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Psicologia da Educação

versão impressa ISSN 1414-6975versão On-line ISSN 2175-3520

Psicol. educ.  no.52 São Paulo jan./jun. 2021

https://doi.org/10.23925/2175-3520.2021i52p44-53 

ARTIGOS

 

Queixa escolar: uma análise dos encaminhamentos de alunos aos serviços de saúde

 

School complaint: an analysis of the referrals of students to health services

 

Queja escolar: un análisis de los encaminamientos de alumnos a los servicios de salud

 

 

Euristela Barreto SodréI; Lucivanda Cavalcante Borges de SousaII; Barbara Eleonora Bezerra CabralIII

IUniversidade Federal do Vale do São Francisco - UNIVASF - Juazeiro - BA - Brasil; stelasodre@hotmail.com
IIUniversidade Federal do Vale do São Francisco - UNIVASF - Juazeiro - BA - Brasil; lucivanda.borges@univasf.edu.br
IIIUniversidade Federal do Vale do São Francisco - UNIVASF - Juazeiro - BA - Brasil; barbara.cabral@univasf.edu.br

 

 


RESUMO

Fundamentada na perspectiva da psicologia escolar e educacional crítica, a presente pesquisa, realizada em um município baiano, objetivou conhecer as concepções de educadores e psicólogos sobre o encaminhamento das crianças com queixa escolar para serviços de saúde e investigar as modalidades de atendimento a esse fenômeno. De caráter qualitativo e exploratório, foi realizada uma entrevista semiestruturada, aplicada de forma individual, totalizando 12 participantes, cujas respostas foram organizadas em categorias temáticas relacionadas aos objetivos da pesquisa. Nas entrevistas, prevaleceu a concepção de que questões de ordem educacional e também familiares/sociais justificam os problemas de escolarização das crianças, cujo encaminhamento aos serviços de saúde tem sido a alternativa possível, mas não a ideal para avaliação e intervenção. Espera-se que os referidos achados suscitem novos estudos sobre o tema investigado, especialmente no município em questão, que favoreça o fortalecimento dos pressupostos da psicologia escolar/educacional crítica no meio acadêmico. Ressalta-se ainda a necessidade de fomentar essa discussão de forma intersetorial na rede municipal de educação e saúde, problematizando a compreensão e atendimento às queixas escolares, e que se possam produzir práticas psicológicas e educativas críticas e emancipadoras.

Palavras-chave: Queixa escolar; Psicologia escolar e educacional crítica; Serviços de saúde; Psicólogos; Educadores.


ABSTRACT

Deemed on the Psychology Schooling and Education perspective, this study was carried out in a city located in Bahia. The Study aimed to understand the conceptions of the Psycologists and Educators about the routing of children with scholar complain to health services and this study also purposed to assess the treatment models related to this phenomenon. From a qualitative and exploratory nature, semi structered interviews were conceded individually with 12 subjects, whose responses were organized into thematical categories related to the objectives of the present research. The data from interviews showed that a comprehension concept about educational and social/family issues justifies the children scholarization problems and the routing to health devices is seen as a possible alternative although this isn't the best evaluation nor intervention. It is expected that the data found here might entail other studies about the problem that was investigated on this paper and it's also expected that this study strenghs the Psychology Schooling and Education assumptions at academic level. It is necessary to emphasize the need to promote this discussion intersectorally in the municipal network, problematizing the understanding and attendance to scholar complain in order to promote, critical and emancipatory pschological practices.

Keywords: Scholar Complain; Psychology Schooling and Education; Health services; Psychologies; Educators.


RESUMEN

Fundada en la perspectiva de la psicología educativa/escolar crítica, la presente investigación, realizada en una ciudad de Bahia, objetivó conocer las concepciones de educadores y psicólogos sobre el encaminamiento de los niños con queja escolar para servicios de salud e investigar las modalidades de atención a ese fenómeno. De carácter cualitativo y exploratorio, se realizaron encuestas con educadoras y psicólogas, totalizando 12 participantes cuyas respuestas fueron organizadas en categorías temáticas relacionadas a los objetivos de la investigación. En las entrevistas, prevaleció la concepción de que cuestiones de orden educacional y también familiares/sociales justifican los problemas de escolarización de los niños, cuyo encaminamiento a los servicios de salud ha sido la alternativa posible, pero no la ideal para evaluación e intervención. Se espera que estos hallazgos susciten nuevos estudios sobre el tema investigado, especialmente en el municipio en cuestión, que favorezca el fortalecimiento de los presupuestos de la psicología escolar / educativa crítica en el medio académico. Se resalta la necesidad de fomentar esa discusión de forma intersectorial en las escuelas públicas municipales, problematizando la comprensión y atención a las quejas escolares, y que se puedan producir prácticas psicológicas y educativas críticas y emancipadoras.

