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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. v.6 n.2 Rio de Janeiro dez. 2006

 

ARTIGOS

 

A Náusea e a psicologia clínica: interações entre literatura e filosofia em Sartre

 

Nausea and the Clinical Psychology: interactions between Literature and Philosophy in Sartre

 

 

Daniela Ribeiro Schneider*

Universidade Federal de Santa Catarina

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo aborda a relação entre as obras literárias e as obras filosóficas ou técnicas de Sartre. Um dos aspectos essenciais no conjunto da produção intelectual do existencialista foi a proposição de uma nova psicologia, concebida em outra ótica, que não os tradicionais modelo psicanalítico e empírico. “Psicanálise existencial” é a designação dada por Sartre ao método dessa psicologia, aplicado por ele em biografias de escritores famosos. Alguns de seus romances também foram concebidos no horizonte de sua psicanálise existencial, na medida em que realizam uma “radiografia psicológica” de seus personagens. As realizações nesse campo trazem contribuições consistentes para novas perspectivas para a psicologia clínica. È o caso do romance La Nausée, objeto principal de nossa análise, no qual realiza uma espécie de processo psicoterapêutico com seu principal personagem, Roquentin, trazendo importantes indicações de como deve ser uma clínica sartriana.

Palavras-chave: Jean-Paul Sartre, Literatura existencialista, Filosofia existencialista, Psicologia clínica.


ABSTRACT

This article is about the relationship between Sartre’s literature works and his philosophy or technique works. The core project in Sartre’s work was the proposal of the new psychology, conceived in a totally new way, different of the traditional psychoanalyze and empirical perspectives. “Existential Psychoanalysis” it’s de name of this psychology method, applied in biographies of well-known writers. Some of his novels were write on the horizon of this existential psychoanalysis, because they make a psychological X-ray of his characters. Sartre’s contributions acquire relevance to the field, allowing a new clinical psychology perspective. It’ s the case of The Nausea, principal object of our analyses. His principal character, Roquentin, carry out a kind of psychotherapy process, which involves important directions toward Sartrean Clinical.

Keywords: Jean-Paul Sartre, Existential literature, Existential philosophy, Clinical psychology.

 

 

RELAÇÃO ENTRE A OBRA LITERÁRIA E OBRA TÉCNICA EM SARTRE

Jean-Paul Sartre (1905-1980) tem uma obra bastante extensa, que abarca livros, textos e ensaios, tanto de ordem técnica, envolvendo áreas como a própria filosofia, a psicologia, a antropologia, quanto de ordem literária, envolvendo romances e peças teatrais, bem como obras de ordem política e de crítica cultural. Verificam-se constantes imbricações entre as obras de cunho literário e as de cunho técnico e político, pois o autor busca expressar através da arte as idéias filosóficas, psicológicas e políticas que defende, como forma de alcançar o leitor em sua liberdade de diferentes formas. Daí a noção de engajamento do escritor, por ele publicamente defendida (SARTRE, 1989).

Seus romances e peças teatrais são, portanto, fios condutores para a sua filosofia, colocando à disposição do público leigo o acesso a uma nova forma de pensar, de compreender o mundo e as relações. Para Sartre, trata-se de alterar a racionalidade ocidental, presa a valores pequeno-burgueses, a dogmas deterministas, através dos quais o homem é submetido a uma moral dada “a priori”, não lhe sendo permitido realizar sua condição de sujeito da história. Daí sua defesa incansável da liberdade e as conseqüentes postulações técnicas nas áreas da ontologia, antropologia e psicologia, visando dar substratos para o homem assumir a responsabilidade por sua própria vida e pela história social.

Dessa forma, boa parte de suas obras literárias tem contrapartida nos seus textos técnicos, como podemos verificar em suas declarações na entrevista que concedeu a jornalistas em 1938:

Eu tinha o sonho de exprimir minhas idéias somente de uma forma bela – ou seja, através das obras de arte, romance ou novela. Mas eu compreendi que isto era impossível. Há questões mais técnicas, que exigem um vocabulário puramente filosófico. Dessa forma, eu me vi obrigado a duplicar, por assim dizer, cada romance em um ensaio. Assim, ao mesmo tempo de La Nausée, eu estou escrevendo La Psyché, obra que irá ser lançada em breve e que trata da psicologia do ponto de vista fenomenológico. (In: CONTAT; RYBALKA, 1970, p.65).

O romance citado por Sartre, objeto de nossa análise neste ensaio, realiza, portanto, esse fluxo entre a literatura e a filosofia. La Nausée1 é, assim, uma certa proposição filosófica que encontrou no gênero romanesco o lugar privilegiado para sua manifestação (PHILLIPE, 2000).

