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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.43 São Paulo dez. 2016

https://doi.org/10.5935/2175-3520.20160008 

ARTIGOS

 

Crianças, contextos de escolas e suas representações sociais de família

 

Children, school contexts, and their social representations of family

 

Niños y niñas, contextos de las escuelas, y sus representaciones sociales de familia

 

 

Fernanda Siqueira RibeiroI; Fatima Maria Leite CruzII

ILaboratório de Interação Social Humana – LABINT, Universidade Federal de Pernambuco. fsiqueira_psico@hotmail.com
IIProfessora do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Laboratório de Interação Social Humana – LABINT Universidade Federal de Pernambuco

 

 


RESUMO

A presente pesquisa teve como objetivo compreender as representações sociais de família por crianças de duas escolas, uma pública e uma privada, na cidade do Recife. Com apoio da Teoria das Representações Sociais, foram identificados os sentidos compartilhados, além de demarcadas especificidades de contextos locais e de grupos em particular. Participaram da pesquisa 12 crianças, de ambos os sexos, com idade entre 9 e 10 anos; foram formados dois grupos focais, com seis participantes de cada escola. Os resultados, segundo a análise de conteúdo, revelam que há transições, dilemas e contradições experimentadas pelas crianças nos contextos das famílias: o grupo da escola pública caracterizou a família idealizada e apontou sua convivência com diversos modos de configuração familiar; o grupo da escola privada mostrou a dificuldade de aceitar, quando ocorre, a separação dos pais, compartilhou essa experiência e introduziu amigos e o animal de estimação como membros da família.

Palavras-chave: representações sociais, família, crianças, grupo focal.


ABSTRACT

This article presents the results of a survey aimed at understanding social representations of family by children children from a public and a private school in the city of Recife. The plural dynamics of family approach validates the choice of a psychosocial theoretical framework, as the Theory of Social Representations, through which shared meanings were identified, with addition to specificities of local contexts, and particularly of groups. 12 children, both genders, aged between 9-10 years old participated; two focal groups were formed, with six participants from each school. The results, according to the content analysis, show that children experience transitions, dilemmas and contradictions in family contexts: the public school group characterized the idealized family and pointed its acquaintance with various family setting designs; the private school group showed the difficulty they experience in accepting their parents possible separation; they shared those experiences and introduced friends and pets as family members.

Keywords: social representations, family, children, focal group.


RESUMEN

El presente artículo presenta los resultados obtenidos a través de una investigación que tuvo como objetivo comprehender las representaciones sociales de familia por niños y niñas de dos escuelas, una pública y una privada, en la ciudad de Recife (Brasil). La dinámica plural del abordaje de la familia justifica la elección de un referencial teórico y metodológico psicosocial, como el de laTeoría de las Representaciones Sociales, que nos auxilió en la búsqueda de sentidos compartidos, además de demarcar especificidades de contextos locales y grupos en particular. Participaron ,12 niños y niñas, con edades entre 09 y 10 años; ellos participaron de dos grupos focales, un de cada escuela, formados con seis participantes. Los resultados, según el análisis de contenido, muestran que hay transiciones, dilemas y contradicciones experimentadas por los participantes en los contextos de las familias: el grupo de la escuela pública caracterizo la familia idealizada y apuntó su convivencia con diversos modos de configuración familiar; el grupo de la escuela privada mostró la dificultad que experimentan en aceptar cuando ocurre la separación de los padres, compartieron esas experiencias, e introdujeron amigos y mascotas como miembros de la familia.

Palabras clave: representaciones sociales, familia, niños y niñas, grupo focal.


 

 

O tema família é estudado por diversas disciplinas e tem implicações distintas na sociedade em cada época, contexto e cultura. Na atualidade, alguns debates apresentam as transformações no âmbito da organização e do fluxo da família, diante dos diversos arranjos e dinâmicas, dos lugares e papéis assumidos por seus participantes, e que a referenciam como uma construção sócio-histórica (Ariès, 1973/1981). Autores como Sarti (2003, 2007), Court (2005) e Petrini (2005) compartilham a ideia de crise na família em função de alguns deslocamentos e reorganizações que se movimentam continuamente e estão articuladas aos processos de mudanças políticas, demográficas, socioculturais, cujos processos se entrelaçam, fazendo com que alguns valores, costumes e hábitos sejam preservados, sendo outros redimensionados.

