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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.13 no.2 São João del-Rei abr./jun. 2018

 

Acolhimento psicológico para mulheres vítimas de violência conjugal

 

Psychological shelter for women victims of marital violence

 

Acogida psicológica a las mujeres víctimas de violencia conyugal

 

 

Bruna AdamesI; Simoni Urnau BonfíglioII; Ana Paula Sesti BeckerIII

IGraduanda em Psicologia pelo Centro Universitário de Brusque (Unifebe). Estagiária de Psicologia no Fórum da Comarca de Brusque (Tribunal de Justiça de Santa Catarina)
IIPsicóloga Clínica. Mestre em Educação
IIIPsicóloga Clínica. Doutoranda e Mestre em Psicologia

 

 


RESUMO

A violência contra as mulheres manifesta-se cotidianamente na dinâmica conjugal entre os sujeitos envolvidos, panorama que se faz presente nos Serviços Especializados às Mulheres que sofreram algum tipo de abuso (físico e/ou psicológico). Esta pesquisa buscou identificar a relevância do acolhimento psicológico nesses serviços, bem como analisar as características das mulheres acolhidas. O estudo teve como base a abordagem qualitativa e delineamento exploratório, descritivo e transversal. Participaram 14 mulheres encaminhadas ao serviço, após o registro do Boletim de Ocorrência em uma delegacia no sul do Brasil. A coleta de dados foi realizada pela técnica de entrevista semiestruturada, cujos dados foram analisados por meio do conteúdo temático categorial. Os resultados demonstram que, mediante acolhimento psicológico, as mulheres mencionam maior alívio, suporte emocional e reflexões positivas acerca de sua autoimagem. Considera-se que os dados obtidos corroboram e qualificam intervenções nesse âmbito.

Palavras-chave: Acolhimento psicológico. Mulheres. Violência conjugal.


ABSTRACT

Violence against women manifests itself daily in the conjugal dynamics between the involved subjects, a panorama that is present in the Specialized Services to Women who have suffered some type of abuse (physical and / or psychological). This research sought to identify the relevance of the psychological reception in these services, as well as to analyze the characteristics of the women received. The study was based on the qualitative approach and exploratory, descriptive and cross-sectional design. Participated in 14 women referred to the service, after the registration of the Occurrence Bulletin in a police station in the South of Brazil. The data collection was performed by the semi structured interview technique whose data were analyzed through the categorical thematic content. The results show that, through psychological reception, women mention greater relief, emotional support and positive reflections about their self-image. It is considered that the data obtained corroborate and qualify interventions in this area.

Keywords: Psychological shelter. Women. Marital violence.


RESUMEN

La violencia contra las mujeres se manifiesta cotidianamente en la dinámica conyugal entre los sujetos involucrados, panorama que se hace presente en los Servicios Especializados a las Mujeres que sufrieron algún tipo de abuso (físico y / o psicológico). Esta investigación buscó identificar la relevancia de la acogida psicológica en esos servicios, así como analizar las características de las mujeres acogidas. El estudio tuvo como base el abordaje cualitativo y delineamiento exploratorio, descriptivo y transversal. Participaron 14 mujeres encaminadas al servicio, tras el registro del Boletín de Ocurrencia en una comisaría en el sur de Brasil. La recolección de datos fue realizada por la técnica de entrevista semiestructurada cuyos datos fueron analizados por medio del contenido temático categorial. Los resultados demuestran que, mediante la acogida psicológica, las mujeres mencionan mayor alivio, soporte emocional y reflexiones positivas acerca de su auto-imagen. Se considera que los datos obtenidos corroboran y califica intervenciones en este ámbito.

Palabras clave: Acogida psicológica. Mujeres. Violencia conyugal.


 

 

Introdução

A violência contra as mulheres é um dos fenômenos de grande impacto no âmbito da saúde pública em geral e da psicoterapia familiar (Falcke, 2009). Isso porque, além dos danos físicos e psicológicos que ocasiona em ambas as partes envolvidas, faz-se necessário recorrer a subsídios psicológicos e de ações articuladas para a promoção e prevenção da saúde.

Pensar sobre a mulher em situação de violência é o mesmo que mencionar um processo interacional, o qual não pode ser compreendido como uma produção individual, mas como uma trama de relações que envolvem todas as partes envolvidas. Nesse sentido, a fronteira entre a figura de agressor e de agredido, vítima ou cúmplice, é de complexa demarcação quando se concebem as situações de violências contempladas em um processo de construção relacional (Santos & Moré, 2011).

