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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.12 no.1 São João del-Rei jan./março 2017

 

A formação acadêmica do psicólogo e a construção do modo de Atenção Psicossocial1

 

The academic formation of the psychologist and the construction of the mode of Psychosocial Attention

 

La formación académica del psicólogo y la construcción del modo de Atención Psicosocial

 

 

Daniel RodriguesI; Ednéia José Martins ZanianiII

IBolsista de Iniciação Científica, Universidade Estadual de Maringá
IIDoutora pela Unesp-Assis; professora do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá. E-mail:edapsi@hotmail.com

 

 


RESUMO

Este trabalho traz os resultados de uma pesquisa sobre a formação acadêmica em Psicologia e sua contribuição para a construção da proposta da Atenção Psicossocial que norteia a Política de Saúde Mental no Brasil. Para tanto, investiu-se em duas frentes de análise: foram levantadas produções científicas, especialmente artigos acadêmicos que versam sobre o tema, e foram analisados currículos de seis cursos de graduação em Psicologia, sendo cinco de instituições públicas e um de instituição privada. De modo geral, observou-se a predominância, nos currículos, de conteúdos atinentes à saúde pública e coletiva na interface Saúde Mental-Atenção Básica e, de maneira incipiente, outros conteúdos relativos ao percurso histórico da reforma psiquiátrica brasileira e ao cuidado na lógica da Atenção Psicossocial. Concluiu-se que a formação profissional, ainda balizada no modelo clínico, liberal-privado, caminha na direção da Saúde Pública, apresentando gradativamente sua proposta e oportunizando experiências na rede substitutiva da saúde mental.

Palavras-chave: formação do psicólogo; currículo; atenção psicossocial; reforma psiquiátrica; saúde mental.


ABSTRACT

This work presents the results of a research on the academic formation in Psychology and its contribution to the construction of the proposal of Psychosocial Attention that guides the Mental Health Policy in Brazil. In order to do so, it was invested in two fronts of analysis: scientific productions, especially academic articles dealing with the subject, and were analyzed curricula of six undergraduate courses in Psychology, five of them being from public institutions and one from a private institution. In general, we observed the predominance in the curricula of contents related to public and collective health in the Mental Health-Basic Attention interface and, in an incipient way, other contents related to the historical path of the Brazilian psychiatric reform and care in the logic of Psychosocial Attention. It was concluded that professional formation, still based on the clinical model, liberal-private, moves towards the Public Health, gradually presenting its proposal and providing experiences in the substitutive network of mental health.

Keywords: psychologist formation; curriculum; psychosocial attention; psychiatric reform; mental health.


RESUMEN

Este trabajo presenta los resultados de una investigación sobre la formación académica en psicología y su contribución a la construcción de la propuesta de Atención Psicosocial que guía la Política de Salud Mental en Brasil. Para esto, se ha investido en dos frentes de análisis: las producciones científicas, especialmente artículos académicos que tratan el tema, y fueron analizados los planes de estudio de seis cursos de graduación en Psicología, cinco de ellos de instituciones públicas y uno de una institución privada. En general, se observó el predominio en los programas de los contenidos relacionados con la salud pública y colectiva en la imbricación Salud Mental-Atención Basic y, de manera incipiente, otros contenidos relacionados con la trayectoria histórica de la reforma psiquiátrica brasileña y cuidado en la lógica de la Atención Psicosocial. Se concluyó que la formación profesional, todavía basada en el modelo clínico, liberal-privado, se mueve hacia la Salud Pública, presentando poco a poco su propuesta y proporcionando experiencias en la red sustitutiva de la salud mental.

Palabras clave: formación del psicólogo; plan de estúdio; atención psicossocial; reforma psiquiátrica; salud mental.


 

 

Introdução

Este artigo apresenta reflexões decorrentes de uma pesquisa de iniciação científica sobre a formação acadêmica em Psicologia e busca contribuir para a construção da proposta da Atenção Psicossocial que atualmente norteia a Política de Saúde Mental no Brasil. Nessa investida, propusemos duas frentes de análise: levantamos algumas produções científicas, especialmente artigos acadêmicos que versam sobre o tema; analisamos currículos de cursos de graduação em Psicologia de seis instituições de Ensino Superior que preveem oferta de disciplinas problematizando o percurso histórico da Reforma Psiquiátrica e a constituição da proposta da Atenção Psicossocial, bem como de estágios supervisionados para graduandos na rede substitutiva de serviços de saúde mental.

O termo Atenção Psicossocial2 deriva do Movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira e pode ser definido como conjunto de ações teórico-práticas e éticas no campo da saúde mental, apto a substituir o modelo manicomial e o paradigma psiquiátrico. Mais que uma mudança na assistência psiquiátrica, trata-se de uma mudança paradigmática, um processo social complexo que demanda a participação coletiva e transformações estruturais constantes e articuladas nos campos técnico-assistencial, teórico-conceitual, político-jurídico e, sobretudo, no sociocultural (Amarante, 1995, 2007; Costa-Rosa, Luzio & Yasui, 2003).

O campo ou dimensão teórico-conceitual diz respeito aos conceitos e saberes que respaldam as práticas da Psiquiatria tradicional concernentes ao sofrimento psíquico, enquanto a técnico-assistencial se refere ao exercício do cuidado à loucura, propondo, por exemplo, a construção de uma rede de serviços substitutivos que primem pelo acolhimento e pela socialização em substituição às práticas disciplinares e excludentes. Já o jurídico-político envolve as leis e as portarias que foram e são necessárias para a Reforma Psiquiátrica avançar, que garantem os direitos e a inclusão social dos usuários da saúde mental. Por fim, e mais importante, a transformação precisa incidir no campo sociocultural, romper com os estigmas, preconceitos e estereótipos, modificando, por conseguinte, a concepção e o imaginário social sobre a loucura (Costa-Rosa, Luzio & Yasui, 2003; Amarante, 2007).

