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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.2 São João del-Rei maio/ago. 2016
(Im)Possibilidades no trabalho com grupos de idosos em Instituições de Longa Permanência: uma experiência em Psicologia
(Im)Possibilities at work with elderly groups in Long-stay Institutions: contributions of Psychology
(Im)Posibilidades en el trabajo con la tercera edad en grupos en Instituciones de Larga Estadía: una experiencia en Psicología
Vinicius FurlanI; Maria Dolores AlvarezII
IMestre em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará e graduado em Psicologia pela Universidade Metodista de Piracicaba. Professor da Universidade Metodista de Piracicaba e membro do Paralaxe: Núcleo de Estudos, Pesquisas e Intervenções em Psicologia Social Crítica (UFC) e do NEPEQSO (Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Questões Sociais, Unimep). Email: vc_furlan@hotmail.com
IIMestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Foi professora e supervisora de estágios na Universidade Metodista de Piracicaba e psicóloga clínica
RESUMO
Este relato trata-se de um trabalho com grupos de idosos que se realizou em duas instituições, como um espaço de escuta e interação social. Em ambos os Lares o grupo possibilitou: a interação social entre os idosos, o resgate da imagem e da história de vida, a estimulação da comunicação verbal, bem como da coordenação motora, da mutualidade, da imaginação, da cognição e da memória. No Lar 1, no desenrolar do trabalho, foi preciso encerrá-lo por questões institucionais, o que implicou a mudança para o Lar 2. Pudemos ver que as (im)possibilidades no trabalho com grupos de idosos em Instituições de Longa Permanência possuem condições e peculiaridades distintas que configuram diferentes arranjos e modos de conduzir a prática, que é atravessada pelo poder e cotidiano institucional, que, dependendo do modo como se configura, pode ser alienador e levar à solidão, ou possibilitar um espaço digno de ser vivido.
Palavras-chave: Idosos; Grupo; Instituição.
ABSTRACT
This report describes a work with elderly groups held in two institutions, as a listening and social interaction space. Both homes enabled: social interaction among the elderly, the possibility to rescue their image and life history, stimulation of verbal communication as well as motor coordination, mutuality, imagination, cognition and memory. At Home 1, the work progress had to shut it by institutional issues, which involved a change to the Home 2. We could see that the (im)possibilities in working with elderly groups in long-stay institutions have different conditions and peculiarities that make up different arrangements and ways of leading the practice, which is crossed by the power and institutional routine, which, depending on how it's configured, can be alienating and lead to loneliness, or allow a decent space to live.
Keywords: Elderly; Group; Institution.
RESUMEN
Este informe se está trabajando con grupos de personas de edad avanzada, celebrada en dos instituciones, como un espacio de escucha y la interacción social. En ambos casas permitido al grupo: interacción social entre las personas mayores, la imagen de rescate y de la historia de la vida, la estimulación de la comunicación verbal, así como la coordinación motora, de la mutualidad, la imaginación, la cognición y la memoria. En Casa 1, el progreso del trabajo tuvo que enfrentarse a él por cuestiones institucionales, que consistía en pasar a la Home 2. Pudimos ver que las (im)posibilidades de trabajar con grupos de personas mayores en instituciones de larga estadía tienen diferentes condiciones y peculiaridades que conforman diferentes arreglos y formas de llevar a la práctica, que es atravesado por el poder y la rutina institucional, que, dependiendo de cómo se configure, puede ser alienante y conducir a la soledad, o permitir que un espacio digno para ser vivida.
Palabras clave: Ancianos; Grupo; Institución.
Introdução
A guisa de introdução, cabe destacar que este relato discorre acerca da experiência dos autores no desenvolvimento de um trabalho com grupos de idosos em Instituições de Longa Permanência, vinculado ao Centro de Estudos Aplicados em Psicologia da Universidade Metodista de Piracicaba. Desse modo, o texto relata a experiência em duas instituições do município e retrata as (im)possiblidades do trabalho com grupos de idosos que vivenciavam o processo da institucionalização.
