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Estudos e Pesquisas em Psicologia
versão On-line ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. vol.18 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2018
PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE
Felicidade e religião em Freud: uma leitura crítica
Happiness and religion in Freud: a critical reading
La felicidad y la religión en Freud: una lectura crítica
Carlos Eduardo Firmino*
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
RESUMO
O presente trabalho visa discutir a relação estabelecida por Freud entre religião e felicidade. Para tanto, utilizaremos como principal referência o ensaio O mal-estar na cultura, publicado em 1930. Neste ensaio, a partir do questionamento a respeito do "sentimento oceânico", assim nomeado por Romain Rolland, Freud insiste que a suposta felicidade disponível ao crente é resultado de um processo delirante de submissão. Em troca de algum alívio para seu sofrimento, o homem religioso se mantém numa eterna posição de infantilismo. Como possibilidade de superação de tal neurose infantil, Freud sugere um tipo de "educação para a realidade", na qual aprenderíamos a utilizar nossas energias na vida terrena, tornando a convivência humana mais suportável e, consequentemente, menos opressoras as regulações da cultura. Ao final, abordaremos a aposta religiosa como um recurso de felicidade, na medida em que ela, tal como a ciência defendida por Freud, é oriunda dos desejos do crente. Nesse sentido, discutiremos a plausibilidade da proposta freudiana de educação, e também se a religião, de fato, merece ser rechaçada ao modo escolhido pelo pai da psicanálise.
Palavras-chave: Freud, religião, felicidade.
ABSTRACT
This paper discusses the relationship established by Freud between religion and happiness. To this end, we will use as primary reference the essay The malaise in culture, published in 1930. In this essay, from the question about the "oceanic feeling", as named by Romain Rolland, Freud insists the supposed happiness available to the believer is the result of a delirious submission process.In exchange for some relief from their suffering, the religious man remains in an eternal infantile position. As a possibility of overcoming such childish neurosis, Freud suggests a kind of "education to reality" in which we would learn to use our energies in this life, making the human society more bearable and consequently the regulations of the culture less oppressive.Finally we will address the religious bet as a resource of happiness. It comes from the believer's desires, as much as the science advocated by Freud. In this sense, we will discuss the plausibility of freudian proposal for education and also if the religion deserves to be rejected as it was by the father of psychoanalysis.
Keywords: Freud, religion, happiness.
RESUMEN
En este trabajo se analiza la relación establecida por Freud entre la religión y la felicidad. Por lo tanto, vamos a utilizar como referencia El malestar em la cultura, publicado em 1930. Em este ensayo desde el interrogatório a cerca del "sentimiento oceânico", llamado así por Romain Rolland, Freud insiste em afirmar que la supuesta felicidad a disposición del creyente es el resultado de um proceso de sumisión delirante. A cambio de um poco de alivio para su sufrimiento, el hombre religioso se mantiene a una posición de infantilismo eterna. Como posibilidad de superar esa neurosis infantil, Freud sugiere una especie de "educación a la realidad" en la que aprenderíamos a utilizar nuestras energías en esta vida, cambiando la convivencia humana más soportable y, en consecuencia, menos opresoras las regulaciones sociales. Al final, se discute la apuesta en la religión como una caracterísca feliz, al paso que esa, como la ciência defendida por Freud, proviene de los deseos del creyente. En este sentido, vamos a establecer la viabilidad de lo que propuso Freud sobre la educación y también si la religión, de hecho, merce ser rechazada a la forma elegida por el padre del psicoanálisis.
Palabras clave: Freud, religión, felicidad.
1 Introdução
Tema fundamental – talvez, a "questão" mais importante a ser respondida – ao longo da história da filosofia e do pensamento ocidental é a felicidade. Aliás, se tivéssemos de responder, ao modo clássico, acerca de uma possível definição da filosofia, poderíamos citar a famosa frase atribuída a Epicuro na qual se diz que esta é um método ou disciplina que, através de discursos e raciocínios, visa à felicidade.
Há toda uma tradição que debate o tema. De Aristóteles a Montaigne até os franceses contemporâneos, tais como Luc Ferry e André Comte-Sponville. Ainda que para alguns a felicidade seja uma ideia velha, como costumava dizer o saudoso Antônio Abujamra, trata-se de um tema inquietante. No limite, ao discutirmos a respeito deste tema, somos colocados em cena. Na medida em que pensamos acerca de um ideal de vida bem-sucedida, por exemplo, nossa própria existência se transforma em ponto de discussão.
Talvez, até mesmo a ideia da Grande Saúde, tão cara a Nietzsche, seja uma espécie de modelo – certamente, o filósofo em questão não concordaria conosco – de felicidade. Certo domínio do corpo e certeza de si não parece algo feliz? Mas, deixemos de digressão e caminhemos rumo ao tema que nos interessa: a relação entre religião e felicidade no pensamento freudiano. Antes de tratarmos diretamente deste ponto, cabe situar, em linhas gerais, a concepção de felicidade apresentada por Freud, sobretudo em O mal-estar na cultura (1930/2010), bem como a ideia de "sentimento oceânico" também discutida no citado ensaio.
2 A felicidade em Freud
Toda atividade humana visa à felicidade, é o que diz Freud em O mal-estar na cultura (1930/2010). Esta é uma missão da qual não queremos, e sequer podemos, nos furtar. Tudo o que pedimos da vida, conforme Freud, é alcançar um viver feliz e neste estado permanecer.