Antes da década de 1980, a violência conjugal era considerada um problema privado entre os cônjuges, sendo caracterizada por agressões físicas e psicológicas que aconteciam prioritariamente em suas residências. Contudo, atualmente a violência conjugal passou a ser vista como uma questão de saúde pública, embasada em construções histórico-culturais envolvendo a relação de gênero (Oliveira & Souza, 2006).

As políticas públicas de prevenção direcionadas às mulheres inseridas em um contexto em que se perpetua a violência podem ser exercidas por meio do processo de acolhimento psicológico, o qual permite incluir a avaliação do risco de fatores ligados ao ato violento, o debate sobre como prevenir a violência e promover relações conjugais saudáveis. A intervenção de acolhimento tem como finalidade proporcionar outro olhar da mulher sobre si mesma, não apenas em função do ato de violência, como às diferentes posições e contextos que ela ocupa (Rifiotis, 2004).

Salienta-se que, nas Delegacias Especializadas, até o momento, perduram os termos vítima e agressor. Para tanto, adotam-se essas terminologias neste estudo em decorrência dos dispositivos legais e suporte psicossocial de proteção aos direitos das mulheres. Esclarece-se, contudo, que a nomenclatura mencionada não se refere a julgamentos que suscitem culpa ou inocência nesse processo interacional.

Conforme Labronici, Ferraz, Trigueiro e Fegadoli (2010), ao menos uma vez na vida uma em cada quatro mulheres já foi violentada, geralmente por seu parceiro. Cerca de uma em cada três mulheres foi espancada ou sofreu algum tipo de abuso durante a sua vida; e, ainda, 40% a 70% dos homicídios femininos são cometidos pelo parceiro (cônjuge). Os números alarmantes de mulheres envolvidas em situação de violência reforçam a necessidade de compreensão do fenômeno para além do ambiente no qual ocorreu tal fato. Apesar desses índices já serem preocupantes, eles não abrangem a totalidade dos casos, pois muitos episódios de violência não são identificados ou denunciados, por motivos multifatoriais - p.ex.: questões socioeconômicas, sentimentos de medo ou culpa, ameaça, dependência com relação ao agressor, entre outros (Falcke, 2009).

De acordo com Falcke (2009), a violência física ou psicológica contra as mulheres é praticada pelo próprio companheiro ou, ademais, por algum membro familiar (pai ou irmão). A violência cometida pelo cônjuge, por sua vez, é a que prevalece (Balduíno, Zandonadi & Oliveira, 2017). Logo, observa-se um controle masculino sobre as mulheres, que se encontra na base da violência que é exercida contra elas, como um meio de dominá-las e mantê-las sob seu domínio, especialmente se for a parceira conjugal e/ou pessoa de frequente convívio (Day et al., 2003).

Segundo Mayorca, Martins-Borges e Barcellos (2014), a violência conjugal pode ser compreendida como uma dinâmica cíclica na qual se seguem continuados movimentos que prendem os indivíduos na relação. O ciclo da violência conjugal pode ser compreendido por meio de três fases: 1. Tensão entre o casal; 2. Passagem ao ato/a violência propriamente dita; 3. Apaziguamento da reação ou, ainda, enamoramento. Ao passar do tempo, por meio do aumento de frequência e da intensidade dos episódios, ocorre um aumento do nível de ansiedade, o que muitas vezes levará os envolvidos a buscar auxílio.

Pensar sobre as causas decorrentes da violência conjugal não é simples, pois integra uma realidade complexa. A violência contra as mulheres pode vir a ser uma forma de expressão das relações sociais estabelecidas em torno da questão de gênero, sobretudo no que se refere às relações hierárquicas desiguais que estabelecem dominação e subalternidade (Ghisi, 2013).

Embora a literatura científica aponte um conjunto de explicações para a violência contra a mulher, este estudo não detalhará tais motivos, uma vez que o objetivo da pesquisa não visa à investigação sobre as origens dos atos violentos perpetrados, mas identificar a relevância do acolhimento psicológico oferecido em um Serviço Especializado às mulheres em situação de violência conjugal, assim como analisar as características das mulheres atendidas no acolhimento.

 

Método

A presente pesquisa seguiu os pressupostos da abordagem qualitativa, pois buscou apreender os significados, motivos, aspirações, crenças e atitudes dos sujeitos dentro do seu contexto (Minayo, 1998). Portanto, caracterizou-se como exploratória-descritiva, por investigar um campo de conhecimento pouco explorado em estudos nacionais e visou descrever e caracterizar aspectos relatados durante os acolhimentos psicológicos das mulheres que denunciaram a violência vivenciada. Em relação à temporalidade, trata-se de um estudo transversal, por pesquisar o fenômeno num momento específico da vida dos participantes (Sampieri, Collado & Lucio, 2013).