Palabras clave: Queja escolar; Psicologia escolar e educacional crítica; Servicios de salud; Psicólogos; Educadores.


 

 

Introdução

A legislação nacional preconiza o direito dos brasileiros ao mais alto nível de ensino, sendo atribuído ao Estado o cumprimento de função enquanto um dever (Brasil, 1996). No entanto, esse dever não tem se cumprido, uma vez que é nas unidades de ensino da esfera pública que surgem os principais clamores por ajuda, expressos pelas greves docentes. A evasão das crianças e a violência ao patrimônio público também parecem sintomas que revelam o mal-estar presente na educação pública, o que a tem tornado alvo de muito debate e investigações.

Assim, o termo fracasso escolar surge como uma forma de nomear o crônico problema educacional (Collares & Moysés, 2014). Todavia, o discurso dominante que aborda o fracasso não toca nessas feridas expostas; ao contrário, direciona como um problema individual dos escolares (Viégas, 2014). Reafirmando uma visão naturalizante dos problemas de aprendizagem e desresponsabilizando uma estrutura econômica e social na produção da queixa escolar (Carias, Mezzalira e Guzzo, 2016). Essas queixas são entendidas como "as demandas formuladas por pais, professores e coordenadores pedagógicos acerca de dificuldades e problemas enfrentados por estudantes no ambiente escolar" (Dazzani, Cunha, Luttigards, Zucoloto & Santos, 2014, p. 426).

Diante do entendimento de que essas queixas se apoiam numa base patológica, esses alunos estão sendo conduzidos aos serviços públicos de saúde para serem avaliados (Carneiro & Coutinho, 2015; Encarnação Júnior, 2015). A chegada dessas queixas aos serviços de saúde configura-se como um problema individual pertencente à criança encaminhada, desconsiderando o que se passa no cotidiano escolar desse sujeito (Proença, 2004). Além disso, as escolas públicas não dispõem de psicólogo, pois a maioria dos municípios brasileiros não incluiu esse profissional na rede de ensino (Guzzo, Costa & Sant'Ana, 2015), o que justifica a busca pelo psicólogo em outras instituições, ou seja, a ausência de política pública para regulamentar isso. Somente em 2019 é que foi criada e aprovada a lei federal 13.935, encabeçada pelo Conselho Federal de Psicologia e outras entidades, que visa a garantir a inserção do psicólogo e do assistente social no quadro de profissionais da educação das unidades escolares. Logo, até o momento os municípios não possuíam respaldo legal para a inclusão desses profissionais.

A adesão ao modelo psicologizante ou medicalizante do atendimento à queixa escolar reporta à compreensão de mundo que explica a realidade a partir das estruturas psíquicas, negando as influências sociais do psiquismo (Proença, 2004). Tal modelo inscreve-se no debate intitulado 'medicalização da vida', o qual, como destaca Ribeiro (2014), corresponde a uma visão de mundo que nega a dinâmica e diversidade do ser humano, não compreendendo a multiplicidade de fatores em interação e o processo sócio-histórico de constituição dessa dinâmica. Sua articulação com a medicalização da educação refere-se à produção de doenças do não-aprender para crianças e adolescentes (Collares & Moysés, 2014).

Medicalizar diz respeito, mas não se restringe à prescrição de fármacos. No entanto, o aumento do número de crianças e adolescentes com diagnóstico de TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade) está associado à venda de psicofármaco - incluso no tratamento para esse transtorno (Metilfenidato no tratamento de crianças com TDAH). Preocupa o fato de o Brasil figurar como grande importador desse medicamento, de forma que, em junho de 2014, o país registrou a venda de 133.810 caixas de Cloridrato de Metilfenidato (Harayama, Gomes, Barros, Galindo & Santos, 2015).

