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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.42 São Paulo jun. 2016

https://doi.org/10.5935/2175-3520.20150028 

COMPARTILHANDO

 

Mística do educador no exercício da docência

 

Mystique of the educator in carrying out teaching activities

 

Mística del educador en las actividades de la enseñanza

 

 

Luiz Síveres

Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Católica de Brasília. luiz.siveres@catolica.edu.br

 

 


RESUMO

O início do século atual está sendo caracterizado pela continuidade de muitas conquistas, mas também por uma série de desafios, dentre os quais o da própria condição humana, que continua sendo afetada, principalmente na sua subjetividade e intersubjetividade. Esta realidade, juntamente com tantas outras é, fundamentalmente, resquício de uma tensão entre o local e global, entre o pessoal e social, ou entre o material e espiritual, porém tais tendências se conectam e se entrecruzam constantemente, comprometendo, de uma forma ou outra, todos os ambientes institucionais e impactando todos os fenômenos humanos. Neste cenário encontra-se, também, o sistema educativo e o sujeito educador, que, para exercer a sua missão educadora, necessitaria, dentre outras exigências, de uma mística. Neste sentido está se propondo uma mística vinculada à metáfora da "taça de vinho", que se assemelha mais à estrutura, à forma e à organização da escola, para então reconhecer a relevância do "sabor do vinho", identificado com a mística educativa como uma disposição de interioridade, uma dinâmica de conectividade e uma experiência de transcendência. Neste contexto é recomendado destacar, também, uma mística do educador por meio de uma energia biológica, um movimento dialógico e uma luz analógica.

Palavras-chave: mística, educador, docência.


ABSTRACT

The beginning of this century has been characterized by the continuity of many achievements but also by a series of challenges, including the human condition itself, which continues to be affected, especially in its subjectivity and inter-subjectivity. This reality, along with so many others, is fundamentally a remnant of a tension between local and global, between personal and social, or between material and spiritual. However, such tendencies are constantly linked and cross over one another, somehow compromising all institutional environments and impinging upon all human phenomena. The educational system and educators lie within this scenario, and the exercise of their educational mission would require, among other things, a mystique. The proposal of a mystique is hereby linked to the metaphor of a "wine glass", with a greater similarity to the structure, form, and organization of the school, so as to then recognize the relevance of the "flavor of the wine", which is identified with the educational mystique as stemming from inner experience, a dynamic of connectedness, and an experience of transcendence. In this context, a mystique of the educator should also be highlighted by means of a biological energy, a dialogical movement, and an analogical light.

Keywords: mystique, educator, teaching.


RESUMEN

El comienzo de este siglo se ha caracterizado por la continuidad de muchos logros, pero también por una serie de retos, entre ellos la propia condición humana, que sigue siendo afectada, particularmente en su subjetividad y en la intersubjetividad. Este hecho, junto con muchos otros es fundamentalmente rastro de la extensión entre el local y el global, entre las tendencias personales y sociales, o entre el material y espiritual, pero tales tendencias se conectan y se cruzan constantemente, comprometiendo, de una manera o otra, todos los entornos institucionales y afectando todos los fenómenos humanos. Este escenario es, también, el sistema educativo y el sujeto educador, que para proseguir su misión educativa requeriría, entre otras exigencias, una mística. En este sentido se propone una mística vinculada a la metáfora de la "taza de vino", que se asemeja más a la estructura, a La forma y a la organización escolar, para luego reconocer la relevancia del "sabor del vino", identificado con la mística educativa como una provisión de interioridad, una dinámica de conectividad y una experiencia de trascendencia. En este contexto, se recomienda hacer hincapié, también, para el educador a través de una energia biológica, un movimiento dialógico y una luz analógica.

Palabras clave: místico, educador, enseñanza.


 

 

Compreender a mística do educador, percorrendo o processo educacional, torna-se um desafio para o contexto contemporâneo, porque aborda uma temática, geralmente distanciada das ocupações da vida do educador e das preocupações da prática docente. Apesar desta percepção desafiadora, aponta-se como oportuna esta proposta, principalmente para indicar possibilidades desta experiência no limiar do terceiro milênio.

