim, 1985/2008) perdem espaço e junto delas as figuras que as representam.
Uma das consequências disso tem sido um deslocamento de lugares e do valor antes dados ao conhecimento e saber dos mais velhos. Na escola, professores não têm mais a autoridade inquestionável de antes e, em família, pais e mães se encontram perdidos diante de 'crianças sabidas' e que vão, aos safanões, tentando desbravar seus caminhos existenciais.
Constata-se a não universalidade das posições subjetivas de crianças e adultos e, neste trabalho, buscam-se novas possibilidades de exercício de uma autoridade reconhecida e legítima.
Em escritos mais recentes, Arendt (2005) traz o conceito de natalidade e ação que, revistos por Castro (2001), podem ajudar a repensar o exercício da autoridade e a ter um novo olhar que questione a ordenação de lugares das crianças e dos adultos.
Partindo do conceito de natalidade, Arendt traz a ideia de novos começos. Natalidade pode se relacionar com a noção de imprevisibilidade, que, por sua vez, liga-se à novidade, ao início das coisas. Isso quer dizer que todo homem é capaz de realizar o improvável, independente de sua idade. "[...] a cada nascimento, vem ao mundo algo singularmente novo" (Arendt, 2005, p. 191).
Iniciar algo novo é próprio do ser humano e, através da ação, o sujeito tem a capacidade de produzir novas coisas. Interferir nos processos da natureza constitui-se como a faculdade humana de agir. Um segundo nascimento, segundo a autora, estaria relacionado ao terreno público e não mais restrito ao mundo privado das relações familiares. Portanto, nascer de novo só é possível quando estamos entre outros sujeitos e imersos na coletividade das trocas sociais. Por este viés, Castro (1999) coloca em análise os lugares tradicionalmente ocupados por crianças e adultos e reforçados pela Psicologia do Desenvolvimento, que têm posto a criança em lugar de inferioridade (cognitiva e emocional) em relação às gerações mais velhas. Segundo a autora, o conceito de ação arendtiano nos conduz a novas formas de olhar para crianças e adultos a partir de outra configuração de direitos e deveres de ambas as partes.
Se a ação - que pode ser também representada pela fala, pela escrita e pela brincadeira - é uma característica humana que produz novos começos, tanto crianças como adultos podem se manifestar, dispor de pontos de vista diversos e juntos construir mundos comuns. Sem querer retirar do adulto seu papel de referência para a criança apresentando um mundo que já existe antes dela - porque viveu mais ou porque já teve mais experiências de vida - os conceitos de natalidade e ação possibilitam à criança uma maior condição de participar dos assuntos de seu entorno.
Na pesquisa de campo, percebe-se que o desempenho da autoridade adulta dependia de uma aproximação com as crianças. Aproximação que surgia quando os adultos se mostravam responsáveis pelas crianças e quando as viam como sujeitos próximos. Faz-se uma analogia dessa aproximação psicológica e ética, em sua corporificação do olhar e da fala. Seria, portanto, quando o olhar nos olhos e o face a face expressam a existência de um sentimento de alteridade entre duas pessoas. Um sentimento de valorização do outro e do entendimento de que ambos são responsáveis pela construção subjetiva mútua e também pela construção de espaços-tempos comuns.
Revisitando a noção de responsabilidade, foi possível avaliar o papel dos professores no cuidado com as crianças e na promoção de seu bem-estar. Isso envolvia a disponibilidade do adulto na sustentação de conflitos e sua posição de distanciamento em relação à criança, não no sentido de se afastar dela, mas de demarcar a posição assimétrica que ambos ocupam na escola. Posição que se refere a uma distância dada pela experiência que cria um diferencial pautado na ideia de que é função do adulto apresentar à criança o mundo que a precede. "A necessidade de autoridade é fundamental. As crianças precisam de autoridade que as oriente e tranquilize. Os adultos realizam uma parcela essencial de si ao serem autoridades. É um modo de expressarem interesse por outrem" (Sennett, 2001, p. 27).
Nessa citação, Sennet nos traz uma dimensão da autoridade que se encontra para além daquela ligada a uma relação de "hierarquia natural". Ele aponta para uma dimensão humanizada dessa relação, na qual o interesse pelo outro e o altruísmo se encontram presentes. A autoridade, por essa concepção, é algo necessário, principalmente para que os adultos mostrem interesse pelas crianças.
A respeito da discussão sobre as consequências do que se faz hoje sobre as novas gerações, Jonas (2006) em tese sobre o princípio responsabilidade afirma que não é o fato de as pessoas serem pais e mães que os responsabiliza pelo cuidado com o mundo em que vivem. A responsabilidade seria um dever de todos com a existência da humanidade futura, o que independe de haver descendentes ou não. Mesmo que algumas pessoas não possam, ou não queiram procriar, esse seria um dever intrínseco à condição humana. Jonas parte do princípio de que se deve deixar de herança para as novas gerações o dever que procura cumprir hoje, como um princípio ético. Partindo do princípio da finitude de cada ser vivo, o homem se diferenciaria dos outros animais pela possibilidade que tem de decidir e se responsabilizar pelo destino dos outros seres. Assim, "[...] a primeira de todas as responsabilidades é garantir a possibilidade de que haja responsabilidade" (Jonas, 2006, p. 177).
Com isso, Jonas nos apresenta a perspectiva de continuidade e futuro. Todos os adultos devem ter responsabilidade sobre as crianças, sejam elas seus filhos, alunos ou não, o que confere à humanidade um compromisso com a perspectiva de futuro. Responsabilizar-se pelo outro seria, portanto, uma obrigação ética e política. Compartilha-se esse pensamento com ele e, cada vez mais, acredita-se que a sociedade contemporânea precisa olhar para as crianças com responsabilidade e compromisso.