Como a Psicologia tem se posicionado e colaborado nesse processo? Sabemos que desde a aprovação, em 2004, das novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), descritas na Resolução nº 8 de 7 de maio de 2004 (Brasil, 2004a), as graduações em Psicologia vêm passando por reformulações, inclusive no que tange à exigência de uma formação que contemple uma leitura mais ampla dos fenômenos econômicos, culturais, políticos e sociais.

Cabe acrescentar que, em 2011, foram promulgadas novas Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Psicologia. Além de reiterar as questões das diretrizes de 2004, foram estabelecidas normas para o projeto pedagógico complementar à formação de professores em Psicologia, ou seja, à formação em licenciatura.

As DCN apontam, por exemplo, que o psicólogo deve ser capacitado para trabalhar em equipe, buscando o cuidado integral, respondendo às necessidades de saúde da população na atenção, prevenção, promoção, proteção e reabilitação da saúde psicológica e psicossocial, tanto individual quanto coletiva.

Assim, ao olharmos para os currículos da Psicologia, desejamos incitar o debate em torno de como essa ciência e profissão vem se engajando na luta pela construção dessa lógica de cuidados em saúde e saúde mental, pois a universidade tem um papel relevante na formação profissional, cabendo a ela contribuir, concatenando o campo teórico-conceitual ao técnico-profissional, para o ideário da reforma psiquiátrica.

 

A reforma psiquiátrica em questão

A retomada da trajetória da reforma psiquiátrica que precede a proposta da Atenção Psicossocial remete-nos ao século XVII e à criação do Hospital Geral em Paris, por Pinel, destinado inicialmente a recolher todo tipo desviante - pobres, mendigos, criminosos, miseráveis, tornando-se, paulatinamente, o lugar social da loucura. A máxima pineliana que defendeu o tratamento moral e o isolamento social como recursos terapêuticos também viabilizou a investigação sobre a alienação mental, transformando os hospitais em instituições de controle social sobre os chamados doentes mentais,3 confiando aos médicos o saber e o poder sobre a loucura (Amarante, 2007).

Com o tempo, a dificuldade em balizar os limites entre a loucura e a sanidade, a superlotação, o papel segregador dos marginalizados sociais, cada vez mais evidente, somados às denúncias de violências cometidas contra os internos, abalaram a credibilidade das instituições psiquiátricas, fazendo com que, especialmente no contexto pós II Guerra Mundial, emergissem críticas e mobilizações sociais contra o tratamento ofertado. Como resposta, surgiram propostas de reformas psiquiátricas que, de acordo com Amarante (2007), podem ser divididas em três grupos: o primeiro seria formado pela proposta das Comunidades Terapêuticas e da Psicoterapia Institucional; o segundo pela Psiquiatria de Setor e pela Psiquiatria Comunitária e Preventiva; o terceiro pela Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democrática italiana. Amarante (2007) afirma que o primeiro e o segundo grupo forjaram críticas ao modelo psiquiátrico e à estrutura asilar, propondo desde reformas internas, como é o caso das Comunidades Terapêuticas, até a extensão da Psiquiatria aos espaços públicos, como a Psiquiatria Comunitária. Porém, mesmo aspirando redimensionar a assistência, permaneceram entendendo saúde mental como sinônimo de adaptação social, acreditando no hospital como locus privilegiado de tratamento e na Psiquiatria como saber competente. Para o autor, será o terceiro grupo, por meio dos movimentos da Antipsiquiatria e da Psiquiatria Democrática italiana, que assumirá verdadeiramente o compromisso de romper com o paradigma psiquiátrico, desconstruindo seu aparato, suas instituições, práticas e saberes.

Desviat (1999) atribui a ascensão dessas diferentes propostas de reforma ao contexto pós II Guerra, mas também ao advento dos psicotrópicos e da Psicanálise. Lembra o autor que, embora distintas, as propostas reformistas resguardavam similaridades, como o clima político e social favorável ao questionamento manicomial, além da legitimação administrativa que outorgara ao Estado a responsabilidade de efetivar o processo de mudança na assistência.

Sobre esse clima político e social favorável, alguns autores (Amarante, 2007; Hirdes, 2009) destacarão que a reforma psiquiátrica é resultado da mobilização histórica dos movimentos sociais dos trabalhadores da saúde (e aqui incluímos muitos psicólogos), bem como dos usuários e familiares de usuários da saúde mental, enquanto outros, como Saraceno (1999), lembrarão que as reformas decorreram, em parte, também da constatação de que o hospital psiquiátrico, além de caro, é ineficiente.

Em que pesem essas dissidências, vale ressaltar que as diferentes propostas reformistas influenciaram, cada uma a seu modo e em momentos diferentes, a construção do movimento da reforma psiquiátrica brasileira. A influência da Psiquiatria Democrática se fará sentir principalmente a partir do II Encontro Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental (II ENTSM) ocorrido em Bauru-SP, em 1987, que é considerado um marco histórico por dar início ao que ficou conhecido como Movimento da Luta Antimanicomial, quando se assumiu o lema "Por uma sociedade sem manicômio". O II ENTSM representa a consciência de que a construção de uma nova lógica de cuidados em saúde mental não é tarefa exclusiva dos trabalhadores da saúde mental, mas é, sobretudo, a articulação dos diferentes segmentos da sociedade em torno da causa da loucura, como ressalta Amarante (1995).

