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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.43 São Paulo dez. 2016

https://doi.org/10.5935/2175-3520.20160010 

10.5935/2175-3520.20160010 COMPARTILHANDO

 

A pesquisa como habitação de territórios existenciais: contribuições do método da cartografia1

 

Research as housing for existential territories: cartographic method contributions

 

La investigación como habitación de territorios existenciales: contribuciones del método cartográfico

 

 

Túlio Marcus Trevisan Borges

Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ). tuliotrevisan@yahoo.com.br

 

 

A leitura do texto das orelhas do livro, assinado por Tania Mara Galli Fonseca, já indica que estamos diante de uma obra sobre uma metodologia de pesquisa não-convencional. O estilo da escrita remete-nos à arte literária, com o uso de metáforas e deslocamentos de sentidos para introduzir uma proposta de investigação científica processual e permeada pela subjetividade.

Os autores, com exceção de um dos pesquisadores, são pós-graduados em Psicologia. Eles são apresentados de forma sucinta, na parte final do livro, com um parágrafo sobre cada um, que descreve sua formação acadêmica, suas publicações, trabalhos e interesses de pesquisa. Porém, a uniformidade na formação não foi um empecilho para que a presente obra tivesse um caráter abrangente, que lhe permite ser usada em várias outras áreas de conhecimento, como recentemente tem acontecido de forma mais intensa na Educação.

A apresentação do livro tem início com a descrição do processo de elaboração dos textos que o compõem, que são frutos de reuniões entre pesquisadores e alunos da área de Psicologia de duas instituições federais fluminenses, ligados pelo interesse pela obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Em seguida, a cartografia é apresentada como uma proposta para investigar processos de produção de subjetividade, acompanhando movimentos, mais do que apreendendo estruturas e estados de coisas. Isso se dá através de uma reversão metodológica, que propõe não um caminhar em direção a metas traçadas, mas um caminhar que traça no percurso suas metas. O rigor científico é ressignificado: não é entendido como exatidão, mas como compromisso e interesse, como implicação na realidade, como intervenção. O conceito usado para o ato de conhecer não é o de representar ou reconhecer a realidade, e, sim, o de criação e de produção do conhecimento. Após situarem a cartografia no campo teórico e a conceituarem brevemente, os autores apresentam iniciativas de pesquisa usando essa metodologia no Brasil. Por fim, é feita uma descrição sucinta dos capítulos do livro, organizados em pistas que não se ligam de forma hierárquica, ou seja, a leitura pode ser feita de forma flutuante entre eles, sem uma ordem pré-estabelecida. Os autores ressaltam que "a organização do livro corresponde a um rizoma" (p. 14), um conceito talvez pouco familiar para o leitor nesse momento, mas que será tratado de forma aprofundada no decorrer da obra.

No capítulo intitulado "Pista 1 - A cartografia como método de pesquisa-intervenção", assinado por Eduardo Passos e Regina Benevides de Barros, a discussão sobre conhecimento como construção da realidade é ampliada, abordando as ideias de que toda pesquisa é intervenção, e por isso tem consequências políticas. Para explicar a afirmação de que toda pesquisa é intervenção, os autores buscam referências do movimento da Análise Institucional, principalmente no pensamento de Lourau e Simondon. Para discorrer sobre o caráter clínico-político de toda intervenção, abordam as contribuições de Guatarri. A todo momento são feitas ligações com a cartografia. Porém, os conhecimentos são transpostos desses campos de conhecimento sem uma apresentação mais abrangente, o que dificulta sua compreensão para aqueles que não tenham contato prévio com esses conhecimentos.

A pista 2 - "O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo" - escrita por Virgínia Kastrup, se direciona à etapa inicial de uma pesquisa, tradicionalmente denominada "coleta de dados", mas que numa perspectiva construtivista como a adotada pela cartografia, é entendida como construção de dados. Nessa política cognitiva, contrária ao realismo cognitivo (que seleciona informações, seja por critérios objetivos ou subjetivos), o conhecimento surge como composição com a realidade, e não domínio sobre ela. Assim, para a construção do conhecimento no método da cartografia, há um tipo de funcionamento de atenção que é privilegiado: a atenção flutuante, (ao contrário da seletiva, que é movida pelo interesse e que concorre para a ação), concentrada e aberta, que se dá a partir de quatro variedades de funcionamento: a) rastreio = varredura do campo. Atenção aberta e sem foco, sem buscar alvos específicos. Aproxima-se da percepção háptica, que explora e percorre o campo de maneira mais assistemática; b) toque = rápida sensação, como um reflexo, que aciona o processo de seleção. Alguma coisa diferente acontece no ambiente perceptivo e exige atenção (mas no nível das sensações e não no nível das percepções e representações de objetos); c) pouso = a percepção faz uma parada e o campo se fecha, numa espécie de zoom. A atenção muda de escala e o campo é reconfigurado, podendo ir de um foco muito específico a um horizonte amplo e d) reconhecimento atento = é o momento posterior ao que a atenção se retém, e nos reconduz ao objeto para destacar seus contornos singulares. O reconhecimento atento não é a mera comparação com uma memória prévia, mas é feito por um trabalho de construção da percepção através do acionamento de circuitos e da expansão da cognição. Ao descrever esses diferentes gestos de atenção, a autora indica características metodológicas referentes à postura do cartógrafo em sua prática, que deve ter um olhar de abertura diante do processo que se propõe a conhecer.