Considerando tais informações, inquieta o quanto as questões escolares estão relegadas a uma interpretação psicologizante, tendo os rótulos como desdobramento inevitável dessa abordagem. Desse modo, surge a preocupação com a atitude diagnóstica e sua repercussão sobre os escolares, principalmente os iniciantes, sobre os quais incide as expectativas sobre desempenho acadêmico, baseando-se em padrão de desenvolvimento (Proença, 2004). Por outro lado, não significa negar a existência dos transtornos, mas repensar a natureza dos mesmos. O que se defende não é desconsiderar as bases biológicas do comportamento humano, mas problematizar a explicação da subjetividade restrita aos aspectos orgânicos (Meira, 2012). É nessa lógica que se situa a Psicologia Escolar e Educacional Crítica, que, ao se contrapor à visão medicalizante, propõe um debate mais amplo, no qual as dificuldades surgidas nos processos escolares das crianças devem ser percebidas não de modo individual mas como um fenômeno complexo, alicerçado em multideterminações (Viégas, 2016).

Diante disso, torna-se, então, necessário conhecer como os profissionais da saúde e da educação concebem as dificuldades das crianças e adolescentes em seu processo de escolarização. A análise dos processos de aprendizagem deve também envolver a problematização dos profissionais de educação, tendo em vista que nos cursos de Pedagogia se enfatizam as explicações psicológicas aos problemas escolares (Proença, 2004).

A esse respeito, os resultados de uma pesquisa de rastreamento bibliográfico sobre a produção em psicologia escolar/educacional, realizada por Nunes, Alves, Ramalho e Aquino (2014), revelaram que apenas 12,9% dos artigos apresentavam uma discussão que rompe com a lógica patologizante dos problemas educacionais. Em outros estudos (Cavalcante & Aquino, 2013; Cruz & Borges, 2013) foi percebido que os psicólogos que atuam na rede pública (saúde, educação, assistência social) com demandas de queixa escolar, possuem uma prática pautada numa compreensão clínica/tradicional focada em intervenções isoladas em crianças, pais, professores pressupondo pois, uma visão fragmentada da queixa escolar.

Sob essa perspectiva, na presente pesquisa, questionou-se como profissionais envolvidos no encaminhamento e atendimento às crianças com queixa escolar, a exemplo dos educadores e psicólogos, compreendem a produção dessa queixa. Como são avaliadas essas crianças? O que pensam sobre o encaminhamento de crianças e adolescentes com queixa escolar para os serviços de saúde?

Diante dessas considerações sobre a queixa escolar e as possíveis implicações sobre o processo educativo de crianças e adolescentes, como também da importância do compromisso dos profissionais da Educação e da Saúde nesse processo, o presente estudo teve por objetivo analisar as concepções de educadores e psicólogos sobre o referido processo. Pretende-se trazer uma contribuição para a produção de conhecimento em psicologia, a partir da abordagem da Psicologia Escolar e Educacional Crítica (Collares & Moysés, 2014; Viégas, 2016) e, ao mesmo tempo, uma provocação a ser levada aos sistemas de educação e de saúde do município pesquisado.

 

Método

A pesquisa compreende uma abordagem qualitativa, de cunho exploratório e com base de dados coletados em campo, sendo este as Unidades Básicas de Saúde e Unidades Escolares onde as entrevistas foram realizadas.

Participantes

Participaram desta pesquisa 12 profissionais dos serviços de saúde e de educação, envolvidos no encaminhamento da queixa escolar de crianças e adolescentes da rede municipal de um município baiano. Desse total, três eram psicólogos atuantes na Atenção Básica à Saúde (NASF e Residência), um psicólogo da Atenção Especializada e um da Educação, além de sete professoras que atuavam no serviço de Atendimento Educacional Especializado (A.E.E.) nas unidades de ensino do mesmo território das Unidades Básicas pesquisadas, correspondendo a 23% do corpo docente dessa modalidade de atendimento. Todos os participantes são do sexo feminino, com faixa etária entre 25 e 53 anos (M = 41 anos). O tempo de serviço dessas profissionais variou, entre as psicólogas, entre um ano/oito meses e oito anos (M = 5 anos) e entre as educadoras variou entre cinco e nove anos (M =7,2 anos). Antes da realização da entrevista, foi apresentado a cada participante o TCLE.

Contexto da pesquisa

A pesquisa foi realizada em quatro escolas municipais de ensino fundamental, três Unidades de Saúde e Centro de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSi). A Rede de Atenção Básica e Especializada à Saúde foi escolhida por saber, via interlocução prévia à pesquisa com profissionais de saúde e educação, que as crianças e adolescentes identificados para avaliação psicológica são encaminhados para as Unidades Básicas de Saúde (UBS), onde se conta com o serviço de psicologia pelo Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF), bem como ao CAPSi, local para onde se destinam muitos dos encaminhamentos de toda rede municipal, uma vez que as escolas municipais não dispõem de psicólogo em seu quadro funcional. Essas informações possibilitaram mapear a rede e identificar os pontos centrais do campo de pesquisa.