 

Participantes

Participaram do estudo 14 mulheres, encaminhadas ao acolhimento psicológico após registrarem o boletim de ocorrência em uma Delegacia Especializada no sul do Brasil. O número de participantes estipulado correspondeu aos critérios de saturação dos dados, indicados por Guest, Bunce e Johnson (2006). Como critérios de inclusão preconizou-se: a) mulheres maiores de 18 anos, cuja demanda de registro referia-se à violência perpetrada pelo atual parceiro ou ex-cônjuge; b) mulheres que após contato telefônico e o esclarecimento acerca do estudo apresentaram compreensão e livre espontâneo desejo em participar das entrevistas.

 

Coleta de dados

Como técnica de coleta de dados, utilizou-se a entrevista semiestruturada com perguntas abertas e fechadas que, conforme Biasoli-Alves (1998), permite o livre discurso conforme os temas sugeridos entre o entrevistado e o entrevistador, cuja dinâmica se estabelece naturalmente. Para tanto, foi elaborado um roteiro com eixos norteadores que contemplaram os quesitos de identificação da participante (idade, nível de escolaridade, profissão, remuneração, estado civil), as características das mulheres atendidas e, por fim, a importância do acolhimento psicológico recebido. Os acolhimentos ocorreram por aproximadamente 40 minutos, em um espaço fechado no interior da DPCAMI destinado aos serviços de atendimento às mulheres em situação de violência. Ressalta-se ainda que, anteriormente às entrevistas, as participantes foram esclarecidas acerca da pesquisa, sigilo, implicações e posteriormente assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

 

Análise dos dados

Para sistematização e interpretação dos dados obtidos, utilizou-se a técnica categorial temática proposta por Bardin (2010), organizada em três etapas: a primeira denominada de pré-análise, em que o pesquisador faz leituras sucessivas do material; a segunda refere-se à exploração do material no sentido de codificar e criar categorias a partir dos dados; e, por fim, realiza-se o tratamento dos resultados e interpretação, em que o pesquisador pode interpretar e inferir sobre os dados, considerando os conteúdos manifestos e latentes dos participantes. Por conseguinte, foram elaboradas três grandes categorias de análise: 1. Dados de identificação; 2. Caracterização das mulheres atendidas no acolhimento; e 3. Acolhimento psicológico.

 

Considerações éticas

Este estudo foi submetido à aprovação no Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos do Centro Universitário de Brusque (Unifebe) - Parecer Consubstanciado Projeto nº 2.276.344/2017-, bem como em todos os níveis decisórios da Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso (DPCAMI).

 

Resultados e discussões

Categoria 1. Dados de identificação

Esta categoria engloba os dados pessoais da participante (p.ex.: idade, estado civil, escolaridade, profissão, remuneração, religião, dentre outros).

Os dados apresentados no Quadro 1 apontam que a média de idade das 14 mulheres que registraram o Boletim de Ocorrência e retornaram à Delegacia para participar do acolhimento psicológico é de aproximadamente 29 anos, variando entre 19 e 64 anos. De acordo com Garcia (2010, p.15), "[..] as mulheres mais jovens são mais propensas a abandonar estes relacionamentos mais cedo e consequentemente a isso, realizar a denúncia".

Evidencia-se que muitas dessas mulheres já não aceitam mais a violência e em decorrência disso rompem seus laços afetivos conjugais. Contudo, nove a cada 14 mulheres sofrem violência conjugal há um tempo considerável e, ainda assim, não conseguem se desvincular do relacionamento. Tais dados corroboram os estudos de Balduino, Zandonai e Oliveira (2017), os quais citam a dependência emocional e financeira, valorização da família, preocupação com os filhos, idealização do amor e do casamento, desamparo diante da necessidade de enfrentar a vida sozinha e ausência de apoio social, como alguns fatores que propiciam a permanência de mulheres em relações conjugais, nas quais a violência física e/ou psicológica se faz presente.

Observa-se, portanto, que 10 de 14 mulheres não têm o Ensino Médio Completo. A isso, a atual pesquisa corresponde aos estudos realizados por Menezes, Amorim, Santos e Faúndes (2003), no qual afirmam que geralmente as mulheres com Ensino Fundamental Incompleto apresentam a maior ocorrência em todos os tipos de violência. Conforme esses autores, os indivíduos com baixa escolaridade podem exibir dificuldades na resolução de conflitos cotidianos em suas relações conjugais. Nesse sentido, pode-se pensar que a escolaridade constitua-se uma variável que incite mais esclarecimentos e atue como um fator de proteção, eximindo a pessoa de uma condição mais vulnerável. Sabe-se ainda que, muitas vezes, as mulheres com maior grau de escolaridade não se expõem nas Delegacias, circunscrevendo suas queixas nos consultórios terapêuticos (Falcke, 2009).