A autoridade, por essa perspectiva, surge como exercício da responsabilidade do adulto de manejar essa situação ante a criança, mostrando-lhe aquilo que é certo ou errado, cuidando de seu bem-estar e segurança. Professores e pais demonstram sua responsabilidade também quando assumem um lugar de autoridade em transmitir o conhecimento acumulado e as "coisas da vida".
Outro dilema que emerge desta discussão sobre a crise de autoridade é a forma como o adulto pode assumir a responsabilidade de cuidar das crianças, dando-lhes proteção e introduzindo-as no mundo que as precede sem se transformar em um adulto autoritário ou destrutivo. De acordo com Adorno e Becker (1971/2003), como o adulto pode se tornar tão indispensável quanto supérfluo? Isso significa dizer que, se é necessária a construção da autoridade, também é fundamental que, em algum momento, ela se quebre para possibilitar a emancipação do sujeito.
Castro (2001) nos aponta para a possibilidade de, ao revisitarmos a concepção da Psicologia do Desenvolvimento nos empenharmos na constituição de novos arranjos entre gerações. Essa mudança de paradigma exige que outros referenciais sejam utilizados nas análises das relações intergeracionais.
O adulto tem o dever de ensinar, conduzir as crianças nos caminhos ainda não trilhados por elas, pelo simples fato de, do mundo, elas ainda saberem pouco. A referência que se encarna na figura do adulto traz o limite necessário para as ações e também um sentimento de segurança.
Outro ponto que fez com que nos aproximássemos de um conceito de autoridade legítima foi quando encontramos na noção de alteridade, uma possibilidade de vinculação entre sujeitos 'pequenos' e 'grandes'.
Judith Buttler (2005) propõe uma ressignificação da compreensão de sujeito que se configura de forma radicalmente oposta àquela vista até então. Segundo a autora, a subjetividade se caracteriza como sendo constituída também por afetos, paixões, incertezas e descontinuidades. Assim, não teríamos acesso jamais a um eu completo, que se constitui com características ou qualidades que podem ser consideradas como exclusivamente nossas. Isso porque nossa constituição subjetiva se forma pela relação com o outro e, como fruto dessa relação, seríamos sempre resultado de uma mistura daquilo que é nosso com aquilo que vem do outro.
É em Levinás que a autora busca a ética da alteridade como fundamentação para enfatizar a noção de que o sujeito está intrinsecamente ligado ao outro. Por essa linha de reflexão, Levinás propõe que o homem chega ao mundo com atraso e se vê diante de uma realidade que não foi planejada por ele. Nessa situação, precisa se responsabilizar por algo que não é sua criação. Talvez essa seja sua única saída: cuidar e sustentar o universo de forma que esse não seja destruído. O homem deve, portanto, ligar-se eticamente ao mundo e ao outro para que construa a justiça. Responsabilizar-se a partir de uma relação de alteridade é comprometer-se com o presente e com o futuro da sociedade e, consequentemente, com as crianças que estão chegando ao mundo.
Sendo humanos, igualamo-nos em nossa humanidade, mas também nos conformamos como sujeitos singulares. Isso quer dizer que a humanidade, ao mesmo tempo em que nos faz semelhantes, também confere a todos a possibilidade de sermos diferentes.
Na relação entre crianças e adultos, essa dupla manifestação do humano se apresenta de forma complexa. Como pensar na criança como semelhante ao adulto e também valorizá-la naquilo que é diferente? Como valorizar sua forma de pensar e agir, sua lógica própria e estabelecer com ela uma relação de alteridade mesmo entre gerações diferentes?
Pelos conceitos de narrativa e experiência em Benjamim (1985-2008), podemos vislumbrar a recriação das relações contemporâneas entre crianças e adultos. A experiência que dialeticamente se liga à narração permite que circulem saberes da tradição que podem dialogar com os saberes que chegam ao mundo pelas novas gerações. Acrescenta Benjamim (1985/2008) que "na origem da narrativa está a autoridade" (p. 208), que também é conferida ao sujeito por meio da experiência. As experiências da vida, que são finitas, ganham um caráter infinito pela via da linguagem e da narração de uma geração para outra.
A narrativa, que se liga à tradição, é aquela que se apoia na experiência vivida pelo adulto e que é compartilhada com as novas gerações como uma forma de perpetuar a história de um povo. Mas a narrativa também pode ser protagonizada pelas crianças que trazem, mesmo em sua menor vivência, novas formas de olhar e compreender as coisas do mundo. A narração, portanto, seria um espaço/tempo de encontro com as diferenças e a coletivização de saberes e fazeres. A criação de espaços narrativos na escola, na família e na vida trazem a possibilidade de que crianças, jovens, adultos e velhos falem do que vivem e viveram, do que sofrem e sofreram para que formas de refazer a história sejam encontradas.
Partindo do conceito de ação em Arendt, Castro (2001) constrói uma nova perspectiva sobre uma política de diferenças entre crianças e adultos baseada não mais sobre uma lógica desenvolvimentista, mas que aposte na emergência do novo e do imprevisível. Isso significa dizer que a ação humana não pode ser tão roteirizada e que é inevitável, se não imprescindível, que hoje abramos espaço para aquilo que é contraditório e da ordem do contingencial.