Podemos observar, nos últimos anos, conforme inclusive demarcam Rozendo e Justo (2012), que houve um grande aumento na proporção da população idosa no Brasil. Isso implicou em reformas na Previdência Social e modificações nas políticas públicas relacionadas aos direitos humanos dessa população.
Debert (1999) destaca que a velhice se tornou uma questão pública, depois de muito tempo sendo considerada como própria da esfera privada e familiar, e uma questão de previdência individual ou de associações filantrópicas. A autora demarca que essa preocupação tem se dado devido ao fato de aos idosos corresponderem a uma parcela cada vez maior da população do ponto de vista numérico.
De acordo com Zimerman (2000), esse progressivo aumento da população idosa tem se dado principalmente por conta de dois fatores: a diminuição da natalidade e o aumento da longevidade.
No Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2012), a população idosa chega a 14,5 milhões, ou seja, 9,1% da população brasileira já atingiu 60-65 anos (idade estabelecida para idosos em países em desenvolvimento). Essa pode ser considerada uma das maiores populações idosas do mundo, ultrapassando a França, a Itália e o Reino Unido. Por esse motivo, o IBGE (2012) demarca que o envelhecimento no Brasil requer planejamento na saúde pública, a fim de atender à demanda de idosos, que poderá chegar a mais de 30 milhões em 2025. Para isso, os idosos necessitam de cuidados e uma boa qualidade de vida, tornando-a prazerosa, digna e confortável.
Não obstante a população idosa estar aumentando, os dados do IBGE de 2012 apontam que está havendo uma redução significativa no número de casais com filhos, o que implica que, em um futuro próximo, os idosos não poderão contar com aqueles a quem provavelmente caberia a tarefa cuidá-los: seus filhos. Portanto, torna-se de suma importância a preocupação na construção de políticas públicas dirigidas a essa população a fim de garantir-lhes seus cuidados e o direito a uma vida digna, e, nesse sentido, investir em melhorias e qualidade em instituições para idosos.
Como destaca Groisman (1999), a inscrição da velhice como preocupação de ordem pública, marca dos anos de 1960/70, delineia-se como um processo que tem seu advento com a inauguração do mundo moderno, em especial com entrada no século XX, e se insere nas delimitações categoriais que diferenciaram os ciclos da vida baseados em faixas etárias, em que o atributo "idade" passa a ser considerado também como importante para demarcar as distinções entre os extratos sociais, incluindo os indivíduos em novos papéis sociais.
Sustentado nas discussões de autores da antropologia do envelhecimento, Groisman (1999) demarca que, nesse processo, houve mecanismos que redefiniram o curso de vida e institucionalizaram a velhice como um estágio da vida e como grupo social e população específica. O autor destaca que três fatores podem ser considerados importantes nesse processo, a saber: 1. a constituição de um discurso científico acerca do envelhecimento; 2. o surgimento das pensões e aposentadorias, que contribuíram para tornar o fator "idade" como determinante de um novo status econômico e social para o indivíduo; e, 3. o aparecimento dos asilos de velhos.
Nosso trabalho se insere no âmbito dessas últimas instituições, os asilos de velhos, que, em seu processo de institucionalização, podem acelerar as perdas funcionais, já que os idosos são submetidos a rotinas estabelecidas e perdem seus direitos de expressar desejos e deveres; ou colaborar com um processo de envelhecimento com dignidade, visando à independência, à autonomia e com respeito às singularidades, fatores esses, entretanto - raros - encontrados em alguns poucos asilos. Alguns idosos apresentam uma boa aceitação asilar e se referem aos colegas e ao asilo como "família". Outros relatam o ambiente asilar como "depósito de velhos", pois perderam o contato com os familiares, amigos e vizinhos, com o meio social e a independência, além de se sentirem enganados com falsas promessas de retorno para casa ou terem sido levados aos asilos à revelia.