Para Freud, nosso processo de busca pela felicidade é orientado por duas metas distintas, sendo uma marcada pelo caráter negativo e outra pelo aspecto positivo. A meta negativa faz menção à ausência de dor e desprazer; já a meta positiva estaria relacionada a vivências intensamente prazerosas. A felicidade em sentido estrito só pode ser remetida ao segundo tipo citado. Felicidade propriamente dita, então, seria a experimentação de tais vivências marcadas por um prazer intenso (Freud, 1930/2010).
O pressuposto freudiano reside no entendimento de que todo o propósito, ou melhor, o sentido, da vida está vinculado ao programa do princípio de prazer. É o principio do prazer quem estabelece a finalidade da vida humana (Freud, 1930/2010). Na medida em que compreende tal programa como algo irrealizável, Freud conclui que a felicidade não está nos planos da Criação:
Aquilo que em seu sentido mais estrito é chamado de felicidade surge antes da súbita satisfação de necessidades represadas em alto grau e, segundo sua natureza, é possível apenas como um fenômeno episódico. Toda permanência de uma situação anelada pelo principio do prazer fornece apenas uma sensação tépida de bem-estar; somos feitos de tal modo que apenas podemos gozar intensamente o contraste e somente muito pouco o seu estado (p.63).
No entendimento de Freud, estamos mais acostumados a experimentar a infelicidade. Isto devido ao fato de que o sofrimento – causado pela decadência do corpo, pela ameaça das forças da natureza e, sobretudo, pelo relacionamento com os outros (Freud, 1930/2010) – mostra-se sempre disponível, ao contrário da permanência em um estado de felicidade. Dada a existência do sofrimento, a meta de buscar prazer tende a ser deixada de lado. Estaria disponível para cada um de nós uma espécie de felicidade menor, por assim dizer. A nossa busca seria limitada; reivindicamos pouco em relação à felicidade. O principio do prazer, dirá Freud (1930/2010) "sob a influência do mundo externo, se tornou no mais modesto princípio da realidade" (p.64). O homem tende a se considerar feliz porque tem o entendimento de que conseguiu escapar da infelicidade e resistir ao sofrimento (Freud, 1930/2010).
Ao longo do tempo, segundo Freud, diversas escolas de sabedoria orientaram os indivíduos acerca da forma de se obter o prazer. A experiência humana, ele diz, torna atraente a ideia de que a melhor forma de conduzir a vida é aquela que tem na satisfação de todas as nossas necessidades a principal meta. No entanto, "isso significa antepor o gozo ante à cautela, algo que recebe seu castigo após breve exercício" (Freud, 1930/2010, p.64).
De uma maneira geral, Freud defenderá no referido ensaio a ideia de que, na medida em que temos de nos submeter a um processo de restrição à satisfação, uma espécie de limitação – ou renúncia – pulsional, tanto no que diz respeito à sexualidade quanto às nossas cotas mais agressivas, a felicidade, no limite, é um engodo. A cultura – soma das realizações e disposições que orientam nossa vida e nos difere dos antepassados (Freud, 1930/2010) –, ao regular a vida em comum dos indivíduos, exige que este renuncie aos seus impulsos e desejos. Dessa forma, ela – a cultura –, o protege tanto das ameaças violentas da natureza quanto da atrocidade de cada individuo que, no limite – aqui Freud é leitor de Hobbes – poderia usufruir, humilhar, tratar como objeto sexual e de seus impulsos sádicos a quem achasse conveniente. Freud aponta em várias passagens do texto que o homem moderno trocou a sua satisfação – e no final das contas, sua própria felicidade – por uma parcela de proteção e segurança. O sentimento de mal-estar 1, se é que podemos nomeá-lo assim, é uma espécie de queixa, efeito de um negócio que não deu certo. Além da própria infelicidade que caracteriza a vida exigida pela cultura, restaria em cada um de nós a suspeita de que somos infelizes porque abrimos mão de tudo em prol de sua manutenção. No final das contas, se levarmos o raciocínio de Freud ao pé da letra, sofreríamos duplamente: a) ao reconhecer nossa infelicidade, b) ao reconhecer na cultura – produção nossa – a origem de nossa infelicidade. Tal reconhecimento faz com que a cultura viva sempre sob ameaça de desintegração (Freud, 1930/2010).
Não seria absurdo afirmar, numa primeira leitura, que a perspectiva freudiana é um tanto quanto pessimista, apesar de que ele rejeitara tal imagem em uma entrevista (Viereck, 1926). No entanto, uma passagem dos Estudos sobre a Histeria (Freud, 1895/1996) já deixara essa impressão no ar. Supondo que seria perguntado sobre a forma pela qual poderia auxiliar os pacientes que sofriam com a doença histérica, Freud comenta ser possível a seguinte resposta:
Sem dúvida, o destino acharia mais fácil do que eu aliviá-lo de sua doença. Mas, você poderá convencer-se de que haverá muito a ganhar se conseguirmos transformar seu sofrimento histérico numa infelicidade comum. Com uma vida mental restituída à saúde, você estará mais bem armado contra essa infelicidade (Freud, 1895/1996, p.316).