Olhar para adultos, e principalmente para as crianças, como sujeitos de direitos pressupõe que ambos desempenhem ações consideradas válidas e que suas singularidades sejam igualmente levadas em conta. Se a ação segue uma dimensão essencialmente coletiva, se é construída processualmente e se não se separa do pensar e do ser, pode-se concluir que crianças e adultos se igualam mesmo que em suas diferenças (Castro, 2001, p. 32). A ação humana seria a própria constituição subjetiva de homens, mulheres e crianças. Socializar não seria incorporar e adaptar a criança à sociedade, mas, sim, um processo que inclui "qualquer ação humana inserida nas práticas de produção e reprodução individual e coletiva" (idem, p. 31). Por essa perspectiva, tanto crianças como adultos estariam em condições de agir e colaborar na construção da cultura e nos processos sociais.
Portanto, a direção que se procura dar a esse artigo é a de pensar nas relações intergeracionais na escola, colocando a autoridade dos adultos a serviço tanto do cuidado com a criança, como da apresentação de um mundo que a precede. Essa apresentação deve propiciar a criação de espaços/tempos para sua efetiva participação na construção da cultura, tendo em vista o objetivo de se construir em conjunto uma educação e uma sociedade melhores nas quais crianças e adultos exerçam igualmente seus direitos e deveres e se vejam implicados e responsabilizados por suas decisões e escolhas.
OBJETIVOS
Analisar como a crise de autoridade pode conduzir a outras possibilidades de construção de uma autoridade legítima.
Escutar o que pensam as educadoras sobre as dificuldades atuais de autoridade entre crianças e adultos.
Construir caminhos possíveis de ação a partir de um olhar reflexivo sobre a própria prática.
MÉTODO
A investigação realizada é do tipo qualitativo, baseada no diálogo entre o pesquisador e o grupo pesquisado em que cada etapa da investigação é concebida a partir das modulações que os sujeitos envolvidos podem trazer a própria construção do objeto empírico (Castro e Besset, 2008).
Geertz (1989) fala sobre a noção de circunstancialidade segundo a qual o que foi vivido durante a pesquisa se torna um recorte do real. Para não cair num subjetivismo, a etnografia proposta por Geertz deve se pautar em uma descrição densa do campo de pesquisa para, então, chegar a uma interpretação cuidadosa daquilo que foi recolhido. Na mesma veia, Ginzburg (1999) nos aponta para uma forma de pesquisar que se apoia na observação de pistas e sinais que, a princípio, podem parecer imperceptíveis e insignificantes, mas que, no decorrer da pesquisa, se tornam fundamentais para auxiliar em uma interpretação mais rigorosa dos dados. Clifford (2002) amplia os conceitos sobre a metodologia de pesquisa qualitativa quando aposta na ideia de autoridade etnográfica através da imersão no campo, o que faz com que o pesquisador se abra aos desvios e às surpresas que o diálogo com os sujeitos pesquisados podem possibilitar.
Tomadas essas referências de uma pesquisa qualitativa, optou-se por utilizar como ferramenta do trabalho de campo os Grupos de Discussão (GDs). Considerou-se que, por meio dessa metodologia, a questão da pesquisa - como a crise de autoridade pode conduzir a outras formas de autoridade legítima entre adultos e crianças - poderia se tornar o foco das discussões, ao mesmo tempo que tanto pesquisador como participantes pudessem se envolver nesse processo de construção de sentidos. Os grupos de discussão se constituem como recurso condizente com a escolha metodológica de uma pesquisa qualitativa que também pode ser considerada como uma pesquisa-intervenção (Barros, 1994).
No presente caso, como se pretendia ter uma visão mais ampla do que pensam as professoras municipais de educação infantil, foram selecionadas cinco escolas (uma de cada polo de referência da cidade). Diante desse corpus e dos objetivos delineados para a investigação de campo - escutar o que pensavam as educadoras sobre as dificuldades atuais de autoridade entre crianças e adultos, partilhar opiniões e vivências; construir caminhos possíveis de ação - escolhemos os GDs como a estratégia que melhor se encaixava em nossa proposta de pesquisa. Teve-se a possibilidade de ver como algumas opiniões e experiências atravessam todas as escolas ao invés de se configurarem como falas individualizadas e de caráter pessoal.
É Castro (2008) quem aponta para os efeitos de um trabalho baseado em grupos de discussão e do deslocamento que essa metodologia provoca na própria concepção de pesquisa. Isso porque, acolhendo os desvios e imprevisibilidades que as discussões podem provocar, o pesquisador se inclui no próprio processo de pesquisa e pode assumir novos caminhos, assim como os participantes também se veem inscritos nesse processo. "Nos grupos de discussão as questões da pesquisa podem assumir outras inflexões, favorecendo que o controle do processo não se circunscreva ao pesquisador apenas" (idem, p. 31).
Através da palavra, que também pode ser considerada como ação (Arendt, 1995), os participantes de um grupo de discussão são intérpretes do mundo e assim se veem como parte da realidade que os circunda.
Outro ponto trazido por Castro (2008) é a importância dos grupos de discussão acontecerem nos locais onde os sujeitos circulam - em nosso caso na escola. Isso dá aos participantes uma maior abertura para se posicionarem e se sentirem valorizados em sua fala, além de propiciar a eles um sentimento de maior potência para intervir no próprio andamento da pesquisa.
Optou-se por realizar dois GDs em cada escola, pois, assim, seriam duas oportunidades de discutir o tema garantindo um aprofundamento dos dados para a análise. A partir dos resultados do GD1 foi possível avaliar o andamento das discussões e criar estratégias diferentes para o GD seguinte.
