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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.1 São João del-Rei jan./abr. 2016
Vozes que ecoam: Feminismo e Mídias Sociais
Voices that echo: Feminism and Social Media
Voces que se hacen eco: Feminismo y losmediossociales
Mayara Pacheco Coelho
Professora no Centro Universitário Salesiano de São Paulo - UNISAL, unidade Americana/SP; Mestre em Psicologia, linha Processos Psicossociais e Socioeducativos, pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ). Contato: mayarapachecocoelho@gmail.com
RESUMO
O movimento feminista, contemplado em suas três fases, apresenta bandeiras condizentes com o momento histórico e a sociedade na qual se consolida como movimento social. Como movimento, há rupturas, desdobramentos, avanços e retrocessos. Bandeiras intituladas "feministas" podem ser muitas vezes dissonantes e até coexistirem. Com a ascensão da internet comercial insurgem coletivos feministas na mesma proporção que grupos contrários. Vale lembrar que atualmente quando se fala em igualdade entre os sexos, fala-se em igualdade na diferença. Com as redes móveis e o Ciberfeminismo, amplia-se o alcance das discussões, porém tem-se um aumento significativo dos ataques contra as próprias mulheres. Este ensaio surge em um cenário de grande movimentação nas redes sociais. Propõe-se então um resgate da história de luta do movimento feminista e sua articulação com ativismo online e discussões movidas por likes e hashtags
Palavras-chave: Movimento Feminista; mídias sociais; teoria queer; movimentos sociais; gênero.
ABSTRACT
Feminist movement, contemplated in its three phases, has causes according to the historical moment and society in which consolidates itself as a social movement. As social movement, there are disruptions, developments, advances and retreats. "Feminists" titled causes can be dissonant and even coexist. Feminist collectives insurge with the rise of commercial Internet. They appear proportionally as opposed groups. Nowadays, when talking about equality between sex, it means equality in difference. Mobile networks and Ciberfeminism expands the reach of the discussions, but there is a significant increase in attacks against women. This paper arises in a great activity setting in social medias. Then it is proposed a rescue about the history of struggle of the feminist movement and its linkage with online activism and discussions driven by likes and hashtags.
Keywords: Feminist Movement; social media; queer theory; social movements; gender.
RESUMEN
El movimiento feminista, visto en sus tres etapas, tiene banderas en consonancia con el momento histórico y la sociedad en la que se consolida como un movimiento social. Como movimiento, tiene las pausas, los desarrollos, avances y retrocesos. Banderas tituladas "feministas" pueden ser a menudo disonantes e incluso coexistir. Con el auge de la Internet comercial rebelanse colectivos feministas en la misma proporción que los grupos oponentes. Recuerde que hoy en día cuando se trata de la igualdad de género, se habla de igualdad en la diferencia. Con las redes móviles y ciberfeminismo, el alcance de la discusión se expande, pero ha habido un aumento significativo en los ataques a las propias mujeres. Este ensayo se produce en un escenario de gran movimiento en las redes sociales. Se propone entonces un rescate de la historia de la lucha del movimiento feminista y su relación con el activismo en línea y discusiones movido por gustos y hashtags.
Palabras clave: El movimiento feminista; redes sociales; la teoría queer; movimientos sociales; género.
Vozes que ecoam: Feminismo e Mídias Sociais
Introdução
A inquietação para este trabalho surgiu na experiência docente. Como professora universitária, assumi o compromisso social de levar a temática de gênero para dentro da sala de aula. Ao longo do ano letivo, duas oficinas sobre o tema foram desenvolvidas em parceira com alunos de um centro universitário católico do interior de São Paulo. Também utilizei a sala de aula como plataforma e espaço de discussão, mobilizando e ativando meus interlocutores.
Em uma dessas experiências, o tema "feminismo" foi levado para ser discutido com alunos do 7º semestre de Psicologia. O debate teve início com as perspectivas dos próprios alunos sobre o assunto. As representações sobre o movimento feminista eram, em sua maioria, negativas. A fala de uma aluna deixou-me inquieta: "- Professora, nunca ouvi nada de bom vindo de alguém que se intitula "feminista". Minha timeline1e a de muitos aqui está repleta de insultos e de mulheres querendo dizer como devemos ser ou agir". Essa fala resume o que foi enunciado pela maioria dos alunos presentes.