3 O sentimento oceânico
No primeiro capítulo de O mal-estar na cultura, surge a discussão freudiana acerca do "sentimento oceânico". Tal sentimento, marcado por uma sensação de eternidade, teria lhe sido descrito por seu amigo Romain Rolland 2 numa espécie de crítica ao texto, anteriormente publicado, O futuro de uma ilusão (Freud, 1927/2014). Segundo Freud, Rolland comentara em sua carta que, ao analisar a religião como ilusão, o autor se esquecera de um aspecto importante: a fonte de energia das religiões está baseada em um sentimento, puramente subjetivo, que não garante continuidade pessoal, nem é artigo de fé, o qual produz a sensação de indissociabilidade ao mundo, de pertencimento. Esta espécie de plenitude, algo sem limites, seria o motivo pelo qual os indivíduos buscam a religião. Além de não reconhecer tal sentimento em si mesmo, Freud duvida de que ele seja a fonte e a origem da religião. Daí, tentará explicá-lo à luz da psicanálise.
Segundo Freud, os adultos têm a crença de que detêm um "eu". Do ponto de vista interno, esta ideia seria uma ilusão, na medida em que a psicanálise já mostrara que só conhecemos um tipo de fachada; há de ser levada em conta a existência do "isso" e, consequentemente, a determinação do inconsciente. No entanto, salvo na presença de patologias ou na condição de apaixonado – quando aquele que ama diz e sente ser um só ser aglutinado ao objeto amoroso –, em relação ao mundo externo, as fronteiras estariam bem definidas.
Freud expõe, em O mal-estar na cultura (1930/2010), que a sensação de ter um "eu" não existedesde o início. Em tese, inicialmente, o bebê não teria a capacidade de distinguir-se do mundo externo. É somente a partir da ausência do outro do cuidado – a mãe, via de regra – e das variadas sensações de prazer e desprazer que o bebê percebe a existência de um "fora" que lhe escapa. Sob a égide do princípio do prazer, o infante passará a tentar rechaçar do eu tudo aquilo que possa lhe causar sofrimento. Com o passar do tempo, a criança reconhece aquilo que lhe causa dor, quer seja de origem interna ou externa. Assim, o "eu" se separa do mundo externo.
O papel desempenhado pelo outro do cuidado junto à criança havia sido abordado por Freud, em 1895, no texto Projeto para uma Psicologia (1895/1995). No trabalho em questão, o autor comentara que, a princípio, os estímulos e tensões endógenos sofridos pelo bebê só poderiam ser aliviados a partir de uma alteração no mundo externo, alteração esta realizada por um adulto. Os gritos ou a inervação muscular da criança, apesar de produzirem alterações internas em seu organismo, não teriam capacidade de aliviar as tensões. A situação do infante, no entendimento de Freud, é de completo desamparo; sem a ação do outro do cuidado, ele estaria, inclusive, destinado à morte. É necessário, como diz Freud, que um indivíduo atento perceba as modificações pelas quais as crianças passam. O choro por exemplo, cumpriria a função de comunicá-las. Hipoteticamente, em um dado momento, o adulto teria realizado uma ação específica – uma alteração no mundo externo, necessária, como dito acima – cujo resultado é a primeira experiência de satisfação, o que remove, por um certo tempo, a tensão endógena sofrida pela criança. Trata-se de uma primeira – e mítica – experiência de satisfação.
Na perspectiva freudiana, o agente responsável pela ação específica, pela ajuda alheia, como o autor nomeia, se constituirá como um objeto que assume três papeis distintos: a) primeiro objeto de satisfação; b) primeiro objeto hostil e; c) função de auxílio. É objeto de satisfação, já que sua representação – como objeto externo – faz parte da primeira vivência de satisfação acima citada. Tanto o ato de pensar – atividade secundária – como a alucinação de sua presença – atividade primária – visam o seu encontro. Também é objeto hostil, pois, a sua representação, ao mesmo tempo, participa do circuito de eliminação da dor (Freud, 1895/1995). E, por fim, cumpre a função de auxílio, como o agente responsável pela ação específica, sem o qual a experiência de satisfação, o alívio das tensões, seria impossível. É a partir do próximo que o homem se reconhecerá. Freud diz que o movimento da mão deste agente, por exemplo, fará com que a criança possa reconhecer impressões semelhantes a seus próprios movimentos; o bebê associa o movimento da mão do adulto a suas próprias recordações (Freud, 1895/1995). Um grito poderia despertar recordações do próprio grito da criança e, consequentemente, suas próprias vivências de dor (Freud, 1895/1996).
Freud nomeia complexo do próximo a situação aqui descrita. Divide-a em dois elementos: uma estrutura constante que se mantém unida como "coisa" e um trabalho recordativo que "pode ser rastreado até uma notícia do próprio corpo" (Freud, 1895/1995). Da experiência mítica de satisfação, teríamos duas consequências. Por um lado, a intervenção do outro do cuidado deixará, para sempre, uma marca, uma perda fundamental impossível de ser retomada; por outro, ao ingressar no mundo do adulto, sendo atravessado pela perda fundamental, será instaurada a dimensão da falta para a criança, o que exigirá do animal humano a delimitação de seu próprio desejo, bem como de seus contornos em relação ao outro. Além disso, é do desamparo fundamental, dirá Freud, que se originam os sentimentos morais (Freud, 1895/1995).