Acompanhando o momento contemporâneo de valores individuais, com um estilo de vida mais independente (Petrini, 2005), a família também é vista como um lugar de troca relacional que recebe essas influências e intermedeia as mudanças nos dois sentidos, macro e microssociais.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Pesquisa -IBGE (2014), as mudanças do cenário familiar significam um desafio de investigação, pois as dissoluções e as reconstituições se apresentam cada vez mais heterogêneas e ambíguas. Segundo a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE (2014), novas organizações familiares coexistem com o modelo tradicional, composto por pais e filhos. Alguns dos fatores apontados para as transformações nas famílias brasileiras são: queda da fecundidade, envelhecimento da população, aumento dos divórcios, casamentos e a maternidade adiados, crescimento do número de pessoas que moram sozinhas, casais que escolhem não ter filhos, e a maior participação da mulher no mercado de trabalho. Outra implicação recente dessa mudança está na questão da fecundação artificial, com o avanço das tecnologias assistidas, técnicas de fertilização, clonagem e manipulação genética, e que geram polêmicas e discussões éticas (Petrini, 2005; Sarti, 2007).

Entre tantos conceitos, adota-se a concepção de família como o conjunto de sujeitos e gerações que "estabelecem relações de convivência, conflituosas ou não, trocam experiências, acumulam saberes, habilidades, hábitos e costumes, reproduzindo concepções e culturas" (Bastos, Alcântara & Ferreira-Santos, 2002, p. 100), bem como transformando-as e ressignificando-as.

Considera-se, ainda, que as trocas sociais de valores e ideias são transmitidas entre as gerações, em um processo dialético de perpetuação e ressignificação das representações de família, desde a infância, na medida em que a memória humana "não é uma reprodução das experiências passadas, e sim uma construção, que se faz a partir daquelas, por certo, mas em função da realidade presente e com o apoio de recursos proporcionados pela sociedade e pela cultura" (Sá, 2007, p. 291).

 

OS DIFERENTES CONTEXTOS DAS FAMÍLIAS E O LUGAR QUE AS CRIANÇAS OCUPAM

O ambiente familiar para a criança em desenvolvimento é, aqui, considerado como um "fluxo de práticas e rotinas, dentro da qual são socializados e construídos significados culturais e padrões de interação que se tornam o material de que é feito o estilo singular de cada família e cada pessoa" (Bastos et al., 2002, p. 98). As autoras consideram que a criança, nessa relação com a família, situa e orienta sua inserção nas práticas cotidianas com um repertório de habilidades e aptidões, conceitos e significados em seu desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral. Por ser a primeira mediadora do ser humano com a cultura, a família constitui-se relação entre os aspectos afetivos, sociais e cognitivos, inserida num contexto material, histórico e cultural de um determinado grupo social (Dessen e Polonia, 2007). A família é "a matriz da aprendizagem humana, com significados e práticas culturais próprias que geram modelos de relação interpessoal e de construção individual e coletiva" (Dessen e Polonia, 2007, p. 22).

Para essa compreensão dos contextos de desenvolvimento, dois modelos de funcionamento de família, com pertencimentos grupais diferentes, serão discutidos - um que revela a dinâmica de uma família socioeconômica mais favorecida, e outro, das famílias pobres. No primeiro, vela-se pela intimidade e acesso aos bens de consumo em uma sociedade capitalista, fortemente marcada pelos projetos individuais (Carmo, 2007; Passos, 2007). A idealização familiar é reforçada, muitas vezes, por visões psicológicas, pedagógicas, religiosas e jurídicas que favorecem a perpetuação (Sarti, 2003) referenciada por um modelo conjugal nuclear burguês.

O outro modelo contextualizado, o das famílias pobres, ainda que compartilhem do mesmo espaço globalizado com ênfase no individualismo, apresenta outra relação entre os seus participantes atravessados pela lógica da reciprocidade (Sarti, 1996) e do coletivismo (Rabinovich, 2002; Amazonas, Damasceno, Terto & Silva, 2003; Bastos et al., 2002).Esse modo configura-se, às vezes, como famílias extensivas, com a presença de vários membros, que caracterizam "fatores de proteção, não apenas a ajuda mútua e a ação compartilhada" (Bastos et al., 2002, p. 121). O modelo coletivista oferece a sobrevivência conjunta, a participação dos seus membros, com os projetos de vida compartilhados e não individualizados (Rabinovich, 2002). Nesse contexto, o ambiente é influenciador no desenvolvimento humano, mas não determinante, fomenta a capacidade de criar saídas e possibilidades para lidar com as limitações da desvantagem socioeconômica, e ao mesmo tempo, promove modos de partilha entre seus participantes.