Nesta conjuntura é necessário compreender que existe um tensionamento entre a realidade local e a global, entre as relações pessoais e sociais, e entre dinâmica material e espiritual, porém tais tendências se conectam e se entrecruzam constantemente, comprometendo, de uma forma ou outra, todos os ambientes institucionais e impactando todos os fenômenos humanos e, de modo particular, o processo educacional.

Partindo deste entendimento, estaria se sugerindo, no entanto, que a realidade contemporânea precisaria se aproximar mais da inovação do que da tradição, mais das causas do que das instituições, ou mais do saber do que dos conteúdos, está se propondo uma mística identificada muito mais com o "sabor do vinho" do que com a própria "taça de vinho". E para dar suporte a esta proposta, buscou-se em Corbí (2010) uma inspiração metafórica, na qual a taça de vinho, ao continuar tendo um significado para a humanidade, seria pela razão de estar mantendo o sabor do vinho nesta taça.

No contexto desta analogia, o objetivo desta reflexão é compreender a mística como uma experiência espiritual que se daria no cotidiano da vida e, portanto, no processo educacional. Assim, o educador poderia vivenciar a mística numa relação significativa com o desenvolvimento pessoal, social e transcendental na atividade docente. Para o entendimento desta temática são apresentados dois aspectos, que são complementares e integradores, que é a mística educativa (taça de vinho) e a mística do educador (sabor do vinho) no exercício da docência.

 

A MÍSTICA EDUCATIVA

A mística é um atributo inerente à condição humana, bem como expressão histórica das distintas culturas. No horizonte deste pressuposto, a mística é uma dinâmica humanizadora e se explicitaria na transversalidade de uma relação entre o desafio desértico e a busca por encontrar um oásis, entre as declarações de aridez e as disposições de vitalidade, entre as abordagens do real e os indicadores do espiritual.

De modo geral a mística era exercitada por pessoas iluminadas que viviam em tempos definidos ou que faziam a experiência em espaços demarcados como o deserto, a montanha ou os eremitérios. Hoje, porém, a mística pretende ser compreendida como uma característica de todos os seres humanos e que a mesma poderia ser vivenciada em qualquer ambiente da vida cotidiana. Por esta razão, a mística seria uma experiência do ser humano e cada um poderia fazê-la na sua singularidade, porém conectado com uma comunidade e dentro de um conjunto de possibilidades de relacionamento com o transcendente.

Nesta disposição poderia ser contemplado o processo educativo, que por meio de uma proposta pedagógica levaria em conta a individualidade de cada educando e de cada educador, para na sequência interagir com as oportunidades educacionais daqueles que partilham experiências similares e ampliar para os distintos experimentos,para enfim,apontar para as infinitas oportunidades que se abrem no caminho da educação, caracterizando a mística como um processo de encarnação na cultura, de transformação histórica e de comunhão cósmica.

Com base nesta proposição, pretende-se compreender a mística educativa como uma vinculação à figura da "taça de vinho", por meio de uma dinâmica tridimensional entre a disposição de interioridade, a dinâmica de conectividade e a experiência de transcendência.

Disposição de interioridade

A disposição de interioridade só pode ser proposta na sua relação com a exterioridade, assim como a imanência só pode ser compreendida na sua relação com a transcendência, isto porque o ser humano está situado na sua história, mas ao mesmo tempo aberto para inúmeras possibilidades de realização da sua condição humana. Na transcendência, segundo Lima Vaz (2002), o ser humano faz a experiência do absoluto existencial que é o próprio Deus, mas que remete o homem para as raízes do próprio ser, onde o absoluto está presente como vivência seminal.

Nesta dinâmica é necessário incorporar as distintas dimensões que fazem parte da condição humana, tais como a material, sensorial, emocional, mental ou espiritual. Considerando estas abordagens, segundo Röhr (2013), existiria uma escala linear que iria da realidade mais densa, começando pela matéria, para chegar à mais sutil, que seria a espiritual. Portanto, nesta proposta estaria incorporado todo o esforço para inaugurar um processo de hominização, caracterizado pelo desenvolvimento biológico, psíquico, afetivo e cognitivo, e um procedimento de humanização, proposto pelo exercício da dimensão espiritual.