Esse feminismo de timeline apontado pela aluna se aproxima do que a escritora Tati Bernardi descreveu em uma publicação na Folha de São Paulo, em artigo intitulado "Respeite as mulheres, sua vaca". Na publicação, Bernardi (2015) apresenta um feminismo que agride, direta ou indiretamente, qualquer um que discorde do mainstream. Esse feminismo se constitui como uma verdadeira patrulha cibernética movida por hashtags2. Para a escritora, paira nas redes um feminismo agressivo que não admite posições divergentes.
Essa visão de feminismo me soou (e soa) estranha se comparada ao feminismo que me foi apresentado ainda na graduação em Psicologia, não devido ao conteúdo programático, mas pela oportunidade de participar de um projeto de Iniciação Científica. Nessa experiência tive a oportunidade de conviver com uma das precursoras na incorporação dos estudos de gênero na Psicologia Social brasileira, principalmente em Minas Gerais (Nuernberg, 2005). Além de me apresentar o feminismo como um movimento político, crítico e libertário, pude também acompanhar os laços afetivos existentes entre minha co-orientadora e demais companheiras, colegas de profissão e também feministas.
Voltando-me à fala da aluna e ao texto da escritora Tati Bernardi, algumas indagações me assolaram: Que feminismo é esse que ecoa nas redes sociais? O mesmo presente no discurso da aluna e da referida escritora como um "feminismo goela abaixo"? A quem esse feminismo serve? A mim, a você, à minha vizinha que apanha do marido? À moradora de rua, dependente química, que vive fugindo da polícia? À mãe de família da periferia que está desempregada num momento de crise econômica e política? Ou somente àquelas que se apropriam do mesmo discurso via redes sociais? Àquelas que curtem e compartilham postagens e assim disseminam as mesmas ideias e opiniões? Essas ideias seriam ecos do ambiente digital ou seriam perpetuadas no cotidiano? É possível problematizar ou aprofundar qualquer discussão dessa forma? Ou o que realmente se deseja é um aval robótico para toda e qualquer causa impulsionada por likes e compartilhamentos? Será que só de xingamentos e dispersão vive o feminismo nas redes?
Assim, toda essa inquietação me fez olhar com cautela as movimentações nas redes e a dar um passo atrás em busca da história de luta do movimento feminista, seus desdobramentos, avanços e retrocessos.
Mas afinal, o que é feminismo?
Movimento Feminista, para Nogueira (2001), pode ser definido como um movimento social em prol da equiparação dos sexos quanto ao exercício de direitos civis e políticos. Esse é o objetivo central do movimento, embora o próprio conceito seja controverso e tenha dado origem a diversos posicionamentos.
É possível identificar três fases no movimento feminista: a primeira se situa na metade do século XIX, tendo como principal reivindicação o direito ao voto (sufragismo); a segunda se associa aos movimentos pós-segunda guerra, com o slogan: "O que é que os homens fazem que as mulheres não possam fazer?" e a terceira e atual, também chamada de pós-feminismo, caracterizada pelo Backlash - movimento reacionário contra o próprio feminismo (Nogueira, 2001).
Nas décadas de 1960 e 1970, surge o novo feminismo, em paralelo com a luta dos negros norte-americanos pelos direitos civis e com os movimentos contra a Guerra do Vietnã. Nesse período questões ligadas à raça, classe, gênero e orientação sexual se articulam às demandas feministas e surgem o Feminismo Negro e Feminismo Lésbico. Essas ramificações levam em consideração a combinação de diversas opressões extrapolando assim a ideia de que as mulheres sofrem opressão apenas em função de seu gênero.
No Brasil, a segunda onda teve início nos anos 1970, num momento de crise da democracia. Além de lutar pela valorização do trabalho da mulher, o direito ao prazer e ao próprio corpo, contra a violência sexual, o movimento também levou mulheres à luta contra a ditadura militar. O Feminismo Negro no Brasil começou a ganhar força no final da década de 1970 e início da década de 1980, lutando para que as mulheres negras se tornassem sujeitos políticos.
