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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.47 São Paulo jul./dez. 2018

https://doi.org/10.5935/2175-3520.20180015 

ARTIGOS

 

Sentidos e significados atribuídos por professores de um curso sobre convivência escolar

 

Senses and meanings attributed by teachers participating in a course on school coexistence

 

Sentidos y significados atribuidos por profesores de un curso sobre la convivencia escolar

 

 

Lívia Maria Ferreira da SilvaI; Ana Maria Falcão de AragãoII; Telma Pileggi VinhaIII

IORCID: 0000-0002-0708-6201. Colégio Bandeirantes. liviamfsilva@gmail.com
IIORCID: 0000-0003-0494-6453. Departamento de Psicologia Educacional, Universidade Estadual de Campinas
IIIORCID: 0000-0002-0510-8390. Colégio Bandeirantes

 

 


RESUMO

Fundamentada na perspectiva histórico-cultural, a presente pesquisa teve por objetivos conhecer os sentidos e os significados dos relatos das práticas docentes, atribuídos por educadores participantes de um curso de formação para o trabalho com a convivência na escola. Foi utilizada entrevista semi-estruturada com os professores participantes do curso. A análise das entrevistas, fundamentada no Paradigma Indiciário e nos Núcleos de Significação, possibilitou construir núcleos de significação, sendo focalizado o Núcleo Práticas em transformação. Os professores apresentaram relatos indicativos de que suas concepções e práticas estavam em transformação. Os resultados permitem defender a necessidade da implantação de programas que abordem questões da convivência escolar em prazos mais alargados, para que sejam possíveis transformações mais aprofundadas nas concepções pedagógicas que estão subjacentes às práticas docentes.

Palavras-chave: formação docente, convivência escolar, sentidos, significados, conflitos.


ABSTRACT

Based on a historical and cultural perspective, the current research had as goals to know the senses and meanings of reports of teaching practices attributed by educators participating in a training course on coexistence at school. Semi-structured interviews with the teachers participating in the course were used. The analysis of the interviews, based on the Evidential Paradigm and on the Centers of Meaning, enabled the construction of centers of meaning mainly focusing on center 1 - Practices undergoing transformation. The teachers presented indicative reports that their conceptions and practices were in transformation. The results make it possible to defend the need of implementing programs that address the issues of coexistence at schools in longer-term periods, in order to enable deeper changes in pedagogical concepts that are underlying to teaching practices.

Keywords: teacher training, coexistence at school, senses, meanings, conflicts.


RESUMEN

Basada en la perspectiva histórica y cultural, esta investigación tuvo como objetivos conocer los sentidos y significados de los relatos de las prácticas docentes, atribuidos por educadores participantes en un curso de formación para el trabajo con la convivencia en la escuela. Fue utilizada entrevista semiestructurada con los profesores participantes del curso. El análisis de las entrevistas, fundamentado en el Paradigma Indiciario y en los Núcleos de Significación, posibilitó construir núcleos de significación, siendo focalizados el Núcleo 1 - Prácticas en transformación. Los profesores presentaron relatos indicativos de que sus concepciones y prácticas estaban en transformación. Los resultados permiten defender la necesidad de implantación de programas que aborden cuestiones de convivencia escolar a largo plazo, para que sean posibles transformaciones más profundas en las concepciones pedagógicas que están subyacentes a las prácticas docentes.

Palabras clave: formación docente, convivencia escolar, sentidos, significados, conflictos.


 

 

A convivência na escola como objeto de pesquisa tem recebido atenção dos estudiosos não só no Brasil, mas em outros países, especialmente pela correlação existente entre desempenho acadêmico e clima escolar (OCDE, 2013a; Oliveira, 2013, Unesco, 2014). Apesar de haver diferentes definições para clima escolar, os autores admitem que é a soma das percepções de alunos, professores, gestores e funcionários sobre o ambiente da escola e envolvem as dimensões da segurança, das relações interpessoais, do ensino e da aprendizagem e do processo de melhoria da escola (Moro, 2018). Segundo Janosz, George e Parent (1998), a percepção dessas dimensões, que se entrecruzam, forma o clima geral da escola. De acordo com Vinha, Shimizu, Tognetta etal. (2016), um clima escolar positivo interfere na qualidade da vida da instituição educativa, desnudando aspectos relativos às normas escolares, ao sentimento, de pertencimento e de justiça, à qualidade do processo de ensino e de aprendizagem, à qualidade das relações interpessoais e à segurança.