Freud diz, ainda em O mal-estar na cultura (1930/2010), que o sentimento do eu que temos na vida adulta poderia ser entendido como "um resíduo minguado de um sentimento de grande abrangência – na verdade, um sentimento que abrangia tudo e correspondia a uma ligação do eu com um ambiente" (Freud, 1930/2010, p.48). Em sua suposição, tal sentimento teria se conservado na vida psíquica dos indivíduos, numa espécie de contraposto ao sentimento do eu, maduro, adquirido a posteriori. Neste sentido, o "sentimento oceânico" citado por Rolland poderia ser visto como resquícios do primário sentimento de indissociabilidade. Freud irá reconhecer que ele pode até existir em algumas pessoas, porém é derivado de uma fase inicial do sentimento do eu. Quebra-se, então, o encanto e a poesia de tal plenitude. Além disso, Freud expõe outro aspecto que retira o encanto do comentário de seu amigo: tal sentimento não poderia ser fonte. Conforme Freud, um sentimento só pode ser fonte de energia se for expressão de uma forte necessidade. A religião, em seu ponto de vista, é resultado do desamparo infantil e do anseio de presença paterna por este despertado. Freud diz não poder indicar uma necessidade infantil que tenha força tal qual a necessidade de proteção paterna. O "sentimento oceânico" até pode ser relacionado às religiões, mas não como fonte (Freud, 1930/2010). Talvez, este seja, na verdade, uma primeira tentativa de consolo religioso, um esforço de negar o perigo externo que ameaça o eu (Freud, 1930/2010).
Aqui, fazendo conversar o Freud de O mal-estar (1930/2010) com o texto do Projeto (1895/1995), poderíamos pensar o "sentimento oceânico" como efeito da marca deixada pelo outro do cuidado na primeira – e mítica – experiência de satisfação. Dado o desamparo fundamental do infante, teria sido produzida uma ilusória, ou até mesmo vívida, experiência de plenitude. Se ela – a mítica experiência – abriu, para cada um de nós, as portas para o desejo, supomos que deixou, também, uma ilusória sensação de que algum dia já fomos plenos. Se a ilusão é produto de nossos desejos, como veremos a frente, o "sentimento oceânico" pode ser efeito de um desejo de retorno, não necessariamente à experiência de alívio, e sim, a nossa hipotética sensação momentânea de indissociabilidade, causada pela marca do outro do cuidado.
4 Um delírio como recurso de felicidade
A religião é uma ilusão. Esta é a tese central de O futuro de uma ilusão (1927/2014). Não é um erro, na medida em que é oriunda de nossos desejos. Segundo Freud, a base da religião são os nossos desejos mais antigos, mais fortes e prementes. Atrela-se a isso a necessidade de proteção, efeito do desamparo infantil. A religião marca a presença de um pai – a referência freudiana é o cristianismo –, substituto, capaz de atenuar os medos dos perigos da vida e promover a justiça. Além disso, na medida em que há o prolongamento da vida terrena, é preparado um terreno no qual a realização dos desejos há de ser consumada (Freud, 1927/2014). Obviamente, não há de ser qualquer desejo, até porque, em tese, nossos impulsos sádicos, perversos, não teriam lugar no paraíso. Se levarmos em conta algumas características dos impulsos humanos citados por Freud em O futuro de uma ilusão – canibalismo, incesto e desejo de matar (Freud, 1927/2014) –, fica claro o fato de que o céu não nos pertence. No entanto, arrisquemos a dizer, a promessa que a religião parece oferecer tanto nesta terra ou no além-túmulo é a própria felicidade. Mas, por que haveríamos de ir contra uma promessa tão tentadora? De saída, cabe o comentário de Ferry (2010): essa promessa é tão boa que não pode ser verdadeira.
Freud vai um pouco além do filósofo francês contemporâneo. Em seu entendimento, torna-se necessário que o ser humano abandone as ilusões e, em certo sentido, se resigne da melhor maneira possível diante daquilo que não pode modificar, o que soa um tanto quanto estóico. É necessário que cada um seja educado para a realidade. A proposta freudiana, efeito de uma crença – ou fé – na razão, é contrária à tese de que não seria possível aceitar a realidade sem a presença da religião. Em seu intento reside um projeto, cujo resultado esperado é a superação da neurose infantil:
O homem certamente se encontrará então em uma situação difícil: terá de reconhecer todo o seu desamparo, sua insignificância no mecanismo do mundo, não será mais o centro da criação e o objeto do cuidado terno de uma Providência bondosa. Ele estará na mesma situação da criança que deixou a casa paterna, tão aquecida e confortável. Mas não é verdade que o destino do infantilismo é ser superado? O homem não pode permanecer criança para sempre; ele precisa sair finalmente para a "vida hostil". Pode–se chamar isso de "educação para a realidade" (Freud, 1927/2014, p.122).
Freud chega a questionar se seu projeto de educação para a realidade também seria uma espécie de ilusão, produto de suas esperanças. No entanto, afirma que há uma diferença entre a sua esperança e a ilusão religiosa. Diferentemente desta, as suas ilusões – de Freud –são passíveis de correção, se acaso a experiência mostrar que ele tenha se enganado. Ressalta que suas expectativas não possuem um caráter delirante.
Ao afirmar que sua proposta não se trata de uma ilusão, Freud assume que tal educação diz respeito a uma esperança futura. Sob a regência do deus logos, talvez o homem, deixando as esperanças do além de lado, possa concentrar as suas energias na vida terrena, no intuito de tornar a vida mais suportável para todos, sendo a cultura, no fim das contas, menos opressora (Freud, 1927/2014). Esta parece ser a felicidade possível a ser oferecida pela educação irreligiosa. Quanto à felicidade disponível ao crente, Freud utiliza um tom bastante depreciativo em seu texto:
A religião prejudica esse jogo de escolha e adaptação ao impor a todos, do mesmo modo, o seu caminho para a obtenção da felicidade e para a proteção contra o sofrimento. Sua técnica consiste em depreciar o valor da vida e desfigurar a imagem do mundo real de modo delirante, o que tem como pressuposto a intimidação do intelecto (Freud, 1930/2010, p. 78-79).
