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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.2 São João del-Rei maio/ago. 2016
Experiência de Acompanhamento Terapêutico: do hospital à cidade
Therapeutic Accompaniment Experience: from the hospital to the city
Experiencia de Acompañamiento Terapéutico: desde el hospital a la ciudad
Mauricio NetoI; Magda DimensteinII
IPsicólogo e mestrando em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
IIDoutora em Ciências da Saúde pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pós-Doutora em Saúde Mental pela Universidad Alcalá de Henares/ES. Professora Titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
RESUMO
Acompanhamento Terapêutico (AT) é um dispositivo clínico-político que se insere no campo da saúde mental como poderoso instrumento de construção da autonomia e da emancipação social, política e cultural do louco. A experiência de acompanhamento de um louco infrator baseado na política da amizade permitiu desinstitucionalizar os cuidados em saúde mental e criar novas possibilidades de vida. O processo de acompanhamento buscou romper com as lógicas tradicionais de cuidado, tais como a terapêutica disciplinar e a terapêutica de controle. Nesse sentido, apostamos nas estratégias de enlace social e expansão territorial para a constituição de redes sociais, de modo que o acompanhado e sua família recebam apoio e suporte. Os encontros produzidos no AT possibilitaram aumento de autonomia, na medida em que o acompanhado passou a decidir e construir novos projetos de vida.
Palavras-chave: Acompanhamento terapêutico; Cuidado; Saúde mental; Autonomia.
ABSTRACT
Therapeutic accompaniment (AT) is a clinical and political device that is inserted into the field of mental health as a new and powerful tool for the construction of the autonomy and social, political and cultural emancipation of the mentally ill person. The experience of monitoring with a friendly policy a person with a history of internment in judicial mental hospital allowed deinstitutionalizing the mental care and created new possibilities of living. This follow-up process sought to break with the traditional logic of prison care such as the disciplinary treatment or the control therapy. In this sense, we bet on strategies of social bond and of territorial expansion for the formation of social networks supporting the patient and his family. AT meetings allowed increasing autonomy of the followed person that took decisions and constructed new life projects.
Keywords: Therapeutic accompaniment; Care; Mental health; Autonomy.
RESUMEN
Acompañamiento terapéutico (AT) es un dispositivo clínico y político que se inserta en el campo de la salud mental como una nueva y potente herramienta para la construcción de la autonomía y de la emancipación social, política y cultural de la persona con enfermedad mental. La experiencia de seguimiento con una política amistosa a una persona con una historia de internamiento en el hospital psiquiátrico judicial permitió la desinstitucionalización de la atención mental y ha creado nuevas posibilidades de vida. Este proceso de seguimiento buscaba romper con la lógica tradicional de atención prisiónal, tales como el tratamiento disciplinar y la terapia de control. En este sentido, apostamos por estrategias de lazo social y de expansión territorial para la formación de redes sociales de apoyo al paciente y a su familia. Las reuniones de AT han permitido aumentar la autonomía de la persona, su tomada de decisiones y en la construcción de nuevos proyectos de vida.
Palabras clave: Acompañamiento terapéutico; Cuidado; Salud mental; Autonomía.
Introdução
O Acompanhamento Terapêutico (AT), ferramenta clínica, ou ainda, modo de operar a clínica, se insere no campo da saúde mental como poderoso instrumento de construção de novos lugares para o dito louco na cidade e contempla autonomia, emancipação social, política e cultural. A proposta do AT aproxima-se do objetivo da Reforma Psiquiátrica, a desinstitucionalização da loucura, compreendida como desconstrução, desmonte dos aparatos científicos, legislativos e administrativos próprios do paradigma psiquiátrico tradicional (Rotelli, Leornadis, Mauri & Risio, 1990). Além do abandono do olhar da razão científica moderna, é um processo de desinstitucionalização do social, conforme Alverga e Dimenstein (2006, p. 303), ou seja, "a luta não apenas contra as formas de sujeição da sociabilidade capitalista, mas também da desconstrução cotidiana e interminável das relações de dominação presentes em nossa sociedade".
Nesse sentido, para romper com a lógica manicomial, é necessário produzir um movimento de desinstitucionalização da clínica, ou seja, é imprescindível não apenas criar novos lugares de acolhimento e tratamento, mas novas lógicas que quebrem com as dicotomias clínica/política, indivíduo/sociedade, dentro/fora e público/privado. Diante disso, o AT aparece como uma aposta no campo da saúde mental. O presente trabalho pretende discutir as potencialidades do AT por meio do relato de experiência de acompanhante terapêutico (at) vivenciada por aluno de psicologia, ao longo do estágio curricular obrigatório realizado em 2013, em hospital psiquiátrico no estado do Rio Grande do Norte.
