Os serviços de atendimento pré-hospitalar móvel, denominados Serviços de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), foram normatizados no Brasil em 2003, como parte da rede de serviços do Sistema Único de Saúde (SUS), através da criação da Política Nacional de Atenção às Urgências (PNAU). Coordenado a partir de suas Centrais de Regulação Médica e acionado pelo número 192, com funcionamento 24 horas por dia, o SAMU atende às urgências de natureza traumática, clínica, pediátrica, cirúrgica, ginecoobstétrica e de saúde mental. Aponta-se que o serviço dispõe, em geral, de dois tipos de ambulâncias: as de suporte básico (SB), que incluem motorista e técnico em enfermagem; e as de suporte avançado (SA), que contam com motorista, médico e enfermeiro. O intuito do SAMU é chegar precocemente à vítima após agravo à sua saúde, buscando garantir atendimento e/ou transporte para um serviço de saúde adequado, configurando-se como uma estratégia estruturante de atendimento às urgências no país (Ministério da Saúde, 2011; O’Dwyer, Konder, Reciputti, Macedo, & Lopes, 2017).
Levando em conta a natureza do trabalho realizado, que implica se deparar com situações inesperadas, demanda-se dos profissionais do SAMU habilidades tais como agilidade, destreza e estabilidade emocional (Stumm, Ribeiro, Kirchner, Loro, & Rosanelli, 2009). Ademais, o objetivo do serviço pressupõe uma responsabilidade social importante, que se desenrola na atuação em circunstâncias críticas, as quais envolvem um contato cotidiano com situações-limite, ou seja, com a iminência da morte (Almondes, Sales, & Meira, 2016; Kolhs et al., 2017; Martins & Gonçalves, 2019; Stumm et al., 2009).
É importante sinalizar para o lugar que a morte ocupa na sociedade, visto que esse influencia na forma como os sujeitos irão lidar com a mesma. De acordo com Gellie, Mills, Levinson, Stephenson e Flynn (2015), com o avanço da modernidade e as mudanças ocorridas na sociedade, a morte - que antes era tratada como um fenômeno natural - passou a ser considerada sinônimo de fracasso, por implicar uma interrupção dos planos do homem, tornando-se um tema interdito. No contexto dos serviços de saúde, cujo ensino ainda é caracterizado como preeminente biomédico, direcionado aos cuidados curativos, o objetivo dos profissionais torna-se salvar vidas, sendo a morte vista como fracasso, que coloca em risco a credibilidade profissional (Aredes & Modesto, 2016).
Nesse sentido, entende-se que as tensões implicadas nesse limite entre a vida e a morte podem ser geradoras de estresse aos profissionais (Almondes et al., 2016; Carvalho et al., 2020; Salomé, Martins, & Espósito, 2009). Conforme Martins e Gonçalves (2019), o conceito de estresse no trabalho se refere ao estado gerado pela percepção de fatores de trabalho que extrapolam a capacidade de enfrentamento do indivíduo e que acarretam alteração emocional, ocasionando um processo de adaptação psicológica, fisiológica e comportamental.
Vignola e Tucci (2014) apontam que o estresse pode ser considerado um fator de risco para o desenvolvimento ou agravo de ansiedade e depressão. Em relação a tais constructos, considera-se que a ansiedade surge de incertezas e/ou ameaças com as quais o sujeito se confronta, sejam de ordem simbólica ou real. Já a depressão é, em geral, decorrente de uma perda que provoca desesperança, e não se limita a uma emoção específica, podendo envolver raiva, culpa ou vergonha (Apóstolo, Mendes, & Azeredo, 2006).
O modo como o indivíduo irá lidar com ou enfrentar as situações estressantes pode ser definido como coping (Savóia, Santana, & Mejias, 1996) e envolve tanto os aspectos da avaliação situacional quanto os recursos disponíveis para o enfrentamento da mesma (Guia, 2015). Conforme Folkman (1984), o coping possui duas importantes funções: regular as emoções mobilizadas pelo estresse (coping focado na emoção), e lidar com o problema que está causando o estresse (coping focado no problema). De modo geral, ambas as formas são utilizadas ao mesmo tempo, sendo as proporções variáveis conforme cada situação.