Os estudos com essa população destacam as mulheres como chefes de família, provedoras e principais cuidadoras das crianças, condição da mulher que vem crescendo, independente da pertença social. O lugar do homem que, muitas vezes, não tem trabalho, está relacionado ao respeito que este ainda confere ao lado da mulher e da família (Sarti, 1996; Oliveira, 2010).

Com relação ao lugar das crianças nas famílias, os estudos de Sarti (1996) mostram que o vínculo considerado mais forte na família é o da relação entre pais e filhos, hierárquica, e com a autoridade unilateral. A relação é sustentada por uma ordem moral de obrigações: ao mesmo tempo em que os filhos dão sentido ao casamento, se espera deles uma retribuição, por meio do compromisso moral de ser "um bom filho", obedecendo quando criança; e sendo "honesto, trabalhador", quando adulto.

A regra, portanto, para as crianças pobres, é que desde cedo, em torno dos seis, sete anos, além dos jogos e brincadeiras, elas iniciem tarefas e atribuições - devem ir à venda, levar recados ou buscar algum auxílio complementar para o grupo familiar.

Para Bastos et al. (2002), a lógica que rege a relação das famílias pobres com suas crianças revela-se nas metas familiares indissociáveis das metas do grupo, o que contraria a cultura vigente do individualismo. Nesse contexto, os filhos também têm participação na sobrevivência imediata da família, e são valorizados quando acompanham os pais no trabalho.

Outra prática referente ao cuidado compartilhado das crianças é chamada por Fonseca (2006) de "circulação de crianças", em que a responsabilidade não é mais exclusiva das mães que trabalham fora de casa e acontece por uma rede social de apoio através, principalmente, do parentesco, em especial com figuras femininas mais ligadas à família matriarcal, tais como avós, tias, ou mesmo vizinhas, que podem ser consideradas, também, como membros "da família".

 

A ESCOLA COMO LOCUS IDENTITÁRIO E MARCADOR SOCIAL

A escola é um dos contextos de desenvolvimento humano e sua importância é destacada quando se considera, como o fazem Corsaro (2011), Bruner (1997) e Vigotski (1984/2000), que nas trajetórias dos sujeitos no mundo e nas interações há um movimento contínuo de identificação e diferenciação, intercâmbio e negociação que os leva à atualização, produção, interação e práticas em relação ao outro, e ao contexto social, histórico e cultural. Esse processo de desenvolvimento no contexto da educação escolar não é linear, posto que é permeado por contradições, conflitos e tensionamentos.

Segundo Ariès (1973/1981), historicamente a escola como instituição inicia-se na Idade Média, e sua configuração é definidora da separação, entre o espaço público e o espaço privado, tendo contribuído de modo decisivo para o sentido de infância que se passou a adotar, a partir das sucessivas separações dos grupos por idades nas respectivas classes e ritmos de escolarização.

A escola além de espaço de conhecimento é, também, contexto de socialização das novas gerações, e em seu cotidiano emergem valores, crenças, referências de grupos que dizem ao sujeito, em sua inserção e pertencimento social, quem é ele e quem é seu grupo. Assim, justifica-se a escolha por esse contexto na investigação pela função identitária da escola, na qual o sujeito se reconhece e é reconhecido por seus pares em suas similitudes e diferenciações, em interações permeadas de significados que são compartilhados.

 

A TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E OS SENTIDOS COMPARTILHADOS NO SENSO COMUM

A Teoria das Representações Sociais (TRS), proposta por Serge Moscovici em 1961, enfatiza um tipo de conhecimento produzido no senso comum, originado nas práticas sociais. Esta complexa teoria integra uma série de aspectos que são originados na vida cotidiana e quando compartilhados orientam condutas, explicam a realidade social, justificam as tomadas de posição e definem identidades, resguardando as particularidades dos grupos (Santos, 2009).

Sua visão de sujeito é contextualizada social e historicamente, constituído na relação com o outro, pois ao mesmo tempo em que constrói a realidade social, nela é construída de forma ativa. Por isso, as Representações Sociais de um objeto social não se limitam à sua reprodução, o sujeito categoriza e reconstrói o objeto, a partir das informações que recebe sobre ele (Santos, 2005). Dentre os vários aspectos envolvidos na construção dessa teoria, destaca-se a comunicação, pois é através dela que os grupos compartilham os conhecimentos sobre o objeto, nas trocas sociais (Moscovici, 2003), valorizam tanto o conteúdo do conhecimento, quanto o seu processo de construção. As RS teriam duas funções principais: a convencionalização dos objetos, que possibilitam aos sujeitos conhecer o que o objeto representa; e as representações prescritivas, que existem pela tradição, como se fossem impostas nas interações. Elas incluem os sistemas de classificação, as imagens e as descrições que podem ser até científicas como sistemas estratificados na memória coletiva e reproduzidos pela linguagem, e mostra um conhecimento anterior que se revela na informação presente.