Di Fiori e Santos (2007) divergem de Nogueira (2001) no ponto da terceira onda do Movimento Feminista. Para os autores, há sim um momento de desfragmentação, ocasionando o surgimento de outras correntes como o anarco-feminismo, eco-feminismo, feminismo pop, entre tantas outras. É importante frisar o papel da Academia para a terceira fase, na interseção com a luta do movimento de mulheres (Di Fiore & Santos, 2007).
Contudo, a proposta central do momento atual se refere ao estudo das relações de gênero, pensando simultaneamente igualdade e diferença. Discute-se a singularidade de mulheres no mundo capitalista, falocêntrico, racista (Azerêdo, 2007) e homofóbico, dentro de uma perspectiva plural. As questões feministas não se encerram em torno de "uma mulher", como um sujeito único, mas de "mulheres": brancas, negras, domésticas, índias, ricas, donas de casa, artistas, lésbicas, trans, entre tantas outras, que por serem diferentes e iguais sofrem iguais e diferentes opressões.
Os questionamentos do Feminismo, como crítica teórica e também como movimento social, estão relacionados ao descentramento do sujeito e são, em consequência, desestabilizadores (Hall, 1998). Esses mesmos questionamentos não são aceitos de forma unânime. Por isso é comum movimentos contrastantes, desfragmentação e resistência dentro dos próprios movimentos intitulados "feministas".
Feminismo e Teoria Queer
Uma vertente do feminismo que vem conquistando cada vez mais espaço é a Teoria Queer. O que hoje chamamos de queer surgiu como uma crítica à ordem sexual contemporânea. Associou-se ao movimento da contracultura e aos chamados novos movimentos sociais. Três movimentos estão mais associados ao queer: o movimento feminista da chamada segunda onda, dos negros e o dos homossexuais. As primeiras lutavam pela contracepção e o controle sobre o próprio corpo3; os negros, no sul dos EUA, lutavam pela conquista dos direitos civis, e os homossexuais lutavam pelo reconhecimento das identidades e orientações sexuais. Esses movimentos afirmavam que o privado era também político (Miskolci, 2012).
Queer vem de um xingamento, um palavrão em inglês, uma injúria. A política e a Teoria Queer se instituíram na década de 1980, nos EUA, juntamente ao surgimento da epidemia de AIDS. O termo surge ligado a um movimento representativo de uma parte rejeitada, humilhada, considerada motivo de desprezo e nojo. O queer surge como reação e resistência (Miskolci, 2012).
Mikolci (2014), citando Butler (2012), diz que cultura e sociedade circunscrevem os limites do pensável, porém o impensável não está fora da cultura, mas dentro dela. Sendo assim é possível pensar de forma insurgente, pelas bordas, que muitas vezes pertencem ao campo do abominável, do desprezível.
A vertente Queer vem então questionar se o sujeito do feminismo é mesmo a mulher. Em função de que boa parte da produção feminista é feita com o pressuposto de que gênero é a mulher, a Teoria Queer trata gênero como algo cultural: masculino e feminino estão em homens e mulheres (nos dois). Amplia-se assim o alcance do feminismo (Miskolci, 2012).
Cada um de nós - homem ou mulher - tem gestuais, formas de pensar, que a sociedade pode qualificar como masculinos ou femininos independente do nosso sexo biológico. No fundo, gênero é relacionado a normas e convenções que variam no tempo e de sociedade para sociedade (Miskolci, 2012, p. 31).
Em "Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade", Butler (2012) nos propõe que gênero não é um substantivo, mas um verbo. Gênero não se refere a atributos vagos, mas um efeito de gênero é a performatividade, assim gênero é sempre um ato. Butler propõe um questionamento das identidades e a desconstrução do que habitualmente chamamos de "mulheres", "homens" e "gênero", criticando assim o binarismo ainda tão presente no feminismo: homem X mulher; masculino X feminino. Azerêdo (2007) afirma que a desconstrução deve ser a ferramenta chave do feminismo.
Se as formas de produção de existência podem ser mutáveis, compreender gênero é olhar os binarismos de modo crítico. Porque nossa forma de pensar ainda é binária se a realidade é múltipla? Aceitar a cisão homem/ mulher/ masculino/feminino é não questionar como nossos corpos são sexualizados e generificados.
Assim sendo, devemos manter o fio das discussões atuais sobre gênero e movimento feminista, mas também levar em consideração toda a rede de articulações para a formação do movimento e demandas advindas dos próprios sujeitos.
