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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.12 no.1 São João del-Rei jan./março 2017
Atendimento psicossocial a crianças e adolescentes em situação de violência: o psicólogo e a rede de atenção
Psychosocial care for children and adolescents in situation of violence: the psychologist and the attention network
Atención psicosocial para niños y adolescentes en situación de violencia: el psicólogo y la red de atención
Etiene Oliveira Silva de MacedoI; Maria Inês Gandolfo ConceiçãoII
IDoutoranda em Psicologia Clínica e Cultura (UnB). Psicóloga (SES/DF)
IIPós-Doutora em Psicologia. Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura (UnB)
RESUMO
Este estudo de caso discute o atendimento psicossocial oferecido a crianças e adolescentes em situação de violência, em um centro de extensão universitário voltado a essa clientela, no município de Goiânia (GO). Tratou-se de uma família que enfrentava situação de vulnerabilidade social e de violência física, encaminhada para instituição especializada no atendimento a situações de violação de direitos. Além do atendimento psicológico, foram necessárias ações para garantir os direitos desses sujeitos, o que exigiu da psicóloga um posicionamento estratégico para dialogar com outros profissionais e instituições. Entre os impasses para a eficácia dessas ações, destacaram-se a escassa e demorada articulação entre os profissionais da rede e a falta de capacitação no sentido de superar formas tradicionais de atendimento, correndo-se o risco de perpetuar práticas retrógradas e estigmatizantes em detrimento da doutrina da proteção integral.
Palavras-chave: criança, adolescente, atendimento psicossocial, violência, rede de atenção.
ABSTRACT
This case study discusses the psychosocial care offered to children and adolescents in a situation of violence, in a university extension center addressed to this clientele, in the city of Goiânia (GO). It was a family that faced a situation of social vulnerability and physical violence, referred to an institution specialized in dealing with situations of violation of rights. In addition to psychological care, actions were required to guarantee the rights of these subjects, which required the Psychologist a strategic position to dialogue with other professionals and institutions. Among the impasses for the effectiveness of these actions were the scarce and time-consuming articulation between the network professionals and the lack of training in order to overcome traditional forms of care, running the risk of perpetuating retrograde and stigmatizing practices to the detriment of the doctrine of integral protection.
Keywords: child, adolescent, psycho-social care, violence, network of attention.
RESUMEN
Este estudio de caso discute la atención psicosocial que se ofreció a niños y adolescentes en situación de violencia, en un centro de extensión universitario dirigido a esta clientela, en la ciudad de Goiânia (GO). Fue una familia que se enfrentó a una situación de vulnerabilidad social y violencia física, referida a una institución especializada en atender situaciones de violación de derechos. Además de la atención psicológica, se requerían acciones para garantizar los derechos de estos sujetos, lo que exigía de la psicóloga una posición estratégica para dialogar con otros profesionales e instituciones. Entre los impases para la efectividad de estas acciones estaban la escasa y demorada articulación entre los profesionales de la red y la falta de formación para superar las formas tradicionales de atención, corriendo el riesgo de perpetuar las prácticas retrógradas y estigmatizadoras en detrimento de la doctrina de protección integral.
Palabras claves: niño, adolescente, atención psicosocial, violencia, red de atención.
A violência é um fenômeno milenar. Ela está presente de diversas formas na cultura e na sociedade, legitimada e naturalizada nas relações entre grupos (Sudbrack & Conceição, 2005). No caso de crianças e adolescentes, a violência acontece tanto no interior das famílias como no contexto extrafamiliar. Nos dois casos, trata-se de uma violação aos direitos sociais básicos, em que as vítimas são submetidas a relações interpessoais de violência física, psicológica ou sexual (Conselho Federal de Psicologia, 2009; Faleiros, 2004; Habigzang, Hatzenberger & Koller, 2013).
Em razão da diversidade de sintomas e consequências produzidos por cada tipo de violência, critérios normativos foram criados na tentativa de apreender, teórica e historicamente, como ela se materializa nas relações sociais. Essa tentativa de apreensão não esgota suas sutilezas e variações. Neste trabalho, optou-se pelas definições apresentadas pelo Conselho Federal de Psicologia (2009) nas referências técnicas para o atendimento do psicólogo a crianças, adolescentes e famílias em situação de violência, por considerá-las abrangentes e fundamentadas em conceituações de importantes autores (por exemplo, Azevedo & Guerra, 1989; Faleiros, 2004; Guerra, 2001; Souza & Koller, 2013).
Conhecida também como maus-tratos, a violência física pode ser entendida a partir da intencionalidade daquele que, por meio de ação única ou repetida, em vez de assegurar a proteção e cuidado, pratica atos que ferem ou comprometem a integridade física da criança. Comumente circunscrita à família ou ao convívio com a criança, essa forma de violência é praticada por pais, mães, responsáveis ou outra criança e adolescente mais velhos (Pires & Miyazaki, 2005; WHO, 2002). Merece destaque a constatação de que as vítimas da violência intrafamiliar com frequência são objeto de múltiplas vitimizações (Finkelhor, Ormrod, Tuner, & Hamby, 2005) e com diferentes efeitos (Finkelhor & Dziuba-Leatherman, 1994).
A violência psicológica é difícil de ser definida operacionalmente devido à diversidade cultural que legitima algumas práticas violentas, conforme o contexto em que ocorrem. O consenso percebido entre os autores é de que a violência psicológica traz uma mensagem cultural de depreciação e rejeição que prejudica a socialização e o desenvolvimento psicológico da criança e do adolescente, provocando grande sofrimento (Abranches & Assis, 2011; Guerra, 2001).