Diante desse cenário, entendemos que Zimerman (2000) nos traz uma contribuição interessante quando destaca que compreende a velhice como uma questão social, enfatizando que os fatores psicológicos, sociais, culturais e ambientais podem qualificar ou prejudicar o processo de envelhecimento.
Nesse sentido, a fim de colaborar com os fatores destacados por Zimerman, desenvolvemos um trabalho com grupos de idosos, visando: à interação social, à revinculação, ao resgate da história de vida e da imagem, à escuta, ao estímulo da memória, ao estímulo da linguagem, à orientação espaço-temporal e à autoestima;
Resultados, discussões e caminhos percorridos
Esta experiência em Psicologia retrata o estágio desenvolvido com grupos de idosos em duas instituições distintas, que ocorreram em dois momentos diferentes. Primeiro, numa instituição de idosos que chamaremos aqui de Lar 1 e, posteriormente, noutra instituição que chamaremos Lar 2.1 Para melhor entendimento do processo de desenvolvimento dos estágios, os descreveremos sequencialmente como ocorreram.
Primeiro momento: dificuldades no trabalho com idosos que vivenciavam a institucionalização
No primeiro momento, visamos criar no Lar 1 um grupo de idosos como um espaço de escuta para que esses sujeitos pudessem se expressar.
Houve uma longa discussão com a psicóloga do Lar acerca das possibilidades da realização de um grupo misto, para romper com a divisão sexual já estabelecida pela instituição, pois homens e mulheres moram em pavilhões divididos por sexo e o distanciamento dos pavilhões impede uma convivência próxima entre eles. A psicóloga apontou que a longa distância entre os pavilhões não permitiria essa formatação, por conta da dificuldade de locomoção dos idosos para participar do grupo, caso fosse misto, bem como demarcou que já havia outros trabalhos com as moradoras dos pavilhões femininos. Desse modo, sugeriu que trabalhássemos com o pavilhão G, que é masculino.2
Após a primeira visita ao Lar, para conhecer os profissionais, bem como os moradores, o estagiário começou a desenvolver seu trabalho, procurando estabelecer um vínculo com os idosos e formar o grupo.
A proposta de se trabalhar com um grupo se deu pelo fato de que isso permitiria que seus membros pudessem reconhecer a si mesmos e uns aos outros, relatando suas histórias, bem como possibilitaria alcançar os objetivos propostos para o trabalho e, principalmente, favorecer a socialização entre os moradores, fator esse que foi observado, ao longo do processo, pois, em sua convivência cotidiana, os idosos não se interagiam.
Era explícito no Lar 1que os idosos não se relacionavam entre si na convivência do dia a dia. A interação entre eles era pífia, ou, quando ocorria, era a mínima possível. Isso não corresponde, todavia, a uma condição individual que se baseia na falta de predisposição interna de cada morador em interagir com os demais, mas devido ao modo de organização da instituição, que segregava os pavilhões por sexo e longa distância entre eles, bem como pela falta de atividades que estimulassem tal interação, em especial atividades que estivessem ligadas às suas histórias de vida.
Foi possível observar que esses idosos viviam um sentimento de solidão devido ao isolamento, que era hegemônico nos pavilhões e não estabeleciam contato entre si, bem como apresentavam uma aparência de quem experienciava uma forma de morte simbólica antes mesmo da morte biológica, fenômeno bem ilustrado por Goffman (2001) no discorrer de sua análise acerca das instituições totais.
Isso, por sua vez, justificou a criação do grupo, que, de acordo com Reboredo (1994), possibilita que seus membros rompam com a alienação e com a cristalização de suas atitudes, além de perceber que juntos podem superar as dificuldades presentes em seu contexto social. Acreditávamos, portanto, que a criação do grupo permitiria a interação entre eles, facilitando o rompimento com o isolamento e solidão vividos por pelos idosos.