Em relação ao contexto de trabalho do SAMU, apesar do contato cotidiano com situações potencialmente estressoras, em estudo realizado por Meireles et al. (2018) com enfermeiros que trabalham no serviço, os autores verificaram baixos níveis de estresse nesses profissionais. Tal constatação foi encontrada também em outros estudos realizados com profissionais do serviço de atendimento pré-hospitalar móvel (Adriano et al., 2017; Carvalho et al., 2020; Martins & Gonçalves, 2019; Mendes, Ferreira, & De Martino, 2011).
Compreende-se que os baixos níveis de estresse podem indicar o uso de estratégias de enfrentamento efetivas para o manejo do mesmo (Meireles et al., 2018). Através de estudo realizado por Ribeiro, Pompeo, Pinto e Ribeiro (2015) com enfermeiros de um serviço hospitalar de emergência, foram identificadas estratégias de enfrentamento consideradas saudáveis, entre elas a resolução de problemas e reavaliação positiva.
Nessa lógica, pensando em favorecer o uso de tais estratégias, ressalta-se a importância da criação de espaços de discussão e diálogo. Através desses se coloca a possibilidade de construções e trocas, sejam elas formais ou informais, mediante as quais os profissionais podem discutir suas ações coletivamente, adquirir novas competências e contribuir para a cooperação e segurança na realização de suas atividades (Félix, Araújo, & Máximo, 2019).
Considerando que as profissões que lidam com a iminência de morte podem ser estressantes e desgastantes (Salomé et al., 2009), e de que nesse contexto o cotidiano de trabalho do SAMU adquire destaque, torna-se importante atentar para as principais situações estressoras e as formas de enfrentamento (coping) utilizadas pelos mesmos. Nessa perspectiva, o objetivo do presente artigo é verificar as estratégias de enfrentamento utilizadas pelos profissionais de uma equipe do SAMU frente situações de iminência de morte de pacientes, além de avaliar a correlação entre coping e ansiedade, depressão e estresse. Ressalta-se, ainda, que o enfoque para a iminência da morte no presente estudo se justifica pela função do SAMU - de manutenção da vida do paciente durante o transporte a um serviço de saúde - que faz com que os profissionais estejam cotidianamente em contato com essas situações-limite.
Método
O presente estudo utilizou o método quantitativo, o qual define-se pelo caráter sequencial e comprobatório.
Participantes e Cenário do Estudo
Participaram do estudo 43 profissionais, de todas as categorias profissionais que compõe a equipe do SAMU, sendo 8 médicos, 5 enfermeiros, 15 técnicos em enfermagem e 15 condutores, de ambos os sexos. Destaca-se que tal quantitativo contemplou quase a totalidade do serviço (89,6%), que é composto por 48 profissionais. Deste modo, houve apenas 1 recusa e 4 participantes que se encontravam em férias/licença.
Enquanto critério de inclusão, definiu-se a participação de médicos, enfermeiros, técnicos em enfermagem e condutores, de ambos os sexos. A escolha por contemplar todas as categorias profissionais ocorreu em virtude da intenção de se obter um panorama geral acerca das estratégias de enfrentamento utilizadas pelos profissionais frente às situações de iminência de morte de pacientes. Foram excluídos apenas profissionais que estivessem em licença ou férias. A coleta dos dados foi realizada no local de trabalho dos participantes, ou seja, na Base do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência de uma cidade no interior do estado do Rio Grande do Sul, entre os meses de agosto e setembro de 2019. Aponta-se que a referida Base do Serviço foi escolhida por ser a única do município no qual foi realizada a pesquisa. Com funcionamento há quase 10 anos, a mesma conta com três ambulâncias de Suporte Básico (SB) e uma de Suporte Avançado (AS) para a realização de atendimentos no município e de transportes de pacientes a até 200 quilômetros de distância.