Um exemplo da perfeita adequação da linguagem literária como veículo de idéias filosóficas é a célebre passagem em que o personagem fala da sua descoberta da contingência (idéia filosófica), quando se defronta com a raiz do castanheiro (imagem poética). O conceito teórico, de extremo rigor técnico, é apresentado, assim, de forma mais palatável ao leitor comum, grupo que almejava atingir, dentro de seu propósito de transformar a sociedade como um todo e não somente o meio intelectual.

 

A “PSICANÁLISE EXISTENCIAL” DE SARTRE E O CAMINHO METODOLÓGICO EM DIREÇÃO A UMA PSICOLOGIA CLÍNICA CIENTÍFICA

Tendo clareza da importância do saber psicológico na modernidade, Sartre começou suas incursões teóricas formulando proposições no campo da psicologia, conforme atestam seus primeiros livros técnicos (La Transcendence de l’Ego; L’Imagination, L’Imaginaire, Esquisse d’une Théorie des Émotions). Voltou-se, porém, à filosofia e à ontologia pela necessidade de melhor fundamentar seus estudos da psicologia (BERTOLINO, 1995). Sendo assim, esse intelectual, mais conhecido pelo seu perfil de filósofo, foi também um pesquisador sistemático da psicologia, sendo que sua obra técnica inscreve-se, boa parte dela, nesse campo.

Um dos projetos essenciais do trabalho técnico de Sartre foi, portanto, reformular a psicologia, conforme já foi demonstrado pelas dissertações de Bertolino (1979) e Moutinho (1995), bem como por artigo de Bertolino (1995). O francês concretizou esse empreendimento, como podemos verificar se analisarmos o conjunto de sua obra técnica, realizando-o numa “démarche” coerente com os avanços da ciência contemporânea, totalmente diferente daqueles do empirismo e da metafísica, perspectivas que determinaram a constituição dessa disciplina, fundamentos por ele duramente criticados.

Sartre explicita seu método para a investigação da realidade psíquica no capítulo de L’Être et le Neant, intitulado “Psicanálise Existencial”, complementando-o em seu Question de Méthode (op. cit).

O objetivo da psicanálise sartriana é decifrar o nexo existente entre os diversos comportamentos, gostos, gestos, emoções, raciocínios do sujeito concreto, ao extrair o significado que unifica de cada um desses aspectos em direção a um fim. É esse nexo que define o sentido da vida de alguém. Isto quer dizer que a psicanálise existencial deve decifrar o “projeto de ser” de cada indivíduo estudado, pois é ele que define o que são e para onde se encaminham os diferentes movimentos de uma pessoa no mundo. “Esta unidade que é o ser do homem é uma livre unificação. E a unificação não saberia vir após uma diversidade que ela unifica. (...) Esta unificação se dá em um ‘projeto original’, unificação que deve se mostrar a nós como um absoluto não substancial” (SARTRE, 1943, p.648).

O ponto de partida da investigação psicológica deve ser, portanto, os aspectos concretos da vida de um sujeito, ou seja, os fenômenos de sua vida de relações, de homem em situação. Aqui se delineia o método sartriano: por um lado, ele é comparativo, ou seja, estabelece ligações entre os diversos aspectos que presidem a vida de um sujeito, mas procurando atingir o projeto original que dá sentido ao conjunto; é, nesse sentido, um método “compreensivo” ou “sintético”, já que pretende chegar “à intuição do psíquico, atingida por dentro”, como diria Jaspers (1979). Por outro, ele deve ser progressivo e regressivo, como vemos no Question de Méthode, ou seja, deve situar os aspectos objetivos (época, cultura, sociedade, nível social, estrutura familiar, etc), que definem os contornos de ser de um sujeito concreto, reenviando-os ao mesmo tempo à sua subjetividade, a fim de se compreender a apropriação peculiar desses aspectos mais universais. A expressão da pessoa em gestos, atos, palavras, obras, deve ter, assim, sua dimensão subjetiva e objetiva. O sujeito é um singular/universal, pois ao mesmo tempo em que é idiossincrático, ele é resultante de seu tempo, de sua cultura e, portanto, uma ponte para compreendê-los.

Dessa forma, a concepção de homem que subjaz na teoria sartriana é histórica e dialética, na medida em que o sujeito só pode ser compreendido levando-se em conta sua história individual, tanto quanto a de sua conjuntura familiar e a de seu contexto social e cultural, tendo como fundo de sustentação a noção que “ele se faz e é feito” no/por esse conjunto de fatores. Toda a psicologia existencialista pauta-se nessa antropologia, servindo de embasamento teórico para a concretização de sua psicanálise existencial.