A investigação do clima escolar e seus vários aspectos ainda requerem aprofundamento. Um ponto importante é a avaliação do clima escolar. No Brasil, foi validado recentemente (Moro, 2018) um instrumento destinado a esse fim. Essa avaliação é de extrema importância para que a escola conheça suas fragilidades e possa atuar no sentido de buscar uma convivência e aprendizado melhores. Outro problema relacionado ao clima escolar refere-se à necessidade da elaboração de projetos para a convivência na escola. Tais investidas já são comuns na Espanha e alvo de políticas públicas, mas no Brasil, apesar dos inúmeros problemas de convivência enfrentados pelos educadores (Vinha, 2013), existem poucos projetos estruturados e avaliados (Menin, Bataglia, & Zechi, 2013). Apesar da importância da existência de pesquisas voltadas para a construção de um clima positivo e ético na escola, é importante que os estudos se debrucem, também, sobre como os significados relativos a trabalhos desse tipo são partilhados pelos professores e quais sentidos eles vão atribuindo à sua prática pedagógica.

Como destaca Namura (2003), atribuir sentido é uma condição humana universal, mas os sentidos atribuídos mudam, se transformam e adquirem novos conteúdos, significados e qualidades no processo histórico-social do desenvolvimento do homem. Dessa forma, as ideias, as estruturas sociais e as concepções ideológicas que dão sentido à vida podem se transformar, desaparecer e renovar-se; podem ser produzidas e comunicadas diretamente na expressão linguística, podem ser apreendidas indiretamente pelos fatos, acontecimentos, costumes, modos de ser e viver, enfim, as concepções de sentido se transformam nas infinitas relações sociais.

Mais do que descrever formas, cores e volume, o indivíduo consegue perceber, por meio dos signos culturalmente instituídos, os sentidos possíveis na realidade na qual se insere: "o mundo não é visto simplesmente em cor e forma, mas também como um mundo com sentido e significado" (Vigotski, 1954/2001, p. 44). Segundo Vigotski (1938/1998), os significados e as palavras sofrem um processo de transformação, uma vez que evoluem ao mesmo tempo em que o pensamento do indivíduo contribui para a sua constituição como ser humano.

Nessa perspectiva, é possível afirmar que a compreensão da relação entre pensamento e linguagem reside na própria compreensão dos conceitos: significado e sentido. De acordo com Aguiar e Ozella (2013) e Aguiar, Soares e Machado (2015), para que se possa compreender o sujeito é necessário avaliar os significados e sentidos atribuídos por ele. Os significados referem-se a produções que são históricas e culturais e, por isso, são mais estáveis, compartilhadas. Os sentidos são mais instáveis e se referem a uma dimensão mais ampla do que o significado.

Considerando a importância do clima escolar apontada acima, o presente artigo tem por objetivo conhecer os sentidos e os significados, das próprias práticas docentes, atribuídos por educadores participantes de um curso de formação de professores para o trabalho com a convivência na escola

 

MÉTODO

Participantes

Os participantes do presente estudo foram 11 professores de Ensino Fundamental II de uma escola municipal do interior paulista. Desses 11 professores, somente dois não eram professores de referência, isto é, docentes que ministraram a disciplina de convivência, denominada de Vivaética, destinadas aos alunos do Ensino Fundamental II. Os critérios para a escolha dos sujeitos da pesquisa foram a participação assídua no curso de formação, bem como voluntariar-se para a participação na presente pesquisa.

