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Psicologia da Educação
versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520
Psicol. educ. no.41 São Paulo dez. 2015
https://doi.org/10.5935/2175-3520.20150018
COMPARTILHANDO
Medicalização e controle na educação: o autismo como analisador das práticas inclusivas
Medicalisation and control in education: autism as analyser of inclusive practices
Medicalización y control en educación: el autismo como analizador de prácticas inclusivas
Davi Cavalcante Roque da Silva
Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. roquedavi@hotmail.com
RESUMO
No acompanhar do trabalho institucional do psicólogo em duas escolas de ensino fundamental e escola especial discute-se a temática da medicalização na educação, nas articulações intersetoriais com a saúde e educação especial, objetivando analisar as relações a partir dos (des)encontros entre trabalhadores da saúde e da educação, e os focos de tensão entres esses profissionais e as famílias dos alunos na forma de demandas e encaminhamentos da escola. A medicalização é discutida nas relações com a escola especial quando se trabalha com diagnóstico neuropediátrico de autismo, atribuído a uma aluna pré-adolescente. O referencial teórico é o da análise institucional e estudos da filosofia da diferença, contando, fundamentalmente, com os conceitos de controle (Deleuze) e governamentalidade (Foucault). Veiga-Neto subsidia a problematizar nas (micro)políticas públicas a produção social de uma inclusão excludente. Foram privilegiados os dispositivos analisadores de encontros formais entre os profissionais,os relatórios de avaliação e encaminhamentos focalizando, entre outros aspectos, (1) os movimentos de profissionais e da aluna que questionam e ultrapassam a ordem dos diagnósticos e (2) a questão política local/geral de acessibilidade à escola especial.
Palavras-chave: medicalização; controle; inclusão; psicologia e educação; psicologia social.
ABSTRACT
In follow the institutional psychologist working in two of the schools: one elementary and a special unit, discusses the issue of medicalisation in education, intersectoral linkages with health and special education, aiming to analyze the relations of power from the (dis) encounters between health workers and education ones at school, and focus among these tensions and the families of students in the form of demands and school referrals. Medicalisation is discussed in through relations with special school when working with a neuropediatric diagnosis of autism assigned to a pre-teen student. The theoretical framework is that of institutional analysis and studies of the philosophy of difference, relying primarily with the concept like control (Deleuze) and governmentality (Foucault). Veiga-Neto subsidizes us to question in (micro) public policy the social production of an exclusive inclusion. In the methodology were privileged analyzers devices of formal meetings between professionals, evaluation reports and referrals focalizing, among other aspects, (1) the movements of professionals and of the student problematizing and breakthrough the order of diagnoses, and (2) the question of local/general accessibility of special school. The medical welfare dependency control of school life is not only in teaching and care of the other - student, but doubles as self care in labor relations, and its prophylactic tone implies the preventive containment of youth and future of all.
Keywords: medicalisation;control;inclusión; psychology and education; social psychology.
RESUMEN
En siga el trabajo institucional del psicólogo en dos de las escuelas: una primaria y la escuela especial, discute el tema de la medicalización en la educación, la articulación intersectorial con la salud y la educación especial, con el objetivo de analizar las relaciones de poder en los (des) encuentros entre trabajadores de la salud y la educación, y el enfoque entre estas tensiones y las familias de los estudiantes en forma de demandas y referencias escolares. La medicalización se discute en derivaciones a lo salud y escuela especial cuando se trabaja con un diagnóstico neuropediátrico del autismo, asignado a un estudiante de pre-adolescente. El marco teórico es el de análisis institucional y el estudios de la filosofía de la diferencia, basándose principalmente con los conceptos de controle (Deleuze) e gubernamentalidad (Foucault). Veiga-Neto nos subsidia a cuestionar la (micro)política pública de la producción social de una inclusión exclusiva. En la metodología fueron privilegiados os dispositivos analizadores de reuniones formales entre profesionales, los informes de evaluación y referencias destacando, entre otros aspectos, (1) movimientos de los profesionales e la estudiante que discuten e ultrapasan la orden de los diagnósticos, y (2) la cuestión local/general de accesibilidad de la escuela especial. El control médico-assistencialista de la vida escolar no es sólo en la enseñanza y el cuidado del otro - estudiante, pero se dobla como el autocuidado en las relaciones laborales, y su tono profiláctico implica la contención previsora de la juventud y el futuro de todos.