Além destas condições básicas, é recomendado que estivessem presentes, consoante a Röhr (2013), algumas temáticas transversais, tais como a ética, a estética e o sentido da vida, aspectos que poderiam contribuir para com a intencionalidade dos objetivos e finalidades educacionais, com a credibilidade pedagógica baseada numa relação com o conhecimento, e com a integralidade do educador e educando no seu jeito de ser, no seu modo de saber e na sua maneira de agir.

Assim, a disposição para a interioridade não é um exercício de introspecção, mas muito mais um percurso pedagógico, que a partir das dimensões acima relacionadas, teria como pressuposto uma ética pedagógica que exigiria do educador, em conformidade com Röhr, "uma atitude de autocontemplação, no sentido de se tornar sempre mais autêntico consigo, enquanto ser humano e, com isso, consequentemente, como educador" (2013, p. 212).Tal proposta poderia contribuir com o entendimento de que nunca se está com a verdade absoluta, mas se estaria num caminho de busca da plenitude, aproximando-se da verdade.

Com base neste procedimento, a interioridade poderia assumir um desafio proposto por Einstein (1982),ao afirmar que a maioria dos seres humanos prefere olhar para fora e não para dentro de si mesmo. Portanto, com o objetivo de direcionar este olhar para si mesmo se deveria contar sempre com uma mediação, que poderia ser feita pelo próprio eu ou por um totalmente Outro, mas poderia ser mediada, ainda, pelos fenômenos, situações ou acontecimentos, indicando para a necessidade de se estabelecer uma dinâmica de conectividade.

Dinâmica de conectividade

A dinâmica da conectividade não se estabelece por meio de simples contatos ou com aproximações superficiais, mas se inauguraria com relações e se fortaleceriacom encontros. Esta proposta está ancorada na filosofia de Buber ao afirmar que, "Toda vida atual é encontro" (2001, p. 13), e na medida em que os encontros vão acontecendo instaura-se uma relação, que se configuraria pela reciprocidade. A proposta dialógica entre a relação e o encontro só é possível, segundo o autor, num movimento relacional entre o Eu e o Tu.

Na tessitura desta proposta várias abordagens foram feitas, inclusive a compreensão de mística, que para Buber (2001) seria a vivência da unidade sem dualidade. Nesta unidade, até o Eu e o Tu desapareceriam porque a humanidade que estava na presença da divindade submerge nela,por meio de um abraço extasiado, que fundamentalmente é um transbordamento da própria relação e do encontro.

Na continuidade desta experiência fundante, o passo seguinte seria colocar-se a caminho, cuja dinâmica é proposta por Buber (2011),por meio do diálogo que Deus tem com Adão quando pergunta: "Onde estás?" Tal questionamento não é para saber algo a respeito dele, mas para provocá-lo sobre a sua condição existencial, que não pode ser construída nos esconderijos e, para tanto, precisa sair dos seus refúgios, colocando-se a caminho para realizar novas relações e novos encontros, seja consigo, com os outros ou com o transcendente.

A dinâmica da conectividade, além de propor uma atitude de encontro e uma disposição para se colocar a caminho, Buber (2009) sugere, ainda, uma relação dialógica, que se caracteriza como uma atitude humana e como uma maneira de ser que se revela na reciprocidade com o outro e na responsabilidade com a comunidade. Tal procedimento faria com que o movimento dialógico se constituiria no acolhimento do outro, instituindo assim, a alteridade.

A acolhida do outro, por meio de uma relação dialógica, poderia ser realizada no campo do inter-humano e para Buber, este procedimento é "aquele do face a face" (2009, p. 138). Neste caso a primazia não está num dos sujeitos, mas naquilo que acontece entre eles, aspecto que contribuiria com o processo de humanização.

Por essa razão a mística, no contexto educativo, deveria promover vínculos entre as pessoas e transversalidades entre os projetos pedagógicos, com o objetivo de criar uma relação dialógica entre os homens por meio de encontros dialogais, mas sempre abertos para novas experiências de transcendência.