 

O AUTOR ENFATIZA A IMPORTÂNCIA DA NATUREZA DAS MUDANÇAS NAS REPRESENTAÇÕES

Sociais, pois essas influenciam o comportamento do sujeito quando na coletividade, e nessa relação são processadas. Por seu sentido coletivo, as Representações Sociais são criações do decurso da comunicação e da cooperação, e adquirem vida própria, pois "circulam, se encontram, se atraem e se repelem e dão oportunidade ao nascimento de novas representações, enquanto velhas representações morrem" (Moscovici, 2003, p. 40).

A formação de Representações Sociais está atrelada a dois processos geradores: a ancoragem e a objetivação. A ancoragem traz ideias não conhecidas e as torna categorias e imagens comuns, ou seja, em um contexto familiar, cuja atribuição de sentido refere-se a uma rede de significados que são articulados e hierarquizados, a partir de um arsenal de conhecimentos preexistentes.

A objetivação, por sua vez, é o mecanismo que tenta transformar o que era abstrato em concreto, traz para o mundo físico o que estava apenas na mente e "une a ideia de não-familiaridade com a de realidade, torna-se a verdadeira essência da realidade" (Moscovici, 2003, p. 71), as ideias remotas, tornam-se concretas e acessíveis.

 

MÉTODO

Local. Os contextos da escola pública e da escola privada, localizadas na zona sul da cidade de Recife, têm o critério diferencial no âmbito socioeconômico dos participantes, o que pode sugerir práticas sociais diferentes. As escolas participantes estavam localizadas geograficamente próximas, entretanto, demarcadas por uma distância social, econômica e cultural, pois no sistema educacional brasileiro, a escola pública atende às camadas pobres e a escola privada atende à população mais favorecida economicamente. Neste sentido, o fato de diferentes pertenças sociais ocuparem uma mesma geopolítica pode ser explicado pela ocupação desordenada do solo urbano brasileiro, em que os edifícios e bairros nobres convivem com comunidades pobres que são formadas no entorno e buscam alternativas de convivência, dialogam, prestam serviços.

Participantes. Participaram dois grupos focais, com 12 crianças com idade entre nove e dez anos, de ambos os sexos, divididas por grupo e contexto: seis alunos da escola pública e seis da escola privada, com equilíbrio entre os sexos. Os sujeitos foram sorteados de um conjunto dos 69 participantes, que haviam respondido a um questionário de associação livre e que haviam sido, previamente, sorteados para realizarem um desenho representativo da família.

Houve adesão voluntária pelas crianças e mediante o consentimento dos seus responsáveis (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido), com aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco.

Procedimentos metodológicos

Inicialmente foi utilizado um questionário de associação livre de palavras; aos 12 participantes sorteados, foi também solicitado desenho sobre a família; e, por fim, as mesmas 12 crianças participaram dos dois grupos focais.

O grupo focal consiste em um tipo de entrevista em pequenos grupos que, para alcançar bons resultados, precisa ser bem planejado, possuir um roteiro que parta do geral ao específico e com uma coordenação e mediação que favoreça a participação e as trocas entre participantes. Além disso, esse procedimento favorece a obtenção de informações e aprofunda a relação entre os participantes, o que pode gerar consenso ou divergências nos posicionamentos (Minayo, 2008). Tal procedimento conflui com a proposta da Teoria das Representações Sociais, que compreende a construção de teoria do senso comum a partir da comunicação, por meio das trocas sociais.

No questionário de associação livre e hierarquização de palavras, foi solicitado às crianças que falassem as primeiras cinco palavras que lhes vinham à mente quando escutavam a palavra família e depois as colocassem em ordem de importância, enumerando-as de um a cinco (Abric, 1994).

Quanto aos desenhos, de forma individual, era solicitado que fizesse um desenho sobre "a família", e em seguida era dada a opção de fazer, se assim achasse necessário, o desenho da "sua família". Nesse momento, a pesquisadora conversava com as crianças sobre cada desenho, solicitando que o explicasse.

Com os grupos focais, foi introduzida a discussão do tema família, apresentando tanto o agrupamento de palavras que mais saíram no questionário de associação livre de palavras e a hierarquização, como também os desenhos sobre família que foram produzidos.