Autores como Passos (2009), por sua vez, destacam que a reforma psiquiátrica brasileira, além da proposta italiana da Psiquiatria Democrática, foi influenciada pela francesa, da Psiquiatria de Setor. Ainda que não objetivasse analisar nossa reforma, Passos (2009), ao se debruçar especialmente sobre essas duas experiências, posicionou-se a favor de uma leitura que não localiza tais reformas como totalmente antagônicas, nem referenda a posição aligeirada que considera a italiana como de caráter mais político e social e como movimento de maior influência sobre a reforma psiquiátrica brasileira, enquanto a francesa é considerada limitadamente clínica.4

Sob o jugo dessas influências, interessa-nos destacar o movimento pela reforma psiquiátrica no Brasil como um processo social inconcluso, iniciado no fim da década de 1970, avivado pelas denúncias e violação de direitos humanos nas instituições psiquiátricas, e que, apenas no alvorecer do século XXI, culminou na criação de uma rede de serviços substitutivos, quando uma Política Nacional de Saúde Mental (PNSM), assentada na proposta da Atenção Psicossocial, passou a compor o conjunto mais amplo de ações do SUS. A partir de 2011, o Ministério da Saúde, por meio da Portaria nº 3.088 (Brasil, 2011), propõe a Rede de Atenção Psicossocial (Raps),5 prevendo criar, ampliar e articular diferentes pontos de atenção ao cuidado em saúde mental, numa perspectiva antimanicomial.

A Atenção Psicossocial, tal como o SUS, propõe uma forma de atuação profissional que tira o foco curativo, individual e a-histórico da doença, buscando romper com as práticas medicalizantes, com as relações verticalizadas, colocando no cerne do trabalho a equipe, a corresponsabilidade, os vínculos e as relações. O sujeito precisa ser visto em sua integralidade que, superando a dicotomia corpo/mente, pleiteia uma atenção igualmente integral. Partindo de uma nova concepção, a saúde (e saúde mental por extensão) é entendida como direito humano fundamental, processo complexo e multideterminado que envolve aspectos políticos, econômicos, sócio-históricos e culturais (Costa-Rosa, Luzio & Yasui, 2003).

Pitta (2011, p. 4588), citando o próprio Desviat, lembra que o autor, ao tratar da reforma psiquiátrica brasileira, reconhece-a como "um dos mais frutíferos, promissores e vigorosos processos de transformação no campo da saúde mental e da psiquiatria no mundo". Nem por isso desconsidera os desafios desse processo que, como ela afirma, são "próprios do crescimento do bem sucedido movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira no interior de um estado burocrático, refratário a inovações, e a radicalidade que a mudança do modo de cuidar requer" (p. 4588). Para Pitta, a reforma seria uma "questão mais ético-política e cultural do que técnica" e, nesse sentido, seu futuro estaria "na esperança que os usuários, familiares, trabalhadores - esses novos protagonistas que amadurecem e se renovam a cada dia - encontrem modos mais sensíveis de reduzir os danos causados pelas nossas instituições e nossas escolhas insensatas" (p. 4588).

Nessa direção, entendemos que muitos são os saberes e fazeres convocados a acrescer a essa histórica busca, entre os quais se encontram os da Psicologia. Logo, ao refletirmos sobre a formação acadêmica do psicólogo, nós a tomamos não como a única, mas como uma das vias6 que incrementa a desafiante tarefa de superar o modelo psiquiátrico.

 

A Psicologia no Brasil

A Psicologia, quando regulamentada como profissão no Brasil, em 1962, manteve a formação básica em três áreas tradicionais: a clínica, a escolar e a organizacional. Valorizava-se o profissional liberal e a atuação autônoma se dava majoritariamente na classe média e urbana. A Psicologia naquele momento se organizara para responder às aspirações sociais, voltando-se à solução de conflitos psicológicos, lançando mão de práticas e intervenções individuais, como a elaboração de diagnósticos, avaliações, laudos e a aplicação de testes psicométricos, com fins terapêuticos e pautados em um modelo essencialmente curativo (Pires & Braga, 2009; Ribeiro & Luzio, 2008).

Cabe destacar que o psicólogo que, historicamente, encontrara na saúde pública um campo fértil de atuação, em função da retração na demanda por atendimento individual e privado, assistiu aos poucos a reprodução do modelo privado e centrado na doença ser problematizado quanto à pertinência ante as necessidades de saúde da maioria da população. O encontro com uma nova clientela - a das classes populares, com outra condição de trabalho, a assalariada e a estatal - e com outros saberes/fazeres fomentou muitas dúvidas e "a inserção do psicólogo no SUS operou uma desconstrução identitária, produzindo efeitos ainda em curso no âmbito da atuação e da formação" (Ferreira Neto, 2011, p. 108).

Sobre a formação profissional do psicólogo, Ribeiro e Luzio (2008) refletiram sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) e problematizaram suas articulações com a saúde mental, na perspectiva da reforma psiquiátrica e da Atenção Psicossocial. Reconheceram avanços significativos no papel atribuído ao psicólogo em comparação ao promulgado no Currículo Mínimo vigente desde 1962, quando do reconhecimento legal da profissão, afirmando que, ao trazer a relevância das discussões em torno das questões econômicas e sociais, as DCN inserem a noção de fenômeno psicológico como complexo e multideterminado, indo ao encontro de um novo modo de pensar o sofrimento psíquico para além da determinação psíquica, incluindo sua dimensão sociocultural.