Instrumentos
Realizou-se a coleta de dados através da aplicação de dois instrumentos, o DASS-21, que contou, em sua parte introdutória, com algumas questões de caracterização da amostra, seguido da aplicação do Inventário de Estratégias de Coping.
O DASS (Depression, Anxiety and Stress Scale, em português: Escala de Depressão, Ansiedade e Estresse) é um instrumento de autorrelato, elaborado por Lovibond e Lovibond em 1995 através do qual se avalia sintomas de ansiedade, depressão e estresse. Existem duas versões, a de 42 (que compreende três subescalas de 14 itens cada para avaliar os sintomas nucleares de depressão, ansiedade e estresse) e a de 21 itens (que compreende as mesmas subescalas, mas com 7 itens cada). A subescala de depressão avalia sintomas tais como disforia, desânimo, autodepreciação e inércia; a de ansiedade avalia ansiedade situacional, ansiedade subjetiva e efeitos musculoesqueléticos; já a de estresse inclui itens relacionados à dificuldade em relaxar, reação exagerada/irritável e impaciência (Vignola & Tucci, 2014). A escala utilizada no presente estudo foi a DASS-21, adaptada e validada para a língua portuguesa por Vignola e Tucci (2014). Aponta-se que a consistência interna obtida por intermédio do Alfa de Conbrach em amostra brasileira foi de 0,92 para a subescala de Depressão, 0,90 para a de Estresse e 0,86 para a de Ansiedade. Os 21 itens são relativos aos acontecimentos da última semana do indivíduo e os escores, mensurados a partir de escalas likert, variam do 0 (não se aplicava a mim) a 3 (aplicava-se muito a mim, ou a maior parte do tempo). Para calcular o resultado final, o total da soma de cada subescala é multiplicado por 2. Nesse sentido, as notas mais elevadas em cada escala correspondem a estados afetivos mais negativos (Vignola & Tucci, 2014).
Quanto ao inventário, elaborado por Folkman e Lazarus em 1985 (Folkman & Lazarus, 1985), aponta-se que o mesmo avalia pensamentos e ações que as pessoas utilizam para lidar com demandas internas ou externas de um evento estressante específico (Savóia & Amadera, 2016) (no caso da presente pesquisa, indicou-se a situação “iminência de morte de pacientes durante atendimentos”). Foi utilizada a versão disponível em português, elaborada e validada por Savóia et al. (1996), com uso dos procedimentos de teste-reteste para a precisão e de validade concorrente, fatorial e consistência interna para validação. Essa adaptação do inventário consiste em 8 diferentes fatores, sendo eles: confronto, afastamento, autocontrole, suporte social, aceitação da responsabilidade fuga-esquiva, resolução de problemas e reavaliação positiva. O inventário é composto de 66 itens que abrangem os 8 fatores mencionados. Cada fator verifica a extensão com que um sujeito utiliza determinada estratégia de coping. Para se obter o percentual de respostas em cada fator, multiplicou-se a pontuação média do mesmo por 100, dividindo o valor obtido pela pontuação máxima possível em cada fator. Quanto maior a pontuação, mais frequentemente determinada estratégia é utilizada (Savóia & Amadera, 2016).
Procedimentos
Para a realização da coleta de dados, inicialmente efetuou-se um rapport, no qual foram feitos esclarecimentos acerca da pesquisa. Após a concordância dos participantes e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, a aplicação dos instrumentos foi realizada em pequenos grupos, de cerca de 9 pessoas, visto que esse é o quantitativo de profissionais em cada plantão. A coleta de dados iniciou-se pela aplicação do DASS-21, e dos itens de caracterização da amostra contidos na introdução do mesmo, seguido do Inventário de Estratégias de Coping, os quais foram preenchidos pelos próprios participantes. Aponta-se que a aplicação dos instrumentos foi realizada pela autora principal, após uma breve capacitação com um dos pesquisadores envolvidos no estudo. O tempo médio para o preenchimento dos instrumentos foi de cerca de 20 minutos. Nas situações em que a aplicação precisou ser interrompida por um chamado do serviço, o participante finalizava o preenchimento dos instrumentos posteriormente.