O grupo passou a ser construído pelo estabelecimento do vínculo do estagiário com os idosos, sendo explicitados os objetivos do grupo, fortalecendo, dia a dia, o convite para participação. Os encontros eram realizados duas vezes por semana, no período da tarde, devido a atividades e programações que preenchiam os horários matinais. O grupo foi realizado com homens moradores do pavilhão G e foi possível trabalhar a interação social entre os participantes e os demais objetivos.
Foram utilizados recursos tais como: a fotografia para se trabalhar a imagem; relógio e calendários individuais e personalizados com foto e assinatura, mês a mês, para a orientação espaço-temporal e a técnica do desenho individual e compartilhado.
Participaram do grupo alguns idosos que viviam no pavilhão G. Todavia, a presença dos participantes oscilava e era inconstante, pois, por não terem estímulos que propiciassem a convivência em grupo entre os idosos pela instituição, a vontade de participar das atividades grupais se apresentava, num primeiro momento, pela desmotivação. Constatou-se que a construção de um espaço grupal numa instituição como essa requer tempo, dedicação, empenho e paciência, e, principalmente, o estabelecimento e fortalecimento do vínculo e da confiança entre profissional e moradores, uma vez que esses sujeitos já possuem um histórico de vínculos que foram rompidos, e talvez reviver a desvinculação devido à rotatividade de profissionais e estagiários seja algo que busquem evitar.
Entretanto, os idosos sempre foram receptivos com o estagiário. Este, antes de qualquer coisa, procurava ouvir o que eles tinham a dizer, ouvir suas histórias, e após a construção de um vínculo, que poderia levar dias ou semanas, eram feitos os convites para a participação no grupo. O grupo, após longo processo, se constituiu e permitiu aos idosos se expressarem e serem ouvidos, e ainda possibilitou o resgate e ressignificação de suas histórias de vida, bem como os relatos do cotidiano de suas vidas na instituição.
A fotografia permitiu o desenvolvimento do olhar entre eles e de si mesmos. Consequentemente, puderam ver e serem vistos, assim como fazer o resgate da imagem com aspectos de transformações corporais ocorridas com o transcorrer do tempo, evidenciando uma ferida narcísica no que tange ao "belo" sob o ponto de vista estético, pois, como pudemos ouvir nos grupos, não se sentiam mais objeto de desejo do outro.
Ouviu-se sobre as muitas rupturas anteriores nos vínculos familiares e com a sociedade, uma vez que muitos deles foram abandonados pelas próprias famílias, fato que, conforme assinala Elias (2001), é comum na admissão em um asilo e normalmente significa que os laços afetivos e com a vida comunitária podem levar os indivíduos à solidão. O fato de, nesse lar, os idosos serem proibidos de sair sem companhia fere sua autonomia e acentua essas rupturas e sua solidão. O estímulo da linguagem verbal, neste trabalho, incentivou a socialização, a mutualidade e a possibilidade de revinculação,
A técnica do desenho empregada no grupo estimulou a imaginação, a cognição, a coordenação motora, a comunicação verbal, a memória, bem como a interação entre eles.
O fato de nos dirigirmos a eles pelos nomes permitiu a reafirmação de suas identidades, visto que, na instituição, há uma tendência a designarem os idosos por "vozinho", "tiozinho", e não pelo próprio nome. Embora o nome não designe nossa identidade, para Ciampa (2009), o nome nos representa e por meio dele também nos identificamos. Podemos entender que a categorização desses sujeitos como "vozinho", "tiozinho", expressa aquilo que Goffman (1975, p. 12) entende por estigmatização, em que se imprime no sujeito
[...] um atributo que o torna diferente de outros que se encontram numa categoria em que pudesse ser incluído, sendo, até, de uma espécie menos desejável (...). Assim deixamos de considerá-la criatura comum e total, reduzindo-a a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é o estigma, especialmente quando o seu efeito de descrédito é muito grande [...]