Instrumentos

Para as entrevistas, foi utilizado um roteiro semiestruturado, constituído por sete questões centradas nos objetivos da pesquisa e na literatura da Psicologia Escolar e Educacional Crítica. Além do roteiro da entrevista, foi utilizado um gravador de voz para registro das falas.

Procedimentos para coleta e análise dos dados

Após autorização do Comitê de Ética e Deontologia em Estudos e Pesquisas (CEDEP-UNIVASF), sob protocolo de número 58249416.1.0000.5196, iniciou-se com o agendamento das entrevistas, mediante auxílio das Secretarias Municipais e direção/coordenação das escolas. Em dia e horário pré-agendados com cada participante, iniciou-se a abordagem com a apresentação do Termo de Compromisso Livre e Esclarecido (TCLE) e, após consentimento e assinatura do mesmo, deu-se início à entrevista. Foram cumpridas todas as exigências pertinentes à pesquisa com humanos, conforme Resolução 466/2012 (Conselho Nacional de Saúde, 2013).

As entrevistas ocorreram, com as professoras, na própria unidade escolar, na sala de Atendimento Educacional Especializado e, com as psicólogas, nos serviços públicos onde atuam, cujo tempo médio de realização das entrevistas foi de 27m26s. Foram 11 entrevistas gravadas em áudio e uma digitada, transcritas e submetidas a leituras sistemáticas. Primeiramente uma leitura flutuante das respostas, seguida de uma leitura exaustiva, em busca das unidades de registro, que são os recortes representativos do texto. A partir das respostas, foram feitas diferenciações entre os dados de cada participante - inserindo-os em categorias distintas. As falas semelhantes foram reunidas numa mesma categoria, evidenciando o número de vezes em que ela ocorreu. Tais categorias foram criadas a partir dos objetivos do estudo e na literatura estudada e, em seguida, discutidas com base na perspectiva crítica da psicologia escolar/educacional.

 

Resultados

Considerações sobre o atendimento Educacional Especializado e a rede Municipal de Saúde

Os educadores na modalidade de Atendimento Educacional Especializado (A.E.E) atuam em unidades escolares para atender crianças e adolescentes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento, altas habilidades ou superdotação (Brasil, 2011a). Para ser inscrita nesse atendimento, a criança é encaminhada pela escola para avaliação médica e recebe um laudo que comprove a deficiência. No entanto, alunos com queixas diversas, principalmente relacionadas a dificuldades de aprendizagem e problemas de interação/comportamento, também são direcionados para essas educadoras avaliarem e, caso elas entendam que precisam de mais investigações, indicam a criança para avaliação médica ou psicológica.

O serviço de psicologia é realizado pelo profissional do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), que fará o atendimento ao escolar dentro das possibilidades que seu campo de trabalho permite. Ressalta-se que, de acordo com a Portaria 2.488/2011, "os NASFs fazem parte da atenção básica, mas não se constituem como serviços com unidades físicas independentes ou especiais, e não são de livre acesso para atendimento individual ou coletivo" (Brasil, 2011b). Diante disso, o serviço do NASF, sobretudo o serviço psicológico, não comporta acompanhamento individual de todas as demandas, costumando-se enviar os escolares para centros de especialidades (neuropediatra, fonoaudiólogo) ou CAPSi, onde encontrarão psiquiatra, psicólogo e psicopedagogo. A equipe multiprofissional do CAPSi do município estudado conta ainda com enfermeiro e assistente social e, conforme informado no serviço, qualquer um desses profissionais pode realizar a entrevista de triagem e encaminhar o usuário para outro profissional, se julgar necessário.

Na seção seguinte, estão expostos os resultados da análise das entrevistas, que, por sua vez, está subdivida em eixos temáticos de acordo com os objetivos do estudo.

Sobre as entrevistas

Nesta seção, apresenta-se a análise das respostas das entrevistas, organizadas em categorias construídas a partir da interpretação das falas das participantes e dos objetivos da pesquisa. A partir dos objetivos nomearam-se eixos temáticos, os quais aglomeram as categorias.

No eixo temático Fatores relacionados à produção da queixa escolar, ao serem questionadas sobre quais fatores poderiam justificar uma queixa atribuída às crianças, as análises permitiram a classificação nas categorias a seguir. Entre as educadoras, contabilizaram-se (a) o contexto educacional (50%) e (b) questões sociais/familiares (50%). As psicólogas, por sua vez, trazem respostas que foram organizadas nas categorias: a) contexto educacional (66%), (b) questões sociais (17%) e (c) centrado no aluno (17%).