Análise dos Dados
Para a análise dos dados obtidos através da aplicação do DASS-21 e do Inventário de Estratégias de Coping foi utilizada estatística descritiva e inferencial, a partir do programa SPSS (Statistical Package for the Social Sciences) versão 20. A análise de normalidade dos dados foi feita por intermédio do teste de Klomogorov-Smirnov, sendo verificados os valores de curtose e assimetria das variáveis a serem analisadas, que se situaram em torno de 0. Para a correlação dos instrumentos foi utilizado o Coeficiente de Correlação de Pearson.
Aspectos Éticos
O presente estudo seguiu os princípios regidos pela Resolução 510 de 07 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde, a qual guia a ética nas pesquisas com seres humanos em Ciências Humanas e Sociais (Conselho Nacional de Saúde, 2016). Conforme normativas das resoluções, foram assegurados os direitos e deveres dos participantes da pesquisa, da comunidade científica e do Estado. Ademais, a pesquisa só foi colocada em prática após a aprovação do Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Maria, sob o número CAAE 17825519.7.0000.5346.
Resultados e Discussão
A amostra do presente estudo foi composta por 43 profissionais das diferentes categorias que integram as equipes de Suporte Básico (SB) e Suporte Avançado (SA) do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência de um município no interior do estado do Rio Grande do Sul. O tempo de profissão variou de 3 meses a 26 anos, todavia, mais de 70% da amostra referiu exercer a profissão há mais de 5 anos. Quanto ao perfil de trabalho, aponta-se que a carga horária exercida por esses profissionais no SAMU variou de 18 a 48 horas semanais. Ademais, 69,8% indicaram possuir outro emprego. A faixa etária dos participantes esteve compreendida entre 22 e 56 anos, com idade média de 35 anos. Quanto ao gênero, houve predomínio do sexo masculino (79,1%). Aponta-se que esse perfil etário e de gênero foi encontrado em outros estudos (Adriano et al., 2017; Mendes et al., 2011), e pode estar relacionado às características das atividades executadas, que demandam agilidade e força física, geralmente atribuídas aos homens jovens.
Quanto ao uso de estratégias de enfrentamento ao estresse por esses participantes, percebe-se a partir da Tabela 1, que a análise dos resultados indica que as estratégias de enfrentamento mais utilizadas pelos profissionais foram, em primeiro lugar resolução de problemas, seguido de autocontrole e reavaliação positiva. Já as menos utilizadas foram fugaesquiva e confronto.
Estratégias | Mín. | Máx. | M | DP |
---|---|---|---|---|
Confronto | 0 | 12 | 11,22 | 2,773 |
Afastamento | 1 | 13 | 21,50 | 2,616 |
Autocontrole | 0 | 13 | 40,60 | 2,671 |
Suporte Social | 0 | 15 | 34,38 | 3,965 |
Aceitação de responsabilidades | 0 | 18 | 33,42 | 3,615 |
Fuga esquiva | 0 | 6 | 14,33 | 1,698 |
Resolução de problemas | 0 | 12 | 61,41 | 2,952 |
Reavaliação positiva | 1 | 25 | 38,18 | 5,736 |
Min: mínimo; Max: máximo: M: média; DP: desvio padião.
Aponta-se que a resolução de problemas foi a estratégia de enfrentamento que ganhou destaque nos resultados da pesquisa. Tal estratégia pressupõe o planejamento apropriado para lidar com os estressores. Já o autocontrole - segunda estratégia mais utilizada pelos participantes - refere-se aos esforços que o sujeito empenha para conter as emoções frente aos estímulos estressantes, além disso implica em não realizar ações de forma impulsiva. Por fim, a reavaliação positiva se relaciona ao controle das emoções relativas à tristeza, o que envolve um processo de reinterpretação, crescimento e mudança pessoal (Damião, Rossato, Fabri, & Dias, 2009).