Para traduz o tema aos fazeres de educadoras infantis, desenvolveu-se uma dinâmica diferente para cada grupo de discussão. Para o GD1 foram levadas duas pequenas histórias, que foram chamadas de situação 1 e situação 2, envolvendo conflitos entre professoras e seus alunos. As situações-problema descreviam momentos-limites entre a posição de autoridade da professora - manejo de turma, como se fazer respeitar, fazer respeitar as regras da sala - e a ação da criança. O intuito era provocá-las para que se colocassem no lugar da professora da história e falassem um pouco sobre suas ações.
Após o primeiro ciclo de discussões, as falas das educadoras fizeram perceber a necessidade de que elas falassem um pouco mais sobre o tema e principalmente sobre a relação com seus alunos, uma vez que se sentia falta de que as discussões passassem por uma reflexão mais ligada aos seus fazeres cotidianos e menos a análises distanciadas de sua prática.
Sendo assim, procurou-se no planejamento do GD2 lançar mão de uma estratégia que as sensibilizasse para os encontros e desencontros entre adultos e crianças e seus efeitos. Utilizaram-se, então, cinco charges do livro Com olhos de criança, de Francesco Tonucci. Essa escolha pareceu apropriada uma vez que as imagens mostravam situações escolares nas quais professoras e crianças vivem impasses na relação pessoal ou na relação com os modos de ensinar.
Foram realizados nove encontros que foram gravados e transcritos. Cada escola tinha, em média, 15 educadoras1 presentes, o que, ao todo, significa que trabalhar com um corpus de mais ou menos 75 docentes. Utilizou-se a nomenclatura - Profa. UMEI nº, GD1/2 a fim de identificar as educadoras e localizar suas escolas e os GDs nos quais surgiu a fala destacada.
O que importou na análise do material de pesquisa foi aquilo que as educadoras disseram a respeito de suas práticas, aquilo que as incomodava e, mesmo que de forma sutil, sobre suas estratégias de ação ante as situações-problema junto às crianças, famílias e vicissitudes do contemporâneo.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Foram organizados os resultados em dois eixos de análise. No primeiro, foram reunidos aquilo que foi destacado das discussões com as educadoras, que apontam para os maus encontros ou entraves entre elas e as crianças. Momentos nos quais o exercício de uma autoridade ligada a posições tradicionalmente pré-definidas não possibilitou uma aproximação entre elas. Destacaram-se as conclusões e análises das próprias professoras que não as encaminham para uma situação potente e criativa de ação com os demais sujeitos, mas, ao contrário, buscam a culpabilização de outros agentes, externos a elas, o que não contribuiu para uma mudança de posição diante de seus alunos.
No segundo eixo, apresentam-se algumas possibilidades de ação das educadoras junto às crianças e saídas criativas quando convocadas a tomar decisões diante de situações de conflito. Tais possibilidades surgiram das discussões e contribuíram para que revisitassem sua prática, através de uma análise reflexiva sobre suas ações e formas de pensar.
"Não sei o que fazer com ele!": adultos e crianças em situações de conflito
Num primeiro momento das discussões, percebeu-se que as professoras se mostraram impotentes diante de uma demanda que atualmente lhes é imposta e que interfere em sua relação com as crianças. Apontaram, inicialmente, para as novas composições familiares como determinantes da crise de autoridade no contemporâneo. As educadoras sinalizaram que hoje estariam em falta, na maioria das famílias, os ensinamentos básicos de convivência. Além disso, acreditam que a escola está sobrecarregada e que, além de ensinar o conteúdo historicamente acumulado, têm de assumir o papel que seria função da família. "[...] mas a gente há de convir que não é que a gente queira culpar, mas é que é na família que essas questões devem ser resolvidas na primeira instância. A gente precisa desse apoio primário" (Profa. 8, UMEI 4, GD1).
Em alguns momentos, as educadoras apontavam para o fato de os pais não saberem o que fazer com seus filhos e, por isso, deixarem a cargo da escola educá-los integralmente. Em outros, porém, consideravam que os pais preferiam "jogar todo o trabalho" para a escola a fim de não se comprometerem com a difícil tarefa de educar.
O rumo das discussões se tornou mais promissor quando as professoras demonstraram um olhar mais amplo sobre a questão familiar e puderam ampliar suas análises para a crise de referências que vivemos hoje, refletindo mais sobre as produções sociais contemporâneas e olhando menos para cada família em particular. A criança, hoje, precisaria deslizar por vários núcleos familiares, os quais, por sua vez, se constituem como referências diferentes para ela. Além disso, a sala de aula se constitui como um espaço de confronto entre todas essas referências - múltiplas para cada uma das crianças e mais diversificadas ainda com a reunião de várias crianças - em relação à figura da educadora.
Lidar com aquilo que é diverso, com diferenças de crenças, valores e histórias, se constitui em uma grande dificuldade. No entanto, isso só vem a confirmar que a escola é o lugar de encontro dessa diversidade. Sendo o primeiro espaço social da criança depois da família, a escola é, de fato, o lugar onde ocorrem esses choques culturais, tanto das crianças entre si como delas com as educadoras.
Para as educadoras o contemporâneo parece ser um momento histórico de transição, no qual as pessoas estão confusas a respeito de como agir e de que caminhos tomar, principalmente no que se refere à postura dos adultos diante das crianças. "(...) A gente está numa situação de passagem. A gente saiu de um momento em que a educação era respeitar o adulto e não questionar, e ainda não chegou em outro momento" (Profa. 2, UMEI 1, GD1).