Experiência de transcendência

A experiência de transcendência não é necessariamente uma vivência religiosa, porque para Lima Vaz, "a experiência religiosa é uma experiência do Sagrado e a experiência de Deus é uma experiência do Sentido" (2002, p. 249). A proximidade com o sagrado pode até contribuir com o sentido existencial, mas este não esgota a possibilidade dos distintos sentidos que estão presentes na condição humana, chegando-se até a uma vivência radical, que neste caso seria a própria experiência de Deus.

Por esta razão a experiência de Deus, segundo Lima Vaz (2002), é uma vivência de plenitude, que fundamentalmente seria a realização do sentido radical da condição humana ou a manifestação da presença de Deus entre a humanidade, possibilidade vivenciada, inclusive, fora das dinâmicas religiosas. Neste contexto é oportuno reconhecer a importância desta conexão que se estabelece entre a humanidade e as diversas formas de transcendência possíveis, incluindo o absolutamente transcendente.

A experiência de transcendência é, portanto, um exercício constante do eu em relação a si mesmo e aos outros, bem como, ao totalmente Outro. Neste caso a transcendência exigiria uma leitura crítica do estado atual da vivência humana e da convivência entre os outros, mas também uma disposição criativa para ir aperfeiçoando as relações pessoais e sociais, bem como, introduzindo experimentos significativos que vão dando o suporte para exercitar a dimensão relacional no horizonte do Sentido.

O sentido da existência humana, com base na experiência da transcendência, é uma tentativa de superar os reducionismos e indicar para as possibilidades que o percurso educacional poderia proporcionar, principalmente dentro de uma visão multifacial do ser humano e de uma compreensão pluridimensional da realidade contemporânea.

É oportuno reconhecer, portanto, que a mística educativa, pautada na disposição de interioridade, na dinâmica de conectividade e na experiência de transcendência poderia contribuir com a mística do educador no exercício da docência.

 

A MÍSTICA DO EDUCADOR

Apesar de a reflexão proposta estar sugerindo uma mística que aconteça no habitual da vida e no cotidiano histórico, é adequado relembrar que amística esteve, geralmente, acoplada a realidades definidas, a instituições milenares ou a rituais sagrados. Tal procedimento reforçou, portanto, a compreensão de um mundo unívoco, fortalecendo iniciativas sedimentadas e experiências distanciadas da pulsação da vida.

Com a predominância desta percepção a mística esteve, por um lado, fortemente vinculada às pessoas consagradas e aos espaços sagrados, mas por outro, constituiu-se para muitas pessoas e em distintas situações numa energia que potencializou o empenho pela justiça social, pela libertação dos empobrecidos, pela proposição de sistemas democráticos, pelo desenvolvimento de projetos de paz, pela defesa dos direitos humanos, pelas iniciativas ambientais sustentáveis ou pela proposição de processos educativos humanizadores.

Impulsionado pela importância destas iniciativas, além de tantas outras, a mística do educador, como "sabor do vinho", será entendida pela sua relação triádica entre a energia biológica, o movimento dialógico e a luz analógica.

Energia biológica

O ser humano, diante da diversidade de expressões e da infinidade de possibilidades, não pode ser definido ou conceituado de maneira categórica. Pode-se, apenas, sugerir aproximações da sua identidade ou indicar tendências da sua historicidade. Neste sentido, a condição humana está sendo percebida pelo seu caráter biológico que congrega, principalmente, a dimensão pessoal, social e espiritual e, por esta razão, ao se tratar da energia biológica estaria se entendendo a potencialidade de um ser bio-psico-sócio-espiritual.

Com o objetivo de recuperar uma dinâmica mais integral e integradora da pessoa humana, é oportuno desenvolver uma energia biológica que buscaria a interioridade física, psíquica e espiritual. Porém, o movimento de interiorização é compreendido, segundo MoSung e Silva (2008), como o reconhecimento e o pertencimento de todas as pessoas, de todos os lugares, em todos os tempos e de todas as culturas. Por isso, a interioridade é uma relação dialógica que se estabelece com a exterioridade, para buscar a inteireza e a integralidade do próprio ser humano.