O "louco-criminoso": lançando novos olhares sobre o "indesejado"
O nosso acompanhado é Delmar,1 38 anos, natural do interior do estado do Rio Grande do Norte. Sua história é marcada por sucessivos abandonos por parte da família, dificuldades de escolarização e inserção precoce no trabalho braçal e mecânico. A vida de Delmar sofreu uma reviravolta no momento em que foi morar com o tio: ao entrar em conflitos com ele, Delmar o assassinou. Há relatos de que, encontrado pela polícia, estava em crise psicótica, o que definiu sua inimputabilidade e a aplicação de medida de segurança, de acordo com o art. 26 do Código Penal (1940), segundo o qual as medidas de segurança podem ser: a) internação em Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico ou, à sua falta, em outro estabelecimento adequado; e b) sujeição a tratamento ambulatorial.
A história de Delmar retrata a confluência histórica de dois saberes e práticas institucionais, a Psiquiatria e o Direito Penal, que passam a ser utilizados para justificar táticas de controle e, também, ocultar o seu sentido. Sobre esses dispositivos jurídico-psiquiátricos, Foucault (2001) aventa que são produzidos discursos que, ao possuir o poder de estabelecer decisões judiciais, são apresentados como discursos de verdade, principalmente por serem sustentados pelo estatuto científico e formulados por especialistas no assunto. Assim, como aponta Ibrahim e Vilhena (2014), os sujeitos são submetidos àqueles que assumem determinado saber/poder, o que confere ao louco-criminoso o lugar de não sujeito, obstruindo ou diminuindo suas possibilidades de ação. Apesar do laudo técnico da Psiquiatria, que decretou sua periculosidade e inimputabilidade devido à presença de transtorno mental, Delmar passou seis anos na delegacia até que finalmente foi encaminhado para o Hospital de Custódia, onde ficou internado durante cinco anos. É importante ressaltar que não há qualquer menção tanto nos laudos psiquiátricos quanto nos documentos jurídicos que aponte os motivos de sua permanência na delegacia, bem como transferência para o Hospital de Custódia.
Os dispositivos jurídico-psiquiátricos ganham caráter de neutralidade conferido pelo mandato da ciência; desse modo, ignoram as consequências institucionais e subjetivas produzidas. A cronificação dos usuários, resultado do tratamento recebido e das péssimas condições institucionais, é considerada como derivada exclusivamente da condição patológica dos sujeitos. Além disso, produz-se uma dupla identidade e estigma ao sujeito: o louco criminoso, o que contribui sobremaneira para a cronificação (Bravo, 2007).
A cessação da periculosidade que garante a liberdade ao sujeito foi dada a Delmar com a prerrogativa de que ele fosse em seguida internado no Hospital Psiquiátrico, local onde começou o nosso acompanhamento. A presença de Delmar no serviço é indesejada para alguns membros da equipe, pois, para alguns "é um bandido, e merece estar na cadeia". O interesse de acompanhar Delmar ao longo de todo o ano causou insatisfação em alguns profissionais da equipe, pois "ele é um caso perdido", devido a ser "bandido", de modo que deveria haver restrições sérias às "atividades extramuros".
As verdades produzidas sobre o louco-criminoso formataram uma identidade, que, segundo Swain (2005), conduzem as condutas. Delmar foi rotulado e, desde então, passou a ser tratado como "ser agressivo por natureza", que deve ser afastado da sociedade e ocupar o lugar que lhe é de direito: a prisão, o manicômio judiciário. Destarte, qualquer resistência à lógica manicomial de mortificação das subjetividades era interpretada por parte da equipe como sinais, pistas, sobre o perigo iminente que os circundava.
Nesse contexto foi preciso problematizar: não seria a experiência da institucionalização a responsável pelos efeitos de cronicidade que são atribuídos ao transtorno mental? Tendo em vista que somos atravessados por diversos vetores que nos afetam, o contexto em que vivemos e a identidade que carregamos, nesse caso, a de louco-criminoso, não afeta as nossas interações com o mundo e a maneira como nos construímos? As atitudes tantas vezes observadas em Delmar não podem ser, antes de tudo, resistências à forma como ele é tratado, como eterna ameaça? (Jardim & Dimenstein, 2007; Torre & Amarante, 2001).