Para ministrar aulas de convivência além de participar de curso destinado a todos os professores, eles deveriam participar de uma formação específica, cuja periodicidade foi quinzenal (ambos os cursos, foram ministrados pela autora).

Local

A escola municipal que oferece o nível Básico, ensino Fundamental I e II e a Educação de Jovens e Adultos.

Material

Os participantes foram entrevistados a partir do roteiro que segue:

1. Desde que você começou a dar aula, como tem sido a sua relação com os alunos? Conte uma situação, um problema que você teve com os alunos e que você gostou do jeito que você resolveu? E agora me conte um dilema que você não soube o que fazer? Como você faria hoje? Por quê? (Objetivo: identificar se as questões de convivência são vistas como dificuldades e como o professor as concebe.)

2. Como você ficou sabendo do curso? (Objetivo: identificar como o processo pelo qual o professor tomou conhecimento do curso interferiu no engajamento, na construção dos significados e sentidos relativos ao trabalho com a convivência.)

3. Por que você decidiu participar? O que você sabia sobre o curso? O que o encantou? Por que você não desistiu?(Objetivo: conhecer as motivações dos professores em relação ao curso e as reflexões que eles já faziam sobre o trabalho com a convivência.)

4. Os professores, em geral, reclamam muito do excesso de tarefas diárias. Você acha que é papel da escola discutir temas relacionados à convivência? Você pensava assim antes do curso? Como você se sente ao abordar esses aspectos em sala de aula? Por quê? (Objetivo: conhecer as possíveis transformações nas concepções dos educadores sobre a responsabilidade da escola de desenvolver um currículo que aborde o tema da convivência, bem como os significados desse trabalho atribuídos pelos professores.)

5. Como você lidava com os problemas de convivência? Conte para mim um exemplo, daqui. Como você lida agora? Como você avalia essa mudança? Como se sente, agora, ao enfrentar esses problemas? (Objetivo: conhecer as reflexões dos professores sobre as possíveis transformações em sua prática pedagógica e os sentidos e significados que ele atribui a essas práticas.)

6. Qual foi a mudança na sua prática que você considerou mais marcante? Por quê? Me dê um exemplo? (Objetivo: conhecer as práticas e transformações mais valorizadas pelos professores.)

7. Existem conflitos na sua classe? O que você faz quando há conflitos entre alunos em sua classe? Você sempre agiu assim? Você acha que essas intervenções têm dado certo? E o que você acha que precisa mudar? (Objetivo da questão anterior é conhecer as práticas e reflexões dos docentes específicas em situações de conflitos entre alunos e as possíveis transformações na atuação do professor.)

8. O que você pensa e como se sente quando um aluno não quer realizar as tarefas? Em sua opinião, o que causa essa situação? O que você faz quando isso acontece? Você sempre agiu assim? Essa intervenção tem dado certo? Em caso negativo, o que precisa ser feito? (Objetivo: conhecer as práticas dos professores sobre as situações específicas de indisciplina, as possíveis transformações nessa prática e as reflexões docentes sobre elas.)

9. Você definiu regras com os alunos? Quais regras são importantes para você? Por quê? Como elas foram apresentadas aos alunos? Os alunos as têm cumprido? O que você faz quando eles as transgridem? Você sempre agiu assim? Tem dado certo? (Objetivo: conhecer as práticas docentes relativas à elaboração e validação das regras pelos alunos, bem como as reflexões dos professores sobre essas ações.)

10. Na sua opinião, quais foram os avanços da escola com relação à convivência? O que foi bom ou que não foi? Você gostou das propostas sugeridas no curso? Você acha que elas são possíveis de serem implementadas? Você faz alguma crítica ou sugestão para alterar o curso? Há algo que ainda falta fazer? (Objetivo: avaliar o curso de formação.)

11. Há algum tema ou conhecimento discutido que não foi relevante para a sua prática? (Objetivo: avaliar o curso de formação.)