Não consideramos que os termos "vozinho" ou "tiozinho" tenham sentido pejorativo, mas o fato de observarmos que os profissionais e aqueles que lidam com esses idosos - podemos entender aqui aqueles que se entendem por normais, conforme Goffman - os chamarem-nos assim, o tempo todo, imputa um caráter acerca daquilo que os idosos devem ser, afirmado por um atributo depreciativo.
Embora possamos observar que o trabalho com esse grupo pôde contribuir com os fatores destacados por Zimerman e possibilitar a interação social entre alguns dos moradores da instituição em que se vivenciava o isolamento e a solidão da institucionalização, ainda identificamos situações em que foi possível observar que as condições de vida dos idosos eram problemáticas, deixando a desejar do ponto de vista da dignidade. Notou-se que tais condições estavam naturalizadas. Percebemos, então, juntamente com outros estágios de Psicologia que vinham sendo desenvolvidos na instituição, que também era necessária uma ação social e política no Conselho Municipal dos Idosos a fim de poder dialogar sobre as possibilidades de melhoria dessas condições.
Entretanto, no desenrolar de todo esse processo, encerrava-se o primeiro semestre do estágio e a diretoria do Lar 1 solicitou que os estágios do curso de Psicologia fossem encerrados e retirados do Lar, justificando que este passaria por reformas nas estruturas dos prédios.
Conforme destaca Bleger (2003), as instituições podem ser criadas com certos objetivos que podem atender às necessidades de seus usuários, todavia, em determinados momentos, as instituições, para sua manutenção, entram em conflito com os objetivos pelos quais foram criadas. E, da mesma forma, os objetivos do trabalho com grupos pode entrar em conflito com os objetivos da instituição e, assim, sua relevância e significado serem entendidos como não mais necessários, como vimos em nossa experiência.
Segundo momento: uma experiência diferenciada com grupos de idosos que vivem em instituição
Nesta parte discorreremos acerca do segundo momento do estágio, que foi desenvolvido no Lar 2.
Como vimos, não foi possível a continuidade do estágio no Lar 1, assim migramos para o Lar 2, onde coube ao estagiário dar continuidade a um trabalho iniciado por outra estagiária. O estágio desenvolvido pela estagiária anterior facilitou nosso trabalho, haja vista já haver um grupo formado (o processo de formação de um grupo numa instituição de idosos é sempre uma labuta minuciosa e demanda tempo). No primeiro encontro com a instituição e com os idosos, a estagiária nos acompanhou e, em seguida, assumimos o trabalho.
Os objetivos continuaram como os do estágio na instituição anterior, bem como os materiais e técnicas. Todavia, por ter sido identificado que muitos dos moradores do Lar 2 vinham do contexto rural, foi criada uma horta, dispositivo para trabalhar oficinas com os idosos como um meio terapêutico e de produção de vida, pois, como destaca Afonso (2006), as oficinas podem trabalhar significados afetivos e vivências relacionadas aos temas a serem discutidos.
Os encontros do grupo aconteceram semanalmente nas tardes das segundas-feiras. Nas situações em que as oficinas ocorriam na própria horta, devido a esta ficar em um espaço onde os raios do sol eram fortes, agendávamos o período da manhã, enquanto o sol ainda estava mais fresco. Embora a frequência na participação oscilasse, participaram do grupo cerca de 10 moradores do Lar, sendo que ainda tivemos a participação de moradores que faziam uso de cadeira de rodas.
Nesse Lar, diferentemente do anterior, o grupo pôde ser misto, incluindo homens e mulheres, pois, devido à instituição ser pequena, a convivência entre eles é mais próxima e significativa. Pelo fato de a instituição possibilitar maior contato entre homens e mulheres, presenciamos alguns casos de namoro e paquera entre os idosos, fato que não é comum nessa população por conta do estereótipo que perdura no imaginário social de que idoso não pode expressar sua sexualidade.