Em seu itinerário, Delmar percorreu instituições como a prisão, o manicômio judiciário, o hospital psiquiátrico, isto é, instituições totais, como Goffman (2001) as define: "local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada" (Goffman, 2001, p. 11), local onde não há espaço para o desejo e a criação. O cotidiano institucional tende a homogeneizar as características, as histórias e as peculiaridades dos sujeitos que lá estão. São seres "culpados", "incapazes", "deficientes", "loucos", "criminosos", que integrados na rotina da instituição, são alvos de disciplinas que vão domesticar, docilizar, seus comportamentos e massificar suas vivências (Disconsi et al., 2013).
Assim, o primeiro passo no AT foi a tentativa de ampliação do olhar da equipe, pois é preciso observar minuciosamente que conjuntura de fatos terminou produzindo aquela ação. No caso não apenas de Delmar, mas da loucura de modo geral, a agressividade é uma resposta para atos coercitivos, para a desconsideração do diálogo por parte da pessoa que aborda o louco, para a violência simbólica, para a sensação de ameaça, entre outras situações (Jardim & Dimenstein, 2007).
Acompanhamento terapêutico como dispositivo clínico-político: a política da amizade
O AT é uma prática clínica cujo setting está nas ruas, esquinas, nas adjacências do serviço de saúde, assim como nos diferentes espaços sociais por onde o sujeito deseja circular. Palombini (2006) utiliza o conceito de dispositivo de Foucault (2014) para definir o AT como dispositivo clínico-político, pois se trata de um encadeamento de discursos, instituições, leis, enunciados científicos, uma vez que é atravessado por elementos que articulam loucura e sociedade. Alguns elementos importantes atravessam esse dispositivo clínico-político. Primeiro, a presença dos princípios da Reforma Psiquiátrica nos discursos, leis, medidas administrativas e diferentes atores desse processo (governo, serviço, profissionais, comunidade). O segundo elemento é que o AT tem como espaço de atuação a cidade, que é processual, produtora de relações, negociações e conflitos. O terceiro elemento é a composição de uma teia de conhecimentos que não se restringe a um único saber, bem como o uso de uma teoria da clínica2 como caixa de ferramentas para o trabalho, na qual é importante considerar a presença dos seguintes princípios: a noção de que a subjetividade se produz na relação com a alteridade, bem como a ideia de que há uma dimensão de resistência na subjetividade que não se deixa capturar pelos poderes do Estado e da ciência. O quarto elemento é a disponibilidade pelo acompanhante e pelo acompanhado para experimentar o novo e o inusitado, a abertura para alteridade, assumindo tanto a dimensão de risco que isso comporta quanto o potencial de invenção (Lemke & Silva, 2013; Palombini, 2006).
Para pensar o AT como uma zona de indiscernibilidade em que clínica e política não mais se separam, Araújo (2005; 2006) resgata a noção de amizade que foi escamoteada em nome do estatuto clínico e terapêutico, quando, em seus primeiros desenvolvimentos, a prática do amigo qualificado foi recodificada para acompanhamento terapêutico. Compreender a questão da política da amizade implica em, primeiramente, desconstruir a imagem igualitária, fraterna e irmã da amizade. Ela é, portanto, amizade à diferença, ao díspar, ao dessemelhante, ao outro, o que significa a possibilidade de acolhimento e hospitalidade ao que se apresenta como diferença radical (Araújo, 2005; 2006).
Para tratar da política da amizade no que se refere ao AT, algumas pistas são dadas por Ortega (2002) quando, ao falar da amizade e sua função de constituição de novas relações sociais, afirma:
A amizade é um fenômeno público, precisa do mundo e da visibilidade dos assuntos humanos para florescer. Nosso apego exacerbado à interioridade, à tirania da intimidade', não permite o cultivo de uma distância necessária para a amizade, já que o espaço da amizade é o espaço entre indivíduos, do mundo compartilhado - espaço da liberdade e do risco -, das ruas, das praças, dos passeios, dos teatros, dos cafés. (pp. 161-62)
Como não reconhecer nessa passagem os passeios do acompanhamento terapêutico pela cidade, por esse "espaço da liberdade e do risco"? A amizade encontra-se na capacidade do acompanhamento terapêutico de criar novas formas de relação na cidade.