As diversas formas de violência são também descritas pelas expressões negligência e maus-tratos. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, a negligência é um dos tipos de violência que deve ser estudada, pois resulta em prejuízos específicos ao desenvolvimento cognitivo e emocional de crianças e adolescentes (World Health Organization, 2002). A negligência é entendida como a omissão dos pais ou cuidadores em suprir as necessidades básicas, físicas ou emocionais da criança e adolescente, mesmo quando as condições estruturais possibilitam tais cuidados (Guerra, 2001).
Os diferentes tipos de maus-tratos, que também incluem a violência física e a violência psicológica, referem-se às situações que envolvem ato ou omissão de um sujeito em condição superior, capaz de causar dano físico ou psicológico à vítima. As situações de maus-tratos que tipificam a violência psicológica são aquelas em que, repetidamente, os adultos convencem a criança de que ela é indesejada, inadequada e sem valor. As situações de maus-tratos físicos envolvem todas as situações em que a força física é utilizada de forma intencional para ferir, lesar ou destruir a vítima (Abranches & Assis, 2011; Pires & Miyazaki, 2005; World Health Organization, 2002).
A violência sexual, caracterizada pelo abuso e pela exploração sexual, é premeditada, intencional, entendida como
todo ato ou jogo sexual, relação hetero ou homossexual entre um ou mais adultos e uma criança ou adolescente, tendo por finalidade estimular sexualmente esta criança ou adolescente ou utilizá-los para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou de outra pessoa. (Azevedo & Guerra, 1989, p. 42)
Trata-se de qualquer relação em que a vontade do adulto é sobreposta à vontade da vítima, extrapolando os limites de poder, de papéis, de regras sociais, de tabus, familiares, de direitos humanos, ultrapassando o que a vítima compreende, consente ou faz (Faleiros, 2004).
Embora tais distinções sejam necessárias, elas não são terminologias excludentes. A violência física, por exemplo, é também psicológica, e a sexual inclui, ao mesmo tempo, violência física e psicológica. Assim, as variações de conceituação atuais nada mais são do que uma tentativa de abarcar o fenômeno em sua complexidade e subsidiar intervenções concretas. Nenhuma classificação, contudo, esgota a complexidade e o caráter multideterminado da violência. O que há em comum nas tipificações da violência é a relação de assimetria e desigualdade entre o sujeito dominador e o sujeito dominado (Faleiros, 2004; Santos, Ippolito & Neumann, 2004; Souza & Koller, 2013).
Embora o Brasil tenha uma das legislações mais modernas sobre direitos da criança e do adolescente, a violação desses direitos é evidente. Um dos motivos dessa dificuldade de mudança de paradigma pode ser a lentidão na mudança cultural sobre as concepções de infância e adolescência, que se faz sentir também nos espaços de atendimento (Souza & Koller, 2013). É necessário saber o que fazer diante da violação de direitos e, no caso da violência que engendra uma complexa trama de outros fenômenos, como promover o diálogo e a articulação entre as instâncias de atendimento. Nesse ponto, o trabalho em rede ganha relevância.
As redes de atenção são formas de atuação que vêm se estruturando no Brasil, desde a década de 1980, como um campo prático e simbólico que reflete a retomada da democracia no País. Sua composição é permeada por laços institucionais e também por relações interpessoais, concretizados na forma de parcerias que envolvem o poder público e a sociedade civil nos vários campos de atuação, exigindo ações compartilhadas e interdisciplinares, dispostas horizontalmente do ponto de vista hierárquico (Carvalho, Luz & Assis, 2007; Malaquias, 2014).
No caso do atendimento às vítimas de violência, são requeridas integrações complexas - não necessariamente complicadas - em suas diversas frentes de atuação, como Conselhos Tutelares, Juizados Especiais, Centros de Referência Especial da Assistência Social (Creas), Centros de Referência da Assistência Social (Cras) e demais centros de atendimento especializados. É preciso que cada profissional envolvido reflita sobre sua função articuladora na busca do restabelecimento dos direitos violados, a fim de ir além de uma atuação tecnicista e mecânica, na direção de uma prática dinâmica e reflexiva, o que vai exigir um nível de elaboração maior para potencializar as ações coletivas (Carvalho, Luz & Assis, 2007; Malaquias, 2014). Isso porque, ainda que essa articulação já esteja instituída, do ponto de vista estrutural, como no caso do atendimento ancorado no sistema de garantia de direitos, os atores precisam saber como se integrar, o que não é tarefa fácil. Parcerias, discussões e planejamentos que se efetivam apenas no plano político e de gestão são difíceis de serem consolidados na ponta. A literatura (Malaquias, 2014; Santos 2007; Souza & Koller, 2013) sinaliza a necessidade de estabelecer metodologias que sejam prioritárias para as equipes de atendimento, capazes de superar as questões políticas que atravancam a prática.
Essas dificuldades devem-se também ao despreparo dos profissionais da rede, nas suas diferentes áreas de atuação: saúde, educação ou âmbito jurídico. A atuação fica, então, fragmentada e desarticulada. No entanto, além dos investimentos estruturais e hierárquicos, é por meio de uma prática reflexiva que possibilite mudança de paradigma na abordagem ao problema da violência contra crianças e adolescentes que tem sido possível articular profissionais e famílias no atendimento (Malaquias, 2014, Habigzang et al., 2013).
Na rede, as ações devem ser especializadas e também articuladas para promover e garantir direitos das crianças, adolescentes e de suas famílias. É fundamental que os profissionais envolvidos se articulem de modo intersetorial e, também, interdisciplinar, de modo que se configure a rede de apoio social e de proteção para o enfrentamento da violência (Habigzang et al., 2013).