Redes Sociais e Movimento(s) Feminista(s)
Beleli e Miskolci (2015) descrevem e analisam como o advento da internet comercial reflete em nosso cotidiano. Trabalhamos, compramos, nos relacionamos na web. A comunicação, de modo geral, é afetada pela rede. Podemos dizer então que nossas relações são permeadas pelo meio digital e, assim, mais essa categoria de análise se apresenta na intercessão diferenças de gênero, sexualidade, particularidades étnico-raciais, geracionais e regionais.
Em palestra no Fórum Permanente "Sociedade e Desenvolvimento" da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), o pesquisador Richard Miskolci, referência em Teoria Queer no Brasil, afirma que vivemos sob um novo regime de visibilidade. Vivemos na era da visibilidade digital na qual insurgem demandas subalternizadas, como movimentos de mulheres, gays e negros.
Miskolci (2015) divide dois momentos quanto às tecnologias comunicacionais: (1) Com a expansão e massificação dos meios de comunicação, como TV e cinema, tem-se um processo de identificação; por exemplo, uma pessoa se identifica com um astro do cinema; essa pessoa se vincula a essa imagem e adere a tal representação; (2) Com o surgimento das mídias sociais (blogs, Twitter, Facebook, Instagram, Youtube, Snapchat, entre outros) há corporificação e personificação em substituição à identificação.
Isso quer dizer que não mais nos projetamos nas redes sociais, mas performamos aquilo que somos como protagonistas de nossa própria vida na interface digital (Miskolci, 2015). Nessa mudança de perspectiva, podemos ter voz e vez nas redes.
Um pouco de cautela se faz necessária quando falamos em visibilidades. Por isso devemos olhá-las sob um prisma processual e contextual, pois a forma como as pessoas se produzem socialmente, por meio das mídias digitais, integra o processo sócio-histórico-cultural.
Isso porque ao utilizarmos a plataforma digital, transcendemos nosso quarto, centro de operações de nossa vida online, e criamos um espaço de potencialidade e versatilidade (Ferreira, 2015). Um quarto e um computador conectado à rede podem se constituir como instrumentos de trabalho, resistência e subversão.
As mídias sociais se tornaram instrumentos de produção e difusão de ideias, mas também podem servir como espaço de ataques e ameaças, uma vez que a internet ecoa debates, tanto online quanto off-line. Assim sendo, ser sujeito nas mídias móveis reflete um processo de comunicação, de relacionamentos, mas também um processo político.
Sendo a internet um campo de disputas, há para os movimentos sociais. Desde 1990, década do advento da internet comercial, são comuns referências ao termo ciberfeminismo. Vários grupos foram aglutinados dentro dessa categoria, como: tecnofeminismo, pósfeminismo, transfeminismo, ciberpunk, póspornografia e ativismo riotgrrrl. Essa movimentação se associa à terceira onda feminista, quando há renovação prática e teórica sobre os "feminismos" e também sobre a participação das mulheres nos meios tecnológicos, em especial a internet (Ferreira, 2015).
A relação feminismos, tecnologias e internet incorporou um discurso tanto estético (com as personagens DNA Sluts, do jogo de computador All New Gen), quanto político, ressignificando símbolos ligados à feminilidade (Ferreira, 2015).
Quanto ao acesso de mulheres à rede, segundo Ferreira (2015), dados do IBGE de 2013 mostraram que a proporção de internautas mulheres, no país, passou de 49,2%, em 2012, para 50,1%, em 2013. Ainda de acordo com a pesquisa de Ferreira, as mulheres representam 51,9% do total de internautas e, quanto maior a idade, maior são as diferenças de acesso a favor das mulheres.
Além do acesso, a popularização da internet permitiu a consolidação de redes de contatos que se constituíram como organizações políticas e grupos feministas (Ferreira, 2015). Alguns exemplos de movimentos brasileiros são Blogueiras Feministas, Blogueiras Negras, Coletivo Think Olga, Empodere duas Mulheres, Moça, você é machista, Não Me Kahlo, entre outros.