A categoria contexto educacional, que surge com maior frequência, abrange respostas que falam sobre (a) a formação do professor, (b) o contexto escolar e (c) o sistema educacional. Por sua vez, a categoria questões sociais/familiares, mencionada por seis educadoras, referiu-se ao entorno familiar dessas crianças, que pertencem a uma classe socioeconômica desfavorecida. Uma psicóloga aponta esse fator voltado ao uso de substâncias psicoativas como elemento que distancia o adolescente da escola. Em relação ao motivo da queixa, na visão das psicólogas, a categoria centrado no aluno surgiu numa fala cuja psicóloga reconhece que, depois de excluir fatores externos, há de se pensar na possibilidade de o aluno ter déficit cognitivo que justifique sua dificuldade de aprendizagem. Algumas participantes consideraram ainda que os problemas nessas famílias geram conflitos emocionais nas crianças, que vão repercutir em seu processo de escolarização, requerendo, portanto, suporte psicológico para elas. Percebeu-se que algumas participantes compreendem a produção da queixa como uma questão multifatorial e não apenas uma causa, o que justifica o número de respostas (18) ser maior do que o total de participantes (12).

No eixo temático Modalidades de atendimento à queixa escolar, ao serem interrogadas sobre como atendem as crianças que lhes chegam com queixa escolar, surgiram três categorias, a saber: das educadoras, foram (a) as estratégias pedagógicas (57%), (b) não avalia e encaminha (28%) e (c) entrevista com criança (14%); e das psicólogas, duas modalidades: (a) entrevista com pais (50%) e (b) atendimento à criança (50%). As estratégias pedagógicas são realizadas por meio das seguintes atividades: jogos de raciocínio e memória, atividades de língua escrita e oral, entre outros, pautando-se no relato do professor que fez a solicitação de apoio. No levantamento bibliográfico feito por de Malaquias e Sekkel (2014) sobre pesquisas que realizaram enfrentamento aos problemas de escolarização, identificou-se que as estratégias pedagógicas - a exemplo da atuação individual do professor através da maior aproximação e valorização das tentativos do aluno - apresentaram, em maioria, resultados efetivos em comparação a outros modelos de enfrentamento (ações político-administrativas ou ações extraescolares como encaminhamentos). Nas respostas das psicólogas, surgiu basicamente o recurso de Entrevistas com os pais, nas quais levantam-se informações acerca da dinâmica familiar e escolar que envolvem a queixa descrita, mas também no Atendimento às crianças como forma de conhecê-las minimamente e poder fazer possíveis orientações à escola e aos pais/responsáveis.

Quanto às formas de intervenção sobre os casos que lhes chegam, uma das psicólogas diz fazer trabalho em grupo, pois o serviço no qual atua lhe confere esse suporte. Na atenção básica, faz-se escuta com pais e as crianças e breves orientações à escola, sendo tudo bastante limitado, uma vez que precisam atender à demanda do próprio serviço de saúde. Quanto às educadoras, por atuarem fundamentalmente com crianças com deficiência, aquelas com dificuldades de aprendizagem não são seu público-alvo. No entanto, relatam que tentam dar algum apoio às crianças e orientações às professoras, pois se sentem mobilizadas com tantos pedidos de socorro.

O último eixo Concepção das participantes sobre o encaminhamento da queixa escolar para atendimento nos serviços de saúde revelou que as respostas das participantes sobre o encaminhamento das demandas escolares para o serviço de saúde, as falas centrais das educadoras foram interpretadas como sendo: (a) avaliação positiva (71%), (b) importância do psicólogo e psicopedagogo na escola (29%). No grupo de psicólogas, surgiram as categorias (a) risco de medicalização (60%) e (b) necessidade de diálogo intersetorial (40%). As respostas mais recorrentes entre as educadoras foram entendidas como avaliação positiva, conforme indicado anteriormente, ou seja, como necessários para diagnosticar transtornos do desenvolvimento e aprendizagem. Tais falas partem do entendimento delas de que os problemas da criança na escola (aprendizagem, socialização, comportamento, humor) podem ser melhor avaliados por profissionais de saúde (médico, psicólogo, psiquiatra, neuropediatra), esperando que eles possam encontrar na criança a causa do problema.