12. Como foi para você ter sido professor de referência? O que foi bom e o que foi ruim? Quais angústias? O que você sugere? (Objetivo: levar o professor a avaliar a sua experiência como professor de referência.)

Procedimento

Foram realizadas entrevistas com os 11 professores, após o curso foi finalizado. As entrevistas foram audiogravadas. Com alguns entrevistados, as perguntas do roteiro foram permeando e sendo entrelaçadas pelas histórias contadas, deflagradas pelas questões propostas, de modo que a entrevista não seguiu, necessariamente, uma ordem pré-determinada. As primeiras questões da entrevista possuíam um caráter mais aberto com a finalidade de compreender os significados e sentidos em relação ao trabalho com a convivência de modo geral. Depois, elas foram se tornando mais específicas, com a finalidade de obter dados sobre aspectos específicos da convivência, como a indisciplina, a incivilidade, as transgressões.

As perguntas-chave foram sendo complementadas por outras que emergiram das respostas dos participantes, a fim de que se pudesse compreender o que estava sendo dito.

Procedimento de Análise

As informações obtidas foram analisadas de acordo com o Paradigma Indiciário de Análise, que reconhece a pluralidade de sentidos que podem ser atribuídos ao real e a possibilidade de ir além do que está exposto. A análise indiciária valoriza componentes da singularidade e detalhes secundários, situados muitas vezes na aparência das coisas. Aguiar e Ozella (2013) e Aguiar, Soares e Machado (2015) propõem, por meio da construção dos Núcleos de Significação, que o pesquisador se aproprie daquilo que diz respeito ao sujeito, daquilo que representa o novo que, mesmo quando não colocado explícita ou intencionalmente, é expressão do sujeito. Os mesmos autores, a partir da produção dos dados, sugerem que a análise seja composta de pré-indicadores, indicadores, conteúdos temáticos e núcleos de significação.

Após a transcrição das entrevistas, foi realizada uma leitura de todas elas a fim de obter uma ideia geral dos conteúdos produzidos

Em seguida, iniciou-se a primeira fase da análise indiciária que foi a construção dos pré-indicadores. Para cada questão, organizou-se um arquivo em Word, criando um quadro em que foram colocados os trechos significativos das entrevistas, os pré-indicadores e os indicadores. Em cada questão, extraíram-se os temas surgidos nas respostas de cada participante, traduzindo-os em sentenças. Muitas vezes, o tema presente numa questão reaparecia em outros momentos, com nuances, argumentos e sentimentos mais claros. Para cada pré-indicador elaborado, associou-se um ou mais trechos da entrevista que pareciam mais representativos daquela ideia.

A segunda fase da análise consistiu na elaboração dos indicadores, que foram criados a partir da união dos pré-indicadores, pela semelhança das temáticas. Evidentemente que essa união não foi uma tarefa pura e simples de aglutinar, mas exigiu a retomada das entrevistas como um todo para que o sentido do texto não se perdesse nos seus fragmentos.

A seguir, um dos pré-indicadores elaborados, com os respectivos indicadores e excertos exemplificativos.

 


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Os Pré-Indicadores foram: Escuta ativa como a maior modificação percebida, Modificação na didática, Modificações na linguagem, Mudança mais marcante - encarar o conflito, Não exposição do aluno como aprendizagem marcante, Dificuldade de avaliar se houve mudança na própria prática; necessidade de impor limites, tentativa do uso das sanções, Ampliação do conhecimento sobre como mediar conflitos, mas não especifica, mais autocontrole, Modificações na linguagem, atitude menos coercitiva ao lidar com os alunos.