A religião disponibiliza certa felicidade ao indivíduo. E isto Freud não parece negar. Em seu ensaio Psicologia das Massas e Análise do Eu (Freud, 1921/2013), o autor chega a dizer que, de maneira torta, as ligações dos indivíduos com seitas e comunidades religiosas acabam gerando curas de suas neuroses. Ainda assim, por mais que o pensamento de Freud sobre a religião seja marcado por um movimento dialético e passível de ressignificação, como apontam Maciel e Rocha (2008), ele parece olhar o serviço por ela prestado com bastante ressalva.
A respeito do trabalho desempenhado pela religião, Freud comenta que, ao mesmo tempo em que livra o crente de uma neurose individual, ela lhe toma as rédeas de sua própria vida, o infantiliza, o força numa dependência infantil (Freud, 1930/2010). Se em outro momento, Freud a concebeu como uma neurose obsessiva, em O mal-estar na cultura ela se aproxima da paranóia, ao ser tratada como um delírio coletivo, compartilhado, mas jamais reconhecido como tal pelos seus praticantes. Repetindo a ideia apresentada no início do presente trabalho, na linha de raciocínio de Freud, o crente também faz um mau negócio:
Há, como dissemos, muitos caminhos que podem levar à felicidade tal como esta é alcançável pelo homem, mas nenhum que leve a ela com segurança. Também a religião não pode cumprir a sua promessa. Quando o crente finalmente se vê forçado a falar dos desígnios inescrutáveis de Deus, confessa com isso que nada lhe restou como possibilidade de consolo e fonte de prazer no sofrimento senão a submissão incondicional. E, se está disposto a ela, possivelmente poderia ter se poupado o rodeio (Freud, 1930/2010, p.79).
Digno de nota é o fato de que Ferry (2010) também apresenta uma ideia muito semelhante à citação freudiana:
O bem-estar não é o único ideal sobre a terra. A liberdade também é um ideal. E se a religião acalma as angústias, fazendo da morte uma ilusão, corre o risco de fazê-lo ao preço da liberdade de pensamento. Porque, de certa forma, ela sempre exige em troca da serenidade que pretende oferecer que, num momento ou noutro, a razão seja abandonada para dar lugar à fé, que se ponha termo ao espírito crítico para que se aceite acreditar. Ela quer que sejamos, diante de Deus, como crianças, não adultos em quem ela não vê, afinal, senão arrogantes raciocinadores (Ferry, 2010, p.31).
Dessa maneira, Freud propõe ante à religião, como recurso de uma felicidade possível, a citada educação para a realidade. Se é necessário resignar, se preparar para a vida e aprender a lidar com a satisfação possível, o resultado que poderíamos ter seria algo próximo aos populares versos de Sérgio Bittencourt: "se eu soubesse o quanto dói a vida/ Essa dor tão doída não doía assim" 3. Na medida em que se prepara para o sofrimento, e para as restrições que a vida nos impõe, ele parece menor. Essa é a perspectiva, ou a esperança, freudiana e requer algumas considerações.
Tendo em vista que Freud localiza o ato de educar – assim como o analisar e o governar – dentro do campo dos impossíveis (Freud, 1937/2017), fica claro que a educação para a realidade proposta não faz menção a uma espécie de projeto pedagógico de cunho profilático. Aqui, não cabe imaginar que haverá a formação de um tipo humano a ser preparado para lidar com as tragédias, as dores e os percalços da vida, um tipo adequado à realidade. Por mais que Freud (1911/1996) tenha atribuído à educação o papel de incentivar a superação do princípio do prazer, substituindo este pelo princípio da realidade – o exemplo é a educação das crianças –, o ponto de vista apresentado em O futuro de uma ilusão parece ser de outra natureza.
O que parece estar em jogo na discussão freudiana é a defesa de que se faz necessário aceitar – ou reconhecer para afirmar em um segundo momento –, a condição de ser desejante cuja realização plena é impossível. Sendo a existência marcada pelo desamparo, o sentido da vida de cada um – ancorado no princípio do prazer – não é passível de realização. Dessa forma, a educação proposta por Freud também seria um tipo de educação do desejo, se é que este pode ser educado. Caberia pensar, tendo em vista a ideia de realidade na obra freudiana (Laplanche & Pontalis, 1986; Roudinesco & Plon, 1998), que trata-se, ao mesmo tempo, de uma educação para a realidade psíquica. Na medida em que Freud reconhece e estabelece a distinção entre realidade material(externa) e a realidade psíquica – núcleo de desejos inconscientes (Roudinesco & Plon, 1998) – tal educação estaria direcionada igualmente para o desejo inconsciente. Neste sentido, para a ciência, de uma maneira geral, caberia a missão de nos preparar e antever os problemas colocados para nossa vida. À psicanalise, ficaria a função de contribuir para uma possível articulação entre a vida pulsional e a vida material externa. Destacando a dimensão desejante que atravessa a referida educação, podemos fazer uso da ideia apresentada no texto A Perda da realidade na neurose e na psicose (Freud, 1924/1996) acerca das atitudes dos neuróticos e psicóticos diante da realidade. Caberia neste movimento, diante da impossibilidade de plena satisfação e da perda fundamental, recusarmos, de forma neurótica, a realidade que se apresenta e, em um esforço – no texto freudiano, passa pelo esforço da ciência – buscar modificá-la, alterá-la, tal qual na psicose. Em alguns momentos, como diz Freud, o que nos cabe é somente a resignação. Sem suporte divino.