Nesta dinâmica emerge a energia biológica, que poderia ser encontrada em distintos espaços, mas aqui está se propondo, de forma simbólica, um retorno para casa. Assim, a casa mais do que um espaço geográfico é indicador de sentido para se encontrar com o mistério, porque segundo Sheehy "a fonte de nossa identidade passa do exterior para o interior, e é esse movimento psicológico que constitui a chave do mistério [...]" (1979, p. 161). Mas é necessário reconhecer, no entanto, que este movimento exige dedicação, empenho e disposição cotidiana para se colocar a caminho, percorrendo a estrada que leva para a própria interioridade.

Neste cenário, portanto, tal movimento pode ser percebido pela pergunta e resposta do poeta Novalis: "Para onde vamos? Sempre para casa". Esta poesia revela a necessidade dos humanos voltarem para casa, não como ambiente físico, mas como dinâmica antropológica, no sentido de retornar às origens, às fontes ou às raízes familiares, religiosas ou culturais, revivendo algumas experiências ascendentes que possibilitaram, neste caso, viver e reviver com mais intensidade novas experiências históricas.

Neste percurso de sair e voltar para casa está se buscando desencadear um processo que apontaria para a essência da vida natural, cultural e transcendental, desenvolvendo uma atitude que segundo Gutiérrez (1984), possibilita "beber no próprio poço". É neste procedimento de mergulhar na interioridade que se pode, portanto, beber da água que brota da nascente pessoal, familiar, cultural e social.

Assim, a disposição de se posicionar no próprio poço desencadeia, segundo Castoriadis (2009), a dimensão imaginária que estaria presente em todos os fazeres e afazeres humanos e compõem, portanto, a capacidade de criar um mundo e dar sentido a ele, a significar a realidade e a si-mesmo, e a ressignificar o planeta e as relações humanas, bem como imergir no mistério e na transcendência.

Por esta razão, a mística é compreendida como uma fonte que fornece energia para as disposições pessoais do cotidiano e para os empreendimentos profissionais. Isso exige, segundo Grün (2008), o reconhecimento das próprias fontes e um retorno diário a elas, que podem estar no lugar da moradia, no ambiente do trabalho ou no espaço social. Mas esta energia está, principalmente, no interior de cada ser humano porque ele tem a potencialidade de revelar o sagrado, e por isso dispõe da energia de curar e salvar, porque "no lugar sagrado, somos sadios, nos sentimos salvos e plenos" (Grün, 2008, p. 27). Embora se esteja, constantemente, mergulhado em águas turvas, é recomendado acreditar que, do profundo da vida, continua jorrando uma fonte de água transparente.

Portanto, a estrada que leva para casa, com a possibilidade de beber no próprio poço, retorna com a seiva das raízes e com a saciedade das fontes, e tal percurso não está pré-definido e não tem apenas uma direção, mas está sempre aberto e aponta para uma diversidade de possibilidades. De modo geral estamos sempre diante deste movimento de ir e vir, mas segundo Sheehy, na medida em que se vai amadurecendo "As pessoas se tornam mais preocupadas com a vida interior, beneficiando-se com as duas características mais destacadas da maturidade: a percepção e o interesse filosófico" (1979, p. 476). Estes atributos são, no entanto, elementos constitutivos da cultura humana e são vivenciados, de modo geral, como um movimento que ajuda a transitar pela historicidade humana.

Desta forma, as energias biológicas de voltar para casa (identidade), de beber no próprio poço (historicidade) e buscar a percepção e o interesse filosófico (sociabilidade), na medida em que são autônomas e complementares podem promover dinâmicas, tanto de interioridade quanto de profundidade. Tais atitudes podem contribuir, portanto, com uma experiência mística no espaço educativo, impactando o próprio educador e desencadeando, assim, um movimento dialógico.

Movimento dialógico

O contexto contemporâneo, percebido pela perplexidade das relações sociais, pela complexidade das conexões políticas e pela flexibilidade dos vínculos pessoais, está exigindo uma mística que seja capaz de passar de um entendimento pautado na dualidade para uma compreensão dialogal, porque segundo Freire (1987), a vocação ontológica do ser humano é viver a dialógica entre a historicidade e a transcendência, numa busca constante da sua humanização. Tal movimento pode ser feito de distintas maneiras, mas de maneira alegórica, hospedar-se numa tenda, percorrer um caminho e se fazer presente na encruzilhada da vida pode contribuir para uma vivência mística do educador no exercício da docência.