O terceiro movimento foi a construção dos Núcleos de Significação que consistiram na síntese dos Indicadores, fundindo os temas em agrupamentos mais amplos. Para isso foram realizados novos mergulhos nos pré-indicadores e nos trechos mais significativos. Recorreu-se novamente às entrevistas para checar se o Núcleo concebido correspondia ao discurso dos participantes. De acordo com Aguiar e Ozella (2006), o objetivo é elaborar um número mínimo de Núcleos que expressem o máximo possível os aspectos centrais que compõem os elementos que constituem esses docentes e que estão implicados em suas práticas. Na elaboração dos Núcleos, inicia-se o processo interpretativo e inferencial. Como se pode notar, em todas as etapas o movimento não foi linear, mas repleto de idas e vindas e, assim, a etapa final culminou com a construção dos três Núcleos de Significação, assim denominados: Núcleo 1 - Práticas em transformação; Núcleo 2 - Práticas que persistem; Núcleo 3 - A convivência que grita. No presente trabalho apresenta-se o Núcleo 1 - Práticas em transformação.

 

RESULTADOS

Foram considerados como integrantes desse núcleo, as práticas docentes em relação aos problemas de convivência que são menos coercitivas e envolvem maior autocontrole do professor, maior abertura para o diálogo, questionamentos, oferecimentos de escolhas de atuação, reparação dos atos, oportunidades de protagonismo do aluno, busca conjunta de soluções para alguns problemas.

Constatou-se que a modificação dessas práticas esteve presente dentre aqueles professores que possuem, como objetivos gerais educativos, o desenvolvimento da autonomia, a formação política e cidadã do aluno. Seguem alguns excertos que sustentam tal análise:

... Primeiro por essa ideia de ter tudo a ver comigo, de trabalhar as assembleias, de pensar de uma maneira mais democrática. Fui sempre pela ideia da democracia...

Agora está melhor porque não bato tanto de frente com ele. Quando o chamei para conversar e falei olha, quando você anda na sala fora de hora você incomoda outras pessoas, não só você. Você pode ir no banheiro a hora que você quiser, não vou te proibir, mas saia de maneira disfarçada, você não precisa avisar todo mundo que vai ao banheiro, seja mais discreto. Conversei... daí a segunda vez ele ficava incomodando toda hora, daí chamei ele e disse: você percebe como está me incomodando toda hora? Se você não dá conta de ficar atento, de prestar atenção na aula eu prefiro que você saia, quando você tiver melhor condição você volta. Acho que hoje ele já percebe. Falo está incomodando ele já percebe. Daí digo você precisa sair ou você acha que consegue ficar? Ele fala... não, não ou então ele fala... vou sair. E é engraçado que ele volta.

Comecei a pensar assim: que regra me incomoda? Por que me incomoda. Daí me pergunto: por que tem professor que impede de pôr boné? Daí me pergunto: por que um dia controlei banheiro? (Fabiana)

Os vários excertos da professora Fabiana foram apresentados, pois permitem relacionar seus objetivos educacionais com as mudanças nas práticas sinalizadas por ela. Ela indica, em vários trechos da entrevista, seu ideal de educação: formar pessoas melhores. Formulado dessa maneira, esse objetivo poderia indicar a educação para a obediência, por exemplo. Contudo, ela concebe o educador como alguém que pode oferecer "muitas possibilidades para o aluno". Isso, sem dúvida, lhe traz liberdade para escolher conteúdos e formas de ensinar. Ela não está presa a regras burocráticas, pois como afirma tem um "leque de possibilidades" (Fabiana). Além disso, essa docente explicita seu ideal de democracia.

A exclusão temporária do grupo ou da atividade, que é uma sanção por reciprocidade, foi indicada pelos docentes, em geral, como uma modificação da prática que tem trazido bons resultados no sentido de auxiliar o aluno a desenvolver o autocontrole e a perceber as consequências de seus atos. Além disso, é uma forma de exercer a autoridade, estabelecendo limites e oferecendo possibilidades de escolha aos alunos. Os docentes são cuidadosos com a linguagem quando só o pedido de colaboração já não surte mais os efeitos esperados, bem como evitam censurar os alunos em público, preservando sua auto-imagem. Ao agirem dessa maneira, eles favorecem a construção de relações de confiança entre eles e os alunos, componente importante para o reconhecimento da autoridade.