Laura Pozzana e Virgínia Kastrup iniciam a pista 3 - "Cartografar é acompanhar processos" a partir de uma experiência de pesquisa sobre oficinas de leituras com crianças, para discutir a concepção da ciência moderna de pesquisa como representação de um objeto, que tem como uma de suas principais características a separação entre sujeito e objeto. A cartografia, pelo contrário, é uma pesquisa de campo que requer a habitação de um território antes desconhecido pelo pesquisador, mas que se inclui, de forma problemática, na pesquisa. Esse método não visa isolar o objeto de suas articulações históricas nem de suas conexões com o mundo. Ao contrário, seu objetivo é justamente desenhar a rede de forças à qual o objeto ou fenômeno em questão se encontra conectado, dando conta de suas modulações e de seu movimento permanente. Para acompanhar algo que é dinâmico, a pesquisa cartográfica não separa as etapas da investigação, e seus passos - coleta, análise e discussão de dados - se sucedem sem se separar. A descrição dessa pista reforça o caráter processual da cartografia, que perpassa todos os momentos da pesquisa. Ao invés de etapas estanques, elas estão inter-relacionadas o tempo todo. O pesquisador vai a campo e dos registros desse contato emergem observações, conexões e afetos que chamam sua atenção.

O texto de Virgínia Kastrup e Regina Benevides apresenta a pista 4 - "Movimentos funções do dispositivo na prática da cartografia", que tem início com a discussão sobre dispositivos, a partir das ideias de Foucault e Deleuze. Para este último, dispositivos são "máquinas que fazem ver e falar" (p.78), formados por linhas de natureza diferente, como de visibilidade, enunciação, força e subjetivação. A partir dos exemplos da clínica e da oficina de práticas artísticas, as autoras indicam que a função de um dispositivo se dá através de três movimentos: movimento-função de referência, movimento-função de explicitação e movimento-função de transformação-produção. O primeiro explicita regularidades, a partir da articulação entre repetição e variação; o segundo busca tornar visíveis as linhas que participam do processo em questão, enquanto o terceiro analisa as relações entre os elementos do campo, a forma como se transformam e produzem realidades. Saber sobre os dispositivos e as formas como eles são explorados no método cartográfico são ferramentas essenciais para os que pretendem se lançar nesse processo de produção de subjetividade e conhecimento.

A quinta pista - "O coletivo das forças como plano da experiência cartográfica" - escrita por Liliana da Escócia e Silvia Tedesco, indica a coexistência do plano coletivo das forças, que compõem o que concebemos como formas estáveis, como objetos ou sujeitos, e é construído pela cartografia, a partir das contribuições de Michel Foucault e Gilbert Simondon. Esse plano das forças, geralmente desprezado pelas abordagens que se baseiam na representação da realidade, abrange os processos de movimentos e produções de tudo que existe no mundo. As autoras destacam que o termo coletivo é distinto de social, esse último geralmente entendido como oposto ao indivíduo, e faz referência às relações de reciprocidade entre os planos das formas e das forças, que possibilitam cruzamentos múltiplos. No método da cartografia, isso aparece através da busca pelo caráter processual das formas. Na investigação, o que se deseja é ir além das representações, do pensamento organizado em categorias pré-estabelecidas, para que as variações dos corpos se expressem da maneira mais intensa possível. O capítulo se encerra com a descrição de uma pesquisa realizada com psicólogos no campo de saúde mental da cidade de Aracaju, que vem acompanhada da apresentação e discussão de outros conceitos relativos ao plano de forças, como as funções de transversalização e transdução. O primeiro diz respeito à intensificação da comunicação entre sujeitos e grupos, e o segundo remete à capacidade de propagação de uma ação ou movimento no plano. Por fim, é ressaltada a ideia de que o cartógrafo, ao acessar esse plano coletivo de forças, já o habita, e seus atos, sendo também coletivos de forças, provocam intervenções e produzem transformações. Como mais um exemplo prático de exercício da cartografia, teoria e prática são apresentadas de forma indissociável nesse capítulo.