A constatação de que se vive uma situação de passagem foi a maneira utilizada por elas para dizer que tanto os professores como as crianças não são os mesmos. Essa nova constituição subjetiva de ambos entra em suas análises e traz a necessidade de que a escola hoje também assuma um novo lugar.
No que tange à questão da autoridade, a escola e o professor têm ficado em uma posição distinta da de décadas atrás, uma vez que a autoridade do professor hoje não é mais dada, a priori. A criança também se reposiciona nessa relação: sem essa referência adulta de outros tempos, ela tende a se colocar diante do adulto, muitas vezes, de igual para igual ou o instigando a assumir uma posição de fazer valer as regras e de tomar decisões.
Elas se questionavam sobre como é possível partir para uma lógica de ação que possibilite às crianças uma maior participação nos assuntos da escola e nas decisões e ações em sala de aula sem que elas 'dominem a situação' e desautorizem os adultos.
As análises sobre o lugar da criança no cenário contemporâneo trazem as contradições reais que estamos vivendo. É como se existisse um pêndulo que ora se inclina para uma "desumanização" da criança - no momento em que dela são tirados todos os direitos através de atitudes desumanas, como os maus tratos, o descaso, a falta de apoio e o abandono -, ora pende para empurrá-la e fazê-la entrar "aos safanões" no mundo adulto. Verifica-se que, sendo "vilã" ou "vítima", a criança está, de ambas as maneiras, sendo excluída de uma participação efetiva no cenário social.
Quando levadas a refletir de modo mais cauteloso sobre essa polarização de comportamentos (autoritarismo versus licenciosidade), as educadoras trouxeram um ponto interessante para nossas discussões. A necessidade de que, junto ao incentivo de um protagonismo infantil, a responsabilização das crianças pelos seus atos e escolhas também seja levada em conta.
Eu acho que as coisas estão perdidas. Tanto nas escolas quanto nas famílias, essa questão da autoridade... Começamos a dar muita voz à criança, né? A se expressar, se expressar... E aí o Estatuto da Criança não tem como não colocar um nó meio de isso tudo, talvez mal interpretado por nós, pela sociedade, pareceu que deu muitos direitos e cadê os deveres? (Coordenadora 1, UE 5, GD1)
A responsabilidade do adulto nesse caso é a de conferir à criança espaços/ tempos de fala e expressão, valorizar a criança em seu saber e sua ação, porém deveria cobrar seu compromisso e empenho com o coletivo.
Outro discurso social que observamos hoje se liga à desvalorização do professor que se manifesta no descrédito dado ao valor do conhecimento, na importância do estudo fazendo com que a figura do educador já não esteja mais carregada dos significados simbólicos que o sustentavam outrora. Assim, tanto as crianças como os educadores vivem hoje um período de passagem que rompe com as leis que eram determinantes das relações entre adultos e crianças no passado e ambos ainda não encontraram uma forma de lidar com as questões que se colocam no contemporâneo.
As discussões nos GDs encaminharam para a percepção de que, a despeito de o professor estar a cada dia perdendo seu lugar de autoridade diante da criança, ainda é possível dizer que ele é quem ocupa um lugar privilegiado nessa relação.
Pela via da avaliação do aluno, o professor tenta, muitas vezes, se manter numa posição tradicional de poder e superioridade. O ato de avaliar a criança na escola pode ser tanto um meio de promoção do aluno e valorização de seus saberes e de sua expressividade, quanto um veículo para sua depreciação ou minimização de seus saberes.
Segundo as próprias professoras, o poder da avaliação faz com que elas tentem não "perder sua autoridade", uma vez que é através da escrita de relatórios e das análises sobre as crianças que elas mostram seu poder de falar sobre o outro, classificar e julgar, por exemplo, dizendo em que níveis de desenvolvimento a criança está e quais são suas deficiências ou progressos. "Por escrito é um poder muito grande! A palavra das professoras de como é a criança tem um peso muito grande" (Profa. 7, UMEI 1, GD2).
"Agarradas" a uma autoridade que advém dessa prática classificatória, as educadoras dizem cair na armadilha dos rótulos conferidos às crianças e que acabam sendo incorporados por elas. Avaliar se torna também uma possibilidade de a professora, ao menos nessa hora, se ver em um lugar de destaque. Muito oportuno destacar um ponto que parece interessante quando se fala de avaliação: avaliar o outro pode ser um meio eficaz de avaliar a nós mesmos. Não é só a criança que precisa se reposicionar diante de uma novidade, mas também o adulto. Vejam a fala da Profa. 4, (UMEI 4, GD2):
Eu sempre costumo falar que a avaliação é muito difícil porque a avaliação tá dizendo como é que tá sendo o seu trabalho também, não é só porque a criança chegou nova num ambiente novo de uma realidade distante meio complicada, mas também tá assim mexendo com a sua posição enquanto educador.
Pode-se verificar que, quando instigadas a refletir sobre suas práticas, conseguiam vislumbrar algumas possibilidades de ruptura com essa lógica classificatória, que dá aos adultos a possibilidade de estar em um lugar confortável de decisão e de produção de verdades acerca das crianças.
Além da discussão sobre a avaliação, dos nove encontros realizados, em oito deles a questão das regras foi abordada pelas professoras. Afirmavam que no início de cada ano as situações de conflito com as crianças eram mais comuns, pois, principalmente para aquelas que estavam chegando à escola pela primeira vez, as regras da instituição eram desconhecidas.