Para responder a essas aspirações, a prática precisa ser (re)dimensionada. O reconhecimento do sujeito como o centro do cuidado e não mais a doença implica na construção de outros referenciais teórico-conceituais e demanda uma nova clínica7 para os serviços de saúde mental, entre elas a clínica psicológica. O SUS e a Atenção Psicossocial propõem uma clínica ampliada que rompa com o estereótipo construído em torno do psicólogo que faz da clínica um seeting individual, que visa à elaboração de um diagnóstico prosseguido de um tratamento que, em última instância, entende a cura como sinônimo de adaptação social. Além disso, a crítica que se faz é contra clínica cuja visão a-histórica trata a doença em vez do sujeito que vivencia a doença (Onocko-Campos, 2001; Benevides, 2005).

Assim, a clínica ampliada seria a "estratégia para se compartilhar o Projeto Terapêutico entre usuário e profissionais", uma clínica que objetivaria "a cogestão do atendimento, da assistência e do cuidado entre profissionais responsáveis e usuários" (Campos et al., 2014, p. 984), buscando entender a singularidade do sujeito por meio do vínculo e do acolhimento, procurando equilibrar o cuidado com a produção de vida (Brasil, 2004b). Em síntese, a crítica se faz não ao atendimento clínico individual em si, mas ao olhar individualizante que concebe o fenômeno psicológico desconectado da materialidade da vida (Onocko-Campos, 2001).

Logo, a clínica pleiteada pela Atenção Psicossocial é aquela cujos recursos precisam ser buscados não apenas na "interioridade psíquica", mas, acima disso, numa ampla rede relacional e de recursos dispostos no território no qual o sujeito está inserido, aproximando assim a clínica e a política. Consiste, portanto, em uma forma de atuação em que os diferentes serviços e profissionais precisam se responsabilizar pelos usuários, num processo permanente de diálogo intersetorial, mediando e ampliando seus pontos de apoio.

Como essa discussão, sustentada pelo ideário do SUS e da Reforma Psiquiátrica, vem sendo inserida na formação em Psicologia? Apresentamos a seguir parte das conclusões enredadas por nossa pesquisa.

 

Estratégias metodológicas

Buscando refletir sobre a formação acadêmica em Psicologia e sua contribuição para a construção da proposta da Atenção Psicossocial, investimos em duas frentes de análise: levantamos algumas produções científicas, dando privilégio aos artigos acadêmicos que versavam sobre o tema, e analisamos currículos de cursos de graduação em Psicologia.

No levantamento bibliográfico fizemos buscas de produções científicas nos bancos de dados Scientific Eletronic Library Online (SciELO) e Periódicos Eletrônicos em Psicologia (PePSIC), orientados pelas palavras-chave: formação acadêmica, currículos de Psicologia, Atenção Psicossocial, Reforma Psiquiátrica, Saúde, Saúde Mental e Saúde Pública. Anotamos que o privilégio aos artigos científicos se deu porque, na atualidade, esta é uma modalidade de produção acadêmico-científica bastante socializada. Escolhemos como recorte temporal aquelas circunscritas aos anos de 1990 a 2016 porque abarcam períodos de importantes desdobramentos da reforma psiquiátrica no Brasil, da luta antimanicomial e da implementação dos serviços substitutivos de saúde mental.

Com relação aos currículos, selecionamos cursos que apresentavam no mínimo 25-30 anos de existência, tendo, portanto, testemunhado todo o movimento de luta pela mudança no modo de cuidar em saúde mental. Dos cursos em funcionamento no país, foi feito uma seleção prévia de 168 e, via e-mails, sites das instituições de Ensino Superior e também via telefone, fizemos contato solicitando a disponibilização do Projeto Pedagógico de Curso (PPC),9 bem como dos programas das disciplinas que compõem tais projetos.

No entanto, algumas instituições não forneceram informações referentes ao PPC de seus cursos, alegando se tratar de um documento particular e sigiloso,10 postura mais comum das universidades particulares. Outras não responderam aos e-mails enviados ou nos forneceram informações parciais, não disponibilizando ementas e conteúdos programáticos das disciplinas. Obtivemos os dados completos de apenas seis instituições de ensino superior, sendo cinco universidades públicas - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e Universidade Estadual de Maringá (UEM) - e uma instituição privada do ensino superior - Universidade de Marília (Unimar). Esses cursos encontram-se nas regiões sul e sudeste do país.

O material assim obtido foi categorizado segundo critérios da técnica de análise de conteúdo proposta por Minayo (2006) e a partir do que essa autora destaca em relação ao tratamento de dados qualitativos. Tomamos como critério, para a leitura dos PPCs, a abordagem feita à Atenção Psicossocial nas (i) disciplinas que dialogam com a saúde pública, coletiva e a Atenção Psicossocial, (ii) disciplinas de estágio básico e profissionalizante e (iii) disciplinas de Psicopatologia e Psicofarmacologia.

A escolha dessas disciplinas em específico se deu por considerarmos que elas reservam espaços privilegiados para tal discussão, o que não desprende a possibilidade de discussão, de modo transversal, em outras disciplinas dos currículos de Psicologia. Ademais, para nossa análise, consideramos o que formalmente aparece previsto no programa de cada disciplina (tanto do núcleo básico dos cursos quanto eletivas/optativas), os conteúdos programáticos e referências bibliográficas indicadas.