Cada homem saberá que depende de suas próprias forças e que deve utilizá-las da melhor maneira. Se não há resposta pela via da transcendência, há pelo esforço humano de entendimento e alteração da realidade. Depreendemos do texto freudiano (Freud, 1927/2014) um reconhecimento e uma aposta: reconhece-se a limitação humana diante de seus impulsos – desejos hostis, contraditórios –, mas aposta-se que a força do intelecto – que em um dado momento fará sua voz ecoar mais forte e ser ouvida (Freud, 1927/2014) –, nem que seja numa geração futura ainda há de se destacar diante dos impulsos. O futuro de uma ilusão: trata-se do futuro de uma religião que perde sua força a partir dos avanços da ciência ou do futuro da ilusão freudiana sustentada no deus logos?
5 Da derrota da ciência à humildade psicanalítica
Em uma de suas últimas conferências, ao defender que a psicanálise não encerra uma Weltanschauung (cosmovisão), Freud (1932/1996) se esforça para diferenciar aquilo que cabe à religião – esta sim, produtora de uma visão de mundo abrangente – daquilo que está colocado para a ciência. A religião, ele diz, explica a origem e a existência do universo, oferece proteção e felicidade definitiva nos altos e baixos da vida; orienta como agir no mundo através de preceitos. A ciência, por outro lado, não pode ofertar ao homem conforto na desventura ou prometer-lhe uma vida feliz. Ela até pode mostrar-lhe os perigos, ensiná-lo como evitar e combater determinados sofrimentos 4. No entanto, ainda que seja uma importante ferramenta, diante das grandes perguntas da vida – finitude, sentido, a morte do outro – só pode aconselhá-lo a se resignar (Freud, 1932/1996). Parafraseando Lacan, diríamos que, nesta perspectiva de Freud, a religião triunfa onde a ciência falha.
É digno de nota o fato de que aquilo que, talvez, mais nos questione – a morte – encontre um assento confortável no debate religioso. A religião, aponta Freud, transforma o aniqualimento do corpo, o retorno ao inorgânico em algo maior. Com a intervenção da Providência, o fim da vida se torna, no final das contas, um novo começo. E melhor. É a passagem para uma nova existência, superior a esta (Freud, 1927/210). Provavelmente, uma existência feliz.
Em O mal-estar na cultura, Freud propõe que somente a religião pode responder a questão do sentido da vida 5. Aliás, o autor chega a dizer que a ideia de a vida ter uma finalidade depende inteiramente da existência de um sistema religioso. (Freud, 1930/2010). Ou seja, fora do campo religioso, a questão do sentido perderia, inevitavelmente, seu sentido como questão.
Outro aspecto curioso a ser observado diz respeito ao sentimento de culpa. Este, aliás, talvez seja o principal elemento causador da infelicidade que a civilização produz. Freud diz que o progresso cultural deixa como herança uma intensificação deste sentimento. (Freud, 1930/2010). Não é nosso intento adentrarmos na temática do sentimento de culpa, apesar de sua importância no que diz respeito ao debate sobre a felicidade – ou a infelicidade – na obra de Freud. Porém, cabe citar aqui um comentário feito pelo autor.
Em uma passagem de O mal-estar na Cultura, Freud associa o sentimento de culpa ao pecado e afirma que as religiões não ignoram o papel deste na cultura. O intento delas, ele diz, é redimir a humanidade deste sentimento. No caso do cristianismo, tal redenção é alcançada através da morte de Cristo. Este tomou para si a culpa comum a todos (Freud, 1930/2010).
Freud não retira maiores conclusões de tais afirmações. No entanto, de nossa parte, diríamos que, mantendo o espírito freudiano de comparar as possibilidades de ação da religião e da ciência, o mito da crucificação atrelado à redenção dos pecados parece ser imbatível. Soa muito confortadora a ideia de que alguém tenha redimido a nossa culpa. Não é à toa que uma das canções católicas mais conhecidas do país traz em seu refrão tal clamor: "Senhor, tende piedade e perdoai a nossa culpa/ Porque nos somos vosso povo que vem pedir vosso perdão" 6. Se somos infelizes, sobretudo, porque uma espécie de sensor, hipoteticamente, fica o tempo todo nos lembrando dos pecados que, às vezes, sequer cometemos – daí a intensificação do sentimento, como dito acima –, tal promessa cristã nos soa como um bálsamo.
Retomando a ideia de cosmovisão: na Conferência aqui citada, Freud (1932/1996) comenta que a cosmovisão seria uma espécie de construção intelectual capaz de explicar e resolver, pelo menos do ponto de vista discursivo, as questões de nossa existência, tendo como referência uma hipótese superior central. Certamente, como diz Freud, ter uma construção desta natureza seria um dos desejos humanos; a posse dela – já que tudo explica – produz segurança, um tipo de conforto e orientação na lida com as emoções e interesses (Freud, 1932/1996). A psicanálise não possui, nem fornece uma construção semelhante. Aproxima-se da cosmovisão cientifica, já que é "uma ciência especializada, ramo da psicologia" (p.155), partilha dela, mas também se afasta.