Com base em seu método e suas concepções teóricas, a psicanálise sartriana, ao atingir a compreensão desta unificação irredutível – o projeto de ser -, possibilita o entendimento dos diversos aspectos do psiquismo do sujeito, seu movimento no mundo, bem com suas contradições de ser, seus impasses sociais, sociológicos e psicológicos, que podem levar, conforme as circunstâncias, à constituição de complicações psicológicas e até mesmo da loucura. Essa compreensão psicológica é, portanto, etapa essencial de uma intervenção clínica.

Sendo assim, a psicanálise existencial coloca-se como o método necessário para a concretização de uma psicologia clínica científica. Esta área da psicologia, cujo objeto é a elucidação da personalidade e, em seu bojo, das psicopatologias, para ser científica em sua teoria, seu método e seus procedimentos, deve investigar quais as condições de possibilidade para um sujeito chegar a ser quem ele é, ou seja, como chegou a ter determinada personalidade, constituída a partir de um “projeto de ser” específico, esclarecendo o seu processo de totalização/ destotalização/ retotalização. À luz da compreensão desse conjunto de fenômenos, torna-se possível levantar as variáveis que contribuíram para o surgimento das complicações psicológicas. De posse desses dados, um clínico terá condições de elaborar uma compreensão minuciosa da dimensão psicológica do paciente, o que vai permitir uma intervenção realizada com rigor e segurança, já que o terapeuta contará com os elementos necessários para definir as variáveis envolvidas na problemática do cliente e, desta maneira, a ordem das intervenções a serem realizadas, para poder, igualmente, prever as suas conseqüências. Esses procedimentos científicos possibilitam, inclusive, a avaliação do processo interventivo, ao viabilizar uma crítica de resultados. Eis o horizonte epistemológico de uma psicologia clínica que pretenda seguir as acepções sartrianas (SCHNEIDER, 2002).

A estratégia por ele utilizada, a partir de seus delineamentos teórico-metodológicos, com vistas à viabilização de sua psicanálise, foi a da elaboração de biografias de escritores de renome, por possibilitarem uma compreensão rigorosa do ser dos seus biografados, ou seja, esclarecerem o processo de suas personalizações, em suas dimensões objetiva e subjetiva, chegando ao projeto e ao desejo de ser, que são o “combustível” dos fenômenos psicológicos e da história de vida de cada sujeito. As principais biografias por ele realizadas foram as de Baudelaire, de Jean Genet e a monumental obra sobre Flaubert, com mais de 3000 páginas.

Aqui neste artigo, porém, analisaremos o seu primeiro romance, La Nausée, editado em 1938, no qual Sartre narra o que poderíamos considerar o processo psicoterapêutico de Roquentin, personagem central da obra, delineando pela primeira vez uma elaboração na direção da clínica, que aponta para o que poderia vir a se constituir em uma “psicologia clínica sartriana”. Poderíamos considerar que La Nausée foi seu primeiro exercício no horizonte do que propõe como psicanálise existencial, no sentido da busca da elucidação psicológica do personagem principal, ainda que o romance tenha sido escrito antes mesmo dele explicitar seu método para a psicologia em seu livro L’Être et le Neant.

 

A NÁUSEA: PROCESSO PSICOTERAPÊUTICO DE ROQUENTIN

La Nausée é o primeiro romance de Sartre a ser publicado. Começara a redigi-lo em 1931, passando por diferentes manuscritos, que se chamaram, sucessivamente, Fato sobre a contingência, Melancolia, até que, finalmente, para fins de publicação, em 1938, por sugestão de Gaston Gallimard (que seria, daquele momento em diante, o editor de Sartre), foi intitulado A Náusea. O livro é escrito em forma de diário e narra as experiências vividas por Antoine Roquentin, historiador que se fixou em Bouville, cidade do interior da França, para realizar pesquisas sobre o Marquês de Rollebon, um personagem da vida política francesa do século XVIII.