 

Resultados e análise

Produções acadêmicas que versam sobre o tema

Procurando apreender como a proposta da Atenção Psicossocial tem sido apropriada pela produção acadêmica da Psicologia, nosso levantamento encontrou um total de doze artigos que problematizam no geral a formação do psicólogo para a saúde pública. No entanto, a discussão específica sobre a formação curricular da Psicologia enlaçada com a reforma psiquiátrica e a proposta da Atenção Psicossocial apareceu de forma mais incipiente ou transversal na maioria dos artigos.

Nesse sentido, sete artigos elencaram especificamente essa temática: Ribeiro e Luzio (2008), Sales e Dimenstein (2009), Chauí-Berlink (2010), Macedo e Dimenstein (2011), Dimenstein e Macedo (2012), Tardivo, Salles e Gabriel Filho (2013) e Carneiro e Porto (2014); ao passo que dois artigos abordaram essa questão isoladamente ou apenas fizeram menção: os de autoria de Boarini (1996)11 e de Pires e Braga (2009). Somado a esses, encontramos outras três produções que, apesar de abordarem a formação do psicólogo, não se voltam às discussões concernentes à reforma psiquiátrica e à Atenção Psicossocial (Fehlberg, 2014; Daltro & Pondé, 2016; Beato & Ferreira Neto, 2016).

Uma leitura mais atenta das produções encontradas revela a predominância de críticas voltadas à atual situação da formação do psicólogo nos cursos de graduação, de modo que as conquistas gradativas alvitradas nas DCN foram citadas minimamente e em poucos artigos. De modo geral, eles apontam a escassez das produções que relacionam a Psicologia com Saúde Mental (Tardivo, Sales & Gabriel Filho, 2013), o que justifica o número baixo de artigos encontrados no nosso levantamento.

Ao mesmo tempo, foi ponto comum dos artigos a crítica feita aos psicólogos que transferem o modelo clínico tradicional para os serviços de saúde pública, sinalizando uma formação que converge para uma atuação centrada na eliminação de sintomas, na busca de nexos causais para a compreensão do quadro clínico, pautados em uma perspectiva curativa que visa adequar e adaptar o sujeito ao social. Logo, há nitidamente uma avaliação que infere a incapacidade de formar para atuar de outra maneira, condizente com o que propõe o SUS.

Em linhas gerais, quatro produções (Ribeiro & Luzio, 2008; Sales & Dimenstein, 2009; Macedo & Dimenstein, 2011; Dimenstein & Macedo, 2012) trouxeram críticas comuns ao modelo manicomial, destacando pontos que distanciam a prática privada de atendimento do trabalho do psicólogo na saúde pública coletiva, bem como a carência de estágios profissionalizantes nos serviços substitutivos da Rede de Atenção Psicossocial (Raps).

Ao analisar o currículo do curso de Psicologia em uma instituição pública de ensino no Brasil, Beato e Ferreira Neto (2016) observaram que mais de 70% dos estudantes preferem a ênfase em Processos Clínicos, dados confluentes aos apresentados por Macedo e Dimenstein (2011) e por Silva e Yamamoto (2013). Inferem que as ênfases tendem a se esvaziar quando delas é supostamente retirada a função de formar para o trabalho clínico e, em consequência disso, os currículos acabam estabelecendo, de forma subjacente, uma drástica separação entre a clínica e a política, de modo que os psicólogos, quando inseridos na rede, encontram dificuldades em construir ações em conformidade com as demandas sociais, na perspectiva da clínica ampliada, conforme apontamento feito por Tardivo, Sales & Gabriel Filho (2013).

Carneiro e Porto (2014), por sua vez, explicam que a falta de preparo dos profissionais recém-chegados ao serviço está relacionada ao caráter biologicista da formação, insuficiente para atuação no bojo do que propõe a reforma psiquiátrica. Afirmam que a aproximação dos profissionais com a temática ocorre habitualmente mais no decorrer da prática e da educação continuada, apesar de reconhecerem uma inserção gradual de conteúdos ligados à saúde mental nos cursos de graduação.

Por outro lado, sobre as conquistas gradativas que a formação acadêmica em Psicologia vem apresentando, Chauí-Berlink (2010) e Tardivo, Sales e Gabriel Filho (2013) destacam a importância de integrar a disciplina de Psicopatologia com os estágios nos serviços substitutivos da rede, descentralizando o foco da disciplina, que se volta para a descrição de transtornos mentais, tendo como referência os manuais diagnósticos de Psiquiatria. Assim, os autores frisam uma crescente discussão na disciplina de Psicopatologia relativa ao atendimento aos requisitos da pluralidade e diversidade, exigidos pelas diretrizes, bem como os movimentos mundiais pela reforma psiquiátrica e a luta antimanicomial, ao lado dos movimentos brasileiros de construção da cidadania e de sujeitos portadores de direitos.

Ao analisar as DCN para os Cursos de Psicologia, Ribeiro e Luzio (2008) apontam que, apesar de trazerem pouca orientação à formação do psicólogo para a área da saúde mental na perspectiva da reforma psiquiátrica e da Atenção Psicossocial, as Diretrizes contemplam a concepção do fenômeno psicológico como uma produção social e multideterminada, o que, segundo os autores, caminharia no sentido de contribuir para a ruptura com o modelo clínico tradicional.