Palabras clave: medicalización, control, la inclusión, psicología y educación, la psicología social.
A modulação é uma característica das sociedades de controle, e o conceito de controle é criado por Gilles Deleuze (1990) como uma substituição progressiva das sociedades disciplinares,a partir do marco da II Guerra Mundial. Enquanto as instituições de disciplina se baseiam no confinamento espacial como moldes ou distintas moldagens,o controle na descontinuidade entre os espaços existe como modulação, moldagem em ondas-fluxos, que variam continuamente a cada momento, como as malhas de uma peneira que se alteram ponto a ponto. É o modelo da empresa que vem substituindo o da escola-fábrica na contemporaneidade. A escola-empresa é o regime de controle nas práticas na educação, em se considerando que o regime das disciplinas - que se define pela constituição de meios de confinamento para observação e exame como estratégia de poder -, não basta mais para o exercício do exame e da gestão escolarizada da infância e adolescência. A ordem geopolítica das articulações intersetoriais, a ética de competências para todos, e as formas de controle contínuo (avaliação e formação contínuas através da escola) vem ganhando terreno nas políticas públicas.
As práticas de saber-poder, operacionalizadas pelos trabalhadores da educação municipal - técnicos e não técnicos na hierarquia corporativa escolar - despertam a atenção para os relatórios feitos com diagnósticos nosológicos que, por sua vez, transformam-se em encaminhamentos aos especialistas da equipe técnica escolar, e ao território da saúde, principalmente a médicos neurologistas e neuropsiquiatras. A produção coletiva dos relatórios é, contudo, expressão dos modos de se relacionar entre os atores escolares. A presença do psicólogo nas escolas e, historicamente, no campo educacional, tem reforçado a expectativa da confirmação de diagnósticos já proferidos pelos educadores. Ela contribui para que os relatórios de prevenção geral se especializem nas trajetórias dos encaminhamentos.
A lógica de medicalização é que será posta em análise quando se depara, na educação, com a produção de relatórios médico-assistencialistas: em nome da prevenção geral na escola, tais relatórios (de exames) funcionam como técnicas políticas e de governo para além da lógica disciplinar que prima pelo adestramento espacial dos corpos dos sujeitos. Convivem com a disciplina, mas como controle sua primazia é operar no tempo das articulações entre diferentes espaços disciplinares. Visam ao controle do futuro dos alunos, e com isso de suas possibilidades e perspectivas. O conceito de medicalização inspira-se no trabalho de sociólogos entre os anos de 1930 e 1950, que ligaram controle social ao domínio ascendente da medicina sobre problemas sociais e individuais, sendo que Irving Zola (1972)é um dos primeiros a propriamente defini-lo: processo pelo qual progressivamente a vida cotidiana tem-se submetido à égide, influência e supervisão médicas. Trata-se ainda do processo pelo qual problemas não médicos são definidos e tratados como médicos. Malacrida (2004), Conrad (1992), Petrina (2006) e Donzelot (1997) assinalam que a medicalização tem sido implementada tecnicamente pelos trabalhadores não médicos em setores como o da educação, aspecto que será analisado ao se fazer referência aos (des)encontros entre saúde e educação.
O conceito de governamentalidade, também utilizado como ferramenta nas análises a serem apresentadas, refere-se às várias táticas de soberania e controle, também presentes nas escolas, como tecnologias de governo de si e dos outros. A formação da governamentalidade política é "a maneira como a conduta de um conjunto de indivíduos esteve implicada, de modo cada vez mais marcado, no exercício do poder soberano" (Foucault, 1997, p. 82).As linhas de errância dos jovens autistas, como descritas por Deligny (1975), são as expressões dissonantes,que se põem a "vibrar", "estremecer", "dar guinadas" como linhas de fuga que escapam às linhas costumeiras esperadas pelo controle médico, modelo de governo das condutas na educação.