Nesse diário, Roquentin narra uma série de acontecimentos que estavam ocorrendo em sua vida sem que ele os compreendesse. Havia mudanças na sua relação com o mundo, com os objetos. Escreve: “os objetos não deveriam tocar, já que não vivem. (...) E a mim eles tocam – é insuportável. Tenho medo de entrar em contato com eles exatamente como se fossem animais vivos” (SARTRE, 2000, p.26). Essas mudanças se expressavam através de uma “metamorfose insinuante e delicadamente horrível de todas as sensações; era a náusea” (SARTRE, 2000, p.26). Em diferentes ocasiões, caminhando na rua, jogando pedras ao mar, sentado em um café, subitamente, Antoine era tomado por aquela irritante experiência, uma espécie de enjôo adocicado, uma leve tontura, uma náusea, sem que conseguisse facilmente dela se livrar e sem perceber o que o levava a essa emoção. Era uma experimentação psicofísica, corpo e consciência envolvidos no acontecimento. O personagem questionava-se acerca dessas alterações que lhe vinham ocorrendo nas últimas semanas. Eram alterações difusas, que não se fixavam em nada. O que mudou? Foi ele? Foi o quarto onde se encontrava, a natureza ao seu redor? Chega à conclusão de que foi ele mesmo que se transformou. Mas como? De que maneira? O que estava acontecendo? Declara: “Não creio que a profissão de historiador incite à análise psicológica. Em nosso trabalho lidamos com sentimentos inteiros. No entanto, se tivesse um mínimo de conhecimento de mim mesmo, seria esse o momento de utilizá-lo” (SARTRE, 2000, p.17).

Olha-se no espelho e não se reconhece. Não consegue entender nada de seu rosto: ali estão o mesmo nariz, boca, orelhas, mas já não têm expressão humana. Não consegue definir se é bonito, ou feio, nem encontrar sentido nessa face, nem em seu corpo. Não consegue compreender seu rosto. Questiona-se se isso ocorre por que é um homem sozinho? As pessoas que convivem em sociedade aprendem a se enxergar através dos outros, já que estes fazem o papel de espelho. E ele, que não tem ninguém? Como escapar a essa carne nua e crua, a essa natureza sem homem? Antoine vive inteiramente só, nunca fala com ninguém, a não ser em conversas formais com o autodidata (estudioso que sempre encontra na biblioteca), ou uma relação amorosa fortuita, de tempos em tempos, que mantém com a dona do café Rendez-vous des Cheminots, perto de onde mora. Sua amiga tem vários amantes, sendo ele somente mais um deles. Pela primeira vez o incomoda estar só; gostaria de poder dividir com alguém o que está lhe acontecendo. Recorda-se de Anny, sua ex-namorada, que faz quatro anos que não vê.

Experimenta um tédio enorme de viver. Bouville e seus habitantes acomodados, mergulhados em seus hábitos e problemas pequeno-burgueses o enojam; o Sr. De Rollebon o enfada, suas pesquisas o desagradam. Nada mais tem muito sentido. A náusea se apossa dele, está nele sem que consiga dela se livrar. Sente medo sobre o que pode vir a lhe acontecer.

Podemos notar que a narrativa de Antoine, desde o início de seu diário, encaixa-se perfeitamente nas queixas que os pacientes trazem para o processo psicoterapêutico. Descrevem as emoções, os impasses psicológicos que os acometem, sem que consigam compreendê-los. São tomados por eles e experimentam-se assustados frente ao seu descontrole emocional.

A única coisa que conseguia livrar Antoine da náusea era a música, uma música específica, que sempre solicitava que fosse tocada, quando ia ao café “Rendez-vous des Cheminots”: a canção de jazz “Some of these days”. Absorvia-se na música, ela o fazia viajar a outro tempo, tempo de aventuras. Quando se dava conta, o enjôo havia passado.

Pouco a pouco, na busca de compreender o que lhe ocorria, o personagem começa a reviver o seu passado, retomando o grande sentido de sua existência que fora “viver aventuras”. Atravessara os mares, deixara cidades, subira rios, adentrara em florestas, tivera várias mulheres, várias brigas. Tudo isto o havia levado para onde, questiona-se? O que lhe acrescentaram essas aventuras? O tédio e a náusea agravam-se ainda mais! Até há dois anos atrás, tudo corria tranqüilo: bastava fechar os olhos para lembrar de miríades de cidades, rostos, lugares. Tudo o alegrava; no entanto, hoje não deixam mais do que um gosto amargo na sua boca. Suas histórias estão mortas, limitam-se a palavras, sem sustância: “referem-se a um sujeito que fez isto ou aquilo, mas não sou eu, não tenho nada em comum com ele” (SARTRE, 2000, p.57). Nunca havia experimentado o sentimento, como agora, de ser alguém sem “dimensões secretas”, reduzindo-se a ser somente seu corpo. Compelido ao presente, preso nele, não consegue fugir de estar frente a si mesmo.