Nesse sentido, os serviços oferecidos em rede devem manter estreita relação com as demais instâncias do poder público, como Juizados Especiais, Delegacias, Conselhos Tutelares e Ministério Público, a fim de acelerar os processos decisórios e buscar, em tempo hábil, resolutividade para os casos. Em relação à prática do psicólogo no atendimento a crianças e adolescentes em situação de violência, há uma série de aspectos presentes que vão muito além da prática clínica tradicional. Tal complexidade exige desse profissional um posicionamento ético-político, por meio de ações que se estendem também ao âmbito psicossocial (Silva & Vecina, 2002). Além de buscar a redução dos prejuízos psicológicos sofridos, o atendimento deve visar à mudança nas condições objetivas geradoras ou facilitadoras da dinâmica da violência, incluindo atenção física, psicológica, econômica e social, oferecidas a todos os envolvidos, ou seja, à vítima, à família e ao autor da violência.
Esse compromisso ético-político diz respeito a analisar a situação por meio de uma leitura mais contextualizada das queixas trazidas pelos sujeitos atendidos, capaz de compreender a realidade subjetiva e, ao mesmo tempo, as condições objetivas que, simultaneamente, provocam ou mantêm o sofrimento psicológico e cerceiam os direitos fundamentais. Assim, o psicólogo deve atuar no sentido da emancipação e transformação da realidade dos envolvidos (Alberto, Almeida, Dória, Guedes & França, 2008; Almeida & Goto, 2011).
Dentro do paradigma da proteção integral, o psicólogo tem um papel menos tecnicista e mais articulador, no sentido de viabilizar direitos. Para isso, ele precisa conhecer a legislação, lidar com a descentralização das tarefas, propor debates e reflexão na direção da autonomia dos sujeitos atendidos (Alberto et al., 2008).
A intervenção psicológica fica então menos focada no fenômeno psíquico em si e busca sempre as conexões com a vida concreta e seus efeitos na vida das pessoas. De acordo com Alberto et al. (2008), a atuação do psicólogo deve orientar-se nos seguintes eixos: diagnóstico da situação, planejamento das ações e estratégias para enfrentamento das situações de risco, mobilização dos profissionais da rede em seus eixos de atuação e ações especializadas, com vistas à prevenção e tratamento, conforme a demanda.
Neste estudo, optou-se pela nomenclatura atendimento psicossocial, dado o entendimento de que as estratégias utilizadas nesse atendimento envolvem, concomitantemente, aspectos psicológicos e sociais, tornando imperativo, por exemplo, que os serviços oferecidos se estendam à família por meio da articulação com a rede de atenção. A intervenção psicossocial refere-se a uma prática comprometida com o empoderamento do sujeito e com o incentivo na busca de soluções para suas dificuldades que façam sentido em sua história de vida, em total consonância com o contexto social, político, econômico e cultural do sujeito (Costa & Penso, 2010).
Assim, pretende-se, por meio de um relato de experiência, discutir a atuação da psicóloga com crianças e adolescentes em situação de violência, a partir de sua inserção na rede de atenção. Para essa reflexão, objetivou-se conhecer como se efetiva a prática do psicólogo em instituição especializada no atendimento a essa população.
Método
O estudo de caso foi adotado como metodologia. As reflexões aqui presentes foram ocasionadas pelo atendimento psicossocial oferecido a uma família em um Centro de Extensão Universitária, no município de Goiânia, especializado na oferta de serviços a crianças, adolescentes e famílias em situação de violência. Na doutrina da proteção integral, esses serviços situam-se no eixo dos serviços especiais de atendimento psicossocial às vítimas da violência em suas múltiplas formas de expressão.
Os serviços oferecidos por esse centro de extensão incluem acolhimento às famílias em situação de violência, a partir de demanda espontânea ou por encaminhamento pela Vara da Infância e Juventude, Conselho Tutelar ou Creas. As parcerias firmadas com esses órgãos viabilizam a articulação política e a criação de condições para atendimento às famílias em situação de violência.
Entre os objetivos da instituição estão: desenvolver de forma sistemática e contínua o atendimento individual ou grupal às famílias e capacitação de profissionais e pesquisadores que estudam a temática. Como ações destacam-se: atendimento individual e grupal, visitas domiciliares, reuniões técnicas, palestras, visitas a escolas e apoio pedagógico.
Caracterização dos participantes
A família participante deste estudo era composta por cinco membros: a mãe, padrasto, duas filhas e um filho. Ela foi encaminhada à instituição por um dos Creas do município e selecionada para este estudo em função da problemática de violência intrafamiliar por eles apresentada, considerada relevante para se aprofundar no conhecimento sobre a atuação do psicólogo nesse espaço. O quadro 1 apresenta a caracterização do grupo familiar:
A mãe e o padrasto não eram casados legalmente e trabalhavam cerca de 10 horas por dia, sem carteira assinada: ela como doméstica e ele como auxiliar de construção civil. Os filhos estudavam em escola municipal e todos estavam cursando o ensino fundamental. A renda mensal total da família era de aproximadamente dois salários mínimos. Moravam em casa de alvenaria alugada e não participavam de nenhum programa de complementação de renda. A convivência nesse grupo familiar era conflituosa: os irmãos se agrediam física e verbalmente; a mãe queixava-se das dificuldades de estabelecer limites para os filhos e a distribuição de tarefas e responsabilidades entre os membros do grupo era desequilibrada. A queixa da mãe estava relacionada à filha caçula que, com frequência, fugia de casa e retornava somente dois ou três dias depois.