Na contemporaneidade das práticas de educação, configuram-se produções de registros e relatórios como técnicas de exame e governo das condutas, tendo como objeto principal o aluno da escola fundamental. A sócioanálise, como novo campo de coerência (Lourau, 1993), provê conceitos-ferramenta que são imprescindíveis: os de analisador e implicação, no contexto das análises das relações de poder.
Os analisadores recortam o território metodológico de intervenção possibilitando a análise, ao agir como catalisadores de sentido e desnaturalizadores da existência e condições. A implicação já surge com a análise das demandas ao psicólogo, no encontro com os demais atores sociais. A produção das demandas iniciais se dá quase sempre na forma da rotulação dos alunos a partir dos diagnósticos nosográficos, isto na medida em que os especialistas a produzem. A análise das implicações deve incluir o próprio analista e ser aliada, no curso do trabalho institucional, no transversalizar das análises: clarificar as instituições atravessadas nas práticas como ultrapassagem dos limites das análises da verticalidade - o instituído, hierarquizado e funcional - e da horizontalidade - o mais informal e imediato - nas relações sociais.
APRESENTAÇÃO DAS ESCOLAS E DA CIDADE E AMBIENTAÇÃO DAS TRAMAS1
A modulação escola-empresa, moldura das sociedades de controle na educação -, tem o foco nas suas relações estendidas aos familiares dos alunos, e então às comunidades clientes do serviço público educacional, na cidade de Antares, no interior do Rio de Janeiro. O trabalho institucional do psicólogo foi na atuação, em equipe técnica de serviço de apoio à família e ao educando, de atenção itinerante a seis escolas municipais. As escolas eram de ensino fundamental, ensino infantil e um núcleo de atendimento educacional especializado. Neste artigo, faz-se referência a aspectos ocorridos na Escola Estadual Municipalizada Alpha, com aproximadamente 500 alunos, e a Escola Especial contando com 35 alunos de 9 a 55 anos de idade. O núcleo de atendimento educacional especializado localizava-se a mais de 10 quilômetros do Centro da cidade, em uma fazenda pertencente a uma antiga instituição de saúde do Rio de Janeiro.
A percepção nos encontros em grupo de uma produção excessiva de diagnósticos e encaminhamentos para a área de saúde e escola especial, e da exigência automática de um trabalho médico-assistencial e ambulatorial sobretudo com alunos, por parte do psicólogo, é o que leva a analisar os seus modos de produção de existência e efeitos; em meio à emergência das demandas iniciais produzidas na escola engendrar-se-ão os analisadores. Um diagnóstico de autismo atribuído a uma aluna é analisado nas relações de poder que o produzem e que também precipitam na escola e na cidade, e o decorrente feixe de discussões que opera no sentido da busca das interlocuções externas à unidade escolar Alpha.
A metodologia adotada, em consonância com a perspectiva socioanalítica, é a da pesquisa-intervenção no campo da educação. Paulon e Romagnoli (2010) ressaltam que"não é a técnica ou o enquadre do campo que define o caráter de pesquisa-intervenção, senão a posição que o pesquisador ocupa nos jogos de poder" (p. 96).Neste artigo, faz-se um recorte metodológico configurando o campo de análise nos grupos, tecnologias e articulações gerais: nas avaliações e encaminhamentos entre as escolas Alpha e especial, acerca das demandas da aluna Alice e sua família.
Desta feita, o analisador da nosologia psicótica-autística em Alice é o que levaria ao desnudar da psiquiatrização da vida. O diagnóstico coloca-se como forma de governo controlado da infância,no seu uso pelas autoridades técnicas, como o psicólogo, juízes da normalidade na escola.
DESTACANDO O ANALISADOR DE ALICE, UMA ALUNA CONSIDERADA "AUTISTA"
Aponta-se para alguns tensionamentos nas relações entre (1) técnicos e professores, (2) entre especialistas e gerência do ensino, e (3) destacadamente, conflitos entre família e escola. Partindo de alguns incidentes deste tipo, Alice fornece subsídios para pensar, ainda, a implicação do psicólogo, no lugar de especialista e juiz da normalidade, diante das demandas por encaminhamentos à escola especial.