O sentimento de aventura que o guiara até o momento, que definira o sentido de sua vida, esvaíra-se. Sempre “imaginara que em determinados momentos minha vida deveria assumir uma qualidade rara e preciosa. (...) É isso que me tiram agora. Acabo de descobrir, sem razão aparente, que menti a mim mesmo durante dez anos. As aventuras estão nos livros” (SARTRE, 2000, p.57). Consegue compreender que viveu muitas histórias, fatos, incidentes, mas não aventuras, pois estas são simplesmente formas de contar o que lhe sucedeu, pois o que delineia o tom da aventura é a forma de narrá-la. Buscava um momento precioso, que o tivesse marcado para todo o sempre; descobre, no entanto, que quem conferia o caráter aventuroso sobre o que havia vivido era ele próprio, o sentido que ele mesmo dava à história, iluminado por suas paixões futuras. Era o futuro, portanto, que definia o significado desse passado; o fim que a tudo define já está presente na história. Essas reflexões levam-no a modificar sua relação com o passado: “a importância dessa descoberta não está apenas no fato de que um passado querido tem um sentido alterado, mas ainda o fato de que a própria vida lhe aparecerá com uma qualidade até então insuspeita” (MOUTINHO, 1995, p.50).

Aqui nessas passagens subjaz a concepção de temporalidade em Sartre, conforme a qual passado, presente, futuro estão imbricados numa dinâmica temporal inseparável. No entanto, o que confere sentido à existência, definindo o significado dos acontecimentos passados, é o futuro que, segundo o existencialista, concretiza-se através do “projeto de ser”. Sartre demonstra que a temporalidade real, antropológica, vem do futuro para o passado, enquanto que o movimento aparente é a temporalidade ocorrer do passado para o futuro (BERTOLINO, 2005).

O que vai emergindo do romance é que, na verdade, o que está em questão é o “projeto de ser” de Roquentin, conduzindo o leitor a compreender as perturbações psicológicas experimentadas pelo personagem. A náusea é só a expressão psicofísica desse questionamento crucial de seu ser: toda sua vida está em questão, olha para sua história e não mais se reconhece. O espontaneismo que marcara sua história, já que vivia voltado para “o momento”, deixando-se levar pelos acontecimentos, ou seja, por uma vida de aventuras, tornou Roquentin “prisioneiro da passagem”, isto é, sem um lugar seu, sem referências afetivas, sem compromissos ontológicos, sem vislumbrar um futuro. Por isso, olhava para o espelho e não se reconhecia. Era a expressão de seu ser que estava em questão. Quem era, afinal, Roquentin? O que tinha feito de sua existência? Experimentava-se vazio. Vivera aventuras, é verdade, no entanto estas, com sua transitoriedade, têm sentido somente enquanto acontecem; não fornecem “lastro” para o “ser” de um sujeito, pois que não o lançam em um tecido sociológico, isto é, em uma rede de relações de mediação. É nesse tecido que se encontram as amarras ontológicas e psicológicas de qualquer homem. Era exatamente o que Antoine não possuía, daí sua experimentação de vazio de ser.

Em um primeiro momento, frente a todas essas mudanças e questionamentos, busca a resposta em seu trabalho, algo que lhe devolva o sentido de ser. Só o Marquês o salvará. Aos poucos, no entanto, vai percebendo que este era outro engodo. “O Sr. De Rollebon era meu sócio: precisava de mim para ser, e eu precisava dele para não sentir meu ser. (...) Eu era apenas um meio de fazê-lo viver, ele era minha razão de ser, me libertava de mim mesmo. Que farei agora?”. (SARTRE, 2000, p.148). Dá-se conta, então, que sua existência está liberada, desprendida, que reflui sobre ele. O que fará de si mesmo? Aparece novamente a náusea.

Aos poucos constata que a náusea não fora mais do que a descoberta da contingência, ou seja, do fato da gratuidade da existência, que se revela absoluta, pois viver não é necessário, mas sim um ato contínuo de escolha, assim como os objetos, que não são necessários, mas contingentes. Daí experimentar-se tocado pelos objetos, como a raiz do castanheiro, por exemplo, que o invadia com sua solidez, pois era espelho para suas dúvidas, lançando-o para o âmago de seus impasses. Os objetos do mundo, a natureza, estavam aí, existiam simplesmente, eram gratuitos, não eram necessários; quem define o sentido delas sempre foi o homem, a consciência que os constata.