Ao analisar o uso da estratégia de resolução de problemas, compreende-se que a mesma está relacionada às características intrínsecas do SAMU, visto que o serviço é acionado frente a agravos à saúde que possam acarretar sofrimento, sequelas ou mesmo a morte de sujeitos, o que implica que os profissionais realizem um trabalho integrado, baseado em fundamentação teórica, preparo físico e estabilidade emocional (Stumm et al., 2009). A mesma lógica é válida para o entendimento do uso do autocontrole como estratégia de enfrentamento, visto que segundo Campos, Farias e Ramos (2009) essa é uma característica necessária ao trabalho no serviço, somada a aspectos tais como equilíbrio emocional, disposição para a atividade e capacidade para o trabalho em equipe.
Quanto às estratégias menos utilizadas, compreende-se que o confronto, ainda que implique uma atitude ativa, vai na contramão da ideia do trabalho no SAMU, no qual o profissional se depara, cotidianamente, com situações inesperadas (Stumm et al., 2009), o que demanda flexibilidade. Quanto à fuga-esquiva, que segundo Damião et al. (2009) consiste nos esforços para escapar ou evitar a situação estressante, é possível depreender que a mesma se coloca como uma estratégia pouco utilizada justamente por ir de encontro à resolução de problemas, a qual foi indicada como a mais utilizada.
Aponta-se que os resultados do presente estudo são análogos aos encontrados por Ribeiro et al. (2015), através de pesquisa realizada com enfermeiros de um serviço hospitalar de emergência. Os autores indicam que as estratégias de enfrentamento mais utilizadas por esses profissionais foram a resolução de problemas e reavaliação positiva, e a estratégia menos utilizada foi o confronto. Da mesma forma, o estudo de Rodrigues e Chaves (2008), realizado com enfermeiros de unidades de internação de oncologia de hospitais de São Paulo, também apontou a reavaliação positiva e resolução de problemas como as estratégias mais utilizadas pelos participantes. Todavia, esses autores constataram que a aceitação de responsabilidade foi a estratégia de coping menos utilizada, o que difere do presente estudo.
Além do uso das estratégias mencionadas, que são definidas a partir dos fatores estabelecidos no Inventário de Estratégias de Coping, alguns autores apontam diferentes recursos que os profissionais da saúde do SAMU utilizam para o enfrentamento do estresse. Stumm, Oliveski, Costa, Kirchner e Silva (2008), através de pesquisa realizada com enfermeiros do SAMU, identificaram que as estratégias de enfrentamento utilizadas frente aos estressores no ambiente de trabalho foram “desligar-se” do mesmo, praticar atividades físicas, manter um diálogo no ambiente de trabalho e estar com a família.
Nessa mesma linha de pensamento, Martins e Gonçalves (2019) ao investigarem as estratégias utilizadas pelos trabalhadores do SAMU para lidar com as situações cotidianas, corroboram tais apontamentos. Os autores verificaram que há destaque para a prática de atividade física, a convivência com a família, a relação positiva com trabalho realizado e o fenômeno da habituação acerca das situações vivenciadas.
É importante ressaltar que as estratégias de coping utilizadas pelo indivíduo são determinadas, em parte, pelos recursos internos e externos que o mesmo possui, o que envolve aspectos referentes à saúde, crenças, suporte, responsabilidade, entre outros (Rodrigues & Chaves, 2008). Ademais, o processo de coping não é rígido, podendo se modificar de acordo com a (re)avaliação da situação estressora. Nesse sentido, Ribeiro et al. (2015), apontam a relevância de que as estratégias de enfrentamento possam ser auxiliadas por programas educacionais e por espaços de escuta e discussão das dificuldades relacionadas ao trabalho, pois, conforme Dejours (1997), as discussões em busca por condições melhores na realização do trabalho são experenciadas como uma vivência de prazer no trabalho. Frente a isso, coloca-se a importância de investimentos em espaços de diálogo, que permitam a troca e o compartilhamento entre os profissionais do serviço, visando a integração da equipe e o estímulo ao uso de estratégias de enfrentamento saudáveis.