A família de Alice cobra, da escola, que a escola Alpha responda pelo ensino especializado para a filha. Tanto o professor como o "tutor" que cuida da aluna, em sala de aula, não têm formação específica que lhes forneça subsídios técnicos-educacionais para lidar com os chamados "transtornos globais do desenvolvimento", como o autismo é enquadrado pela lógica de psiquiatrização da vida. Estava declarado o impasse, a partir do momento em que o professor e o tutor eram cobrados, pela escola e pelos pais de Alice, por um tipo de cuidado especializado. A gerência da escola, a Secretaria de Educação e a coordenação da equipe técnica defendiam, nos discursos com a família, a permanência de Alice na escola regular. Paradoxalmente, avaliavam, entre si, a inviabilidade prática desta permanência (não era declarado aos pais, mas dito no cotidiano da escola), uma vez que a aluna não poderia ficar eternamente na turma do ensino infantil III (em função do descompasso etário com os alunos de 5 anos, já que Alice tinha 11 anos e estudava no ensino infantil III desde os 9 anos), e se preocupavam com a exigência dos pais para que Alice passasse à classe de alfabetização.
No discurso geral da escola, as diferenças, ou aqueles que destoam da homogeneidade prevista, como Alice, devem ser administradas, e adaptadas, com o "recurso" de "educação para a vida". Na fala da chefe da equipe técnica, à Alice deve ser ministrada a "educação para a vida", uma espécie de "socialização" apenas.
LINHAS DE ERRÂNCIA DE ALICE: ANTIANATOMIA POLÍTICA ENTRE ESCOLA E FAMÍLIA
A direção da escola e a coordenação do serviço de apoio à família e ao educando defendiam, com os técnicos, a necessidade de encaminhar Alice para uma escola especializada em cuidados com autistas, pois que não estavam preparados para atender às suas necessidades especiais: - a justificativa era a de que não tinham profissionais nem salas especializadas. Entretando, indo ao encontro do discurso da Secretaria de Educação, na prática subentendia-se que a ordem era a da permanência da aluna na escola regular.
A escola deixava-se policiar pelas atitudes da mãe de Alice em "supervisionar" o trabalho da escola. Visitava a escola de surpresa, corrigindo os educadores ao lhes dizer como atuar com a filha. Em geral, tais investidas eram aceitas pela escola. Enquanto a família de Alice esperava uma pedagogia especializada para o "autismo", a escola enxergava na aluna a "doença mental", ou somente questões comportamentais a serem objetos de uma educação, que não iam ao encontro da "aprendizagem" formal, dos conteúdos formais do ensino. Isso porque Alice não se alinhava à linguagem e ao discurso do ensino formal-escolar. A escola Alpha acreditava em uma socialização ou o que denominam de educar para a vida. Ironicamente, "educar para a vida" significava a redução ou adaptação curricular, que poderia se aplicar tanto aos alunos especiais, com problemas graves de saúde - paralisias cerebrais, por exemplo -, como àqueles não alfabetizados.
Os pais recorriam à escola, ao entender o "adoecimento" da filha como uma questão essencialmente intelectual, como se estivesse acometida de "deficiência mental ou intelectual" e, portanto, passível de intervenção, de uma pedagogização onipotente. Tal como uma defesa contra o sofrimento e a sua implicação, a família depositava na educação formal escolar a responsabilidade de cuidados com Alice.
Em dissonância com os esforços escolares em adaptar Alice aos seus espaços-tempos, a aluna provocava distúrbios à normalidade esperada. Suas expressões eram de expansão, para além dos limites que as paredes da classe de alfabetização lhe ofereciam. Ela andava nas pontas dos pés, como se flutuasse sobre o chão da escola, escapando às tentativas da escola para lhe dar direção. Alice ficava transitando, passava entre os espaços de confinamento, e os tempos de controle, desafiando as ordens, as normativas, a ênfase nas adaptações. Não acatava a linguagem formal escolarizada.
Apesar de sua incomunicabilidade com palavras, havia tensões entre os atores-entre os professores e técnicos, porque os primeiros avaliavam que esses não os apoiavam suficientemente e não lhes ensinavam como direcionar o comportamento de Alice, entre os próprios técnicos, e entre escola e família.