Aspectos éticos
O caso apresentado foi desenvolvido no contexto de estágio obrigatório do curso de graduação em Psicologia, na clínica-escola da instituição. Por se tratar de serviços oferecidos no contexto do ensino, pesquisa e extensão, os participantes foram informados de que o atendimento oferecido poderia ser utilizado para fins acadêmicos. O estudo está de acordo com o art. 16 do Código de Ética Profissional do Psicólogo. Quando receberam informações sobre o caráter voluntário de sua participação e o sigilo das informações, eles assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido e aquiesceram em participar da pesquisa. Foram também informados de que poderiam interromper sua participação no estudo a qualquer momento, sem prejuízos no atendimento oferecido pela instituição.
Procedimentos
A família foi acompanhada por aproximadamente nove meses. Todo o processo foi realizado nas dependências da instituição, em salas para atendimento psicológico com uma mesa redonda, cinco cadeiras, uma estante com brinquedos, bonecas e jogos, tapete com almofadas coloridas e lavabo. Os participantes compareciam semanalmente ou quinzenalmente às sessões, que tinham duração de 1h30. Nessas ocasiões, oferecia-se escuta, apoio e orientação às demandas por eles trazidas, que se referiam às dificuldades relacionadas tanto à dinâmica familiar quanto às encontradas no contexto do qual a família fazia parte. As dificuldades eram: extensa jornada diária de trabalho da mãe; ausência da participação do padrasto na educação dos adolescentes; inexistência de supervisão na realização das atividades escolares; desorganização na distribuição das tarefas; inexistência de regras e acordos sobre a rotina da família; necessidades financeiras básicas e dependência de terceiros para satisfação de necessidades materiais como roupas e calçados.
Para a coleta e organização das informações, foram utilizados o diário de campo, a observação participante e a leitura dos registros dos atendimentos nos prontuários. Os atendimentos realizados na instituição tinham o objetivo de escutar, identificar as demandas trazidas pela família e instrumentalizá-la quanto aos seus direitos sociais básicos. Além disso, foram realizados: visita domiciliar, visita ao local de trabalho da mãe, encaminhamentos e relatórios ao Conselho Tutelar responsável e reuniões com os atores integrantes da Rede de Atenção para discussão do caso. O atendimento foi delineando-se à medida que as demandas surgiam, o que exigiu flexibilidade e criatividade para ajustar as atividades às necessidades da família. Havia situações em que nem todos os membros do grupo compareciam, o que demandava adaptação na abordagem que estava prevista. Além disso, eram recorrentes os episódios de fuga de uma das crianças. Os quadros 2 e 3 exibem como foi estruturado o atendimento.
Resultados
Os resultados a seguir descrevem a trajetória percorrida pela família durante o atendimento psicossocial e problematizam as especificidades dessa abordagem, a partir do envolvimento da psicóloga nos diferentes momentos do atendimento.
Caracterização do atendimento psicossocial
Qualquer que fosse o atendimento pretendido com a família, ele estava demarcado por um lugar específico: de um lado, as demandas afetivas trazidas por eles, e de outro, a situação material, concreta, na qual essas demandas compareciam, envolvendo situações de necessidades econômicas, exploração e relações desiguais, tanto no ambiente familiar quanto no contexto social. A família, desde o primeiro contato, mostrava-se vulnerável, com carências extremas, de até, por exemplo, recurso financeiro para comparecer ao local do atendimento e também com o mínimo conhecimento sobre seus direitos. O que a mãe sabia era que, "esse negócio a gente sabe que tem que chamar o Conselho Tutelar" [sic], ao se referir às fugas da filha mais nova, evento que motivou o encaminhamento para atendimento psicossocial.
O acolhimento
O primeiro contato com a família teve o objetivo de escutar sua queixa, oferecer orientações sobre seus direitos e criar vínculo para um possível atendimento. Nesse contato, a mãe (J.) e o filho (I.) de 12 anos compareceram. Na ocasião, a psicóloga e a estagiária de psicologia acolheram a família e explicaram o funcionamento e a rotina da instituição, mostrando também as dependências físicas do local. Além do atendimento familiar, o adolescente foi convidado a participar das atividades desenvolvidas na biblioteca da instituição e na sala de informática, disponível para que jovens e adolescentes da comunidade realizassem pesquisas, atividades educativas e acadêmicas. No acolhimento, o contrato foi estabelecido, resguardando-se a privacidade, o sigilo e a importância do envolvimento da família no atendimento. Firmou-se com a mãe uma agenda de encontros semanais em que seria importante a participação da família, com duração aproximada de 1h30 para orientações e mediação dos conflitos familiares relatados.
A visita domiciliar
A visita domiciliar foi realizada pela psicóloga e pela estagiária, na terceira semana de atendimento, já que, após o acolhimento, a família não compareceu ao atendimento agendado para a semana seguinte. Na ocasião, buscou-se conhecer a realidade socioeconômica da família, as imediações e as condições da residência, bem como investigar os prováveis motivos do não comparecimento ao atendimento.
Estavam presentes na residência apenas os filhos mais novos I. (12 anos) e M. (10 anos). Enquanto a menina observava a rua do portão, o menino soltava pipa no terreno baldio ao lado da residência. Sem nenhuma desconfiança ou receio, as crianças convidaram as profissionais para entrar, mostraram toda a casa e contaram sua rotina. A casa tinha dois quartos, uma sala, uma cozinha e uma área de serviço vinculada ao banheiro. A pintura, desgastada, aparentava sujeira e mofo. O chão também parecia sujo e havia uma grande quantidade de louça suja dentro da pia, na cozinha. Na sala havia um sofá de três lugares, uma estante de ferro contendo uma televisão de 21 polegadas colorida e alguns porta-retratos. No quarto das crianças havia duas camas, sendo que a filha mais velha (R.), de 14 anos, dormia no sofá ou no chão.