Diferentemente da instituição anterior, em que os idosos vivenciavam a solidão e o isolamento, pudemos observar que no Lar 2, por ser menor e possibilitar espaços em que podiam interagir, os idosos funcionavam e viviam como grupo. Observamos que todos se conheciam e se dirigiam uns aos outros pelo próprio nome, bem como conheciam particularidades uns dos outros. Isso também foi observado com relação aos profissionais do Lar 2 e a interação entre eles e os idosos.
Ao contrário da outra instituição, em que os profissionais se dirigiam aos idosos por "vozinho", "tiozinho", no Lar 2 todos aqueles que por ali conviviam se dirigiam aos idosos pelo próprio nome, permitindo assim a afirmação da identidade a partir da identificação pelo nome.
Outro fator que julgamos importante e que contribuía positivamente com a vida dos idosos foi o fato de que, nesse lar, eles podiam sair de dentro da instituição. Rotineiramente eles saem pra ir a um mercado próximo para comprar coisas de seus interesses; vão até uma feira de frutas, legumes e verduras, que também fica próxima; e ainda fazem caminhada pelo bairro toda manhã acompanhados pela fisioterapeuta - é possível observar que essa convivência com a comunidade faz com que as pessoas do bairro os conheçam e sempre parem pra conversar com eles na instituição ou em suas saídas.
No Lar 2, observamos situações e condições bem distintas do Lar 1, que embora muito maior que o Lar 2, não apresentava condições tão adequadas como nesse último. No Lar, observamos: cuidado e zelo intenso com os idosos; espaços pra se resguardar a singularidade; poucas pessoas vivendo no lar; poucos moradores em cada quarto; guarda-roupas e cômodas individuais para cada um; manejo com os idosos orientados pelo respeito e, na maioria das vezes, carinho e afeto; e nunca presenciamos situações de constrangimento. Esses elementos no Lar 1, entretanto, não estavam colocados.
Embora os dois Lares apresentem condições e peculiaridades bem distintas, focaremos nossa discussão a partir de agora no trabalho com a horta, pois foi o mais significativo para os idosos desse Lar.
A construção da horta e foi feita com o grupo para que eles pudessem plantar, cuidar, colher e se alimentar daquilo que produziam. Observamos que a horta contribuiu com um processo terapêutico, com o resgate da história de vida e da memória, bem como percebemos que a horta era "a menina dos olhos dos idosos", pois ela passou a configurar objeto de afeto dos idosos, carregada de sentido para eles. Desse modo, o trabalho com a horta foi um dos objetivos centrais do desenvolvimento do estágio, haja vista a importância que esse dispositivo significou para os moradores.
Nas supervisões de estágio, pelo fato de observarmos o encantamento e o cuidado que os idosos revelavam pela horta, fizemos a relação desse trabalho com a bela música de autoria de Milton Santos e Chico Buarque, Cio da Terra, em que cantam que "Afagar a terra" é "Conhecer os desejos da terra", o "Cio da terra", a "Propícia estação, De fecundar o chão", visto a terra ter sido para eles, nesse tempo de estágio, material para o cuidado, não apenas das hortaliças, mas da própria vida, o desejo de cuidar da própria vida, como diz a letra "conhecer os desejos da terra", conhecer os desejos da vida e de si.
Sempre que o estagiário chegava ao lar, eles já vinham falar da horta, contar do cuidado que estavam tendo com a horta e queriam que o estagiário fosse com eles ver como as hortaliças estavam crescendo bonitas e bem cuidadas. Falas como "olha como nossa horta está linda", "olha como a horta está bonita", "as plantas cresceram fortes e bonitas", "olha como estão verdes", eram frequentes. Tais falas, inclusive, eram emitidas não apenas por aqueles que estavam envolvidos no grupo, mas por muitos outros moradores, pois também passaram a admirar a horta e as plantas. Alguns moradores, mesmo não participando do grupo, prestavam o cuidado à horta: regavam as plantas, limpavam as ervas daninhas, afagavam a terra, etc.