Por isso que na continuidade da proposição anterior, aqui também não se deseja afirmar a importância da tenda, do caminho e da encruzilhada como espaços geográficos, mas muito mais como cenários que integram os horizontes da existência humana. Assim, a descrição deste movimento se daria ao redor da tenda, que historicamente foi carregada nos ombros da humanidade, porque nela os humanos foram acolhidos. Mas ela é, ao mesmo tempo, a expressão de uma característica nômade porque acompanhou a peregrinação humana e, neste caso, é um atributo sedentário porque acolheu os peregrinos no seu interior.

A tenda, segundo Síveres e Menezes (2012), mais do que um ambiente estabelecido, é o espaço do acolhimento, do reconhecimento e da partilha, mais do que um período de descanso, é o tempo da subjetividade, da comunidade e da sociabilidade, e mais do que um percurso de passagem, é um processo demarcado pela diversidade, pela diferença e multiculturalidade.

Por estas razões na tenda, por um lado se pratica a virtude da hospedagem acolhendo os peregrinos, mas por outro se exercita a dinâmica da peregrinação, percorrendo os itinerários históricos. Nesta proposta não se pode, porém, carregar tudo o que se herdou, não se pode levar tudo o que se conquistou e não se pode transportar tudo o que se acumulou, porque o percurso para si mesmo e para os outros exige uma disposição de despojamento e de liberdade.

Tal procedimento permite que o ser humano possa se hospedar e peregrinar pelo mundo, e possa acolher e partir da tenda todos os dias. Esta dinâmica é reconhecida por Sheehy que sugere o seguinte encaminhamento: "Se eu pudesse dar a cada pessoa um presente de despedida nessa viagem, seria uma barraca. Uma barraca que conduza a experiências de vida, aqui e ali. O presente de raízes portáteis" (1979, p. 341).Neste caso, as raízes são a âncora da hospedaria e os movimentos portáteis são a energia para a peregrinação, aspectos considerados essenciais para o exercício da própria condição humana.

Mas a peregrinação se dá, ainda, num movimento que é peregrinar pelo caminho, que pode ser a representação de um percurso histórico, de um itinerário geográfico ou de uma dinâmica existencial. O caminho é, neste sentido, a representação da própria realidade humana porque de acordo com Marti, "Estamos sempre a caminho, basicamente forasteiros nesta terra. Aqui não existe nenhum lar permanente. Tudo é transitório, fugaz e passageiro. Tudo é caminho" (2008, p. 154).Se tudo é caminho, tudo é movimento e tudo é efemeridade, e a própria experiência humana é esta dinâmica de estar se desvelando continuamente.

É oportuno reconhecer que a metáfora do caminho sugere uma diversidade de percepções, a ponto de Síveres e Menezes (2012) indicarem que existem caminhos que já foram percorridos por outras gerações e que existem novas pegadas que vão abrindo passagens, que existem caminhos que margeiam solitários os espaços geográficos e que existem vias conectadas que serpenteiam por ambientes virtuais, que existem caminhos que iniciam percursos e outros que terminam viagens.

Este cenário revela que o caminho é dialógico, porque de acordo com Leloup, "À medida que caminhamos deixamos para trás um certo número de bagagens, de máscaras, nós reencontramos nosso verdadeiro semblante e a Presença d'Aquele que caminha no próprio coração da nossa caminhada" (2013, p. 67). Assim, no trajeto do caminho, ao avançar na caminhada é recomendado deixar muita futilidade para poder encontrar a essencialidade, vai se ausentando de experiências superficiais para passar pela vivência de presenças cordiais, vai se abandonando os pesos do cotidiano e vivendo de maneira mais leve e livre.

A mística do caminho proporcionaria ao ser humano tomar consciência, segundo Leloup (2013), de que é necessário passar das verdades que se tem às verdades que se é, de estar em constante travessia entre o sentar e caminhar e, portanto, ser um caminhante que peregrina entre o movimento e o repouso, ou de peregrinar entre tendas e caminhos.