 

Sobre as disciplinas que dialogam com a saúde pública e a Atenção Psicossocial

Ao nos preocuparmos como a temática da reforma psiquiátrica e a proposta da Atenção Psicossocial vêm sendo tratadas nos cursos de graduação de Psicologia, decidimos realizar uma análise mais particularizada de alguns currículos, olhando para disciplinas que dialogam com a temática do nosso estudo.

Como ponto de partida, ao averiguarmos as disciplinas do curso de graduação da Unimar (2011), observamos que o curso propõe trabalhar a saúde coletiva, a história da saúde pública no nível da Atenção Básica, mas não acresce as discussões específicas sobre a reforma psiquiátrica, a luta antimanicomial e o modelo psicossocial.

Já na análise das disciplinas que abordam a Saúde Pública nos cursos de Psicologia da UEM (2013) e da UFU (2011), vimos que elas acabam por oferecer um panorama geral das políticas de saúde mental do SUS, assim como algumas competências para o trabalho do psicólogo no campo da saúde pública e assistência social. Propõem trabalhar conceitos como território/territorialização, recursos como visita domiciliar, grupos de prevenção e promoção de saúde e trabalho em equipe inter/multidisciplinar. As disciplinas analisadas fornecem conteúdos que contemplam a trajetória histórica da reforma sanitária e do SUS, da reforma psiquiátrica, da luta antimanicomial, da Política Nacional de Saúde Mental (PNSM); discutem a proposta da Atenção Psicossocial, da Clínica Ampliada e as estratégias de inclusão do usuário de saúde mental na família e na comunidade, adentrando os serviços substitutivos da rede de saúde mental.

O currículo do curso de Psicologia da Ufes (2008), por sua vez, revela que, embora o eixo das disciplinas obrigatórias não traga o tema da Saúde Mental e Atenção Psicossocial, a instituição em questão oferece uma disciplina optativa intitulada "Políticas Públicas de Saúde Mental" que propõe abordar o histórico do Movimento da Reforma Psiquiátrica, as propostas de desinstitucionalização da loucura e da luta antimanicomial, assim como as práticas de saúde mental nos serviços da Raps. No entanto, nas referências bibliográficas não encontramos fontes que conceituam a Atenção Psicossocial.

Algo similar surgiu no currículo do curso de Psicologia da USP (2014). O conteúdo programático traz discussões sobre o SUS, a Reforma Psiquiátrica e os dispositivos de Atenção em Saúde Mental e, além disso, uma disciplina prevê o cumprimento de estágio básico em instituições públicas; mas, ao analisarmos a bibliografia, não encontramos referências que indiquem uma discussão atinente à saúde mental na perspectiva antimanicomial.

No núcleo das optativas eletivas da FFCLRP (2013), encontramos a disciplina "Psicologia e Saúde" e a disciplina "Psicologia e Políticas Públicas em Saúde", que buscam trabalhar os fundamentos históricos e teóricos das políticas públicas e sociais no Brasil, a Saúde Pública e Saúde Coletiva, assim como a gestão em saúde pública; as referências bibliográficas, por sua vez, fazem menção a alguns autores que problematizam a Atenção Psicossocial no Brasil.

 

Sobre as disciplinas de estágio básico e profissionalizante

Na análise particular dos currículos, do mesmo modo, averiguamos que o curso de Psicologia da UEM dispõe de uma disciplina de estágio básico nos serviços de base comunitária e territorial. No entanto, o estágio profissionalizante da ênfase Saúde e Processos Clínicos foca nos atendimentos individuais, triagens, psicodiagnóstico, aconselhamento e psicoterapia breve, com foco no diagnóstico e no tratamento, não prevendo formalmente estágio na Raps. De forma semelhante, os currículos da UFU e da Unimar propõem estágio profissionalizante no modelo clínico-individual e não preveem, ou ao menos não fazem menção, à prática de estágio nos serviços substitutivos da Raps.

Foi possível averiguar nos currículos da USP, FFCLRB e da Ufes, que os estágios profissionalizantes abordam a temática psicossocial de uma forma mais subjacente, ficando aparentemente a critério do acadêmico a escolha do local onde irá realizar o estágio. No currículo da Ufes, por sua vez, o estágio profissionalizante da ênfase I propõe a elaboração de um projeto específico em alguma instituição de saúde ou educacional, não havendo uma proposta específica de estágio que coadune com os pressupostos da Atenção Psicossocial.

Na USP, as disciplinas "Atuação do psicólogo em instituições de saúde (I e II)" propõem em seus conteúdos programáticos trabalhar a prática da clínica psicossocial. No entanto, as referências bibliográficas presentes no programa da disciplina não trazem autores que dissertam sobre a temática que enfocamos aqui, e as disciplinas "Estágio Supervisionado (I e II)", do mesmo modo, deixam a critério do aluno a escolha do local do estágio.

 

Sobre as disciplinas de psicofarmacologia e psicopatologia

A escolha dessas disciplinas para análise se deu por entendermos que nelas haveria espaços privilegiados para a Psicologia no sentido de engendrar discussões em torno do conceito de loucura e do paradigma psiquiátrico, bem como por comportar debates acerca da própria concepção de saúde-doença mental, da prescrição indiscriminada de psicofármacos e da medicalização dos problemas sociais.