A ciência até tenta buscar uniformidade na explicação de temas que compõem seu campo de investigação. Mas, sempre fracassa ou consegue sucesso parcial. A explicação da totalidade só parece possível no campo da filosofia ou da religião. Neste sentido, a parcialidade é posta tanto para a Weltanschauung científica quanto para a psicanálise. Ao reconhecer a existência do desamparo, ao qual já fizemos referência, a psicanálise se situa também como um campo marcado pela precariedade. Tanto de seu saber quanto de seu objeto. Dessa forma, além de não responder a partir de uma hipótese central – que parece fazer sentido somente no campo religioso, na figura da divindade – as já citadas questões da existência, a psicanálise tem de reconhecer que o saber e os efeitos de suas intervenções diante dos sujeitos também serão sempre parciais. Consequentemente, suas contribuições para a educação para a realidade – tanto psíquica quanto material, em nossa divisão didática – também serão precárias.
5.1 A humildade psicanalítica
Como dissemos acima, por mais que Freud tenha revisitado seu próprio pensamento a respeito da religião, o caráter de rechaço parece ser o tom da maioria de seus trabalhos. A religião encontra em Freud um status de algo menor, um estágio a ser superado. Daí advém a crença nas boas novas do deus logos. Mas, seria essa uma visão adequada a ser mantida? Que lugar poderíamos lograr à religião e, sobretudo, à fé religiosa no tocante à felicidade dos indivíduos?
De saída, nos cabe apontar um aspecto: Deus parece ser uma questão para todos. Crentes ou ateus. Mário Aletti, baseado nos trabalhos da psicanalista Ana-Maria Rizzuto (Aletti, 2004) comenta que, em nosso contexto cultural, a representação de Deus faz parte da vida psíquica de todos, o que nos exige um posicionamento frente a Ele e à religião. Rizzuto, diferentemente de Freud, nos diz Alletti, afirma que essa representação tem uma história, história que é modificada com o passar dos anos. Tal representação não tem relação direta com as bases que lhe constituíram – a descrição de Deus realizada pelos pais, por exemplo –, mas torna-se efeito de diversos fatores que vão lhe determinando ao longo do tempo, tais como o ambiente sociocultural, as relações com os genitores, com os irmãos, com o conflito edipiano, entre outras. Ao passo em que retoma funções da imago parental, tal como a proteção e carinho – o que remonta aos argumentos freudianos – não se esgota nestas. A representação de Deus torna-se, durante o desenvolvimento do indivíduo, idiossincrática e bastante personalizada (como citado em Aletti, 2004).
De nossa parte, apontaríamos que é a ideia de Deus – monoteístas que somos –, como parte de um discurso sobre a vida, valores, origem e sentido das coisas, etc, que nos exige uma resposta. Na verdade, uma aposta. Próxima ao sentido pascaliano. E obviamente há de ser uma aposta condizente ao desejo. E, nesse sentido, sempre ilusória.
A nosso ver, o ponto que realmente deve ser levado em conta é a representação, no sentido corriqueiro do termo mesmo, da religião para o indivíduo que opta pela crença. Assim sendo, a questão da origem do sentimento religioso e da própria religião queda em segundo plano. Talvez seja, em certo sentido, uma questão irrelevante. Da mesma forma, diríamos que saber se Deus existe ou não, mantendo a nossa linha de raciocínio, pouca diferença faz. No limite, essa aposta pode até prescindir da existência de Deus, na medida em que se torna uma criação do crente.
Diante de tal perspectiva, nos cabe pensar diferente de Freud. Cabe à psicanálise, como parece propor Andrade (2009), compreender que, para além da religião como sintoma neurótico e efeito do desamparo infantil, há no campo religioso práticas emancipatórias que vislumbram o exercício de uma vida mais adequada para todos, enfrentando, por exemplo, injustiça e desigualdades sociais. Ao analisar o mito de Adão e Eva, Andrade aponta que nele, apesar de se portar como apoio, Deus coloca o homem diante de suas próprias responsabilidades (Andrade, 2009). Fica o entendimento de que ao mesmo tempo em que pode ser instrumento de alienação, tal como Freud apontou, a religião também liberta.
Parece ser necessário, ainda, assumir que a religião cumpre a função de localizar, digamos, os "demônios" que atormentam o crente. Assume o papel de continente, como diz Aletti (2004), na medida em que dá certa contenção aos "sentimentos, pensamentos e fantasmas elaborados pelo indivíduo" (Aletti, 2004, p.173). Ao conter tantas aflições, amenizar as dores e produzir certo enlace social, a prática religiosa concede ao individuo um gozo de felicidade possível na vida terrena, independente até mesmo do projeto de felicidade eterna além-túmulo.
Ceccarelli (2012) comenta que, para Freud, um dos objetivos do processo analítico é fazer com o que o analisando vivencie o luto do pai, tornando-se o pai de si mesmo. No limite, Freud, como fica percetível ao longo de nosso trabalho, mantinha a crença de que a cultura, dado o progresso da ciência e a já citada educação para a realidade, também faria este trabalho de luto. Passados quase noventa anos da publicação de O futuro de uma ilusão (Freud, 1927/2014), nos parece que tal proposta está longe de se efetivar. Sendo assim, é necessário reconhecer o caráter desejante, e por isso, ilusório da proposta freudiana.
O que nos cabe depreender do esforço freudiano é o reconhecimento de que a opção pela crença parte de uma aposta do sujeito, de seu desejo, atravessada, sim, pela ilusão, mas próxima da realidade tal como Pfister chegara a apontar para Freud (Ceccarelli & Franco, 2014).
Se o desejo permeia toda a atividade humana, sobretudo a capacidade criativa, inclusive da ciência, que ele permita a cada crente fazer de sua aposta, de sua criação – e no fim das contas, da religião – um instrumento de felicidade.