Tanto os caminhos quanto as tendas têm uma vinculação com os cruzamentos, porque os caminhos vão se interceptando e as tendas, geralmente, estão nas encruzilhadas. Este movimento pode ser denominado de conectividade, que pode ser compreendido de distintas maneiras, mas o diálogo é uma orientação adequada porque é necessário dialogar com a diversidade de saberes, dialogar com as diferentes culturas, dialogar com a infinidade de experiências, aspectos que revelam, segundo Laszlo (1999), uma conexão cósmica.

Esta conexão cósmica se daria num processo relacional, num movimento de intersubjetividade ou numa dinâmica de coexistência. Por isso, mais do que valorizar um sujeito em detrimento do outro é fortalecer a conexão que se poderia estabelecer entre os mesmos, que poderia se realizar por meio dos tecidos comunitários, das redes sociais, ou das teias da vida.

Compreender a mística como um movimento de conectividade que se aproxima, principalmente, da alegoria da tenda, do caminho e da encruzilhada, pode ajudar no exercício da docência porque ela é vivenciada, de modo preferencial, no espaço escolar. O ambiente educativo é, neste caso, apropriado para vivenciar uma mística do educador que, por sua vez, pode ser iluminado por uma luz analógica.

Luz analógica

No percurso até aqui realizado é possível perceber que amística, como um atributo da condição humana, buscou superar o entendimento desta experiência vinculada a doutrinas, a movimentos ou a instituições, bem como sugerir que para o contexto contemporâneo é necessário compreendê-la no horizonte de uma luz que projeta uma claridade, para que a humanidade possa caminhar para um encontro consigo mesmo, inaugurar uma relação intercultural e uma proximidade com a vivência transcendental.

Como seres iluminados, podemos realizar a transcendência do tempo e do espaço, das situações e instituições, e da própria essência e existência. Mas para que isto se torne viável, a humanidade precisaria, segundo Moraes,

[...] de mentes mais abertas, de escutas mais sensíveis e de corações mais amorosos, para desenvolver pensamentos e ações que possam realmente fazer a diferença neste momento evolutivo da humanidade e colaborar para a evolução da consciência humana. (2008, p. 16)

Estas disposições poderiam contribuir para um processo ana+lógico, isto é, além daquilo que já foi definido ou para além daquilo que já está constituído, bem como, apontar para novos horizontes, para projetos de esperança ou para experiências transcendentes. Para ajudar neste percurso, distintos indicadores poderiam ser incorporados, mas aqui se recomenda, também, uma imagem figurativa, que seria dispor de uma bússola para encontrar um tesouro, compreendidos não como instrumentos, mas como sinalizadores da experiência humana que se encaminha para a transcendência.

Diante do paradoxo do fechamento e da abertura, do imediato e da transcendência, ou do efêmero e do valorativo, Leloup (2013) indica a figura do coração bússola e do coração cata-vento. Com base nesta metáfora, o coração cata-vento estaria se movendo conforme os ventos que sopram de todos os lados, e o coração bússola estaria indicando o itinerário que cada um poderia percorrer. O coração cata-vento depende sempre de uma força externa e o coração bússola dispõe de uma energia interna que aponta para o norte. O coração cata-vento fica girando em torno de si mesmo e o coração bússola aponta para a continuidade da caminhada.

Neste caso, a orientação da bússola se insere numa dinâmica que é paradoxal para o ser humano, porque segundo Severino (1983), além de se submeter à realidade fática, à temporalidade presente e à contingência histórica, é preciso construir-se a si mesmo, aos outros e ao mundo, personalizando-se e se transcendendo. Esta relação dialógica entre a imanência e a transcendência é que oportuniza ao ser humano corresponder aos anseios e oportunidades que impulsionam, necessariamente, para o sentido existencial da própria condição humana.

Além de a luz estar presente nas coisas do cotidiano, ela pode ser percebida nos luzeiros da sabedoria, na iluminação religiosa ou no brilho da existência humana. Esta manifestação, dentre muitos outros, potencializa a passagem da caverna para o sol, das trevas para a luz e da ingenuidade para a luminosidade. Por esta razão, é consequente perceber que a luz, como uma energia analógica, se daria na relação dialógica entre a escuridão e o brilho, entre a escravidão e a liberdade, entre a dominação e emancipação.