A pista 6 - "Cartografia como dissolução do ponto de vista do observador", de autoria de Eduardo Passos e André do Eirado, trata da importância de um olhar do pesquisador no qual não haja separação entre objetivo e subjetivo, e, sim, a contemplação da coexistência de ambos os aspectos. A partir de três posições teóricas do campo da Psicologia, os autores mostram que apesar das variações, esta dicotomia entre sujeito e objeto não é superada nesses modelos. Para romper com esse olhar "de cima" da ciência, Guatarri propõe o conceito de transversalidade, que permite experimentar diversos pontos de vista, sem se apegar a nenhum deles. Lourau também rebate a suposta neutralidade científica ao abordar a implicação que todos temos em qualquer atividade de produção de conhecimento. A dissolução do ponto de vista do observador, que dá título ao capítulo, seria atingida então a partir do questionamento de nossa própria subjetividade, que nos permitiria responder às experiências sem nos ater a um repertório conhecido de ações. Ao se dissolver a centralidade do sujeito, tem-se mais liberdade para acompanhar os processos de forma cuidadosa. Tal postura deve guiar o cartógrafo em sua investigação, mas também é fecunda para reflexões sobre nosso comportamento em sociedade, diante do outro.

Johnny Alvarez e Eduardo Passos nos apresentam a sétima pista - "Cartografar é habitar um território existencial" - a partir da vivência simultânea de um dos autores como aprendiz de capoeira e pesquisador sobre o tema. Essa experiência exemplifica como a cartografia não se dá a partir de um sobrevoo conceitual sobre um processo, mas, sim, se desenvolve a partir da habitação naquele território existencial. A noção de território para Deleuze e Gattari não se reduz a um espaço físico ou a um conjunto de ações, mas é algo processual, em constante movimento e produção, a partir da dimensão rítmica das condutas e forças que ali se expressam. Para habitá-lo, o cartógrafo deve ter uma receptividade e abertura ao campo, engajando-se afetivamente no mesmo. A pista reforça a necessidade de se colocar ao lado da experiência, de modo a não falar sobre a mesma, e, sim, com ela. Mais do que uma técnica ou ferramenta metodológica, os autores deixam claro que habitar um território é estar aberto a uma forma diferente de conhecer.

A pista 8 - "Por uma política de narratividade" - de Eduardo Passos e Regina Benevides de Barros discute a necessidade de uma forma de narrar que se adeque às características do método cartográfico, ou seja, que expresse processos de mudanças. O texto expõe duas políticas de narratividade: o método extensivista, que se utiliza das redundâncias e da análise estrutural do discurso, e o método intensivista, com um procedimento narrativo de desmontagem e uma análise expressiva do discurso. Esse procedimento é descrito de forma detalhada, utilizando-se de uma experiência de pesquisa em saúde em Moçambique como exemplo. A forma como os conceitos são apresentados, integrados à prática, facilita seu entendimento pelo leitor e permite uma compreensão melhor de sua aplicação.

Após a descrição das pistas, há um último texto de Regina Benevides e Eduardo Passos, intitulado "Diário de bordo de uma viagem-intervenção", que pretende ilustrar o processo de uma construção coletiva de uma pesquisa. Através da troca de correspondência entre os autores como exemplo, eles discutem o conceito de hors-texte (fora-texto), que faz referência aos textos da pesquisa, principalmente o diário de campo, que não entram no texto final. Lourau investiga a importância desses registros e como eles revelam a implicação do pesquisador e a realidade do cotidiano da pesquisa. Apesar de não ser uma pista, esse capítulo chama a atenção para a utilização do diário de bordo como dispositivo da pesquisa, que muito tem a contribuir para o trabalho do cartógrafo.

Os organizadores assinam o posfácio, intitulado "Sobre a formação do cartógrafo e o problema das políticas cognitivas", no qual reafirmam que a cartografia não é um método predeterminado, que pode ser aplicado de maneira mecânica em qualquer realidade, e, sim, uma prática, uma vivência, que depende da sensibilidade e abertura do pesquisador para habitar territórios existenciais e perceber seus campos de forças. Cartografar requer uma atitude cognitiva própria, perpassada por uma atenção capaz de flutuar e pousar, seguindo o fluxo dos ritmos presentes no território. A adoção do pressuposto de que conhecer é construir uma realidade e intervir sobre ela funda uma nova política cognitiva.

A leitura desse livro ilustra bem o que propõe a cartografia: experimentamos uma variedade de ritmos ao longo dos capítulos, ora fluidos, ora densos; deparamo-nos com uma diversidade de vozes e estilos, algumas mais teóricas e filosóficas, outras que falam mais da prática e do cotidiano da pesquisa; pistas não lineares, que não pretendem configurar um caminho único, mas que apresentam um emaranhado de conceitos e ideias que permitem a cada um traçar o seu destino na pesquisa. Certamente uma obra inquietante e provocadora de reflexões essenciais ao que pretendem se lançar no desafio da cartografia.

 

 

1 Este texto apresenta resenha crítica do livro: Passos, E., Kastrup, V. e Escóssia, L. (Orgs.). (2014). Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina.

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