Em nossa experiência, ao retomar os contatos com a família de Delmar, um dos obstáculos foi o deslocamento do hospital até o município3 onde moravam seus familiares. Inicialmente íamos de carro, até que as viagens se tornaram frequentes, o que criou um problema, dada a impossibilidade de acompanhar todas as viagens de Delmar, o que dificultou suas idas até a casa de sua família. Nesse momento, ele colocou a possibilidade de ir sozinho de ônibus, o que causou um mal-estar na equipe. Como ele poderia viajar sozinho de ônibus entre as cidades? Ele saberia viajar sozinho? E se ele criasse algum acidente nesse percurso?
Sustentamos a posição de Delmar com o apoio da família, enquanto alguns membros da equipe não aceitaram. Apesar dos tensionamentos produzidos, concluímos que Delmar tinha condições para viajar. Primeiro viajamos com ele de ônibus, posteriormente pactuamos com o cobrador e por fim não era mais preciso o nosso acompanhamento. Sabemos muito pouco o que aconteceu durante o trajeto, mas é conhecido que ele tem histórias interessantes para contar desse momento, conversas com moradores do município, com a senhora que vende salgados no ônibus, com a bela moça que percorre os seus mais distintos sonhos. Pela primeira vez, após anos de institucionalização, Delmar pôde caminhar sozinho.
O desejo de Delmar, o projeto construído em conjunto pela equipe, a repetição da linha de ônibus, a abertura dos cobradores e motoristas, suas viagens sem tutela, tudo isso foi a construção de um espaço na sociedade que entendemos como uma política de acolhimento ao outro, como uma política da amizade na clínica do acompanhamento terapêutico. Um modo de colocar a loucura em contato direto com o socius, invocando novos modos relacionais e investindo na criação de uma sociedade hospitaleira a tudo aquilo que difere.
Da terapêutica disciplinar para a terapêutica do controle: a emergência de novos muros
A construção do plano de cuidados de Delmar teve como uma de suas linhas principais a (re)criação de seus vínculos familiares. Devido ao crime cometido, o relacionamento com a família estava enfraquecido. Apesar disso, ele desejava reaver sua família e, quem sabe, retornar ao convívio familiar. Após contato com a família, que teve como mediadora a sua madrinha, a avó de Delmar começou a visitá-lo no hospital. A surpresa foi a notícia de que sua mãe estava interessada em conhecê-lo. Delmar não tinha lembranças de sua mãe, pois ela deixou a casa quando ele ainda era criança. A possibilidade de reatar os vínculos com a mãe foi bastante festejada pelo acompanhado, o que nos levou a trabalhar esse objetivo. Dos arredores do hospital psiquiátrico passamos a acompanhá-lo em outro cenário, próximo de sua família, emergindo novos desafios. Outros muros foram erigidos, invisíveis, mais sutis, mas igualmente poderosos.
Esse novo contexto nos remete às novas formas de controle na contemporaneidade. Da passagem do capitalismo pesado para o leve (Bauman, 2001), das sociedades disciplinares (Foucault, 2014) para as sociedades de controle (Deleuze, 1992), a ênfase deixa de ser a fabricação de corpos dóceis para focar na fabricação de cérebros flexíveis e articulados, os quais conduzem corpos também maleáveis. A sociedade de controle não tem como único objetivo esquadrinhar a população, uma vez que a maioria dos corpos é dispensável por não poder consumir; os dispositivos de vigilância, fiscalização e controle selecionam os corpos, criando modos de institucionalização segundo o duplo critério dos que se fará viver e dos que se deixará morrer (Vasconcelos, Machado & Mendonça Filho, 2013). Desse modo, as novas táticas de controle não se opõem à lógica disciplinar, mas significam sua intensificação; as lógicas que operavam outrora principalmente no interior dos muros institucionais se estendem, hoje, a todo o campo social (Hardt, 2000).
Depois de inúmeras viagens para casa da mãe, Delmar decidiu que chegara o momento de viver com a família. Assim, passamos a construir um novo projeto que tinha como ponto de partida a construção de uma casa para Delmar ao lado da casa de sua mãe. Ele tinha dinheiro em conta, resultado do recebimento do Benefício de Prestação Continuada,4 fator que foi determinante para agilizar o processo de desinstitucionalização.
Apesar da abertura e do acolhimento total e radical, a família de Delmar passou a operar de determinado modo que poderia colocar em risco a produção de uma vida mais livre. Foi criado em torno do acompanhado toda uma rede de proteção que lhe impossibilitava a produção de autonomia. Oliveira (2013) alerta para não repetir erros do passado, pois durante décadas defendeu-se que o lugar do louco seria no hospício; assim, o lugar do louco seria agora a residência? Estávamos assistindo à transferência da lógica manicomial do hospital para a residência, produzindo enclausuramentos residenciais.