A pesquisadora apresentou dez fichas contendo as palavras que tiveram maior quantitativo de evocações na primeira fase do questionário de associação livre de palavras e a das hierarquizações. Cada criança escolheu as cinco fichas que ela considerava como as mais importantes. Em seguida, foi orientada que fizesse uma nova organização, escolhendo três fichas das cinco já escolhidas e, por fim, no refinamento progressivo das escolhas, cada criança escolhia apenas uma ficha que representava a palavra considerada como a mais representativa do sentido de família. No segundo momento, cada grupo escolheu, coletivamente, dentre todos os desenhos produzidos, dois que consideravam os mais próximos das palavras anteriormente selecionadas pela hierarquização das fichas. Sendo assim, a discussão nos grupos partiu desses estímulos advindos da própria produção das crianças nas etapas anteriores da pesquisa, tendo o conteúdo sido analisado segundo a análise temática de Bardin (1977).

A seguir, apresentam-se os resultados, focalizando os fornecidos pelos grupos focais; ressalte-se que se adotou, no conjunto da pesquisa, a construção e devolução progressiva dos dados aos participantes, validando os achados com os próprios protagonistas (Cruz, 2006).

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Inicialmente, vale informar que, na escola privada, houve maior número de pais que não autorizaram a participação, e a recusa foi justificada pelo lugar de intimidade da família, o que reforça o resguardo do espaço privado, como argumentam Carmo (2007) e Passos (2007). Na escola pública, a adesão foi maciça e, ainda, criou-se entre os pais e responsáveis, expectativas de retorno positivo da pesquisa para os seus filhos, como se a participação, por si só, pudesse auxiliá-los no comportamento em casa e no desempenho escolar. Foram esclarecidos os limites e funções do estudo acadêmico, mas, mesmo assim, essa crença persistiu, e até as coordenadoras e o gestor compartilhavam dessa possibilidade de retorno imediato de resultados ao cotidiano da escola.

As distintas acolhidas das famílias à pesquisa possibilitam a reflexão sobre o que circula, entre os professores, acerca do descaso das famílias das camadas populares com os filhos. Todavia, as expectativas positivas que tais famílias apresentaram nesta pesquisa corroboram os achados de Lins e Santiago (2001), quando encontraram similar interesse e preocupação dos pais por seus filhos na esperança da escolarização positiva que geraria sucesso na vida de suas crianças.

Os resultados serão apresentados junto à sua discussão, em dois blocos: um relativo ao grupo de crianças da escola pública e outro das crianças da escola particular.

O grupo de crianças da escola pública escolheu as palavras "mãe" e "avós/avôs", como as mais importantes, reforçando o formato da família extensa, mais característico das famílias pobres (Bastos et al., 2002). O debate no grupo levou ao questionamento, das próprias crianças, sobre o sentido de família para elas, e as respostas enfatizaram as figuras de pai e mãe, acrescidas da presença de avós e irmãos. As falas sugeriram conflitos entre a realidade vivida e o discurso, havendo a idealização de família (Oliveira, 2009). Também foram observados pausas e silêncios, que expressaram a necessidade que sentiam em elaborar as suas falas acerca do tema, sobretudo quando se depararam com a falta da palavra "pai" nas hierarquizações e nas imagens dos desenhos apresentados ao grupo, frutos da própria produção deles (nas etapas anteriores), pois um desenho continha a mãe com a filha, e o outro, os avós, a criança e uma prima. Essa situação pareceu traduzir um sentimento de incompletude vivido pelas crianças (Ribeiro & Cruz, 2013), que se mostraram perplexas com a própria produção e escolha, concluindo que: "família não é só isso".

A polêmica em torno da ausência do pai foi justificada pelas próprias crianças, inicialmente apoiada em sentimentos negativos e ou de abandono: "o pai não foi escolhido (...) porque não gosta do pai"; "o meu foi embora pro Rio de Janeiro quando se separou"; o "meu pai foi embora"; porque está "morto"; ou "não tem pai porque ele viajou". Neste caso, as justificativas se apoiaram nas distintas realidades vividas pelas crianças em suas histórias de vida. Uma criança interpretou a ausência do pai nas escolhas em razão da não moradia com a mãe: "acho que é no sentido do morar" (Menino 1). Nesta situação, a convivência dos pais no mesmo espaço físico configuraria para essas crianças a organização familiar. Retoma-se a constatação, conforme estudos já realizados, de que as famílias das classes pobres têm a mãe como a grande responsável pelo cuidado e sustento das crianças, pois nem sempre contam com a figura do pai (Sarti, 1996; Oliveira, 2010).