Outra modificação interessante constata danos depoimentos a respeito de suas práticas é que os professores estão envolvendo mais os alunos na resolução de seus conflitos interpessoais e até mesmo nas transgressões às regras, como pode ser visto no trecho, a seguir.

Como a gente vai fazer para toda aula você trazer esse caderno? Daí um deles falou, professora é melhor deixar aqui na escola que minha casa é uma bagunça, eu não acho nada, minha mãe pega tudo mesmo, meu irmão pega, e uma bagunça, então posso deixar aqui na escola? Falei, pode, mas a gente vai ter que ver onde, vamos fazer o seguinte, conversar com a professora de sala e ver se a gente pode guardar no armário dela. (Carla)

Uma das dificuldades, relatadas por Carla, é os alunos trazerem o material para suas aulas. Como ela é professora especialista e só ministra aula uma vez por semana em cada turma, é muito comum os alunos se esquecerem de levar o caderno para sua aula. Essa regra para ela é crucial pois facilita sobremaneira a organização e sequência das atividades. Ela afirma que, agora, "com seu jeito Vivaética de ser", ela busca garantir o cumprimento da regra, envolvendo o aluno na resolução do problema. É isso o que ela almeja quando pergunta a ele o que poderia ser feito para lembrar de trazer o caderno, buscando a autorregulação do comportamento. Há mais um aspecto a ser analisado: a escuta ativa e respeitosa da professora. Ela não tece críticas à organização da casa do aluno, apenas ouve e considera a informação relevante. Na sequência do relato, ela termina por resolver o problema, indicando uma solução. Mas, sem dúvida, isso já é indicativo de mudanças nas intervenções de Carla.

Outra característica dessas práticas em transformação é o que foi denominado "protagonismo nascente", ou seja, o reconhecimento e a tentativa docente de empregar metodologias que requeiram maior participação do aluno. A frase, extraída da entrevista do professor Caio, "Professor, vamos brincar de morto-vivo hoje?", ilustra um pouco essa ideia. Com essa preocupação, a professora Vivian afirma:

Penso numa atividade que eles tenham que fazer que não seja cansativa ou monótona demais, eu já tentava fazer; mas, às vezes, eu desistia porque dava muito trabalho. Às vezes, eu tentava, dava errado, tentava de novo e agora tento e vou tentando até o negócio dar certo. (Vivian, novembro/2015)

É possível inferir que esses docentes levam em consideração a importância da motivação para o engajamento dos alunos nas atividades. E, que para motivá-los, há a necessidade de um bom planejamento, de modificações, adaptações. Em conversa informal com a gestora da escola, esta expressou com entusiasmo sua percepção de que ela tem presenciado os professores aplicando atividades fora da sala de aula, em pequenos grupos, e que ela observou os alunos motivados com essas atividades.

Outro elemento importante desse núcleo em análise é o aprimoramento de práticas de participação que já estavam em curso, como é o caso das assembleias. O programa previa as assembleias de alunos, mas os próprios professores de referência foram percebendo a necessidade da realização de assembleias de caráter mais amplo, como as de segmento e as docentes. A realização dessas assembleias foi avaliada como positiva pela equipe, porém com a necessidade de ajustes na condução, principalmente porque alguns docentes criticaram a interrupção da fala dos alunos pelos adultos presentes. Além da interferência excessiva, eles avaliaram a importância de se elaborar um protocolo para a realização da assembleia que contemplasse os encaminhamentos para a resolução dos problemas, os responsáveis por eles e as datas, uma vez que, em algumas situações, as resoluções das assembleias não se efetivaram por falta de organização.

Há outro significado que compõe o Núcleo Práticas em transformação: o autocontrole. As frases ditas pela docente Karina, na entrevista, sintetizam essa característica: "Agora eu não deixo subir o sangue" e "Sempre fui muito próxima de meus alunos, mas ouvir é uma coisa que eu não imaginava". A maior parte dos professores assume estar mais aberta para ouvir os problemas interpessoais dos alunos, encarando-os como aspecto integrante do processo educativo. As transgressões às regras, as provocações, as exclusões, as incivilidades são agora melhor compreendidas por esses docentes que já se sentem capazes não só de identificá-los, como também de planejar a intervenção. Tal análise pode ser constatada na fala de Íris.