Atendendo aos anseios dos pais, a escola se tensionava pela manutenção de Alice dentro da classe, pois a família não poderia desconfiar de que Alice estivesse sem atividades. Como a aluna não fazia as mesmas atividades que os alunos da turma, perturbava o andamento das aulas, e, como não havia toalete perto da sala, urinava na própria classe. Estes incidentes levaram a várias reuniões, entre equipes, e dessas com os pais de Alice. Após muitas discussões, decidiu-se pela redução de seu tempo na escola (três dias, durante três horas, no turno da tarde, sendo que anteriormente ficava de segunda a sexta, e o dia inteiro). Isso não foi feito por iniciativa dos técnicos, mas com a intervenção da direção da escola especial da municipalidade.
Alice passou a estudar em uma sala de recursos individuais e a contar com o apoio de dois técnicos: uma alfabetizadora e um cuidador, ambos da escola especial. Isso ocorreu num período em que o núcleo de atendimento educacional especializado interrompeu suas atividades, em função de obras. Alguns alunos deficientes, que tinham condições, passaram a frequentar as turmas regulares. Os que não poderiam frequentá-las seriam os que não tinham comportamento adequado à escola e que, com isso, poderiam suscitar conflitos.
A aluna Alice como os outros produtores desconhecidos na comunidade escolar - alunos, famílias, professores -, consumidores e clientes do ensino-mercadoria, dão indícios das lutas ainda silenciosas. A menina Alice expressa uma dissidência silenciosa: não precisava falar para desestabilizar a organização da escola. Com De Certeau (1999), percebe-se que suas linhas de errância são parcialmente ilegíveis no campo tecnocrático construído nas articulações entre saúde e escola especial;são interesses ou desejos outros que não são captados totalmente pelos sistemas que as codificam em diagnósticos."Nas linhas motoras, gestuais, sonoras que marcam o percurso costumeiro de uma criança, enxertam-se ou se põem a germinar 'linhas de errância', com volteios, nós, velocidades, movimentos, gestos e sonoridades diferentes" (Deleuze & Guatari, 2012, p. 123).
A família de Alice, devido à sua posição de poder político e soberano na cidade, não aceita as determinações da escola e é resistente aos encaminhamentos para a área médica e para o núcleo de atendimento educacional especializado. Tensionam, de um lado, para que a escola dê conta de quase todos os cuidados para com Alice, porque remete a suposta "doença" do autismo aos cuidados pedagógicos; de outro lado, admitir seu adoecimento real levaria às próprias implicações com cuidados e educação de Alice.
Neste caso, a família policia a escola e, com isso, promove uma inversão do caminho comum dos encaminhamentos para fora da escola. Exigem que tudo aconteça na própria escola. A escola, em sua contraparte, queixa-se, especulando que a família de Alice não lhe dava os remédios, ou seja, o antipsicótico que um neuropsiquiatra lhe havia prescrito. Segundo a escola, a "mãe não lhe dava a medicação", pois não "aceitava a doença mental da filha", e, do ponto de vista da escola, se a aluna o utilizasse apresentaria um comportamento mais controlado, mais adaptado às regras. Lançavam, com um discurso de prevenção e segurança, uma hipótese sobre a "origem" da agressividade de Alice, e de sua (in)disciplina: o não uso do medicamento antipsicótico.
Que forças e tensões contribuem para que uma forma dita de educação inclusiva seja, na prática, mais uma forma de exclusão social e controle da população?
Com Veiga-Neto (2005),depreende-se que a inclusão para excluir ocorre por força de heteronomias, determinações de regras de conduta e diretrizes curriculares que, de fora do quotidiano escolar ou a partir de decisões de diretores e superiores hierárquicos, não preveem discussões com os professores. No esforço por equalizar as diferenças, entram em confronto com as forças/tensões que lutam por criar e questionar as ordens predeterminadas. Tem-se, então, o desafio de construir e manter pari passu uma escola plural e igualitária, considerando que diferença não é o contrário de igualdade, buscando a igualdade e ainda, sim, garantindo as diferenças."O contrário da diferença é a mesmice, o contrário da igualdade é a desigualdade. Isso pode ser fácil de compreender, mas não é uma coisa simples de executar"(Veiga-Neto, 2005, p. 58).