O diálogo no grupo foi sendo encaminhado para além das constatações que fizeram, e as crianças foram expressando seus desejos e reelaborando suas crenças: "acho assim, que eles queriam que o pai tivesse também" (Menino 1); "mas pai tá vivo" (Menina 6); "eu não estou dizendo que ele não está vivo não, mas que os dois [mãe e pai] morassem juntos" (Menino 1). Segundo essas crianças, além da presença do pai, o sentido de família para eles é ter os pais morando juntos. Algumas crianças contra-argumentaram e ponderaram que foi feita uma escolha equivocada pelo grupo: "tá vendo tia!", "deixaram o pai de fora!". Perceberam na discussão que elas mesmas tinham deixado 'o pai de fora' e, assim, confrontaram-se com a ausência física do pai, uma realidade vivida por muitos, diante da separação dos pais, da moradia em Estados diferentes, ou da ausência do pai no dia a dia da vida delas.

Apesar das diferenças e das ausências, para as crianças participantes desse grupo,a família completa "precisa dos pais", "precisa de pai, mãe, irmãos", e também, de"primos, tias, tios". Gradativamente o sentido de família foi sendo ampliado, a partir da introdução de outros membros, além de pais e filhos, o que corrobora com a experiência de vida da maioria dos participantes deste grupo que convivem intensamente, ou até mesmo moram com a família extensa (Bastos et al., 2002). Elas evocaram, ainda, o sentido ideal e afetivo de família compartilhado socialmente, como afirma Moscovici (2003) sobre a construção das representações sociais, e definiram que família também é: "união", "alegria", "felicidade", "carinho". Apresentaram também algumas das funções esperadas dessa instituição social, que promove "sustento", "dão carinho" e "cuidam" de seus filhos.

Toda essa idealização em torno da concepção de família não impediu que as crianças falassem das suas experiências de conflito, pois, segundo elas, a família também é "lugar de conflito", como situa Oliveira (2009). A questão foi posta por uma das crianças e recebida, no primeiro instante, com silêncio pelo restante do grupo que, no decorrer da conversa, admitiu os conflitos. Exemplificaram situações pouco harmônica entre irmãos consanguíneos ou não, como com os filhos dos padrastos que vão morar juntos, e também com os primos que moram na mesma casa, e a principal promovedora dos conflitos é a convivência.

Outro ponto debatido referiu-se à escolha dos que são e dos que não são da família. Essa tematização de pertença/não pertença trouxe à tona o vínculo consanguíneo e os laços afetivos, que, de modo recorrente, são evocados como parâmetros na concepção de família. A relação consanguínea surgiu como o argumento principal do sentido de família, reforçada pela religião professada pelas famílias, na qual é disseminada a ideia do pertencimento familiar pelo sangue e pela relação com Deus, como mostra a fala da criança: "Vê, além dele ser irmão por parte de pai, por parte de mãe, eles também são irmãos por Deus, têm o mesmo sangue. Aí não adianta dizer, ah você não é meu irmão, porque os dois têm o mesmo sangue e são irmãos" (Menina 4).

Retoma-se, aqui, a força dos conteúdos transmitidos e perpetuados na cultura, por meio da ciência e/ou pela religião, os quais se encontram na construção das Representações Sociais, pois os representantes da ciência e os sacerdotes têm a tarefa de criá-las e transmiti-las, às vezes sem saber ou sem querer (Moscovici, 2003).

No grupo também surgiu que o parâmetro para ser da família está na qualidade das relações, embora tenha havido oscilações entre os participantes para decidir sobre este pertencimento/não pertencimento qualitativo. Algumas crianças não consideraram o filho do padrasto como irmão, "porque ele arenga comigo"; outra, o considera porque gosta dele, "eu gosto do filho do meu padrasto" − e aqui pareceu que o sentido da afetividade é ambíguo. De uma parte, a negação do vínculo, diante de conflitos; e por outra, o reforço à qualidade da relação e os sentimentos que dela emergem, pois mesmo que não sejam do mesmo sangue, "eles é bom". Não se pode, por tudo isso, negar a força dos afetos presente nas famílias que, além da consanguinidade e do processo de aprendizagem, têm importância na construção das relações humanas (Dessen e Polonia, 2007).