Ora, nenhum ser necessário pode explicar a existência: a contingência não é uma ilusão, uma aparência que se pode dissipar; é o absoluto, por conseguinte a gratuidade perfeita. Tudo é gratuito: esse jardim, essa cidade e eu próprio. Quando ocorre que nos apercebemos disso sentimos o estômago embrulhado, e tudo se põe a flutuar como outra noite (...): é isso a Náusea; é isso que os salafrários, os do Coteau Vert (bairro nobre de Bouville) e os outros tentam esconder de si mesmos com sua idéia de direito (SARTRE, 2000, p.194 – nota nossa).

A existência se desvela, como a Descartes, através de seu cogito. No entanto, para Roquentin, ao contrário do que prega o filósofo, não é somente a experiência do pensamento que a faz aparecer, mas uma experimentação concreta, psicofísica, corpo e consciência absorvidos pela situação nauseante. A transformação de seu corpo é uma experiência insuprimível (MOUTINHO, 1995). Suas reflexões fazem-no apropriar-se dessas experimentações, ou seja, conforme a linguagem técnica de La Transcendence de L’Ego, a consciência de segundo grau (reflexionante) apropria-se das consciências espontâneas (irrefletidas) (SARTRE, 1965). Assim, a apropriação reflexiva que realiza das transformações psicofísicas sofridas coloca-o frente à sua liberdade, ou seja, possibilita que compreenda, aos poucos, que o sentido das coisas que o cercam dependem de seu livre lançar-se para elas: em relação aos objetos, ao seu trabalho, ao seu passado. A ele cabia significá-los. Estava, portanto, experimentando aquilo que se define como “vertigem da liberdade”. As coisas são inteiramente o que são, nada há por trás delas que as definam ou justifiquem “a priori”; é a relação do sujeito com as coisas que constitui o mundo. Esta é a relação entre o ser (as coisas) e o nada (a consciência), base da ontologia de Sartre.

O que fazer do seu ser? Questiona-se Roquentin. Ninguém, nem coisa alguma, irá lhe dizer ou lhe determinar a ser. A definição de si próprio depende de seu movimento no mundo, do que ele deseja realizar. Está, pois, livre e só.

Ao debater-se com sua problemática, Antoine foi em busca do último “porto seguro” de sua história: foi encontrar-se com Anny, a única mulher que amou de verdade na vida, mas com quem em realidade sempre mantivera uma relação conturbada. Anny queria viver os “momentos perfeitos”, no que buscava transformar qualquer acontecimento de sua vida, pois acreditava que algo se revelaria a ela. Acreditava nessa mística: não sabia de onde viria essa força, mas acreditava que aconteceria. Acusava Antoine de fazer os “momentos perfeitos” se esvaírem, pois ele não sabia o que dizer no momento oportuno, que ações realizar no momento exigido, desmontando o encantamento em que ela apostava. As situações viravam tragédias, pois Anny irritava-se profundamente com o namorado.

No reencontro, depois de tantos anos, descobre que Anny não buscava mais os “momentos perfeitos”, assim como ele havia desistido de viver “aventuras”; os dois haviam perdido o sentido alienante de seu ser anterior. Anny experimentava-se tão esvaziada quanto ele, chegando a afirmar: “sobrevivo a mim mesma”. Descobrem, no entanto, que nada mais há que um possa mediar para o outro. Enquanto viviam aprisionados na espontaneidade, na vivência do “aqui e agora”, um dava suporte para a alienação do outro, mas agora, nada podem fazer mutuamente. Anny diz que ele lhe é indispensável, pois enquanto ela muda, ele fica fixo, imutável, servindo-lhe de marco de referência. Antoine constata que ela não o compreende, não o enxerga, não consegue ver nada a não ser a si mesma. Realmente, não é mais possível resgatar nada dessa relação. Roquentin não ficou arrasado por deixá-la, já que ela nada mais tem a lhe oferecer; no entanto, experimentou um grande medo de voltar à solidão. Após seu encontro com Anny, Roquentin desfez-se de sua última amarra com o passado.

Está finalmente liberto de seus impasses com sua história, desfez-se de uma dinâmica de ser que, na espontaneidade, sem compromisso com coisa alguma, o impeliu para a solidão e para a falta de sentido existencial. Essa situação tornou-se de tal modo insuportável, concretizando-se numa espécie de psicopatologia, que o lançou a experimentar distúrbios psicofísicos - a náusea. Seu diário narra a apropriação de seus impasses, o enfrentamento de suas dificuldades. Roquentin teve o esvaziamento de seu projeto de ser questionado até a raiz – nada mais lhe fazia sentido. “Agora, quando digo ‘eu’, isso me parece oco. Já não consigo muito bem me sentir, de tal modo que estou esquecido. Tudo o que resta de real em mim é existência que se sente existir. Antoine Roquentin não existe para ninguém. É algo abstrato” (SARTRE, 2000, p.247).