ESQUIZOFRENIA, A MENINA, E O GOVERNO DA SOBERANIA
Na obra Alice no País dos Espelhos (Carroll, 2008), o poema do Jaguadarte o descreve como um monstro com olhos de fogo simbolizando o Estado controlador e a soberania, de modo similar ao Leviatã de Hobbes, ou ao Moby Dick de Melville. Deleuze (2009) se refere ao Jaguadarte inserindo o conceito original "Jaberwock" no livro Lógica do Sentido. A luta de Alice e a espada Vorpal com o Jaguadarte significa o jogo da liberdade/autonomia com o governo da soberania, das linhas de errância autísticas de uma aluna com as tramas inclusivas do poder. A governamentalidade soberana funciona como heteronomia ou autoridade: ênfase no governo do outro que se insere nas práticas de exame e gestão dos encaminhamentos da escola na rede de controle.
Os profissionais da escola Alpha discutiam, então, qual seria o destino de Alice. Reuniões e mais reuniões do tipo colegiado foram agendadas com a família. Nos bastidores, a diretora Ágatha e a diretora adjunta diziam que a aluna deveria estudar no núcleo de atendimento educacional especializado e/ou em uma escola especializada na suposta doença autística; na prática cobravam, junto com os professores, que a equipe técnica fornecesse instruções técnicas aos educadores sobre como lidar com o comportamento agressivo (a indisciplina) de Alice e como ensiná-la. Ágatha tinha medo da família; afinal suas reclamações poderiam repercutir em sua destituição do cargo de diretora. Os técnicos eram posicionados como um escudo para a equipe dirigente, na dianteira das conversações com a família da estudante.
Especialistas das equipes técnica e pedagógica visitaram uma escola especializada em autismo em cidade vizinha. Na visita, o pai de Alice lê em um quadro pendurado uns dizeres sobre o autismo se constituir em uma doença genética e, em seguida, olha para a esposa e diz que as inscrições eram uma comprovação de que a culpa era dela. A culpa genética é lida pelo pai da menina como sinônimo de culpa da mãe. Durante uma reunião "colegiada" com a responsável por Alice, ela afirma que sofreu de "depressão pós-parto", não olhava a filha, e a tinha como a um objeto inanimado, posicionando-se à distância.
(A primeira vez em que entramos na sala de aula de Alice, quando ela ainda estudava na turma do ensino infantil III, ao abrimos a porta, ela correu e começou a nos tatear, e a cheirar as próprias mãos, como se estivesse a reconhecer um território sem poder vê-lo, como se não nos enxergasse e não tivesse noção de profundidade, da distância entre nós e ela. Pensamos que ela realmente não enxergasse, e ainda não sabíamos que ela era a aluna "autista" de que muito se falava em todas as escolas em que trabalhávamos. Diário de Campo)
Havia também diferença entre o "diagnóstico" atribuído pela família (autismo) e o atribuído pela escola (esquizofrenia ou psicose). O dilema do encaminhamento de Alice ou para escolas regulares ou para escolas especiais reporta à antiga divisão entre os "anormais de hospício e os anormais da escola" ("anormaux d'asile" e "anormaux d'école"), tipologia defendida por Binet & Simon (1927)para demarcar cada território para o qual as crianças deveriam ser encaminhadas e tratadas. Binet (1942)descrevia os anormais de hospício como os imbecis, os idiotas, e os anormais da escola como os débeis, retardados, atrasados. O olhar clínico instrumentalizado pelo teste de inteligência de Binet-Simon prestava-se ao exame e enquadre diagnóstico das crianças que não se beneficiariam da escola regular e, por isso, deveriam ser encaminhadas ao tratamento em "ortopedia mental", nas classes e escolas especiais ou de aperfeiçoamento. Como inventor e gestor dos testes de inteligência, o campo da psicologia passou a ter as "cartas e as senhas" para guardar e ajuizar a fronteira entre normalidade e a anormalidade na educação, determinando quem pode estudar na escola regular e quem se destinaria às escolas especiais.