Eu costumo dizer assim que no primeiro mês, primeiro, segundo até um terceiro, você sofre para colocar todo mundo ali de acordo com as regras... [...] Então você tem que ter uma estratégia pro primeiro mês, pros primeiros meses. (Profa. 1, UMEI 1, GD1)
Essa fala indica que a educadora estava se referindo a suas próprias regras de sala de aula e que, embora possam até ser construídas com as crianças "nos meses iniciais", depois se cristalizam parecendo não dar chances de serem modificadas, anulando qualquer possibilidade de aparecimento do imprevisto, do contingencial, da novidade, visto que "mesmo que um ou outro saia da linha" a maioria da turma está sob controle.
Se as crianças precisam todos os anos que se diga a elas como se comportar na escola, é porque isso pode não estar claro ou não estar fazendo sentido ou pode não estar de acordo com aquilo que consideram legítimo. O segundo ponto nos inclina a constatar que as crianças, assim como os sujeitos de um modo geral, se constroem na e a partir das relações que exercem com seus pares e demais sujeitos e que, portanto, sempre que encontram uma nova pessoa com quem estabelecem relações, novas posturas serão. "Até porque cada professor tem uma conduta dentro de sala, então a regra da outra não é a mesma" (Profa. 6, UE 5, GD1).
Ainda sobre o debate sobre regras, dentro e fora da escola, surgiu uma discussão interessante e que vale a pena destacar. Trata-se de refletir sobre as leis que são geradas e atuam no plano individual. Utilizando a expressão "lei do mais forte", a professora denuncia uma situação que, a princípio, parecia restrita ao espaço escolar e própria do comportamento "desmedido" e "sem limites" das crianças. Reparem na fala da Profa. 2 (UMEI 1, GD1):
Porque o tempo inteiro eles acham que é simplesmente a lei do mais forte. É chegar tomar da mão, dar um soco e acabou! (...) É a lei do cão! É o tempo todo assim na base da mordida, do soco, do pontapé, prevalece o mais forte! Não!
A indignação justificada da professora se refere à triste constatação de que se vive um momento de carência de leis. A lei do mais forte seria parte de uma construção social e não somente atributo das crianças. Sua análise nos faz pensar sobre a necessidade de que as regras sejam seguidas por todos e não só por alguns. No caso da escola, adultos e crianças deveriam seguir regras comuns com a possibilidade de sofrerem sanções caso fossem descumpridas. No entanto, os próprios adultos muitas vezes não são capazes de rever suas atitudes e impõem uma lei que se torna 'a lei do mais forte'.
As professoras também consideram como maus encontros, entre elas e seus alunos, as situações de punição e as crianças-problemas. A punição foi uma reação que nos chamou a atenção, e a postura autoritária se destacou mesmo que a estratégia usada tenha sido a conversa com a criança. Isso porque o conteúdo dessas conversas trazia um tom de ameaça para a relação da criança com o educador.
Se a criança fugir da sala, eu não pego e carrego pelo braço não. Eu tento convencer a vir pra sala e aviso: "Eu não vou correr atrás de você, eu não estou brincando, eu vou continuar o trabalho lá na sala e você vai perder. E se você não está me atendendo agora que eu estou pedindo, quando você me pedir alguma coisa eu também não vou te atender. Você vai perder um monte de coisa que você gosta". E volto pra sala. (Profa. 2, UMEI 1, GD1)
Lidar com as "crianças-problemas" talvez seja o desafio maior das educadoras nos dias de hoje. Esses sujeitos, que atravessam as trajetórias profissionais de dez em cada dez professoras, as desafiam constantemente e deixam marcas em suas histórias. São crianças com as quais os procedimentos mais comuns não funcionam, já que elas parecem estar testando a autoridade adulta e se afirmando subjetivamente pela via do confronto.
Sobre a necessidade de punir, as professoras afirmam que, se as regras existem também as sanções devem ser parte integrante da rotina da escola, pois, como fazer então com aqueles que infringirem as regras? Como dar o exemplo de que a lei deve ser respeitada naquela turma?
[...] eu acho que pelo menos a criança tem que perceber isso: existe a regra, existe a consequência se a regra for transgredida e ela pode sofrer essa consequência. [...] Você nos fez perder 5 minutos te esperando então você vai perder 5 minutos do seu tempo de brincadeira enquanto todo mundo vai brincar. E aí eu vou tentando jogar com isso... Porque na sociedade se você faz o quer você sofre as consequências... (Profa. 2, UMEI 1, GD1)
Entretanto, ao contrário do que a Profa. 2 da UMEI 1 aponta, na sociedade como um todo, sofrer consequências por aquilo que se faz de errado não tem sido uma prática comum. As professoras também duvidaram de que as punições pudessem ter algum efeito, nesse caso porque a conduta daquelas "crianças-problemas" em nada é transformada pela aplicação de sanções ou proibições.
De que forma as regras e as punições estão fazendo efeito para aquela criança, no sentido de que ela aceite o que lhe está sendo imposto pela professora? É o sujeito que deve se enquadrar sempre às regras impostas pela escola, ou é a prática pedagógica que deve ser colocada em questão? Quais são as regras que devem preexistir à relação daquele professor com quaisquer alunos, e quais são as regras que devem ser constantemente reconstruídas?
Depois de narrarem situações em que a punição parece não resolver, e tampouco a construção de regras e a posterior cobrança pelo cumprimento das mesmas, as educadoras começaram a lembrar de seus "alunos-problemas" e tentar compreender as razões ou motivos que podem levá-los a se comportar dessa maneira. Essa lembrança das crianças-problemas nos mostra que sempre haverá uma dimensão da impossibilidade de se estabelecer uma ordem que substitua o caos, as tensões e os imprevistos que sempre estarão presentes nas relações humanas e que, ao contrário de negativas, são constitutivas das ações positivas.