Ao final do debate, após discutirem diferenças e contradições sobre as famílias, uma questão foi posta pela mediadora: "as famílias são iguais?". Mais uma vez, as opiniões se dividiram e se modificaram durante a discussão com a expressão do que pensavam, como afirma Minayo (2008) sobre os objetivos dos grupos focais. No cotejo com outras referências, inclusive para uma mesma criança, ocorreram diferenças que se referiram tanto à configuração quanto à dinâmica relacional das famílias: "Porque tem pessoas que têm famílias iguais. (...) as famílias são diferentes e a forma de cada uma ser... e a forma de cada um ser é diferente também, com quem as pessoas moram" (Menino 2). Com a constatação da diferença, reafirmaram que, mesmo assim, a família "não é só isso" (Menina 4), expressando o sentimento de incompletude compartilhado por todos desde o início, pois família para eles: "precisa dos pais", "precisa de pai, mãe, irmãos", só depois de "primos, tias, tios" (Menina 4). Nessa hierarquização familiar, as crianças anunciaram as crenças que compartilham na direção mais conservadora e idealizada, a despeito de suas experiências pessoais mais próximas da configuração plural da família na contemporaneidade (Simas, 2009).

No grupo focal da escola privada, surgiram muitas histórias relacionadas à separação dos pais e lembranças foram evocadas pelas crianças sobre suas famílias.

Um dos maiores desafios, para alguns participantes, foi o dilema na escolha dos agrupamentos de palavras, por exemplo, entre a ficha com a palavra "mãe" e a outra com a palavra "pai". Essa escolha remeteu à situação de separação dos pais e levou à prioridade dos sentimentos voltados à defesa da preservação do sentido idealizado de família em que os pais vivem juntos na mesma casa: "os dois são importantes pra mim!" (Menino A).

Para outros, houve facilidade na escolha em função da distinta qualidade do afeto dirigida a um dos pais: "pra mim os dois são importantes, mas um é mais do que o outro" (Menino B); e para outros mais, apareceu a exposição dos critérios vinculados à organização, função e estrutura da família, tais como moradia em conjunto, tempo de permanência e convivência, e funções que constituem a representação de família, embora se percebam tensões nesta definição, como se pode ver no trecho a seguir:

É... mas eu prefiro a minha mãe. Porque o meu pai faz muuuuito... mais de um mês que não vejo. Ele fica mentindo... a gente liga pra ele... meu irmão ligou pra ele, e foi dar os parabéns e ele disse que não tinha tempo, que já tinha botado o dinheiro e pronto... desligou na cara dele" (Menino C).

É que eu gosto dos dois, mas é que... minha mãe e meu pai se separou, e eu moro mais com minha mãe sabe, só nos finais de semana... aí como eu moro mais com minha mãe, eu acho que eu escolho ela, mas eu gosto do meu pai. Meu pai... ele brinca comigo tal, mas eu passo mais tempo com minha mãe, sabe... aí que eu não escolhi... porque a minha mãe é mais importante. É porque assim, meu pai é a mesma coisa que a minha mãe, sabe?! (Menino B).

O diálogo, abaixo, aponta, ainda, que segundo as crianças, a família tem função de garantir a moradia, a brincadeira, a diversão, e o cuidado em relação a elas como apontado por Dessene Polonia (2007):

Menino B: "é como fosse assim, quem vive mais contigo?".

Menino A: "minha mãe".

Menino B: "quem brinca mais contigo?".

Menino A: "meu pai".

Menino B: "quem se interessa contigo?".

Menino A: "os dois...".

Menino C: "mas se teu pai for a mesma coisa que a tua mãe...".

Menino A: "100% pra cada um. [...] eee... quem dá mais atenção, é os dois, e quem eu fico mais é com minha mãe. Aí fica difícil!".

Menino B: "tu se diverte mais com quem, com teu pai, ou com tua mãe?".

Menino A: "os dois".

Percebe-se o processo de tornar o objeto social em familiar, e diante de tantas informações contraditórias, o grupo se sentiu forçado a tomar uma posição (Palmonari, 2009). Vê-se, aqui, a introdução do elemento lúdico como um marcador da realidade da criança (Corsaro, 2011) e, por sua importância, é colocado como um diferencial para embasar as suas escolhas e preferências.

Na escolha dos desenhos, o debate foi também bastante intenso na interatividade. Chamou atenção a liderança de algumas crianças que influenciaram a escolha da imagem da família nuclear (composta por "pai, mãe e filho") representada no desenho, enquanto outras escolheram a da família extensa representada por "eu, tio paterno, pai, prima, tia paterna, esposa do tio, avô e avó paternos, irmão e mãe". As primeiras respostas das crianças sobre concepções de família ficaram limitadas às palavras que foram hierarquizadas ("amor", "pai", "mãe"), só depois, começaram a surgir novas concepções como "amigos" e "saudade", palavras que ampliaram o sentido de família, além de outros membros do grupo de parentesco que também apareceram: "mãe, irmãos e meus avós"; "pai, mãe, irmãos, avós, tios, tias, só", e em outro excerto, os sentidos evocados de: "amigos", "éééé... união, sentimentos, amor, que tão junto com a família... vê, rever amigos".