A grande sabedoria desse processo, o grande ganho, foi que a gente aprendeu a pensar antes. A gente aprendeu a ter controle sobre a situação. Se colocar no lugar deles e ter uma reserva emocional. Foi o grande ganho da Vivaética. (Íris)

Para Íris, as propostas de formação possibilitaram que ela pudesse ampliar sua compreensão do adolescente, considerar a perspectiva do aluno, suas ideias e sentimentos. Ao considerar a perspectiva do aluno e ter discutido no curso de formação novas abordagens, a professora pôde construir o que ela denominou "reserva emocional".

Essa docente, como os demais, aponta que agora tem mais consciência da importância de uma comunicação verbal e não verbal respeitosa com os alunos.

 

DISCUSSÃO

O presente estudo teve por objetivo conhecer os sentidos e os significados dos relatos das práticas docentes, atribuídos por educadores participantes de um curso de formação para o trabalho com a convivência na escola.

O estudo permitiu identificar as práticas em transformação relatadas pelos professores. Em consonância com os achados de Vinha et al. (2016), elas se referem à maneira como os professores encaram e lidam com os problemas de convivência existentes na sala de aula. O maior autocontrole do professor, a escuta mais ativa, o oferecimento de escolhas de atuação, a tentativa de mediar conflitos e de envolver os alunos na resolução dos problemas demonstram o início de modificação de suas práticas e uma possível modificação da concepção de autoridade. Ao estudarem as características dos conflitos entre adolescentes, as causas da indisciplina, os aspectos que favorecem a incivilidade e as possíveis formas de atuação, os professores puderam ampliar seu repertório de atuação que antes era baseado no conselho, punições e transferência de responsabilidade para as famílias, como já identificou Vinha (2013) em outras pesquisas. Em geral, os professores temem agir de modo menos autoritário e perder o controle da sala de aula.

Algumas contribuições do estudo para a implantação de programas de formação, em especial, na área da convivência escolar podem ser indicadas. O primeiro ponto que se destaca é a necessidade de se planejar as ações a longo prazo para que sejam possíveis mudanças mais aprofundadas nos significados e sentidos docentes em relação às suas práticas. Em um ano, foi possível sensibilizar para o diálogo, auxiliando a escola a organizar os espaços de assembleias; ampliar a escuta ativa de alguns professores, contribuindo para que eles compreendam como os jovens se relacionam e as dificuldades que eles enfrentam; indicar e refletir com os professores sobre intervenções pedagógicas que dificultam as relações respeitosas e de confiança. Em um ano,foram construídas algumas possibilidades e a sensibilização para a importância da construção de relações de qualidade na escola, mas não foram mudados os significados e sentidos relativos à ação docente, necessários para a consolidação de práticas mais democráticas

Outro elemento a salientar é a importância do reconhecimento dos saberes docentes, seus objetivos, o sentido de suas práticas, para que elas possam ser, de algum modo, alinhadas com as propostas do projeto. Alguns professores desejavam que o programa do curso fosse construído com eles. Apesar de os formadores estarem sensíveis às necessidades das escolas, o plano foi construído ao longo do ano. Os professores se sentiram perdidos, não tinham clareza para onde estavam caminhando. Tal incômodo poderia ter sido minimizado se o programa do curso fosse organizado com os professores participantes.

É importante, ainda, frisar que as práticas não são modificadas se os significados e os sentidos atribuídos a essas práticas não o forem. E que isso não se realiza sem conflitos, negociações, dores... Deve-se, ainda, dar o tempo que os professores precisam, acolher suas resistências. São necessários momentos em que os professores reflitam individualmente e, depois coletivamente, sobre seus objetivos educacionais e como eles se relacionam com suas práticas pedagógicas.

 

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