Quanto aos resultados obtidos através da aplicação da Escala de Depressão, Ansiedade e Estresse (DASS-21), indica-se que há uma baixa prevalência de ansiedade, estresse e depressão na amostra estudada. Aponta-se que a média de estresse verificada na amostra foi de 8,19 (Desvio Padrão (DP)=7,44); a média de ansiedade foi de 3,09 (DP=3,98); e média de depressão foi 4,78 (DP=5,70).
Tais médias encontram-se dentro da classificação “normal”, de acordo com critérios definidos pelos autores que desenvolveram o instrumento. Esta compreende escores entre 0 e 14 para estresse; entre 0 e 7 para ansiedade; e entre 0 e 9 para depressão (Vignola & Tucci, 2014). Destaca-se que o estresse apresentou desvio padrão de 7,44, o que indica uma dispersão maior dos resultados da amostra em relação à média.
Embora não tenha sido observada nenhuma discrepância extrema quanto às variáveis mensuradas pelo instrumento DASS-21 na amostra investigada, houve discrepância leve indicando escores mais altos em 3 casos de estresse, 1 de ansiedade e 1 de depressão. No que se refere ao estresse mensurado, uma explicação possível se atrela ao fato de que tais sujeitos também apresentaram elevação nos escores de ansiedade e depressão. Além disso, observouse que tais participantes fizeram maior uso de estratégias tais como confronto e autocontrole, relação que é explicada com a correlação dos instrumentos.
Pode-se depreender que os baixos índices de ansiedade e depressão apresentados pelos participantes estão relacionados à baixa incidência de estresse nos mesmos. Isso porque, de acordo com Vignola e Tucci (2014) o estresse tem se mostrado um fator de risco para o desenvolvimento ou agravo de ansiedade e depressão, afetando a qualidade de vida e prejudicando a produtividade. Ademais, de acordo com Apóstolo et al. (2006), ansiedade, depressão e estresse podem ser considerados diferentes pontos no mesmo contínuo, ou seja, manifestações que compartilham alguns sintomas.
Os resultados do presente estudo estão de acordo com dados encontrados na literatura. Em estudos com profissionais do atendimento pré-hospitalar móvel, Adriano et al. (2017), Martins e Gonçalves (2019) e Mendes et al. (2011) constataram resultados semelhantes. Esses autores destacam que, apesar do cotidiano marcado por situações limite permeadas pelo contato com a dor e o sofrimento, os profissionais apresentaram uma baixa incidência de estresse. Carvalho et al. (2020), ao realizar uma pesquisa com profissionais de enfermagem do SAMU de um município de Pernambuco, também encontrou resultados análogos, com aproximadamente 75,4% dos participantes classificados sem estresse.
De acordo com Mendes et al. (2011), a constatação de baixos níveis de estresse em profissionais que atuam no pré-hospitalar é um fato que contrapõe o que era comumente encontrado em outras pesquisas, visto que o serviço é marcado pela imprevisibilidade, que tende a acarretar potencial estresse. Essa observação pode ser esclarecida a partir do entendimento de que o estresse vivenciado por esses profissionais não ultrapassa uma primeira fase, considerando que após o atendimento a vítima é transportada a outro serviço, o que acarreta diminuição da ansiedade gerada (Martins & Gonçalves, 2019).