O AT está inserido num campo político de tensões, no qual pode ser convocado a atuar tanto no controle quanto na produção de saúde. A emergência da figura at ocorre exatamente no contexto da passagem da terapêutica disciplinar para a terapêutica de controle, na qual o advento dos psicofármacos ganha destaque. Inclusive, as primeiras tarefas delegadas ao at foram supervisionar a administração das medicações e vigiar o comportamento do louco fora da instituição (Lemke & Silva, 2013; Silva & Silva, 2006).
A quebra do enclausuramento residencial foi uma tarefa gradual que não pôde ser efetivamente concluída ao final do processo. Gonçalves e Barros (2013) apontam que a inserção do at na família ocorre de forma contraditória, ora ele é identificado como aquele que irá minimizar o sofrimento, ora é tido como ameaçador ou intruso, já que a sua presença pode evidenciar a cristalização da dinâmica familiar. Foi preciso deixar claro que a tarefa do at naquele cenário não era apenas controlar Delmar no uso do medicamento nem vigiar a família no que se refere ao trato com o acompanhado.
A família aos poucos percebeu que poderia encontrar no at um auxiliar nesse processo delicado de reinvenção dos vínculos familiares. Nesse sentido, colocamos em cheque o objetivo terapêutico de "resgate" dos laços familiares e sociais, uma vez que os laços produzidos aparecem compondo novas formas de sujeição e adoecimento. Destarte, o que queremos tratar é da invenção de novas relações familiares, em que não há espaço para produção de microenclausuramentos na residência.
O desejo de Delmar em relação à busca da vida na cidade foi sendo anestesiado pelas restrições impostas pela família à sua livre circulação. Porém, após evidenciar que ele não mais questionava e aceitava a condição imposta, a família passou a ter uma atitude contrária à que tinha até então. Foi pedido ao AT que ele ajudasse na retirada de Delmar da residência e pudesse, então, recriar redes sociais e de convivência na cidade. Após análise cuidadosa da demanda da família, e por acreditar que se tratava de um pedido genuíno em relação à produção de autonomia, aceitamos o pedido.
A produção de redes sociais: acompanhamento terapêutico como estratégia de enlace social
A Política Nacional de Saúde Mental está estruturada atualmente a partir da Estratégia de Atenção Psicossocial, que aponta para a produção de cuidados territorializados e comunitários. Os princípios de coordenação, colaboração e complementaridade entre os serviços e recursos sanitários e sociais tem como propósito o desenvolvimento de serviços que atendam às amplas necessidades e problemáticas sociais da população portadora de transtornos mentais, especialmente no que se refere à reabilitação psicossocial, apoio e integração laboral, atenção residencial e suporte às famílias. Desse modo, busca-se evitar processos de cronificação e deterioração das capacidades e do funcionamento social dos sujeitos portadores de transtorno mental, bem como fomentar possibilidades de autonomia e participação na vida comunitária (Dimenstein, 2013).
A primeira iniciativa tomada nesse sentido foi a articulação com o conjunto de serviços de saúde e socioassistenciais. A construção de redes de cuidado requer que os serviços existentes no território5 estejam articulados de modo que possam fornecer apoio e suporte às famílias com portadores de transtorno mental. Além do Caps, serviço de entrada na Rede de Atenção Psicossocial (Raps), articulamos com a Estratégia de Saúde da Família (ESF) por entender que esse serviço é a referência maior para o cuidado próximo aos usuários (Yasui & Costa-Rosa, 2008). Por meio da ESF, os agentes comunitários de saúde passaram a realizar visitas periódicas para acompanhar as relações familiares e comunitárias, o uso dos medicamentos, criando vínculos com Delmar e sua família e evitando o uso desnecessário de recursos assistenciais mais complexos.
Além da ESF, acionamos também o Centro de Referência de Assistência Social (Cras), considerada a porta de entrada do Sistema Único de Assistência Social (Suas). Entendemos que a presença do Cras é pertinente na produção de uma rede de cuidados, uma vez que ela pode auxiliar no enfrentamento das situações de vulnerabilidade social que possam ser produzidas ao longo da vida da família de Delmar. Entretanto, alguns obstáculos foram colocados, pois o Cras não apostou na possibilidade de ofertar cuidados por entender ser essa uma responsabilidade do Caps. Após debate e pactuações, ficou acertado que o Cras poderia desenvolver intervenções no que se refere ao cuidado com a mãe de Delmar.