O tema da "saudade" e dos "amigos" passou, então, a ser o foco na discussão do grupo quando um menino compartilhou sua experiência e momento particular de vida, o que gerou um clima de emoção no grupo: "próximo ano eu vou ter que deixar os meus amigos" (Menino B), pois com a separação dos pais, a criança iria morar na casa dos avós, mudando de escola e afastando-se dos amigos. E nessa direção de positividade atribuída para além do grau de parentesco, os amigos são citados pelas crianças com forte vinculação de afeto, o que provocou ambiguidade na argumentação. Em alguns momentos, eles consideravam os amigos como membros da família, embora o vínculo do parentesco tenha prevalecido: "família é mais...", "mais próximo", mesmo que existam "amigos como irmãos!". Aqui, percebe-se que a ideia de família retrata os aspectos que são transmitidos por gerações, preservando valores como a consanguinidade, ao mesmo tempo em que novas experiências se apresentam e concretizam novos elementos à sua representação, no envolvimento de convivência, conflitos, saberes novos, hábitos e costumes (Bastos, Alcântara & Ferreira-Santos, 2002).

Nessa mesma perspectiva, os animais de estimação foram também integrados à família dimensionando outra vertente à família extensa nos moldes conservadores. Vejam o que as crianças dizem sobre estes animais-parentes: "o cachorro acompanha seu dono, por exemplo, eu vou pro quarto ele está deitado, sai... se eu vou dormir ele me acompanha"; ou em outra fala, "(...) o cachorro é o melhor amigo do homem porque ele sabe quando você está triste e quando você está feliz". Para esse grupo de crianças, interpretou-se que as representações sociais de família englobam pai, mãe, parentes, amigos, e animais de estimação e, ainda, as lembranças/saudade da própria família não vivida, porém idealizada.

No conjunto de achados, dos dois grupos e contextos, viu-se que a afetividade positivada e pulverizada em diferentes personagens reforçou a representação de família tradicional que foi idealizada e preservada, a despeito da realidade familiar vivida pelas próprias crianças participantes e das tendências às mudanças anunciadas na reedição da organização das famílias extensas na atualidade.

O procedimento metodológico adotado- grupos focais em dois contextos de escola-, possibilitou trocas, o que permitiu aprofundar sentidos diversos de família, por meio de confrontos e/ou consensos entre os participantes. É preciso ressaltar, ainda, as distintas variações possíveis porque o tema da família é complexo, amplo, circunscrito a um dado momento histórico e social, não sendo possível generalizar achados. As crianças participantes desta pesquisa mostraram mudanças e transições em relação aos sentidos de família porque vivem em contextos de predomínio da individualidade e/ou de práticas de coletividade. As crianças trouxeram à tona pontos de conflitos, de idealizações, de diferentes possibilidades de viver e entender a família, pautadas na transição dos modelos atuais, por um lado, ena referência do modo mais tradicional, o nuclear burguês, por outro.

Este é o processo presente na formação das Representações Sociais, na medida em que se constroem teorias do senso comum para dar sentido a algum objeto polimorfo,complexo, em que alguns elementos são preservados, perdurando entre as gerações, ao mesmo tempo que surgem novos elementos, no constante movimento de reconstrução. Pode-se afirmar, assim, que as crianças desse estudo construíram uma teoria do senso comum, para dar sentido ao objeto social "família" representada por palavras positivadas e idealizadas, ancoradas tanto em um modelo nuclear tradicional, quanto nos novos modos que surgem e apontam para as transformações e reelaborações dos sentidos compartilhados. Como afirma a teoria que embasou o estudo, as pessoas e os grupos estão "longe de serem receptores passivos, pensam por si mesmos, reproduzem e comunicam incessantemente suas próprias e específicas representações e soluções às questões que eles mesmos colocam" (Moscovici, 2003, p. 45).

Assim, as crianças ajudaram a pensar no tema da família, mostrando que desde a infância são construídas teorias do senso comum para explicar a realidade e, no caso particular da família, elas mostraram as tensões de um tema que é polêmico, multifacetado, interdisciplinar e inesgotável em suas possibilidades de investigação, passível sempre de novas investigações e reflexões.

 

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