Uma acoplagem entre o autismo e a esquizofrenia se produz quando há suposição, por parte da escola, de que o diagnóstico mais fidedigno seria o de um transtorno ou doença mental: esquizofrenia/psicose. Qual o veredicto: deficiência ou doença mental? Anormal da escola ou anormal de hospício? Para onde Alice deveria ser encaminhada? Onde poderia estudar? Quem decidiria as linhas de ida-e-volta, moduladas na articulação em rede, nos fluxos de uma inclusão excludente que precisa fazer excluir para incluir? Os movimentos de Alice, quando fogem aos enquadres codificantes de inclusão, mobilizam procedimentos técnicos descontínuos e diversificados, pois se renovam para readaptar as condutas que se libertam, extravasando as redes de controle de Antares.
O paradoxo nosográfico entre a deficiência mental e a doença mental em Alice fala dos guardiões da fronteira normalidade-anormalidade, dos psicólogos e suas técnicas de normalização demandadas pela escola e sua formação específica.
O paradoxo nosográfico autismo-esquizofrenia (ou entre anormal da escola e anormal de hospício) encontra as relações de soberania na pólis. Alice encontra o soberano Jaguadarte (Jabberwocky) e dispõe de sua expressão dissonante às regras. A aluna escapa com distorções à normalidade, cuja ordem monocromática como num jogo de xadrez- em preto ou branco-regularmente institui dicotomias entre normal e anormal na escola, onde prevalecem regras de identificação geral à normalidade. Esse encontro significa o entrecruzamento entre Alice (e a questão da triagem diagnóstica na escola), as técnicas de controle e disciplina dos atores escolares, e a governamentalização do Estado na sua subdivisão em Antares.
Criticar a sobre produção ética e geopolítica da zona de exclusão dos encaminhamentos à escola especial era para muitos estar querendo "cutucar a onça com vara curta", isto é, efeito do medo e silenciamento dos questionamentos às ordens instituídas na escola e na cidade, enfim, em uma trama eivada de tradições autocráticas. Logo, a retirada do núcleo de atendimento educacional especializado da instituição já era uma antiga exigência e objeto de reclamação pelos pais dos alunos. A diretora agia por outra frente na batalha, a negociar com outros pais a matrícula de novos alunos "anormais" visando dar legitimidade à clara exclusão geopolítica. Através desse único acontecimento-analisador, pode-se perceber que não havia interesse da equipe dirigente, da Secretaria de Educação, ou da Prefeitura, em deslocar o estabelecimento educacional para um território mais acessível. O tráfego para a escola especial se dava através de um micro-ônibus da Prefeitura por estradas não pavimentadas, pela subida da serra. Acidentes automobilísticos eram comuns na travessia, e quando chovia era necessário o deslocamento por outra estrada pavimentada que impunha uma duração de quarenta minutos de viagem. Em quase dez anos de existência institucional, o núcleo de atendimento educacional especializado não tinha telefone próprio instalado e nenhuma espécie de serviço de saúde nas proximidades, e na região bem afastada não funcionavam telefones celulares nem havia telefones públicos. Atualmente, apesar de melhorias em estrutura e acessibilidade, a escola permanece no mesmo lugar.
Com sua transferência da turma de alfabetização para uma sala especial multifuncional em formato retangular, Alice aprendeu a ir até o banheiro da escola e usá-lo. Permaneceu estudando em sua sala individualizada, até que a professora fosse reclamar de sua agressividade, das mordidas e arranhões que ocasionava.
Através dos diagnósticos, Alice parece ter dupla entrada no sistema. Poderia inclusive ter duas matrículas, na escola regular e em um pretenso centro de reabilitação de anormais. Através de uma dupla nosografia, Alice adquire linguagem na pólis: a psicose autística é a senha para a inclusão nestas instituições das sociedades de controle.
Alice detinha uma senha minoritária, portava a possibilidade de um relatório minoritário, em meio a uma profusão de lugares certos e adaptações das condutas de trabalhadores do ensino e estudantes. A aluna desafia o tempo cronológico da escola,tempo esse instituído nas separações passado-presente-futuro que aprisiona a infância em um presente bloqueado de perspectivas pela compressão nosológica. Tais paradoxos colocam "...a ênfase ora num, ora no outro desses efeitos: tal é a dupla aventura de Alice, o devir-louco e o nome-perdido" (Deleuze, 2009, pp. 77-78), tendo em vista a análise do passado em suas descontinuidades, a história que codifica dando os nomes-senha para a inclusão, como autismo/psicose, e a abertura de possibilidades. Nessa duplicidade entre o viver conforme as rotinas, repetição, tarefas e rótulos (como o senso comum,costumeiro), e o devir (a partir do paradoxo e da diferenciação nas práticas), tem-se (1) a perdição do nome-identidade, na adesão à equalização diagnóstica entre as grades de inclusão, e (2) o devir-louco como abertura possível à criação, - que para além do tempo cronometrado não prevê dicotomias entre passado-futuro, mas caminha para os dois lados, num corte dos limites do presente.