Os resultados apontam para muitas situações de desencontro entre adultos e crianças na escola. No entanto, também foi possível constatar que, quando levadas a refletir, as educadoras vislumbraram algumas ações positivas no que tange ao exercício da autoridade no contemporâneo.
A aproximação entre crianças e adultos e o exercício de uma autoridade legítima
Refletindo sobre o que as educadoras inicialmente trouxeram como as possibilidades de aproximação com as crianças, percebeu-se que tal aproximação se dava quando procuravam oferecer às crianças sua escuta e se disponibilizavam a lhes dar atenção, estudando caso a caso e buscando melhores caminhos para a solução dos problemas. Atitudes como ter coragem para assumir um lugar de referência, se interessar pelas crianças, buscar no afeto e no diálogo uma relação mais próxima, deixar-se levar pela intuição e sensibilidade para avaliar a criança e criticar suas próprias ações nos mostram a expressão de "qualidade do que é do outro"2.
Mesmo diante de tantas dificuldades em como lidar com acordos e regras, observou-se que, em alguns momentos, as educadoras percebiam que tinham um papel relevante no ato de educar apresentando às crianças o mundo que as precedeu. "É um dever nosso, a gente está educando. Então dar responsabilidade para ele perceber que tem regras nesse mundo na convivência, enfim, que você é responsável [...]" (Coordenadora 1, UE 5, GD1). A compreensão da responsabilidade de cada educadora como alguém que conduz a criança por caminhos não percorridos por ela é uma forma de aproximação com o adulto.
Refletiu-se com as professoras sobre como seria possível incluir as crianças nas discussões com os adultos sem que esses perdessem seu lugar de responsabilidade e autoridade diante dos "pequenos". Até que ponto uma discussão entre adultos e crianças poderia ser estendida, quando deveria haver uma tomada de posição clara por parte do adulto? Quando o adulto "sente" que é chegada a hora de se posicionar?
Mas você tem que ter clareza de sua posição enquanto educador e enquanto adulto, que ali tem uma criança e que você tem por obrigação se fazer entender e trazer aquela criança à razão, tirar ela daquele momento de stress excessivo. Agora, eu acho difícil você dizer: "Tem que ser assim, é assim, esse é momento, essa é a situação certa [...]". Porque eu acho que é meio... que o momento mesmo... (Profa. 6, UMEI 3, GD1)
Com sua fala reticente, a Profa. 6 traz aquilo que está na ordem do não saber, do inesperado, da situação que pega a todos de surpresa, mas que, por outro lado, convoca o adulto à ideia de que algo precisa ser feito. A partir da clareza da sua posição de adulto e educador, a professora sabe que está em suas mãos fazer algo para neutralizar um pouco os efeitos daquele mau encontro.
Essa autoridade que não se encontra mais inexoravelmente ligada ao adulto e à hierarquia "natural" entre adultos e crianças, se revela, pois, como uma produção social.
Saber ao certo a medida da autoridade e da liberdade, os momentos em que a interferência da educadora é fundamental e quando sua ausência é que se torna necessária são coisas impossíveis de definir a priori. Contudo, tornou-se claro que tudo se torna mais fácil de resolver quando os adultos se mostram receptivos para acolherem as crianças em seus modos singulares de agir, pensar e falar.
O sentimento de alteridade entre crianças e adultos se manifestava por um sentimento de valorização do outro e do entendimento de que ambos são responsáveis pela construção subjetiva mútua, e também pela construção de espaços-tempos comuns.
Para decidir o que fazer, como agir melhor, para saber a hora de intervir, quando ser mais dura ou mais terna, as professoras precisam contar com sua sensibilidade e com uma disposição em olhar para a criança. "A gente tem que estar muito atenta, o professor tem que estar muito atento a todo o momento". (Profa. 6, UMEI 1, GD1). "É aquela coisa do olhar bem observador mesmo, estar considerando cada criança como ela é" (Profa. 7, UMEI 4, GD2).
O que elas estão comunicando é que, de fato, a professora é convocada a ser cada vez mais uma investigadora. O olhar atento, a escuta arguta e a sensibilidade para parar ou seguir em frente são capacidades construídas na lida diária com as crianças a partir de uma postura reflexiva do professor.
"A proximidade do outro é a significância do rosto" (Levinás, 1977, p. 193). Quando Levinás (1997) nos fala sobre a proximidade de rostos quer nos apontar para o fato de que somos semelhantes e que possuímos algo em comum, ou seja, a própria humanidade. "A sua postura frente à criança é isso de olho no olho... a criança 'saca' quando você está cedendo e quando você está dando o limite" (Profa. 6, UMEI 3, GD1).
As professoras reconhecem que olhar no rosto nos compromete com o outro, nos obrigando a nos sentir responsáveis e a ser mais humanos. Não foi à toa que elas afirmavam que uma estratégia utilizada nos momentos de conflito ou nas situações-problema - e que nós avaliamos como uma forma de aproximação entre elas e as crianças - era a conversa franca, o avaliar caso a caso e o olhar nos olhos. A autoridade legítima nessas situações emergia a partir de uma postura de alteridade das educadoras, de uma inclinação ao outro - criança e de uma valorização de sua singularidade.
A partir do momento em que conseguiram enxergar nas crianças possibilidades de aprender com suas brincadeiras ou de se questionar quando as observam em seu fazer cotidiano, estavam colocando os "pequenos" em um lugar de protagonistas sendo capazes de narrar a história.