Apesar dos problemas na constituição dessa rede, acreditamos que ela tem potência para fornecer retaguarda a Delmar e sua família. Contudo, entendemos que a rede é maior do que o conjunto de serviços sociossanitários do município, ela é constituída permanentemente por outros serviços, associações, cooperativas e os mais variados espaços da cidade (Marques, 2013). Ao considerar a importância da expansão territorial do usuário portador de transtorno mental, articulamos, a partir dos desejos de Delmar, que espaços poderiam ser ocupados no seu cotidiano. Assim, pudemos elencar alguns espaços escolhidos, como a casa da madrinha, a casa de um antigo amigo, a feira pública de sua cidade, onde criou novos amigos, o barbeiro e cabeleireiro próximo à sua casa. Outros espaços foram levantados como possibilidades, mas, ao longo do processo do AT, não puderam ser efetivamente vinculados, como o campo de futebol próximo à sua casa e a casa de seu tio, que fica no município vizinho.
A construção de redes não é tarefa simples, como salienta Marques (2013), é um trabalho difícil, pois supõe a necessidade de conexão de diversos elementos. Nesse sentido, temos consciência de que a construção da rede efetivada apresentou vários problemas devido à fragmentação dos serviços sociossanitários existentes e à dificuldade de articulação destes com os recursos comunitários.
Por entender que uma rede só existe quando ela funciona, apostamos na atividade do AT como uma ferramenta que permite a construção de conexões entre serviços institucionais e comunitários, atuando como importante instrumento de enlace social (Disconsi et al., 2013). A função do at consiste em mapear a rede social do acompanhado/família, construindo rearranjos nas redes das quais faz parte, ajudando-o a usufruir as oportunidades suscitadas no âmbito de suas redes. Portanto, na medida em que mapeia, constrói e amplia uma rede de relações com múltiplos atores, o AT produz modos de cuidar transferindo o processo de acompanhamento para a própria rede (Gonçalves & Barros, 2013).
Considerações finais
Os encontros produzidos no AT possibilitam aumento de autonomia, na medida em que o acompanhado passou a decidir sobre sua própria vida, os lugares para onde gostaria de ir, as roupas que gostaria de usar, os filmes (pornô) que gostaria de assistir. Apesar de parecerem acontecimentos banais, essas escolhas constituíram uma novidade radical no cotidiano de sua vida, o que possibilitou o encontro com sua família e sua volta para casa.
Ao realizar uma prática antimanicomial, percebemos em nossas andanças que os encontros produzidos nas ruas forçam um olhar dos andantes para o que estava há pouco tempo enclausurado entre paredes, falsas protetoras de sujeitos, trazendo a confrontação para o que está naturalizado. Atuamos, portanto, num plano técnico, da rede e de produção de cuidados, e num plano cultural, da cidade. O primeiro quando estávamos no hospital psiquiátrico, nas discussões com a equipe; o outro quando estávamos nas ruas, na nova vida construída por Delmar com a família. Destarte, apostamos na prática do AT como ferramenta de cuidado que pode desconstruir os grossos portões que ainda não foram efetivamente atravessados, bem como as grades que ainda bloqueiam a circulação do louco na cidade.
Referências
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Recebido em 26/05/2015
Aprovado em 06/04/2016
1 Nome fictício. Delmar é um nome de origem espanhola e significa aquele que nasceu no mar. O nosso acompanhado tinha como um de seus itinerários favoritos a ida à praia.
2 A prática do AT no Brasil está ancorada principalmente nos pensamentos de Lacan, Winnicott, Deleuze e Guattari.
3 O município encontra-se na região metropolitana, a exatamente 26 km da capital.
4 O BPC é um benefício da Política de Assistência Social individual, não vitalício e intransferível, e assegura a transferência de um salário mínimo ao idoso, com 65 anos ou mais, e à pessoa com deficiência, de qualquer idade, com impedimentos de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial. Em ambos os casos, devem comprovar não possuir meios de garantir o próprio sustento, nem o ter provido pela família.
5 Concebemos a noção de território como proposta por Milton Santos (2000): o território só se torna uma categoria utilizável para a análise social quando ele é efetivamente usado. Desse modo, a noção de território vivo, de Milton Santos (2008), trata do lugar de construção de relações pessoais, sociais, políticas e culturais que influenciam os modos de vida das pessoas que o habitam. Como produto e produtor das relações sociais, os territórios são objetos e agentes de transformações sociais, ou seja, devem ser entendidos como territórios que ganham sentido pelo habitar de seus moradores.