Na Ufes, a disciplina "Saúde e Psicopatologia" propõe trabalhar o percurso histórico da compreensão da loucura, o discurso médico-psiquiátrico e a visão da Psicopatologia, nas vertentes da Fenomenologia e da Psicanálise. Apesar de discutir a histórica da loucura, a disciplina não adentra a temática da reforma psiquiátrica, nem dialoga com a PNSM. De forma semelhante, no currículo da UEM, a disciplina "Psicopatologia" não faz aproximação com os serviços substitutivos de saúde mental no Brasil. Assim como a UEM, o currículo da USP privilegia a Psicopatologia Psicanalítica e, nessa última instituição, o programa prevê a comparação e a complementação com a abordagem psiquiátrica.

Merece destaque o currículo da UFU, no qual as disciplinas de "Psicopatologia" (I e II) propõem abordar os aspectos históricos da reforma psiquiátrica, as organizações psíquicas no referencial psicanalítico, a compreensão dos mecanismos desadaptativos no desenvolvimento do indivíduo, na perspectiva das teorias da Aprendizagem, Cognitivista, Humanista-Existencial, na perspectiva da Fisiologia, entre outras teorias, além de trazer discussões em torno das instituições asilares, bem como da Rede de Saúde Mental em geral. Ambas as disciplinas indicam obras da literatura especializada no assunto.

Nessa mesma direção, localizamos o currículo da FFCLRP, em que a disciplina de "Psicopatologia" faz interface com a Atenção Psicossocial, propondo trabalhar reforma psiquiátrica e organização da Raps, acrescendo e diferenciando-se de parte dos outros programas analisados. No caso da análise do conteúdo programático do currículo da Unimar, observou-se que a disciplina "Psicopatologia" não apresenta, nos aspectos programáticos, interface com políticas públicas de saúde e com os serviços substitutivos da Raps.

Em linhas gerais, foi possível constatar que a maioria dos currículos, basicamente, aborda a disciplina "Psicopatologia" com base no exame psiquiátrico e descrição dos chamados quadros dos transtornos mentais a partir desse paradigma. Chama a atenção que muitas disciplinas abordam as psicopatologias norteadas por teorias da Psicologia, como a Psicanálise e a Fenomenologia, porém, sem problematizar o saber psiquiátrico, que em alguns casos aparece nas entrelinhas subsidiando os debates em torno dos chamados "transtornos mentais".

No que se refere à disciplina de "Psicofarmacologia" notamos que, nos cursos de Psicologia da FFCLRP, UEM e Unimar, além de abordar a discussão especializada dos psicofármacos, recomendam-se os tratamentos combinados entre fármacos e psicoterapia. Em linhas gerais, observou-se, na maioria dos currículos pesquisados, que a discussão é especializada, sem qualquer debate sobre a prescrição indiscriminada de psicofármacos e a medicalização dos problemas sociais. Vale ressaltar que os currículos dos cursos de graduação em Psicologia da USP, UFU e Ufes não ofertam a disciplina Psicofarmacologia no núcleo eletivo e obrigatório, o que justifica que não as abordemos nesse contexto da discussão.

 

Considerações finais

A presente pesquisa buscou refletir sobre a formação acadêmica em Psicologia e sua contribuição para a construção da proposta da Atenção Psicossocial que atualmente norteia a Política de Saúde Mental no Brasil. No levantamento das produções científicas, priorizando a modalidade de artigos científicos, observou-se que a maioria das publicações problematiza genericamente a formação do psicólogo para atuar na saúde pública e discorre sobre a oferta de conteúdos concernentes à reforma psiquiátrica e à lógica da Atenção Psicossocial. Os artigos abordam essa questão isoladamente ou apenas fazem menção, indicando-nos lacunas na produção teórico-conceitual, sobretudo, norteada pelas premissas da Atenção Psicossocial.

No entanto, apesar de incipiente, na análise da inserção da Atenção Psicossocial nos cursos de Psicologia, constatamos que essa temática aparece timidamente nas disciplinas do núcleo básico de formação. Algumas indicam, por exemplo, previsão de conteúdos como determinantes sociais da saúde da população; relação entre o modelo de saúde com os aspectos culturais e a sua interferência sobre o conceito de normal-patológico.

Nessa conjuntura, vale sublinhar que o cuidado em Saúde Mental, atualmente, como parte do Sistema Único de Saúde (SUS), tem uma política específica orientada, em parte, pelo ideário do Movimento da Reforma Psiquiátrica que culminou na construção da lógica da Atenção Psicossocial que recomenda, com a criação da Raps, a ampliação e articulação dos diferentes pontos de atenção no cuidado em saúde mental numa perspectiva antimanicomial.

Notamos que, na formação, prevalece um componente dessa complexa rede; nos currículos, os conteúdos atinentes à saúde pública e coletiva na interface Saúde Mental-Atenção Básica aparecem com destaque. Embora não seja nossa intenção depreciar essa interface, uma vez que, como já apontara Spink (2007), é a Atenção Básica que incorpora a maioria dos psicólogos que atua na saúde pública, entendemos que esse destaque pode revelar certo distanciamento que tem cooperado para a compreensão da saúde mental como uma especialidade, e não como uma temática transversal.

Ademais, uma leitura atenta dos currículos analisados possibilitou observar que, de forma subjacente, o conteúdo programático das disciplinas aborda questões como prevenção e promoção como pertencentes ao campo da saúde pública, ao passo que os processos de reabilitação e cura são tidos como da área clínica. Essas duas concepções, sendo apresentadas separadamente, desprovidas de uma reflexão articulada, contribuem para o entendimento de que estamos tratando de processos complementares, na contramão de um cuidado integral.

E como essa formação pode ressoar na dimensão técnico-assistencial? Como alerta Benevides (2005), a atuação dos psicólogos na saúde pública revela que esse profissional diferencia a realidade psíquica da realidade material, incorrendo em uma atuação subjetivista e desarticulada das políticas públicas, dos fatores sociais e da luta pela melhoria da qualidade de vida da população.