As crianças estudavam em turnos alternados porque "brigavam muito", disse I. (12 anos). Naquela tarde, a menina havia faltado à escola porque o uniforme não estava limpo, de acordo com seu relato. Quando perguntadas sobre a rotina diária, as crianças afirmaram que a mãe deixava o almoço pronto no dia anterior e que elas se organizavam ao longo do dia. Segundo M. (10 anos), a mãe sempre solicitava auxílio à vizinha que residia na casa da frente, para observar se os filhos permaneceriam em casa.
M. (10 anos) afirmou que a família não compareceu ao atendimento porque a mãe não dispunha do recurso financeiro para deslocamento até o local de atendimento. No momento da visita, foram feitas tentativas de contato com a mãe, pelo celular, mas, sem sucesso. Então, a psicóloga deixou um recado por escrito informando que ela poderia comparecer na semana seguinte, pois seria ressarcida do gasto realizado com esse deslocamento.
Pelo fato de a mãe não estar presente, as profissionais não se demoraram na visita. Tentou-se contato com a vizinha que morava na residência da frente, mas não havia ninguém na casa. No dia seguinte, a mãe telefonou e afirmou que se esquecera do atendimento marcado e não sabia se poderia procurar a instituição novamente. Ela afirmou: "Eu achei que tinha perdido a vaga por não ter ido" [sic]. Encerrada a visita, a psicóloga preencheu o prontuário da família com a descrição das observações e buscou auxílio financeiro no Creas para custear o transporte da família ao local do atendimento.
A visita domiciliar foi importante para assegurar a continuidade do atendimento, garantindo a frequência e participação nos encontros subsequentes. A mãe compreendeu que a instituição tinha como objetivo oferecer um espaço de trocas entre os profissionais e a família, a fim de que todos refletissem e buscassem soluções para os conflitos existentes em suas relações.
O atendimento na instituição
A situação de vulnerabilidade social da família contribuiu para a compreensão das queixas trazidas pela mãe que ocasionaram o atendimento. Durante o período em que foram atendidos, M. fugiu de casa três vezes, num intervalo aproximado entre 15 e 20 dias. Todas as vezes que saía de casa, procurava abrigo na residência de vizinhos, às vezes até desconhecidos da família, alegando que não poderia voltar para casa por sofrer maus-tratos por parte do padrasto e irmãos. Exposta a situações de negligência, risco do uso de drogas e trabalho infantil, ela chegou a permanecer até sete dias longe de casa e, quando retornava, sofria rigorosas punições físicas do padrasto.
Numa das ocasiões, a menina procurou abrigo na residência de um catador de papelão que ficava próximo à sua casa. Em troca, M. o acompanhava diariamente no trabalho pelas ruas, sem acesso regular à alimentação, cuidados básicos de higiene e também sem frequentar a escola. Assim como nas ocasiões anteriores, quando soube onde se encontrava a filha, a mãe foi buscá-la, mas não obteve sucesso. Mesmo após ter acionado a polícia, a mãe (J.) sofreu ameaças desse vizinho por insistir em levar a filha. Segundo relata, no momento em que ela tentou explicar a situação aos policiais, eles orientaram-na a retornar para casa, supondo que esse vizinho dizia a verdade. Sem argumentos, sentiu-se coagida, obedeceu aos policiais e voltou para casa sem a filha.
No dia seguinte, a mãe compareceu ao local dos atendimentos, mesmo sem estar previamente agendada, para comunicar a fuga da filha, referindo ser ali o único local de apoio e orientação que efetivamente encontrara na busca de solução para a problemática vivida por sua família. A psicóloga fez a notificação ao Conselho Tutelar a fim de que fossem tomadas as medidas legais para o retorno da criança à convivência com a família. Três dias depois, M. retornou para casa, não por intervenção do Conselho, mas sim por pensar que sua mãe estaria preocupada e pela "saudade que sentia dos irmãos", disse M..
Numa das sessões, ao se problematizar o que levaria M. a sair de casa, o irmão afirmou que ela fugia de casa "porque era rebelde e precisava mesmo era de levar uma taca" [sic]. Essa afirmação provocou risos e brincadeiras entre eles, inclusive a mãe endossou essa fala com afirmativas tais como: "bota de castigo no milho", "só se deixar amarrada no pé da mesa". Eram recorrentes essas afirmações, seguidas de risos e brincadeiras; todas as vezes que elas aconteciam, a psicóloga mediava uma reflexão a partir das próprias frases que eram por eles mencionadas. Houve uma ocasião em que a mãe silenciou-se e, em seguida, afirmou não saber o que fazer com os filhos, provocando comoção e lágrimas entre eles.
Ao descrever o que fazia quando fugia de casa, M. relatava atividades até mais penosas do que fazia em casa, tais como trabalho infantil e riscos de exploração sexual. Mas, afirmava também que "pelo menos ali não apanhava, fazia amigos e era melhor do que ficar em casa". Porém, ao mesmo tempo, ela mencionava saudade dos irmãos, da mãe, e o desejo de viver em harmonia com a família, sentindo-se ora rejeitada, ora valorizada pelos irmãos, pelo padrasto e pela mãe.