Categoria 2. Caracterização das mulheres atendidas no acolhimento

Nesta categoria foi possível constatar alguns dos significados atribuídos ao relacionamento com o ex-cônjuge ou atual parceiro, como sendo agressivo e conturbado, para oito participantes; enquanto que outras seis mulheres o caracterizaram como ameaçador e difícil. A seguir alguns relatos que correspondem aos dados levantados.

[relacionamento] conturbado, ele está sempre alterado, tenho medo. (P1, 19 anos)

Conturbado e difícil, estou cansada dessa relação. (P9, 36 anos)

O relacionamento é de uma agressividade tamanha é muito difícil. (P11, 45 anos)

Posso dizer que meu relacionamento é ameaçador, chega a me dar medo! (P12, 52 anos)

Segundo Cesca (2004), a violência conjugal é um campo mutável em que se mesclam realidade e fantasia, cena que causa horror e curiosidade. Perante diversos fatores, pessoais, familiares e sociais que compõem o fenômeno, torna-se muito complexa a tarefa das mulheres ao lidar com essa problemática.

Ao referirem-se sobre quem é o agressor, cinco das entrevistadas relatam ser ou terem sido seus ex-cônjuges, e nove o cônjuge atual. Assim como ressalta Garcia (2010), lastimavelmente a violência é, geralmente, perpetrada pelo parceiro íntimo ou ex-parceiro íntimo, sendo que a primeira opção prevalece, conforme se observa em alguns relatos: "É meu ex-marido, a gente sempre teve idas e vindas, pensei que ele fosse mudar" (P3, 23 anos); "É meu parceiro, por incrível que seja, ele me bate, me xinga, me ameaça" (P9, 36 anos); "Meu marido, é assim desde o início, penso na mudança, mas ela nunca vem" (P2, 21 anos).

Quando questionadas a respeito da procura pelo auxílio da justiça nos momentos de perpetração da violência ocorrida, nove das mulheres não denunciaram tal situação. Os motivos envolvidos que as fizeram se abster da denúncia são: medo com relação ao futuro dos filhos ou da família; medo do agressor e amor pelo (ex)cônjuge ou esperança que ele altere suas atitudes e comportamentos.

A relação teve cinco términos e recomeços, isto porque ele demonstrava-se arrependido pelos comportamentos agressivos, prometia mudanças e em função dos filhos retomava a união. (P14, 64 anos)

Acredito que ele possa vir a mudar e, então, o perdoo. É um erro, termino e volto a relação a todo momento! (P4, 24 anos)

Não sei o que vai acontecer daqui pra frente, eu tinha e tenho medo pelos meus filhos. (P7, 32 anos)

Quem sabe ele mude, resta uma esperança. (P3, 23 anos)

De acordo com Madeira e Costa (2012), um dos principais motivos citados pelas vítimas como justificativa a respeito da continuidade no relacionamento é o desejo de manter a união familiar na companhia dos filhos, ou em função deles. Sabe-se ainda que o sentimento de medo com relação ao agressor e o zelo pela família, principalmente quanto aos filhos, são apenas alguns dos muitos motivos que levam a maioria das participantes a não procederem com a representação criminal.

Com base nos relacionamentos conjugais passados, 10 das entrevistadas já tiveram outros parceiros, sendo que seis destes foram relações abusivas (presença de violência física e/ou psicológica); verifica-se, portanto, uma perpetuação do modelo conjugal, na qual a violência se faz presente.

Outro fator relevante é a repetição de modelo parental na vida dessas mulheres: 11 participantes mencionam que o relacionamento com seus pais foram considerados como ruins, sendo que, além destes, outras oito ressaltam ter ou terem tidos pais usuários de drogas, assim como tinham relacionamentos extraconjugais e apresentavam comportamento violento.

Meu pai era um bêbado, tinha amantes e sempre bateu em mim e na minha mãe. (P3, 23 anos)

[...] frequentemente meu pai agredia fisicamente minha mãe, e ainda fazia o uso de bebida alcoólica, todas as situações na minha frente e de meus irmãos, isso quando não me batia também. (P10, 40 anos)

Várias vezes vi minha mãe apanhar. Me sinto muito mal por permitir o mesmo que ela permitiu durante anos. (P12, 52 anos)

Gostaria de fazer diferente do que a minha fez, mas acabo repetindo o mesmo. (P13, 55 anos)

Ponte (2013) explicita que não é incomum mulheres que presenciaram violência em sua residência, como pais alcoolistas e violentos, repitam essa vivência com seu companheiro violento. Maus tratos, negligência, rejeição e abuso sexual, são fatores considerados de risco para tal perpetuação. Estudos nacionais (Carrasco, 2003; Cecconello, 2003; Narvaz, 2005) corroboram tais achados ao evidenciar que existe um padrão ao longo das gerações concernentes à transmissão das experiências, no qual mulheres em situação de violência conjugal presenciaram inclusive a vitimização de suas mães durante a infância.