Discussão
Simone de Beauvoir (1970), ainda tão polêmica4, alegou em seu ensaio mais famoso, "O segundo sexo", de 1949, que sempre existiram mulheres, mas vivendo dispersas entre os homens, sem passado, história e religião próprios. Elas (nós) ligam-se entre si e a eles (os homens) pelo habitat e por questões, sociais, econômicas e de interesse. A ideologia dominante nos separa e nos individualiza, para assim enfraquecer nossa indignação e nossa capacidade de lutar por interesses comuns. Será essa a atual conjuntura do feminismo? Um movimento que coloca mulheres contra mulheres? Um movimento que aprisiona ao invés de libertar?
Acompanhando coletivos feministas5 nas redes sociais, é possível perceber que não somente de xingamentos e imposições se faz feminismo na rede. Algumas páginas do Facebook, como "Não Me Kahlo" (864.686 mil curtidas), "Moça, você é machista" (550 mil curtidas), "Empodere duas mulheres" (228 mil curtidas) e "Think Olga" (81 mil membros) elevam sua voz em postagens que ultrapassam o cenário digital e incidem em nosso cotidiano.
Foi por meio de seu envolvimento com um projeto intitulado "Chega de FiuFiu", promovido pelo coletivo "Think Olga", que uma adolescente de 17 anos desenvolveu um aplicativo para celulares no qual qualquer mulher que se sentir assediada, seja verbal, visual ou fisicamente, pode registrar o local onde aconteceu o assédio e informar outras mulheres de que naquele lugar assédios são frequentes. O objetivo, a priori, é dar voz a vítimas de assédio e, a posteriori, oferecer às autoridades competentes números a respeito dos assédios sofridos todos os dias nas ruas das cidades brasileiras.
Esse aplicativo surge frente a dados assustadores. Em pesquisa realizada com estudantes universitários pelo Instituto Avon/Data Popular, divulgada em de dezembro de 2015, 56% das universitárias entrevistadas afirmam já terem sofrido assédio sexual; 11% já sofreram algum tipo de abuso sob o efeito de álcool e 63% das universitárias, que sofreram algum tipo de abuso, não reagiram. Dos entrevistados do sexo masculino, 26% já cometeram algum tipo de abuso contra mulheres. Esse abuso pode ser caracterizado como assédio sexual, coerção, violência sexual, física, psicológica ou moral, ou mesmo desqualificação intelectual.
Um saldo positivo, conquistado com o coro de vozes e hashtags, se deve a campanhas como #MeuPrimeiroAssedio (Coletivo "Think Olga") e #MeuAmigoSecreto (Coletivo "Não Me Kahlo"6). Na primeira, muitas mulheres (e alguns homens) puderam contar sobre o primeiro assédio que sofreram, a grande maioria ainda na primeira e segunda infância. A campanha alçou destaque internacional e pessoas no mundo inteiro se sensibilizaram e se reconheceram nos depoimentos. A segunda campanha, próxima às festividades de fim de ano e às brincadeiras como Amigo Secreto/Oculto/Invisível, incendiou as redes sociais com descrições de "amigos" machistas, violentos, preconceituosos.
Como resultado das duas campanhas, é possível perceber que toda mulher, em maior ou menor grau, já sofreu algum tipo de assédio; algumas por algum (ou vários motivos), nunca, antes desses movimentos, tiveram voz para enunciar o que lhe havia ocorrido7; que assim como ela, eu, você, sua prima, colega de trabalho, subordinada ou aluna, somos vulneráveis a assédios, independente da idade, orientação sexual, biotipo ou local onde moramos, e que estamos todas rodeadas de "amigos" que nos subjugam, menosprezam, condenam, oprimem.
Outro resultado, agora quantitativo, das campanhas e hashtags foi o aumento em 40% do número de denúncias no disk 180, Canal de Atendimento à Mulher da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (Lara, Rangel, Moura, Barioni & Malaquias, 2016). O serviço, criado em 2005, é gratuito e funciona 24 horas por dia, sete dias por semana, inclusive nos finais de semana e feriados.
Quando falamos em movimentos sociais, estes devem ser vislumbrados do ponto de vista das continuidades e descontinuidades. Atualmente nos deparamos com o que podemos chamar de retrocessos nos movimentos que se intitulam "feministas". Algumas reivindicações nos remetem à segunda onda do Movimento. As críticas ainda se voltam ao direito sobre o próprio corpo: ainda se luta por liberdade sexual; ainda batemos na tecla de que a mulher vítima de estupro é vítima e não culpada; lutamos pela legalização do aborto8, por exibir ou não os pelos do corpo; contra a ditadura da beleza e a manipulação de fotos em campanhas publicitárias, etc. Algumas bandeiras não foram conquistadas, por isso se recua (Coelho, 2014).