A articulação com a rede de atenção
A participação do Conselho Tutelar, da escola e da Delegacia de Proteção à Infância, também foram solicitadas pela psicóloga. Depois da notificação ao Conselho Tutelar, foi realizada também uma reunião a fim de estudar o caso e definir uma estratégia de atendimento. O conselheiro tutelar, a psicóloga e a estagiária de psicologia compareceram à reunião. As informações sobre a situação da família foram compartilhadas e o Conselho Tutelar solicitou uma avaliação psicológica de M., alegando ser possível que ela fosse portadora do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. A psicóloga afirmou não considerar prioritária a avaliação, já que se tratava de uma situação de vulnerabilidade social de toda a família e não um sintoma isolado da criança. A reunião foi breve, não resolutiva e deixou a impressão de isolamento, de que, ao final, cada profissional da rede executaria o que fosse de sua competência, em sua própria área de atuação e sem interlocução intersetorial.
Durante visita à escola, os primeiros resultados também não foram promissores. A intenção da conversa foi identificar, na escola, o que poderia contribuir para o fortalecimento de vínculos dos filhos de J. e também protegê-los, propondo, por exemplo, atividades que pudessem ser incluídas na rotina extraclasse deles, em tarefas que estimulassem sua participação.
A diretora da escola informou que M. era uma criança inteligente, mas atrapalhada, que conversava muito e prestava pouca atenção às aulas. Mencionou que sentia pena da mãe, porque ela trabalhava longas jornadas diárias e não podia "controlar" o que os filhos faziam. Quando foi perguntado qual era o procedimento da escola em caso de faltas recorrentes dos alunos, a diretora informou que tentava contatar os pais por telefone, mas que, na maioria das vezes, isso era difícil. Quando isso se tornava inviável, pedia ajuda ao Conselho Tutelar.
Segundo a diretora, a escola lidava diariamente com a evasão de grande quantidade de alunos, contava com limitado número de professores e possuía condições físicas precárias. Ficou acordado que, em caso de ausência dos filhos de J. à escola, o Conselho Tutelar e a psicóloga seriam informados. Caso essas ausências continuassem ocorrendo, cogitou-se a possibilidade de acionar o Juizado da Infância e Juventude e o Ministério Público para outras providências locais que pudessem assegurar a frequência das crianças à escola e proteger a família.
Devido às peregrinações de M. pela casa de vizinhos e pessoas estranhas que a exploravam, a mãe (J.) procurou a Delegacia de Proteção à Infância, a fim de realizar uma denúncia. Essa experiência, segundo relatou, foi constrangedora, pois foi advertida pela autoridade local de que seria a única responsável caso algum fato grave ocorresse com sua filha. A mãe também relatou que saiu da delegacia com medo de perder a filha, pois se sentiu ameaçada e culpada pela situação que estava vivenciando. Depois dessa ocorrência, não houve contato da delegacia com a instituição responsável pelo atendimento para troca de informações e providências.
Discussão
O atendimento psicossocial em situações de violência demanda diálogos, interlocuções e metodologias que possam ser constantemente repensadas conforme o fluxo estabelecido na articulação em rede. Ferrari (2002) aponta a necessidade de que essa atuação seja viabilizada por uma equipe multidisciplinar, a fim de se estabelecer conjuntamente as ações terapêuticas, legais e de proteção, dentro dos eixos da defesa, promoção, controle e efetivação dos direitos humanos.
É certo que, em se tratando de atendimento em rede, a prática interdisciplinar é desejável, se não condição indispensável para a efetiva articulação, mediante discussão, planejamento e atuação conjunta. Nesse quesito, o atendimento em questão oscilava entre potencializar o entrelaçamento de ações, visando à transformação da realidade encontrada ou manter os profissionais da rede em seus "especialismos" e saberes, resultando numa prática de pouco alcance para a complexidade das demandas.
No caso citado, o acolhimento foi de extrema importância para a criação do vínculo com a família. A escuta empática, acolhedora e a abstenção de julgamentos morais foram fundamentais para o atendimento subsequente. Desde o primeiro contato até a busca espontânea da família por ajuda na instituição, nos episódios de fuga de M., foi a psicóloga quem compareceu como referência e elo entre a família atendida e os outros profissionais da rede de atenção.
Durante a reunião para estudo do caso, mesmo sabendo da situação de violência física e psicológica de M., o Conselho Tutelar solicitou o psicodiagnóstico da menina, sob a hipótese de que suas recorrentes fugas estariam relacionadas a alguma psicopatologia. Não obstante o contexto familiar evidenciasse a situação de vulnerabilidade de todo o grupo, a medida prioritária do Conselho foi a de atribuir uma causalidade interna à própria criança por suas fugas, quando deveria ser a de zelar pelo cumprimento dos direitos e sugerir as medidas adequadas de proteção à criança. A avaliação psicodiagnóstica não foi realizada porque mais urgente era buscar os indicadores relacionados à violência vivenciada pela família e o planejamento de ações que pudessem oferecer à família subsídios para enfrentar tal situação, e não a obtenção de um perfil psicológico para justificar as fugas da criança.
Nesse ponto, questiona-se: qual a concepção de infância, de desenvolvimento infantil que deve embasar a avaliação psicológica de uma criança que sofre maus-tratos por parte de pessoas que deveriam oferecer cuidados e proteção? Qual diagnóstico psicológico é esperado para justificar a intervenção em uma situação evidente de risco social?
Embora se reconheça a importância e a necessidade desse instrumento, principalmente em situações de violência sexual, o que se observa é o risco de o profissional de Psicologia fortalecer modelos normativos homogêneos de classificação do que é considerado normal e patológico, sem considerar os espaços onde essas patologias acontecem. Por sua vez, a avaliação psicodiagnóstica pode estar a serviço da revitimização da criança, ao se endereçar a ela a responsabilidade por sua condição de sofrimento.