 

Discussão

Os resultados provenientes das entrevistas possibilitam a discussão das categorias do seguinte modo: no eixo temático que discute Os fatores relevantes à produção da queixa escolar destacou-se a categoria contexto educacional, surgida no grupo das professoras, chamando a atenção para a seguinte fala de uma participante: "O método, tá errado. O tempo que a pessoa fica na escola, tá errado. [...] O problema da queixa, da escola, é o sistema de ensino brasileiro, que é um lixo" (ed. 3). Assim, ao considerar o ensino e a aprendizagem como processos relacionais, não haveria por que olhar apenas para o que o aprendiz não adquiriu. Reconhece-se, pois, a importância de se relativizar a avaliação do desempenho escolar discriminando o que é da criança e o que pode ser um problema no ensino (Carias et al., 2016). Percebe-se na fala da participante a compreensão de que o sistema/contexto escolar no qual o sujeito está inserido deve ser incluído na investigação do não-aprender. Ainda nesse eixo temático ressalta-se a fala de uma educadora que ilustra bem a categoria questões sociais: "Tem aqueles meninos que vêm com uma série de desvio... desajuste. Não são mental, mas social, porque aqui tem uma série de drogas, muitos recicladores, [...] quer dizer, uma série de problemas que eles vivem na casa deles" (ed. 5). Justificar o insucesso da criança na escola pelo fator social/familiar remete à perspectiva da teoria da carência cultural, que se sustenta na ideia da desigualdade social como explicação para distúrbios do desenvolvimento, fundamentando-se em preconceitos e estereótipos sobre a criança (Patto, 2008).

Percebe-se, portanto, a impossibilidade de se pensar o fracasso escolar apenas por uma via de explicação, por ele ser um fenômeno multifacetado, diferente do que se vê na literatura (Cavalcante & Aquino 2013), cuja queixa escolar é vista sob uma perspectiva reducionista, cujas explicações são buscadas em problemas psíquicos no aluno ou na sua família, pobre e desestruturada.

Na sessão Modalidades de atendimento à queixa escolar, a categoria estratégias pedagógicas pode ser bem representada pela seguinte narrativa: "Se for queixa de aprendizagem, uso recursos escritos. A avaliação é feita com recursos pedagógicos, haja vista minha formação em pedagogia e também experiência como alfabetizadora" (Ed. 2). Percebendo-se, pois, que a queixa é, em sua maioria, sobre dificuldade de aprendizagem, as educadoras utilizam recursos que podem gerar informações importantes sobre as habilidades da criança em relação à leitura, escrita e cálculo. Nessa sessão, um relato que se destaca na categoria Não avalia e encaminha é o seguinte: "Por que vou atender ele? Por que sou alfabetizadora? Não. O problema dele né comigo não. Talvez um acompanhamento com uma psicopedagoga possa ajudar, surtir efeito" (Ed. 3). Esse discurso fazia menção sobre a responsabilidade do professor da sala regular e não ao atendimento especializado. Por outro lado, a atitude de encaminhar para o psicopedagogo, por exemplo, já carrega em si a ideia de que há um problema de ordem psíquica a ser investigado. Ao reconhecer um aluno com dificuldades, é importante melhor esclarecimento sobre os encaminhamentos a outros serviços no sentido de refletir mais sobre as causas dessas dificuldades, mesmo que não se descarte uma causa orgânica (Scortegagna & Levandowski, 2004).

A categoria Entrevista com a criança é um modelo de atendimento de uma educadora que se distingue das outras formas de avaliar a criança: "Eu procuro deixar a criança bem à vontade. [...] que ela possa falar do que ela tá sentindo. [...] e vou abordando questões em relação à família [...]. E busco também qual a disciplina que ele mais gosta" (ed. 7). Apesar de esse relato ter surgido apenas na fala de uma educadora, essa forma de atendimento chamou a atenção por entender que outros conteúdos são considerados relevantes, para além da avaliação de habilidades acadêmicas.

Continuando as discussões sobre o eixo Modalidades de atendimento à queixa escolar, a categoria entrevistas com os pais revelada pelo grupo das psicólogas as quais valorizam as informações da relação familiar é um dado que pode ser encontrado em Marçal e Silva (2006), revelando nessa pesquisa que 37,5% dos psicólogos entrevistados afirmam que, ao receberem crianças com queixa escolar, orientam aos pais a respeito do acompanhamento escolar dos filhos, bem como esclarecimentos relacionados a limites. Destaca-se que, no atendimento à criança com queixa escolar, é importante que se inclua a escola no rol de investigação, uma vez que foi nesse contexto que se produziu a queixa. No estudo de Viégas, Freire e Bonfim (2018), todas as participantes - psicólogas de CAPSi - informaram fazer contato com a escola, além de realizarem o atendimento individual à criança. As entrevistas com crianças e pais são estratégias necessárias, porém não suficientes ao atendimento à queixa escolar, de forma que, nesses casos, é fundamental que a dinâmica escolar seja inserida nessa avaliação (Marçal & Silva, 2006).