O fato de a horta ter se tornado tão significativa pode ser entendido porque muitos deles viveram quase toda a vida no contexto rural e em grande parte de suas vidas terem cuidado de hortaliças e grandes plantações, o que permitiu o resgate de suas histórias de vida e daquilo que fizeram no passado.
Isso também pode ser entendido pela possibilidade de se produzir vida e de cuidar da vida, pois eles fecundavam a terra, tornavam-na propícia para a germinação das hortaliças, seu desenvolvimento e colheita: fertilizavam a terra, semeavam-na, cuidavam para que germinasse a semente, cuidavam das plantas já germinadas e em crescimento, depois eles mesmos colhiam e ajudavam na preparação das saladas e dos pratos para servir os colegas. Ou seja, eles participavam de todo o processo de produção dos alimentos, desde a germinação das plantas até o momento de comer, bem como forneciam aos colegas moradores do Lar o que comerem, isto é, aquilo que plantavam e cuidavam, depois de colhido, partilhavam com os demais. Além disso, podiam se reconhecer naquilo que estavam fazendo, pois podiam fazer usufruto daquilo que produziam, bem como serem reconhecidos pelos outros moradores. Entendemos que o cuidado com as hortaliças e todo o processo de fertilização e cultivo, desde a germinação e crescimento até a colheita, revela não apenas a preocupação com a horta, mas, acima de tudo, o cuidado e o desejo de cuidar da própria vida. Dito de outro modo, a oficina da horta conformou o desejo e cuidado pela própria vida expresso no cuidado e cultivo da vida das hortaliças.
Em nossa experiência, foi possível aos idosos expressarem questões de sua singularidade, inclusive aquelas angustiantes: a horta permitiu um espaço de convivência, criação e reinvenção do cotidiano, não apenas durante as oficinas, mas também no dia a dia, além de ter sido um disparador para contarem e narrarem acerca de suas histórias de vida. Como destaca Zimerman (2000), possibilitou um espaço diferenciado do costumeiramente confinado às paredes de uma sala, às paredes de seus quartos e permitiu um ambiente prazeroso de atividades sociais.
O desejo por cuidar da horta foi visivelmente observável. E essa atividade lhes abriu um novo leque de opções e de motivação na realização de novas tarefas e atividades. Tanto que eles pensavam outras formas de estratégia para melhorar a horta e faziam várias coisas por conta própria para o benefício da horta em horários extras aos encontros formais.
A horta ainda possibilitou o exercício de atividades mentais e físicas, uma vez que eles mesmos preparavam a terra, plantavam, cuidavam das plantas, colhiam. Era-lhes possível pensar o que fazer com a horta e decidir sobre o que plantar, sempre tendo voz e direito de decisão. A horta funcionou como um dispositivo que possibilitou a produção do desejo, da pulsão de vida, do novo, gerando acontecimentos insólitos e transformadores.
Considerações finais
Em ambos os Lares, o grupo permitiu a interação entre os idosos, que se olhassem e fossem olhados, o resgate de imagem e da história de vida, a estimulação da comunicação verbal, bem como a estimulação da coordenação motora, da socialização, da mutualidade, da imaginação, da cognição e da memória.
No Lar 1, embora o trabalho estivesse sendo construído de modo a colaborar com a vida dos idosos, pudemos ver que as instituições podem entrar em conflito com os objetivos pelos quais foram criadas a fim de perpetuar sua manutenção e, assim, encontrar resistência quanto à relevância e significado de alguns trabalhos, entendidos como não mais necessários.
No Lar 2, vimos que foi possível o desenvolvimento do trabalho como grupo de idosos, em que a construção da horta - que estava relacionada à vida e ao contexto que os membros do grupo viveram - pôde contribuir para o desenvolvimento do trabalho, configurando-se como um dispositivo terapêutico e de produção de pulsão de vida e de desejo, revelando o cuidado de si no cuidado das hortaliças. Consequentemente, configurou uma saída para o cotidiano repetitivo da institucionalização e possibilitou mais um espaço de convivência para garantir uma vida digna para essa população.