Embora se tenha avançado muito nas discussões sobre gênero, a agenda política do movimento(s) feminista(s) não mudou tanto nos últimos 20-30 anos (Gonçalves & Pinto, 2011). Assim, percebemos uma oscilação em espiral, jamais linear. A realidade dos movimentos é dinâmica; portanto, se falamos em movimento(s), não há lugar para estática ou linearidade.
A ida às ruas ainda é uma estratégia eficaz na luta contra machismos e preconceitos, assim como nas décadas politicamente carregadas. A Marcha das Vadias, ou Slut Walk, é prova disso. Desde 2011, o projeto que surgiu no Canadá, vem ganhando espaço nas cidades brasileiras, na luta contra a violência contra as mulheres (física, sexual, psicológica), contra os preconceitos de gênero, contra homofobia e heteronormatividade9.
Outros movimentos10 se fazem notar como a Marcha das Mulheres Negras que, em 2015, levou milhares de mulheres às ruas para proclamar sua voz em prol de liberdade, igualdade racial, direito ao trabalho, à cidadania e território, à educação e justiça. Na ocasião, a violência contra as manifestantes não se limitou ao campo virtual: algumas mulheres foram agredidas física e verbalmente durante a manifestação em Brasília. Vale acrescentar o papel fundamental das redes e mídias móveis para a organização, divulgação e repercussão desses e outros eventos.
Beauvoir (1970) aborda a dispersão de mulheres e as movimentações isoladas em prol de mudanças. O que se percebe atualmente é que, mesmo dispersas, essas movimentações existem. Contudo, sempre que surge um coletivo formado por mulheres (nas redes ou nas ruas), as críticas surgem como consequência. Ataques, pessoal ou virtualmente, são recorrentes.
Para o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, autor do Mapa da Violência 2015, a violência se naturalizou na sociedade brasileira. Waiselfisz (2015) afirma que a violência contra as mulheres é uma maneira de punir ou corrigir qualquer comportamento que fuja dos padrões de mulher-mãe-dona-de-casa. Assim, a internet representa apenas mais um contexto de perpetuação de atitudes e comportamentos agressivos contra mulheres.
Podemos perceber que o feminismo ainda incomoda, toca em certas feridas e gera revolta entre opressores e também entre os próprios oprimidos. O feminismo incomoda tanto que sempre haverá contra-ataque. Como saída lógica nos deparamos com ameaças, repressão e tentativas de silenciamento.
Embora não haja consenso quanto à ampliação das críticas feministas para além do universo "feminino", assim como propõe a teoria queer, e inclusão de homens no movimento, é impossível pensar em uma sociedade em obras, na qual todos, sem exceção, possam trabalhar juntos por uma sociedade livre do machismo e de tantos preconceitos que nos aprisionam, nos cerceiam e nos subjugam.
Conclusões preliminares
Vale ressaltar como essas e outras discussões sobre gênero e relações de poder urgem por adentrar o contexto da sala de aula; e como é importante aproveitar o cotidiano acadêmico para inserir posicionamentos e visões de mundo, mesmo que divergentes. Apresentar um feminismo conscientizador, libertário e empoderador é um compromisso social.
Assim como ser feminista dentro da Academia, valer-se das mídias sociais para fazer feminismo é aproximar mais pessoas das discussões. A rede pode e deve ser usada para fomentar o debate e dar voz à resistência feminina, seja online, nas ruas, ou nas universidades.
Grupos antifeministas podem até dizer que o feminismo virtual não tem efeito. Que esse movimento só gera ecos dissonantes. Podem acusar as feministas de militância cibernética de passividade e encarceramento no próprio sofá. Porém, utilizar a plataforma digital é romper com esse ciclo de violência e as tentativas de silenciamento. É transcender o próprio espaço e formar conexões infinitas.