6 Considerações finais
A partir do caminho trilhado no presente texto, fica claro o caráter negativo que Freud atribuíra à religião. Pensador moderno, apesar de toda a crítica à razão realizada pela psicanálise, Freud aposta – tal como Bertrand Russel – que uma educação irreligiosa, um tipo de preparação, em certo sentido, poderia auxiliar o indivíduo a lidar com as agruras da vida e com as limitações que lhe são exigidas pela cultura. Reside no intelecto, e isto não se pode negar da leitura de O futuro de uma ilusão, a esperança de que a vida possa ser organizada através do desenvolvimento da ciência. Com o passar do tempo, as promessas da religião já não seriam necessárias. Depreendemos, já que ele não afirma dessa forma, que tal educação forneceria ao individuo um tipo de felicidade possível, limitada, mas, digamos, mais honesta e condizente ao exercício de sua intelectualidade. Não parece ser tentadora tal proposta, diríamos. Ao colocarmos na balança, ainda que as promessas da religião sejam por demais fantasiosas, concluiremos que a resposta possível pela via da fé parece ser mais atraente. Além disso, há um fato curioso a ser examinado.
Quando Freud afirma não ser possível emitir um conselho válido, já que não há uma regra de ouro que garanta a felicidade, ele a situa como um problema de economia libidinal. Quer dizer: cada um, a partir da experiência e, sobretudo, do modo pelo qual investe a sua libido, seja narcísico, erótico ou obsessivo, saberá o que lhe garante felicidade. Fato é que não podemos validar, do ponto de vista ético, qualquer maneira de obtê-la; há de ser levado em conta o respeito ao outro – e é justamente este aspecto que visa garantir a cultura. No entanto, em condições nas quais o respeito prevalece, por que não assumir a prática religiosa como um caminho possível de se investir libido, de conseguir felicidade? Devido à tese do desamparo infantil? Ora, a busca pela análise não seria também efeito de um tipo de desamparo e, às vezes, de uma posição bastante infantilizada? Supomos que sim. Haja vista o caso do "Homem dos Lobos" e a postura de "pai" por Freud assumida (Pedrick, 2007).
É evidente que a psicanálise também ocupa um lugar de recurso, ou melhor, instrumento de felicidade, nem que seja pela via do alívio do sofrimento. Também é evidente que tal campo de saber e prática, diferentemente da religião e da própria filosofia – pensando nas grandes tradições antigas do pensamento filosófico – não encerra uma Weltanschauung. Além de não explicar as grandes questões da existência, não lhe cabe produzir normas, ditar comportamentos ou funcionar como um orientador da vida. Ainda assim, auxilia, à sua maneira, a busca pela felicidade, se é que esta é uma busca.
Talvez, seja possível, realmente, realizar um tipo de educação para a realidade. O trabalho diz respeito a uma educação pulsional que tanto a psicanálise, do ponto de vista da clínica, quanto a religião realizam de alguma maneira. Porém nem todos estão disponíveis para o trabalho psicanalítico, assim como nem todas as pessoas, em que pese o cálculo de Pascal, apostam na promessa da religião. Além disso, cabe a pergunta a ser colocada tanto para a psicanálise quanto para a religião: qual o alcance de tal educação? Em que medida, e à custa de quê, nossos impulsos mais obscuros podem ser tratados? À custa da felicidade? Paremos por aqui. E que Deus, se acaso ele existir, nos perdoe.
Referências
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Endereço para correspondência
Carlos Eduardo Firmino
Rua Cristal, 210 ap.210, Santa Tereza, CEP 31010-110, Belo Horizonte – MG, Brasil
Endereço eletrônico: firminosq@gmail.com
Recebido em: 14/03/2016
Reformulado em: 17/09/2017
Aceito em: 17/08/2018
Notas
* Psicólogo pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC MG). Mestrando do Programa de Pós Graduação Promoção de Saúde e Prevenção da Violência (UFMG). Especialista em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Analista de Políticas Públicas da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, Minas Gerais.
1 Macmahon, citado por Franco Filho e Odilon de Mello (2009), relata que A infelicidade na cultura (Das Ungluck in der Kultur) foi o título inicialmente escolhido por Freud. Não fica clara a motivação da mudança. Porém, supomos que a ideia de mal-estar talvez responda às duas características da infelicidade humana que citamos na sequência.
2 Prêmio Nobel de 1915, o francês Romain Rolland (1866-1944) foi um escritor, teatrólogo, ensaísta e biógrafo. Ao que tudo indica, demonstrava certo interesse pela cultura hindu, tendo publicado textos sobre líderes religiosos do mundo indiano.
3 Versos da canção "Naquela mesa" gravada por alguns nomes da Música Popular Brasileira, tais como Nelson Gonçalves e Otto.
4 Um bom exemplo diz respeito às práticas de prevenção e de promoção de saúde. Apesar de a ciência não garantir ao indivíduo a total proteção ante o adoecimento, o conhecimento das causas deste possibilita que medidas preventivas sejam tomadas para amenizar ou evitar agravos à saúde. O eterno retorno do mosquito Aedes aegypti, infelizmente, nos ensina que nem sempre as orientações dadas são seguidas adequadamente.
5 É curiosa tal assertiva, pois, como dissemos no inicio do presente artigo, Freud, no mesmo ensaio, chega a dizer que tal sentido está vinculado ao programa do princípio do prazer. Este é um bom exemplo de como o discurso freudiano vacila em alguns pontos ao se tratar da temática da religião.
6 Canção do Padre Zezinho.
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