Em última análise, no que diz respeito aos estágios profissionalizantes, embora alguns currículos forneçam estágio básico em contextos comunitários e institucionais com foco na promoção e prevenção em saúde e a possibilidade de atuação em serviços de saúde mental, ficou evidente a prioridade que ainda é dada ao perfil do psicólogo clínico liberal-privatista, conforme Dimenstein (2000) havia pontuado há tempos.

Este trabalho apresenta limites, seja por não contar com um levantamento mais exaustivo e sistemático, seja por não ter conseguido acessar um número maior de currículos e, no caso das instituições privadas, a resposta dada por elas de que o currículo é um documento restrito, aponta-nos para a importância de explorar com mais afinco essa concepção. A escolha dos recursos investigativos indica a possibilidade de outros estudos que abarquem fontes de informações complementares, para além das documentais.

Por fim, ao articular a análise dos currículos, ementas e conteúdos programáticos dos cursos de graduação em Psicologia em questão, concluímos que a formação profissional, ainda balizada pelo modelo clínico, liberal-privado, caminha na direção da Saúde Pública, apresentando gradativamente sua proposta e oportunizando experiências na rede substitutiva de Saúde Mental. Em contrapartida, frisamos que, deixando aberta a realização do estágio de acordo com a preferência do aluno, mesmo sem excluir a possibilidade de essa vivência ocorrer em serviços substitutivos, a falta de previsão formal dessa possibilidade pode não garantir, por conseguinte, uma formação prática mínima.

 

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Recebido 06/04/2015
Aprovado 13/02/2017

 

 

1 Este artigo deriva de uma pesquisa integrada ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica nas Ações Afirmativas (Pibic/AF-UEM), financiada pela Fundação Araucária.
2 O termo "psicossocial" foi sendo tomado como conceito à medida que os serviços substitutivos foram sendo instalados. Além disso, a "atenção" substituiu o termo "apoio" por englobar questões como escuta e acolhimento, além de tratamento e reabilitação, fazendo jus à complexidade inerente ao cuidado em saúde mental (Costa-Rosa, Luzio & Yasui, 2003).
3 Os termos "doente mental" ou "portador de transtorno mental" foram usuais em diferentes momentos da história. No entanto, Basaglia (1985) inspira-nos a usar "pessoa em sofrimento psíquico" para se referir aos usuários dos serviços de saúde mental em substituição aos termos anteriores.
4 Aos olhos da autora, essa afirmação acerca da Psiquiatria de Setor é fruto de excessivas críticas em detrimento do pouco conhecimento acerca do percurso histórico dessa experiência reformista.
5 A Raps deve ser composta por serviços e equipamentos variados e articulados, da Atenção Básica (Unidade Básica de Saúde, Núcleo de Apoio a Saúde da Família - Nasf, Consultório de Rua, Apoio aos Serviços do componente Atenção Residencial de Caráter Transitório, Centros de Convivência e Cultura); da Atenção Psicossocial Estratégica (Centros de Atenção Psicossocial - Caps, nas diferentes modalidades); da Atenção de Urgência e Emergência (Samu 192, Sala de Estabilização, UPA 24 horas e portas hospitalares de atenção à urgência/pronto socorro, Unidades Básicas de Saúde); da Atenção Residencial de Caráter Transitório (Unidade de Acolhimento, Serviço de Atenção em Regime Residencial); da Atenção Hospitalar (Enfermaria especializada em hospital geral, Serviço Hospitalar de Referência para Atenção às pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas); das Estratégias de Desinstitucionalização (Serviços Residenciais Terapêuticos, Programa de Volta para Casa) e das Estratégias de Reabilitação Psicossocial (Iniciativas de Geração de Trabalho e Renda, Empreendimentos Solidários e Cooperativas Sociais).
6 Entendemos que a formação acadêmica não esgota os caminhos a trilhar na ressignificação do cuidado em saúde mental e não menosprezamos a importância de se discutir e de se implementar, também, estratégias de Educação Permanente dos profissionais e da gestão do SUS, consonantes integralmente com o ideário do SUS e da reforma psiquiátrica.
7 Como assevera Onocko-Campos (2001, p. 99), chamamos de clínica as "práticas não somente médicas, mas de todas as profissões que lidam no dia-a-dia com diagnóstico, tratamento, reabilitação e prevenção secundária".
8 As instituições que se encaixaram nesse critério foram: Universidade Católica de Pelotas (UCPEL); Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ); Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - Campi São Paulo e Campinas (PUC-SP); Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS); Pontifícia Universidade Católica do Paraná - Campi Londrina e Curitiba (PUC-PR); Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - Campus Belo Horizonte (PUC Minas); Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO); Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Universidade Federal do Pernambuco (UFPE) e Universidade Estadual de Londrina-PR. (UEL); Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Universidade Estadual de Maringá (UEM) e Universidade de Marília (Unimar).
9 O termo "Projeto Pedagógico de Curso (PPC)" veio substituir o usual "Projeto Político-Pedagógico".
10 Esclarecemos que, em consulta ao Comitê de Ética da UEM, fomos dispensados do registro e avaliação/análise ética, por se tratar de um estudo baseado em dados públicos secundários.
11 Lembramos que o trabalho de Boarini (1996) foi escrito em um momento que antecede a própria a proposta da Atenção Psicossocial como base para uma política de saúde mental no Brasil.

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