De acordo com Cruz e Guareschi (2004), num contexto de vulnerabilidade como o exposto, a falta de um posicionamento crítico do profissional no desenvolvimento das estratégias de enfrentamento da violência pode fortalecer a ideia de que famílias pobres são incapazes de cuidar de seus filhos, o que, não por coincidência, reproduz as práticas psicológicas que ocorriam durante a vigência dos Códigos de Menores de 1927 e 1979.1
Somado a isso estão os entraves que perpassam a atuação do Conselho Tutelar. O desconhecimento jurídico e técnico, por exemplo, compromete a resolutividade dos casos. Conselheiros e profissionais da rede precisam discutir e se organizar sobre o fluxo do atendimento, assumindo cada um a sua competência. O Conselho Tutelar precisa saber encaminhar e apontar quais procedimentos serão mais adequados às especificidades dos casos atendidos. O que ocorre com frequência, entretanto, é que muitos desses conselhos são tidos como pequenas delegacias, onde a criança e o adolescente são levados pela família ou pela escola, como último pedido de ajuda (Batista & Cerqueira-Santos, 2012; Conceição & Penso, 2014).
O que parece ocorrer é que ainda não há uma sólida construção da identidade do Conselho Tutelar. Talvez seja porque esse órgão não conseguiu se consolidar, o que o leva a mostrar uma ação fragilizada e improvisada no percurso do caso (Batista & Cerqueira-Santos, 2012; Malaquias, 2014).
Em relação ao atendimento realizado no interior da instituição, considerando-se as dificuldades de comparecimento de todos os membros do grupo familiar ao mesmo tempo, procurou-se valorizar a participação daqueles que estavam presentes, como agentes cuidadores de sua família. Não é novidade que as situações de violência enfrentadas por crianças e adolescentes sejam ainda hoje banalizadas e aceitas pela sociedade como formas educativas. Isso ressoa diretamente na forma como o grupo familiar lida com as situações identificadas e se fez presente nesse caso.
Por exemplo, o padrasto dos adolescentes não comparecia aos encontros quando era convidado. Segundo relatou a mãe, ele afirmava não ter responsabilidade com os adolescentes por não ser o pai biológico. Entretanto, assumia práticas educativas coercitivas no cotidiano, quando não conseguia o controle sobre o comportamento deles. Segundo relataram as crianças, ele usava de violência física com M. quando ela retornava para casa, após as fugas. Apesar de malsucedida, havia ali uma tentativa de negociação da hierarquia das relações. Porém, a mãe o desqualificava e não permitia qualquer forma corretiva com os filhos, o que provocava discussões e xingamentos entre os membros da família.
Os episódios vivenciados pela família de negligência de outros equipamentos sociais e a abordagem policialesca e punitiva por parte das autoridades acionadas pela mãe mostram como é urgente uma revisão paradigmática. Muitas vezes, o profissional está despreparado para o enfrentamento da violência, para a medida que sua complexidade requer. A limitada capacitação daqueles que estão envolvidos na rede de atenção parece ser outro desafio a ser superado (Souza & Koller, 2013).
No evento em que a mãe não conseguiu retornar para casa com sua filha, quando foi buscá-la, por exemplo, era inviável à psicóloga exercer nesse contexto a voz de polícia e ordenar que aquele desconhecido devolvesse a criança à família. Ambos, profissional e família, ficaram na expectativa de uma ação mais assertiva da Polícia e do Conselho Tutelar, o que não ocorreu. Pelo contrário, a abordagem do policial foi extremamente ameaçadora, cabendo, ali, outra denúncia de violação do direito fundamental à convivência familiar e de abuso de poder.
Nesse ponto, a psicóloga sentia-se impotente, ao tentar movimentar-se sozinha na rede de atenção. Obviamente, buscar responsáveis pelos entraves do atendimento não contribuiria para sua resolução. Por sua vez, o trabalho fragmentado e isolado contribui ainda menos para que o atendimento alcance bons resultados.
Desde o encaminhamento do caso feito pelo Creas até a sua resolução, que necessitou da articulação de outros profissionais da rede de atenção, percebe-se uma lacuna entre a proposta teórica da atuação em rede de atenção e sua concretização. As dificuldades encontradas durante o atendimento oferecido à família corroboram a afirmativa dos autores citados sobre os desafios para a atuação dessa rede (Conceição & Penso, 2014; Malaquias, 2014; Santos, 2007; Souza & Koller, 2013).
As ações precisam ser efetivadas por meio de um planejamento sistematizado e integrado, em termos de procedimentos e encaminhamentos, e por uma prática constante de reflexão pautada no compromisso ético-político com sujeitos que têm o direito de participar dos processos decisórios relacionados à sua própria vida (Souza & Koller, 2013). De igual modo, o potencial do atendimento fica restrito à limitação do profissional e à sua capacidade de se posicionar criticamente dentro da rede, de saber a sua função e também o alcance desse atendimento no combate e na prevenção da violência.
Segundo Contini (2003) e Malaquias (2014), as dificuldades dessa articulação se devem ao fato de ainda serem incipientes as reflexões sobre a prática nesses espaços. Sem uma reflexão contínua, dificilmente será possível garantir direitos. Pelo contrário, corre-se o risco de, equivocadamente, manter práticas tutelares e assistencialistas sob o discurso de emancipação e cidadania.
Talvez por isso a articulação durante o atendimento psicossocial oferecido a essa família tenha ocorrido de forma tão descontinuada. O percurso desse atendimento foi sinuoso, as estratégias foram criadas e modificadas, mas, principalmente, ficavam limitadas, na medida em que careciam da complementaridade da intervenção conjunta da psicóloga e dos demais profissionais da rede de atenção.