O que fazer de sua vida? O que fazer de seu ser?

A angústia não o larga. Tem dinheiro e é jovem, pois só tem trinta anos, o que fazer de sua existência? Decide ir embora para Paris. Mas o que fazer por lá? Ir ao cinema? Passear nos jardins? Freqüentar as bibliotecas? Nada disso o afastará do tédio. Precisa encontrar um sentido para sua existência.

Será novamente a mesma música que o arrancará do impasse, do vazio de ser. Escuta-a uma última vez, no café, antes de partir para Paris. A voz canta: some of these days... Na música nada é demais, ela simplesmente é; como ele também quis ser. Aliás, ele somente quis isso, eis a chave de sua vida. Agora percebe que é um simples sujeito, sentando no banco de um café, escutando aquela melodia. Através dela entra na realidade, ela o faz ver a importância que tem preencher o mundo, dar sentido à sua vida. A cantora espalha sua bela voz pelo ar... Antoine compreende, finalmente, a função da canção, que é a de justificar a existência da cantora. Aos poucos vai percebendo que também precisa fazer algo de concreto no mundo que justifique sua existência. Não seria uma canção, pois nada entende disso, mas quem sabe um livro, pois o que sabe fazer é escrever. Não poderá ser um livro de história, porque isso fala do que já existiu; mas um romance de aventura, que por trás das palavras façam surgir algo acima da existência. Reflete: “chegaria o momento em que o livro estaria escrito, estaria atrás de mim, e creio que um pouco de claridade iluminaria meu passado. Então, talvez através dele eu pudesse evocar minha vida sem repugnância (...) E conseguiria – no passado, somente no passado – me aceitar” (SARTRE, 2000, p.258). Roquentin consegue, enfim, redefinir seu projeto. Será um escritor! Um escritor de romances de aventura. As aventuras não são mais do que narrativas de alguém. È isso o que fará, contará aventuras, atingindo os leitores de diferentes maneiras, perpetuando-se através dessas narrativas.

Sua existência ganha sentido novamente. Agora pode encarar sua história, seu passado, admitir sua temporalidade. Consegue, com isso, superar seus impasses psicológicos, colocando-se como uma totalização em curso, corpo/consciência em direção a um futuro. Está inteiro para retomar sua existência, agora justificada, no sentido de estar indo em direção a um fim, a um projeto de ser. Poderíamos dizer, em uma linguagem clínica, que Antoine “curou-se”, no sentido de ter esclarecido seu projeto, suas estratégias de ser, tomando sua história em suas próprias mãos, superando seus sintomas psicofísicos.

A canção exerceu, no romance, importante função terapêutica (MOUTINHO, 1995). Foi ela a mediadora das reflexões críticas de Roquentin, que lhe permitiram superar as perturbações psicofísicas, as emoções (náusea), os impasses psicológicos – que nada mais eram do que expressões da perda de sentido de ser, engendrada pela espontaneismo e pela solidão em que se lançara – viabilizando a redefinição de seu projeto.

Verificamos, assim, que La Nausée é a descrição de um processo psicoterapêutico: no início, Roquentin, enredado em experimentações psicofísicas que o amedrontam, na medida em que não compreende seus significados, vai aos poucos, porém, compreendendo que elas são resultantes de seu tédio existencial, de sua solidão. Essa situação coloca-o frente a frente com sua história, frente a frente com a existência injustificada dos objetos e entes em geral. Ao compreender que o que havia feito de sua vida - viver aventuras - o levara ao “vazio de ser”, pois vivera uma existência puramente espontânea e descomprometida, sem nenhuma amarra sociológica e, por isso mesmo, injustificada, experimentando-se na mais completa solidão, que o levava a referir seu “eu” como se fosse “oco”. Antoine vai, passo a passo, libertando-se de sua alienação. Realiza um processo que lhe possibilita redefinir seu projeto, recolocar sua existência em um novo patamar. A definição de ser um escritor de romances o leva a lançar-se para o mundo em uma nova perspectiva, fincando raízes em Bouville, modificando sua relação com os outros. Ao final do livro consegue unificar sua história em um projeto, totalizar passado/presente/futuro, ganhando consistência ontológica e, assim, sentido em seu ser.