Aponta-se que outro dado encontrado através da presente pesquisa diz respeito a uma correlação negativa significativa entre o tempo que o profissional exerce a profissão e os níveis de estresse e ansiedade (estresse: -,339, ansiedade: -,347, sendo p<0,001). Esse dado pode ser explicado a partir do entendimento de que a experiência e o tempo de serviço, envolvendo o contato diário com situações potencialmente geradoras de estresse, pode fazer com que o profissional desenvolva uma certa habituação quanto a elas (Martins & Gonçalves, 2019). Tal entendimento coloca-se como uma explicação viável aos resultados encontrados no presente estudo, visto que mais de 70% da amostra referiu exercer a profissão a mais de 5 anos.
Ademais, compreende-se que apesar de os profissionais do SAMU vivenciarem situações de estresse, há momentos que geram grande prazer, como um parto, por exemplo (Martins & Gonçalves, 2019). Kolhs et al. (2017) também afirmam, através de estudo realizado com enfermeiros atuantes em um setor de urgência e emergência hospitalar, que alguns fatores que podem gerar prazer no trabalho são aspectos como a dinâmica e interação no/do serviço, gostar do que faz e, ainda, o reconhecimento obtido através do trabalho.
De acordo com Dejours (1997), a vivência do prazer no trabalho está relacionada à aspectos que envolvem a autonomia, o reconhecimento e na relação entre o trabalhador e seus pares. Corroborando com esse entendimento, Sousa e Araújo (2015) buscaram investigar estresse e resiliência entre profissionais da área da saúde, e identificaram altos escores de satisfação no trabalho, os quais podem estar associados à qualidade das relações entre equipe, que se caracteriza como um dos principais motivadores no ambiente laboral. Ademais, os autores apontam que o suporte social se constituiu como o fator de proteção mais significativo, que pode ser promovido a partir de relações saudáveis entre os profissionais.
Com a finalidade de compreender melhor os resultados obtidos na presente pesquisa, realizou-se a correlação dos dois instrumentos aplicados. A partir disso, aponta-se que houve uma correlação significante entre os fatores fuga-esquiva e confronto e níveis mais significativos de ansiedade, estresse e depressão. O fator fuga-esquiva teve uma maior correlação com estresse (0,732), seguido de ansiedade (0,677) e depressão (0,540). Já o fator confronto teve correlação significativa com estresse (0,625) e ansiedade (0,577). Tais resultados podem ser observados na Tabela 2.
Estresse | Ansiedade | Depressão | |
---|---|---|---|
Reavaliação positiva | 0,23 | 0,40* | -0,54 |
Resolução de Problema | 0,19 | 0,20 | 0,01 |
Fuga esquiva | 0,73** | 0,68** | 0,54** |
Aceitação de responsabilidade | 0,41** | 0,45** | 0,02 |
Suporte social | 0,12 | 0,32* | -0,07 |
Autocontrole | 0,43** | 0,47** | 0,27 |
Afastamento | 0,34* | 0,48** | 0,32* |
Confronto | 0,62** | 0,58** | 0,40** |
*p<0.05. Escore de Coeficiente de Correlação de Pearson (r)> 0,5: grande.
Sinaliza-se o fato de que as estratégias de fuga-esquiva e confronto, que tiveram correlações significativas com estresse, ansiedade e depressão, foram indicadas como as menos utilizadas pela amostra estudada. Nesse sentido, levando em conta a correlação apontada, tal dado poderia auxiliar na explicação dos baixos índices de estresse, ansiedade e depressão nos participantes.
Ademais, afastamento, aceitação de responsabilidades e autocontrole também foram estratégias que apresentaram resultados estatisticamente significativos, ainda que não tão elevados, com ansiedade e estresse. A correlação entre autocontrole e estresse pode explicar o desvio padrão do mesmo na amostra, visto que essa estratégia foi indicada entre as mais utilizadas.
Destaca-se que o presente estudo corrobora os dados de Melo, Carlotto, Rodriguez e Diehl (2016), que realizaram um levantamento bibliográfico de produções nacionais sobre estratégias de enfrentamento utilizadas por trabalhadores, além de analisar as variáveis associadas as mesmas. Os autores afirmam que a literatura indica uma correlação significativa entre o estresse e o uso de estratégias como fuga-esquiva, confronto e afastamento.