Contraditoriamente, essa complexidade de fatores é que tornou possível repensar tais estratégias, possibilitando a reflexão sobre o lugar do psicólogo nessa rede que é, eminentemente, um lugar educativo-político. Cabe ao psicólogo ratificar o status de sujeitos em desenvolvimento conferido à criança e ao adolescente. Eles não devem ser subjugados, mas alocados com proeminência nas ações e políticas sociais.
Por ocasião do encerramento do estágio, o caso foi repassado a outro profissional da instituição para continuidade das ações desenvolvidas. O atendimento psicossocial oferecido possibilitou um processo prático-reflexivo visando a incentivar a família a buscar autonomia e valorizar seu potencial cuidador, do ponto de vista de sua inserção na rede de atenção. A partir da análise do contexto familiar, tentou-se fazer a articulação com os demais órgãos de proteção, como a Delegacia de Proteção à Infância e o Conselho Tutelar, na tentativa de discutir o fluxo do atendimento e, também, trocar informações sobre o papel de cada profissional como agente de proteção.
Porém, a rede de atenção falhou quanto à efetiva articulação, no sentido de promover ações para garantir direitos. Em vez de ser o alvo da ação, a família foi considerada a única responsável por seu aparente desajuste. Nesse aspecto, o atendimento oferecido pela psicóloga foi complicado, pois não era possível avançar nas estratégias de atendimento, já que os parceiros da rede não executaram em tempo as ações planejadas e discutidas.
Infelizmente, meses depois de encerrado o atendimento desse caso, foi noticiado pelos veículos de comunicação que a primogênita de J., (R.), de 14 anos de idade, havia sido assassinada por envolvimento com drogas.
Considerações finais
Conforme ilustrado nesse atendimento, a morosidade do processo de articulação da rede, os equívocos na abordagem à família, a desqualificação de profissionais envolvidos e as concepções de infância e adolescência subjacentes ao atendimento podem tipificar uma prática que ainda demanda muita produção de conhecimento. Como limites do atendimento oferecido, destacam-se: irregularidade na frequência dos membros da família aos encontros, tempo restrito de atendimento por se tratar de um campo de estágio; ausência de um protocolo para supervisão e orientação da prática da estagiária, o que impediu um melhor e maior alcance das intervenções.
Além disso, uma escuta de gênero teria sido fundamental para orientar a mãe e mantenedora da família. Produzir conhecimento sobre esse tema e propiciar novos diálogos com a família poderia ter sido outro caminho, outra direção construída com a família. Entretanto, as questões de gênero sequer foram abordadas ao longo da formação.
Em relação aos temas crianças, adolescentes e violência, faz-se necessário, acima de tudo, uma mudança de paradigma sobre as concepções de infância e adolescência, a fim de se propor uma atuação diferenciada dos profissionais que visem a oferecer assistência por meio dos equipamentos legais de proteção. Estruturalmente, a rede de atenção está posta, mas sua efetiva atuação perpassa aspectos de ordem subjetiva e epistemológica, inteiramente relacionados à capacitação profissional (Malaquias, 2014; Souza & Koller, 2013).
Em suma, sabe-se que a garantia da eficiência e da eficácia das ações em situações complexas como a relatada requer a atuação em rede dos serviços de atenção e proteção. Mas, se não há interconectividade na rede e os setores não dialogam nem se complementam, não se pode sequer afirmar que haja uma rede de atenção e sim serviços estanques que esgotam seus fazeres e suas competências em intervenções isoladas. Também é certo que o mero encaminhamento a outro serviço sem o devido acompanhamento não se configura como uma ação efetiva de trabalho em rede, pois se trata de uma ação isenta de compromisso e responsabilidade diante do caso, bem como ao seu interlocutor, e não garante necessariamente o desfecho almejado.
Uma vez que o objetivo é garantir direitos fundamentais, pergunta-se neste ponto: como prover à criança e ao adolescente as condições para que sua integridade física e psicológica seja preservada? Como garantir o direito à convivência familiar e social de modo saudável?
Não há respostas simples. As possibilidades de uma prática integradora e articulada implicam a revisão de paradigmas éticos, morais, sociais, políticos e jurídicos, para que a proteção integral seja garantida (e não a reprodução da visão dos Códigos de Menores). O sistema de garantia de direitos implica uma visão holística no atendimento a essas famílias, a fim de preencher lacunas e superar a distância entre o que está proposto na lei e o que realmente é efetivado.
Pode-se afirmar que a superação de formas tradicionais de atendimento a crianças e adolescentes em situação de violência requer uma mobilização constante no sentido da capacitação e avaliação dos profissionais envolvidos, de modo que o reordenamento do atendimento previsto na doutrina da proteção integral alcance com eficácia seus objetivos. A complementaridade técnica entre os profissionais deve substituir os modelos verticalizados de atuação. Para isso, é necessário que cada um saiba refletir sobre seu papel dentro dessa rede, comprometido ética e politicamente com a promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente.
Referências
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Recebido em 24/03/2015
Aprovado em 03/02/2017
1 Historicamente, houve duas doutrinas anteriores à postulada pelo ECA (Brasil, 1990) que inspiraram o Estado e a sociedade na forma de conceber e tratar a criança e o adolescente: a Doutrina do Direito Penal do Menor expressa no Código de Menores de 1927 e a Doutrina da Situação Irregular, do Código de Menores de 1979. A normativa proposta por esses dois instrumentos tinha sua gênese fundamentada na concepção histórica sobre as crianças e adolescentes como seres inferiores aos adultos e propunha a categoria "menor" para designar um grupo específico de crianças e adolescentes. O ECA faz uma ruptura com essa concepção e, a partir disso, realoca crianças e adolescentes como sujeitos em condição especial de desenvolvimento, prioridade absoluta, independentemente de sua condição socioeconômica.