Através do relato das psicólogas, identificou-se que, após esse contato inicial com a criança, ocorre o encaminhamento dos casos para outro dispositivo da rede ou intersetorial: da Unidade de Saúde para Núcleo de Atenção Psicossocial da Secretaria de Educação (NAPs) ou para o CAPSi, por exemplo. Isso tem ocorrido porque a atenção básica não tem estrutura profissional e material para realizar uma avaliação mais qualificada, escassez de tempo dos profissionais e alta demanda em saúde mental (Marçal & Silva, 2006).

O que se percebeu, portanto, sobre a forma de atendimento à queixa escolar é que o CAPSi acaba absorvendo a maior parte dos casos, de forma que poucos alunos são atendidos pelas professoras de A.E.E., quando estas conseguem encaixar alguma dessas crianças entre seus atendimentos às crianças com deficiência. Embora algumas educadoras compreendam que a produção da queixa escolar tem seu fundamento maior nas questões de ordem educacional, a busca por psicólogo na rede de saúde se dá para atendimento dos casos em que seus recursos pedagógicos não estão dando conta de avaliar/intervir (escolares com problemas emocionais, ou suspeitos de alguma psicopatologia, por exemplo). Como foi mencionado na fala das professoras, se houvesse psicólogo e psicopedagogo nas unidades escolares, muitos casos não seriam enviados à rede de saúde.

O último eixo temático, denominado Concepção das participantes sobre o encaminhamento da queixa escolar para atendimento nos serviços de saúde liderou a categoria avaliação positiva (71%), por entender que um profissional da saúde teria as ferramentas para investigar a causa das dificuldades das crianças que não foram identificadas pelos educadores. Nesse caso destaca-se a seguinte fala de uma das educadoras ao se referir às crianças que apresentam alguma dificuldade: "Eu não posso dizer o que ele tem, porque eu não sou clínica, eu sou pedagoga, sou psicopedagoga educacional, então, [...] se ela detectar realmente que o aluno tem uma dificuldade de aprendizagem, a gente pode encaminhar para o Núcleo de Atenção Psicossocial". O pronome "ela" citado na fala refere-se a um profissional da psicopedagogia da rede, cuja formação no trabalho clínico seria o indicado para fazer a avaliação/diagnóstico do aluno. Nessa condição, a fala da educadora traz a ideia de que será o psicólogo quem irá identificar, no mundo interno do aluno, a explicação para sua dificuldade. Proença (2004) critica essa postura, expressando que as dificuldades das crianças, com base em suas experiências escolares, têm sido interpretadas como sintomas provenientes de seu mundo interno. Há quem não concorde com a transferência das questões escolares para a saúde e defenda a "importância do psicólogo e psicopedagogo nas escolas" para resolver os casos: "Se houvesse equipe multidisciplinar na rede educacional, não precisava ir pra UBS" (ed. 2). Tal visão é presente na fala das professoras, que se sentem impossibilitadas de dar conta de tantas queixas, vendo no psicopedagogo e no psicólogo profissionais capacitados para atender, respectivamente, as crianças com dificuldade de aprendizagem e dar suporte emocional aos alunos e professores, situação que tem sido identificada em diferentes estudos/contextos brasileiros (Labadessa & Lima, 2017; Bassani & Viégas, 2020).

Nos depoimentos dos psicólogos, por sua vez, destacou-se a preocupação com os encaminhamentos dos escolares para os serviços de saúde por entenderem que a educação vem lidando com esse fenômeno numa lógica de desresponsabilização pelo fracasso escolar. Assim, a categoria que traduz esses relatos foi risco de medicalização, que surge nesse discurso: "Eu acho que as coisas têm uma conexão, mas eu vejo que esse encaminhamento muito rápido pra saúde é buscando, eu acho, que a linha da medicalização" (psi. 3). Essa resposta deixou evidente a compreensão de que o encaminhamento é um percurso que patologiza e medicaliza a educação, ao interpretar expressões diferentes como desvio do padrão normativo (Ribeiro, 2014). Outra linha de raciocínio levantada entre as psicólogas foi sobre a "necessidade do diálogo intersetorial" como forma de assistir às demandas da educação. "Eu vejo de maneira positiva, desde que seja um resultado corresponsável: família, escola e setor de saúde" (Psi. 1). Essa categoria foi construída por entender que as psicólogas apoiam a intersetorialidade como estratégia das duas redes dialogarem sobre um problema, não sendo uma forma de desresponsabilizar a escola, mas um meio da saúde oferecer apoio ao que aquela não está dando conta sozinha.