Por outro lado, o percurso educacional, na medida em que é um processo iluminador poderia se tornar significativo para o ser humano e para a sociedade, porque para viver o amor é necessário fazer experiências amorosas, para ser um presente é imperioso marcar presença, para se conhecer é preciso reconhecer, para ser fruto é necessário lançar a semente, e para encontrar o tesouro é preciso buscar o mistério.

Todo este processo, iluminado pela luz analógica aponta para um percurso que éa busca do tesouro. O thesaurus pode ser encontrado, inicialmente, na própria interioridade do ser humano, porque o que torna o homem precioso, segundo Buber, só pode ser descoberto por ele mesmo na medida em que "[...] assumir verdadeiramente seu sentimento mais forte, seu desejo central, que está dentro dele, que movimenta seu interior" (2011, p. 19). Isto demonstra que é preciso ser essencialmente humano para poder fazer a experiência do mistério.

Mas a busca do mistério pode ser encontrada, também, na relação com os outros ou na revelação de Deus, que exige uma disposição de sermos verdadeiros no encontro com os outros e de uma opção para acolher a manifestação de Deus, porque segundo o Mestre Eckhart (1999), a qualidade da vida do ser humano depende das exigências que a sua alma se faz quando admira a face de seu Deus, ou quando contempla o rosto do outro.

A busca do mistério ou a procura do tesouro, no contexto educativo, orienta para a existência e a essência humana, porque conforme Buber, "[...] o lugar em que estamos é onde este tesouro deve ser encontrado" (2011, p. 44). Por esta razão, a busca pelo tesouro deveria começar pela interioridade, porém, recorrendo também para a convivência e para a transcendência, e tal dinâmica rompe com a centralidade antropocêntrica e permite inaugurar relações com os outros e com a divindade, pautando um movimento mais relacional e transcendental.

Assim, a mística, tendo como referência a orientação da bússola para se encontrar com o mistério, pode contribuir com um processo educativo mais significativo, mais iluminador e mais místico para o próprio educador, porque segundo Einstein (1982), na raiz de toda a ciência e de toda a arte estaria a razão mais bela que o homem poderia experimentar, que é a vivência do mistério e do misterioso.

Portanto, com base nestas oportunidades místicas, poder-se-ia fazer a pergunta essencial da vida humana: qual o sentido da vida? Esta pergunta aparece em todas as épocas, mas em momentos de passagem ela se torna mais evidente e, por isso, esteé um período oportuno para entrar no mistério, que não nos dá as respostas, mas que amplia as possibilidades de perguntas, por isso permanece um mistério.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta de uma mística educativa para o educador no exercício da docência tem por objetivo, principalmente, contribuir com aqueles que, de maneira formal ou informal, assumem uma profissão educadora, mas também, para aqueles que fazem da sua vida uma vocação educativa, ou uma missão no exercício intencional de educar, proporcionando um sentido para a vida das pessoas, das comunidades e da sociedade.

Esta proposta remete, no entanto, a uma experiência pessoal, que ao encontrar um estudante, pronunciou-se em relação a mim da seguinte maneira: "O professor é que nem vinho". Esta declaração exigiu de mim uma série de reflexões e aos poucos fui percebendo que a expectativa dos estudantes para com os professores é que sejam pessoas amadurecidas e que tenham uma competência definida, porém abertos para outros saberes e que tenham desenvolvido um saber pela sua profissão e um sabor pela sua vida.

Inúmeras inspirações poderiam derivar desta afirmativa, mas aqui é recomendado afiançar a importância da "taça de vinho", isto é,das formas e de seus contornos, das instituições e suas estruturas, mas se torna mais relevante, ainda, reafirmar o "sabor do vinho", que pode ser experimentado e partilhado por meio da vivência de uma mística no exercício cotidiano da docência.

Enfim, na medida em que se puder brindar um bom vinho numa boa taça, metaforicamente se poderá exclamar: saúde! Sucesso! Felicidade! Principalmente, porque a taça tem sabor de vinho, ou porque a humanidade tem sabor de divindade, os místicos têm sabor de mistério, ou os educadores tem sabor de sabedoria.

 

REFERÊNCIAS

Buber, M. (2001). Eu e Tu. São Paulo: Centauro.         [ Links ]

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