 

A PSICOLOGIA CLÍNICA EM SARTRE

Vimos acima que Sartre utiliza a via romanesca para explicitar suas elaborações técnicas. Dessa maneira, através de seus romances, de seus empreendimentos biográficos, Sartre viabiliza sua psicologia existencialista, no sentido de explicitar uma forma de compreensão rigorosa do homem concreto, inserido no mundo, com seus suores e suas dores, seus impasses psicológicos. Fornece, com isso, uma grande contribuição no entendimento dos caminhos de uma nova forma de realizar a psicologia clínica.

Na proposição de sua psicanálise existencial Sartre demonstra como lidar com o fenômeno psicológico em seus diferentes componentes e níveis, nos quais aparece o sujeito com o seu projeto de ser, com os conflitos com o seu desejo de ser, com sua eleição original. Em seus romances e biografias realiza o que poderíamos chamar metaforicamente de uma “radiografia psicológica” do sujeito, na medida em que deixa translúcido o projeto de ser, as raízes da problemática psicológica, a localização das contradições de seu ser, a partir da compreensão do conjunto de suas relações, ou seja, de seu movimento no mundo.

Essa compreensão psicológica fornece a base para uma possível intervenção psicoterapêutica. Roquentin conseguiu retomar seu projeto de ser e tornar-se “sujeito de sua história e de sua vida”. E qual é a tarefa da psicoterapia? Justamente a de colocar o ser da pessoa em suas próprias mãos, o que o viabilizará como sujeito. Qualquer processo psicoterapêutico só vai encontrar solução na medida em que possibilitar ao paciente converter-se em sujeito de sua própria história, de seu ser, para assim adquirir condições de se tornar um sujeito social íntegro, ciente de também ser sujeito da história social, de ser um cidadão. Esse deve ser o caminho da clínica: viabilizar o homem enquanto sujeito (SCHNEIDER, 2002). É o que acontece com Roquentin em A Náusea: na medida em que retoma todo o seu passado, transcende o espontaneismo que o lançava para a solidão, consegue redimensionar seu projeto de ser ao abrir um novo horizonte futuro. Com isso, conseguiu superar seus sintomas psicofísicos, ou seja, a náusea que o dominava, possibilitando integralizar-se em sua história, tomando seu ser nas mãos.

Dessa forma, poderíamos refletir que a “cura” em uma psicologia clínica na perspectiva sartriana só seria possível pela condição de o paciente superar a situação em que está submetido e poder “fazer alguma coisa daquilo que os outros fizeram dele” (SARTRE, 1952). “Curar” é transcender os problemas e colocar a resolução da questão ontológica do indivíduo dentro de novos parâmetros, em que seu projeto e desejo de ser sejam viabilizados. A “cura”, em uma perspectiva sartriana, nunca poderia ser, portanto, uma “conformação ao que o paciente é”, um “assumir-se a si mesmo”, uma “aceitação de si”, um “auto-conhecimento”, uma “adaptação às circunstâncias sociais”, como em muitas outras psicoterapias. A psicoterapia existencialista sartriana só faz sentido se possibilitar ao homem o seu estatuto de sujeito, se realizá-lo enquanto liberdade, se não contribuir para a produção de um homem alienado, mas proporcionar-lhe o verdadeiro direito de cidadania, resgatando-o sujeito histórico.

A Psicanálise Existencial (...) é um método destinado a elucidar, com uma forma rigorosamente objetiva, a escolha subjetiva pela qual cada pessoa se faz pessoa, ou seja, faz-se anunciar a si mesma aquilo que ela é. (...) Esta psicanálise ainda não encontrou o seu Freud; quando muito, pode-se encontrar seus prenúncios em certas biografias particularmente bem sucedidas. (...) Mas aqui pouco importa que tal psicanálise exista ou não: para nós, o importante é que seja possível (SARTRE, 1943, p.663 - grifo nosso).

Sartre, através de seus estudos biográficos, através de seu romance A Náusea, deixou muito claro todos os elementos essenciais para a realização de uma intervenção psicoterapêutica, apesar de ele mesmo não a ter realizado, por não ser um clínico e não ter ido para a prática clínica. Sua psicanálise existencial fornece, no entanto, uma teoria e uma metodologia fundamentais para se pensar a psicologia clínica em novos moldes. Só o que é preciso é colocá-la em prática, como era intenção do próprio Sartre.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
E-mail: danis@cfh.ufsc.br; danischneiderpsi@uol.com.br

Recebido em: 21/11/2005
Aceito para publicação em: 28/07/2006

 

 

NOTAS

* Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Psicóloga, Mestre em Educação (UFSC), Doutora em Psicologia Clínica (PUC-SP).
1 Intitulado A Náusea em português, tem impressão brasileira pela Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 2000.

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