Sendo assim, para ações mais efetivas, o virtual e o real precisam estar sempre conectados. É preciso que, pessoalmente ou mediados pela interface digital, possamos fazer um feminismo COM mulheres, não CONTRA mulheres. Que ESSE ou AQUELE feminismo não se perca ou se afaste da gênese do movimento, e que lute por uma sociedade mais igualitária, mais humana e civilizada.
Que consigamos transcender a esfera de um feminismo que demarque "como outras mulheres devem ser ou pensar" para um movimento que congregue "todas as formas de viver, amar, desejar e ser". Que o feminismo seja uma teoria e uma prática que agreguem mulheres e não que nos isolem ou nos apartem, para que assim sejamos autônomas, soberanas de nossos atos e desejos e sujeitos de nossas histórias.
Referências
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1 Timeline (linha do tempo, em português) é uma maneira de visualizar eventos em ordem cronológica. Desde 2011 é utilizada como perfil da rede social Facebook.
2 Tags são palavras chaves ou termos relevantes associados a um assunto, informação ou discussão. Quando acrescidas do símbolo #(cerquilha) transformam-se em hiperlinks e são indexados na rede. Assim, os usuários podem buscar hashtags em sites como o Google e passam a ter acesso a tudo o que está sendo discutido sobre determinado assunto. Pelo uso difundido da expressão, desde 2014, o dicionário da língua inglesa Oxford define "hashtag" como: uma palavra ou frase após uma cerquilha, usada para identificar mensagens relacionadas a um tópico específico; [também] o próprio símbolo da cerquilha, quando utilizada dessa maneira.
3 É possível acompanhar esse momento do Movimento Feminista norte-americano no documentário "She'sbeautifulwhenshe'sangry" (2014) que traz relatos de mulheres que participaram do movimento entre 1966 e 1971.
4 Em 2015, uma questão referente à filósofa francesa na prova do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) causou alvoroço nas redes sociais e provocou muita discussão sobre questões de gênero. Infelizmente não só a teoria de Beauvoir foi atacada, mas também a mulher Simone de Beauvoir.
5 As informações referentes aos coletivos feministas apresentadas neste tópico, foram coletadas nas redes sociais dos referidos grupos.
6 Os resultados dessa campanha foram publicados no livro "#MeuAmigoSecreto: Feminismo além das redes", primeiro título da Coleção Hashtag, que explora temas de relevância coletiva repercutidos na internet. O livro reúne artigos inéditos das cinco integrantes do coletivo "Não Me Kahlo", com lançamento previsto para maio de 2016.
7 Como evidenciado em um vídeo da youtuber JoutJout Prazer, 23 anos, que em pouco tempo conquistou espaço e público nas redes sociais (mais de 800 mil inscritos em dois anos de canal). A youtuber apresenta de forma simples assuntos não tão simples de serem discutidos, como assédio e relacionamentos abusivos. No vídeo intitulado "Vamos fazer um escândalo", Júlia Tolezano (JoutJout) comenta que conversando com suas amigas, dez entre dez havia sofrido algum tipo de assédio, porém não compartilhavam essas experiências umas com as outras, evitando assim falar sobre o assunto. Podemos perceber certa naturalização de cantadas até a violação dos corpos das mulheres.
8 O Projeto de Lei 5069/13, proposto pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ); após aprovação, o texto segue para votação em plenário da Câmara. A PL limita ainda mais o acesso de mulheres vítimas de estupro à interrupção da gravidez; veda o atendimento das vítimas no Sistema Único de Saúde (SUS); limita o acesso à informação e propõe punições para os profissionais de saúde que venham a auxiliar qualquer mulher nesses casos. O projeto é um verdadeiro retrocesso na luta pelos direitos das mulheres.
9 Para Miskolci (2012), a heteronormatividade seria a ordem sexual do presente. O mundo é criado para ser heterossexual, e mesmo aqueles que não se relacionam com pessoas do sexo oposto, seriam persuadidos a adotar o modelo da heterossexualidade em suas vidas, seja em comportamentos, vestimentas, gestos, etc.
10 Durante a ocupação das escolas estaduais do estado de São Paulo, também em 2015, o feminismo fez parte da luta. Oficinas e debates sobre temas ligados ao movimento feminista, como violência contra as mulheres, população LGBTT, empoderamento, participação popular, entre outros, tiveram espaço em mais esse contexto de luta.