Trata-se agora de pensar como o nome-perdido e o devir-louco de Alice podem figurar como abertura, libertação e criação, para professores e psicólogos, entre outros atores escolarizados. A batalha dos diagnósticos permite a análise política da individualização de Alice, cuja existência tem sido instituída na escola e na cidade como dispositivo de controle, segurança e prevenção por meio de códigos nosológicos.
Os atores sociais estrategicamente movimentavam-se para a manutenção ou conquista de postos/cargos técnicos, e políticos soberanos na escola e na cidade. Os dirigentes visavam acumular matrículas dos dois lados - nas escolas regulares e na especial -, ao enviar alunos atrasados (anormais da escola) devido às aprovações automáticas para a alfabetização no núcleo de atendimento educacional especializado e conduzindo adaptações curriculares nas regulares, sempre com o aval de laudos médicos, psicológicos ou de outros profissionais da Saúde. São processos de biopolitização da vida na educação e na cidade, de Alice e outros alunos, dos professores e demais trabalhadores do ensino.
Se "a política existe porque o homem é o vivente que separa e opõe a si a própria vida nua e, ao mesmo tempo, se mantém em relação com ela numa exclusão inclusiva" (Agamben, 2010, p. 17), tem-se a "vida nua" como dissonância aos padrões de codificação que permeiam as práticas de inclusão: (1) codificar, adaptar e encaminhar na rede ou (2) pôr em suspensão nos vacúolos de uma exclusão inclusiva. Sendo assim, a política de triagens, avaliações diagnósticas e encaminhamentos, e as nosografias formam campos de readaptação para todos que vivem independentemente, ou escapam àbiopolitização dos corpos, na escola e nas articulações citadinas, governamentalizadas.
É por meio da medicalização nos fluxos da cidade que Alice adquire linguagem e habita a pólis. A única linguagem aceita é a senha para os percursos de ida-e-volta, ora a doença mental, que encaminha pela escola a centros especializados, ora é a deficiência mental que a deve incluir na própria escola Alpha. Agamben (2010, p. 155) declara que "no horizonte biopolítico que caracteriza a modernidade, o médico e o cientista movem-se naquela terra de ninguém onde, outrora, somente o soberano podia penetrar". No limite das práticas de tutela na educação, como engendrar a dissonância que sustente a indignação, e a solidariedade, quebrando as subdivisões que os diagnósticos favorecem entre trabalhadores da saúde e educação, especialistas ou não, doutores ou clientes na escola-empresa? Urge a aliança em resistência à grade que inclui a educação;desfocar a governamentalidade das ações de cuidado do outro (tendo o aluno como o alvo de engrenagens de controle, disciplina, prevenção geral em cada escola) para o fortalecimento do cuidado de si, de cada um e do outro. Essa perspectiva pode ser chave para ultrapassar a repetição e o tédio, que contribuem para adaptar e readaptar, rotulando alunos, e adoecer professores.
Na rotatividade empresarial de práticas inclusivas que excluem, o desafio é pensar a educação comocampo de afetações, diferenças, e paradoxos, para abrir espaço a regimes outros de organização e de reinvenção do tempo educativo. Reduzir as marchas e reconfigurar os ritmos do tempo cronometrado e endividado pode ser tática silenciosa, mas crescente na multiplicidade de vozes de diferentes atores. Coragem! Sejamos 'mágicos desinventores' (Costa, 1981) da escola, para em sua irremediável complexidade reinventá-la como usina de conhecimento!
REFERÊNCIAS
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1 Todos os nomes neste trabalho são fictícios: o da cidade, das escolas e dos atores envolvidos.