Diante desses dados, surge a preocupação a respeito do entendimento de que os problemas relacionados ao cotidiano escolar sejam uma responsabilidade dos serviços de saúde. O próprio termo "encaminhamento" carrega em si a compreensão da desapropriação da educação sobre suas questões, permitindo que o paradigma biomédico legisle sobre ela.

 

Considerações finais

Em relação ao encaminhamento das queixas escolares para os serviços de saúde alguns pontos valem ser ressaltados: destaca-se a compreensão de alguns psicólogos que se preocupam com essa conduta, pois percebem que tem chegado muito encaminhamento na rede municipal de saúde, que recai como uma certa transferência de problemas. Pontuaram ainda a dificuldade estrutural da rede de saúde para atender essa demanda de modo preciso. No que tange aos professores, buscam os profissionais de saúde por entenderem que os psicólogos e psicopedagogos, por exemplo, detêm instrumentos para melhor acessar a criança e identificar a natureza do problema de aprendizagem.

Vê-se, portanto, que entre os profissionais de psicologia já surge o entendimento sobre a responsabilidade da educação na produção da queixa escolar, bem como a respeito da medicalização da educação. Todavia, tal perspectiva ainda não aparece no discurso das educadoras de forma predominante e clara, embora se tenha percebido em algumas falas elementos que problematizam esse fenômeno. Reconhece-se que a rede de educação do município apresenta dificuldades para atender às inúmeras demandas de queixa escolar ocorridas nas unidades escolares.

A respeito das modalidades de atendimento à queixa (entrevista, atendimento, avaliação pedagógica), deve-se considerar a possibilidade de outras estratégias, como a articulação entre os profissionais de diferentes áreas para discutirem os casos de modo coletivo. Esta articulação contribuiria para se pensar nas múltiplas faces do fracasso escolar - como o cotidiano escolar, as práticas pedagógicas, as condições de trabalho dos profissionais, entre tantos outros fatores - e não apenas responsabilizar o aluno pela condição em que ele se encontra. Em razão disso, faz-se necessário que a escola converse sobre o assunto, levante dados e se proponha a olhar para as queixas sobre os alunos de forma diferente, problematizando o fenômeno, a fim de possibilitar a construção de práticas não medicalizantes. Sugere-se também conceder à criança espaço de fala, para além da averiguação de suas habilidades acadêmicas.

Espera-se que os referidos achados suscitem novos estudos sobre o tema investigado, especialmente no município em questão, de forma a explorar a fronteira Saúde e Educação na perspectiva da prática intersetorial, descortinando as problemáticas que atravessam essas redes e buscando na rede de educação os professores como interlocutores fundamentais. A contribuição social desta pesquisa está no sentido de alimentar o debate nos encontros intersetoriais, de forma a refletir o quanto a saúde tem legislado sobre as questões educacionais. Para tanto, a escola tem comprado o discurso da patologização da aprendizagem. Além disso, ressalta-se a necessidade de uma posição mais crítica frente ao cenário político do país, pois, à medida em que um governo toma decisões que desfavorecem a educação, vê-se um caminho cuja precarização da escola se constitui uma realidade mais evidente, de forma que os prejuízos decorrentes, traduzidos em evasão escolar, repetência, entre outros, consolidam o fracasso escolar. Em suma, essa pesquisa ressalta a necessidade de reinventar compreensões e práticas na Educação e na Saúde, em que se veiculem olhares complexos em função da existência de problemas multifatoriais no cotidiano escolar/educacional. Que os pressupostos da psicologia escolar/educacional crítica se firmem na academia, reforçando o exercício de uma prática psicológica crítica e superem a lógica patologizante, produzindo práticas psicológicas emancipadoras que promovam o bem-estar da criança dentro e fora da escola, além de um olhar crítico sobre a sociedade que temos.

 

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Recebido em: 09 Jul 2019
Aprovado em: 29 Jul 2021

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