Entende-se que, ainda que não exista coping correto ou errado, visto que as estratégias utilizadas pelos sujeitos para o enfrentamento do estresse poderão ser muito particulares, pode-se falar em coping efetivo ou não (Rodrigues & Chaves, 2008). Assim, depreende-se que, apesar das implicações singulares de cada sujeito na construção de estratégias de enfrentamento, a oferta de um espaço de diálogo no ambiente de trabalho e o investimento em relações humanas saudáveis se colocam como importantes ferramentas para reduzir a ação negativa dos estressores (Adriano et al., 2017). Nesse viés, aponta-se que, ainda que o suporte social não tenha sido indicado como a estratégia de enfrentamento mais utilizada pelos participantes do presente estudo, é uma das que apresentou as menores correlações com estresse, ansiedade e depressão, indicando a possível potencialidade de seu uso e a importância de investimentos na mesma.
Félix et al. (2019) afirmam que o trabalho do SAMU é complexo e exige que tarefas distintas se articulem em torno de uma finalidade em comum, demandando competência técnica, comunicação e cooperação da equipe. Nesse sentido, além de contribuir para a construção de estratégias de coping mais efetivas e saudáveis, a promoção de espaços que permitam o acolhimento de angústias e o compartilhamento de saberes entre os profissionais que compõe a equipe do SAMU também é importante para a efetivação de um trabalho de qualidade.
Considerações Finais
Os resultados do presente estudo indicam que as estratégias de enfrentamento mais utilizadas pelos profissionais do SAMU frente a um cotidiano marcado pelo contato com situações de iminência de morte, são resolução de problemas, autocontrole e reavaliação positiva. Esses indicativos apontam para um processo de coping saudável, que envolve aspectos como planejamento e reflexão. Compreende-se que o incentivo para um trabalho integrado entre a equipe e bem fundamentado teoricamente contribui para o uso de tais estratégias. Quanto às estratégias menos utilizadas - fuga-esquiva e confronto -, entende-se que as mesmas se contrapõem às características do trabalho, que envolvem flexibilidade frente ao enfrentamento de situações-limite.
Em relação aos índices de estresse, ansiedade e depressão, aponta-se que elesforam baixos no presente estudo, o que pode ser compreendido através da consideração de que estratégias de enfrentamento saudáveis do estresse contribuem para a diminuição de seus impactos negativos. Essa consideração é confirmada através da correlação entre os instrumentos, que indicou que as estratégias menos utilizadas pelos participantes tiveram as correlações mais altas com estresse, ansiedade e depressão. Destaca-se que o suporte social foi uma estratégia que apresentou baixa correlação com esses constructos, apontando para a importância de investimento na mesma, através do incentivo a espaços de diálogo que fortaleçam o compartilhamento de vivências entre os profissionais, estimulando a integração da equipe.
Considera-se que ainda que o tamanho da amostra possa limitar as conclusões, os dados obtidos são importantes para o entendimento das particularidades do trabalho no SAMU. Aponta-se que embora existam alguns estudos que buscam investigar estresse e estratégias de enfrentamento no SAMU, poucos abarcam a totalidade de categorias profissionais do serviço, o que se coloca como uma limitação para a análise de possíveis discrepâncias, mas também revela potencialidades quanto à realização de novos estudos.
Indica-se que o presente estudou traz como contribuição a possibilidade de compreender as estratégias de coping mais utilizadas pelos profissionais frente às situações de iminência de morte de pacientes, além de revelar possibilidades a serem investidas e desenvolvidas nesse e em outros serviços. Para as análises propostas no presente estudo, a escolha por contemplar apenas um serviço do SAMU se mostrou satisfatória, todavia, novos estudos poderiam contemplar um número maior de serviços de atendimento emergencial, buscando investigar possíveis discrepâncias entre diferentes serviços e regiões.