Muito engraçado é o que acontece às vezes. A criança, às vezes, fica imitando o professor. Porque você não se vê. Aí quando a criança está imitando você dar aula, aí que você se vê: "Puxa... Eu sou assim. Caramba..." (Profa. 2, UE 5, GD2)
De acordo com as falas das educadoras envolvidas na pesquisa, estar disponível para o diálogo e aberta a acolher as crianças em suas diferenças seria uma forma de aproximação entre sua posição de autoridade e a alteridade com a criança. Deixando que o ambivalente surja, estão produzindo novas formas de ação e fazendo aparecer outras manifestações possíveis do ser - infantil e do ser - adulto. Disponibilizar-se ao diálogo e assumir uma tomada de decisão abrindo caminhos para a narrativa infantil seria o papel do adulto. Também, seguindo essas pistas, o adulto poderia exercer uma autoridade legítima diante das gerações mais novas, pautada na responsabilidade e na alteridade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados encaminham para uma reflexão sobre as possibilidades de haver, mesmo diante de uma crise de autoridade, encontros entre o adulto e a criança. Observa-se como os posicionamentos ou escolhas subjetivas dos adultos em direção às crianças podem promover o 'fazer junto' e a disponibilidade ao outro, atitudes de aproximação com elas, através de manifestações legítimas de autoridade. Ou seja, aqueles posicionamentos dos adultos que demonstram um lugar de referência e de segurança para a criança, sem, contudo, se configurar como uma atitude autoritária e coercitiva.
A pesquisa mostrou que as educadoras se deparam constantemente com situações de enfrentamento das crianças a sua autoridade. Percebem que hoje a sociedade se configura de forma diferente de tempos atrás, seja pelos novos arranjos familiares, pelo papel da criança e do adulto na sociedade ou pelas transformações nas relações do sujeito com o conhecimento. Tudo isso conduz ao fato de que se vive 'um momento de passagem', o que confirma a presente interrogação a respeito da atual crise de autoridade.
Os momentos de tensão com as 'crianças difíceis', a dificuldade de avaliação dos alunos, e as questões que a punição envolve, por exemplo, não se mostraram como as únicas reflexões produzidas pelas professoras a partir da interpelação que lhes foram feitas sobre suas relações com as crianças nas situações escolares.
Percebe-se que alguns sinais de que hoje é possível construir uma autoridade que possa ser considerada como legítima, resumida a duas dimensões afetivas e éticas que é aqui qualificada como responsabilidade e alteridade. Tais conceitos expressam os momentos em que estiveram presentes o afeto, o cuidado com o outro e a coragem de tomar decisões.
A autoridade do adulto sobre a criança deve contribuir para a preservação da tradição, e a liberdade concedida a ela garante a emergência da novidade. Esse duplo papel confere ao adulto e à educação um lugar muitas vezes contraditório e difícil de ser administrado.
O adulto tem o dever de ensinar, conduzir as crianças nos caminhos ainda não trilhados por elas, pelo simples fato de, do mundo, elas ainda saberem pouco. A referência que se encarna na figura do adulto traz o limite necessário para suas ações e um sentimento de segurança. "Ela não sabe do mundo. Então o afeto tem que lidar com a questão do amor, da segurança, do limite" (Profa. 1, UMEI 4, GD1).
Olhar para adultos e crianças, como sujeitos de direitos pressupõe que ambos desempenhem ações consideradas válidas e que suas singularidades sejam igualmente levadas em conta. Se a ação segue uma dimensão essencialmente coletiva, se é construída processualmente e se não se separa do pensar e do ser, pode-se concluir que crianças e adultos se igualam mesmo que em suas diferenças (Castro, 2001, p. 32).
Quanto às professoras participantes da pesquisa, percebe-se que o que possibilita o encontro delas com seus alunos rumo à construção de momentos singulares, de uma aproximação entre ambos pelo confronto de suas diferenças, é justamente a coragem que demonstram ter, em muitas ocasiões, em assumir um lugar de ação e de tomada de decisão. A coragem também se expande para a sustentação de uma situação na qual não há garantias de previsão sobre os efeitos de suas ações.
Então assim o que mudou nisso tudo? A minha postura em relação àquela turma. No momento em que eu queria impor a minha fala eu não ouvia a deles [...] Eu não dava oportunidade. [...] Eu inverti o papel, eu comecei a escutar, a aprender com eles e a mudar mesmo a minha postura, a relação com eles. Eu consigo hoje dar uma aula muito melhor do que naquela época em que eu queria silêncio, que queria que todo mundo ficasse mudo. (Coordenadora, UE 5, GD1, grifo nosso)
Professores que percebem ser fundamental assumir e sustentar um lugar de organização das crianças, de mediadoras de conflitos e de acolhedoras da expressividade infantil se colocando como disponíveis para a criança em sua ação, estariam representando um papel de autoridade legítima. O fato de ser responsáveis pelo outro e imprimir uma ética da alteridade nas relações é o começo para construir, junto às crianças, uma autoridade reconhecida por elas. Igualdade por um lado e multiplicidade por outro, crianças e adultos permitem que a cultura se constitua como um palco de negociações de diferentes pontos de vista. Diferenças que só aparecem pelo confronto, pelas trocas entre sujeitos - "pequenos" ou "grandes". Nesse terreno, a discussão sobre a crise de autoridade vem para problematizar a relação entre adultos e crianças, e talvez possa colaborar para o respeito e cuidado com a infância e a inserção efetiva da criança nos acontecimentos do mundo.
REFERÊNCIAS
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1 Mantivemos o termo no feminino, pois 100% de nossa amostra era composta por mulheres.
2 Conceito de alteridade, Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.