No Lar 1, mesmo com uma grande estrutura e espaços para atender aos idosos, o modelo arquitetônico não propiciava as melhores condições para os moradores viverem, levando-os ao isolamento e à solidão e a experienciarem um tipo de morte simbólica antes mesmo da biológica. Além disso, o tipo de relação estabelecida entre funcionários e idosos era pautada, muitas vezes, não pelo respeito, mas pelo lugar institucional de poder e pelo constrangimento.
No Lar 2, embora com espaço e estrutura menor, isso propiciava maior interação entre os moradores e uma convivência mais significativa e calorosa, o que os fazia se sentirem vivos. Ao contrário do Lar 1, em que se transpirava um ar de espera da morte, no Lar 2 a aragem era de vida. A relação estabelecida no Lar 2 entre funcionários e moradores era pautada pelo respeito, carinho e afeto, buscava-se garantir os direitos dos idosos e observava-se um espaço potencialmente e empiricamente digno de ser vivido.
Podemos ver que as (im)possibilidades no trabalho com grupos de idosos em Instituições de Longa Permanência possuem condições e peculiaridades distintas que configuram diferentes arranjos e modos de conduzir a prática, que é atravessada não apenas pelo cotidiano institucional, pois, dependendo do modo como se configura, empreendida pelo poder institucional que está colocado nas mãos daqueles que dirigem a instituição e seus profissionais, pode ser fator de alienação e levar à solidão e ao isolamento. O poder e o cotidiano institucional podem naturalizar práticas indignas que violam os direitos dos cidadãos e passam a ser entendidas como corriqueiras e necessárias para a manutenção da ordem.
Nessas situações, a condição de cidadania dos humanos-idosos é deixada de lado, revitimizando esses sujeitos e os colocando numa situação de excluídos, depositados e abandonados em distintas instituições. Entretanto, se o poder e o cotidiano institucional forem organizados de modo a incluir aqueles que vivenciam o contexto da instituição, por meio do respeito e responsabilidade com esses sujeitos, se for garantida a inclusão destes nas decisões a serem tomadas acerca de suas vidas, reconhecendo-os como sujeitos de direitos, se houver um espaço no qual possam se relacionar de forma mais significativa e calorosa, como pudemos ver, têm-se assim uma melhor condição para garantir um possível espaço digno de ser vivido.
Referências
Ciampa, A. C. (2009). A estória de Severino e a história de Severina. Um ensaio de Psicologia Social. São Paulo: Brasiliense. 11ª impressão. Originalmente publicado em 1987. [ Links ]
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Zimerman, G. I. (2000). Velhice: aspectos biopsicossociais. Porto Alegre: Artmed. [ Links ]
Recebido em 09/12/2014
Aprovado em 19/04/2016
Nota: O autor, Vinícius Furlan, informa que Maria Dolores Alvarez, coautora no trabalho e na elaboração deste artigo, faleceu em abril de 2015. Destaca que Dolores foi sua professora e colega de trabalho e que esta publicação é motivo de alegria para os (ex)alunos que com ela estudaram e desenvolveram estágio da Unimep, pois marca a memória de uma professora e psicóloga que muito se dedicou à formação dos estudantes da universidade, sendo notáveis a implicação e o compromisso que ela teve com a população idosa por anos a fio.
1 Os nomes das instituições serão preservados, bem como dos participantes dos grupos, a fim de resguardar suas identidades e possível identificação.
2 É importante destacar que no Lar 1 eles chamam cada casa que compõe o Lar de pavilhão. Há uma distinção entre chalés e pavilhão. Chalés são as casas particulares, compradas pelos moradores que as habitam. Pavilhões são os grandes prédios que acolhem os idosos que são institucionalizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Os pavilhões são enormes e acolhem grande quantidade de idosos, bem como há excessivo número de idosos por quarto.