Quanto ao desejo de representar criminalmente, isto é, dar continuidade por meio do inquérito policial, destaca-se que, das 14 mulheres atendidas, nove escolheram não representar o agressor, o que é um dado eminente no que diz respeito às denúncias e desistências no processo. Com base nos relatos, é possível observar a relação entre vítima e delegacia, na qual se destaca que a instituição policial participa indiretamente da negociação dos acordos conjugais que ocorrem no ambiente familiar (domicílio), e que para a maioria das mulheres em situação de violência a denúncia apresenta-se como modo de dar um "susto" no agressor frente ao ato violento.

Não quero levar adiante, só quero dar um susto nele. (P1, 19 anos)

Não quero continuar com o processo... só quero que ele mude seus comportamentos, me vejo como permitindo tudo isto. (P9, 36 anos)

Gostaria que tudo fosse diferente, mas não adianta puni-lo, ele não tem medo da polícia. (P14, 64 anos)

Queria que ele mudasse... talvez se vocês [à polícia] falassem com ele até porque eu agrido ele também. (P5, 28 anos)

As razões que levam as mulheres a denunciar são variadas. A procura pelas chamadas Delegacias da Mulher é longa, complexa e conflitiva (Rifiotis, 2004). Conforme os relatos, é possível constatar que nove dessas mulheres, ao registrarem o boletim de ocorrência, não desejam punir o agressor, mas resgatar a relação familiar e encerrar o complexo ciclo de violência. Onze das participantes reconhecem sua participação nesse ciclo, ou ainda, a perpetuação para com este, e classificam-se como permissivas, como demonstra o relato da P8 ao mencionar: "sinto que poderia fazer algo para alterar essa situação, mas não faço" [sic]. Elucida-se, portanto, a problematização acerca da vitimização no que diz respeito às mulheres envolvidas em situação de violência conjugal, explicitando que ela é coparticipante no relacionamento e atue somente como vítima. Importante problematizar isso aqui, pois se corre o risco de culpabilizar as mulheres pela violência que sofrem. Há inúmeros escritos sobre isso.

Categoria 3. Acolhimento psicológico

Essa categoria refere-se à importância do acolhimento psicológico às mulheres em situação de violência conjugal, bem como os dados levantados por meio da entrevista. Quando questionadas se restaram dúvidas com relação aos aspectos legais, 10 das participantes responderam que não, e quatro apresentaram dúvidas referentes à representação criminal e seus devidos procedimentos (p.ex.: Lei nº 11.340/06, Medida Protetiva, rede de apoio, dentre outros).

Ao finalizar o acolhimento, 11 participantes relataram estar sentindo-se bem melhor, e três mencionaram estar sentindo-se orientadas e tranquilizadas.

Estou me sentindo muito melhor após o atendimento, com certeza vou procurar ajuda [direitos legais]. (P12, 52 anos)

Estou me sentindo aliviada, saiu um peso de cima de mim por poder ter desabafado com alguém, que me ouvisse sem me julgar. (P4, 24 anos)

Tinha vergonha de expor minha situação, e hoje saio daqui aliviada depois de um grande desabafo. (P2, 21 anos)

Sou muito grata a este atendimento, não consigo descrever em palavras como me sinto melhor. (P13, 55 anos)

O acolhimento dos relatos advindos de denúncias de mulheres em situação de violência conjugal oportuniza consequências positivas tanto no campo da saúde quanto no campo legal com vista à garantia dos direitos humanos e o respeito pelos valores subjetivos da pessoa (Narvaz & Koller, 2006). Nesse âmbito, o acolhimento psicológico e seus derivados métodos de aplicação pode ser descrito como um instrumento facilitador no resgate de uma visão do indivíduo em sua totalidade (Porto, 2004).

O acolhimento é visto sobretudo como um diálogo confidencial entre o(a) acolhido(a) e o acolhedor, cujo objetivo é o de auxiliar para que o oprimido possa ser capaz superar o seu estado de estresse e tome decisões saudáveis no que se refere à demanda explicitada (Narvaz & Koller, 2006). Portanto, o aconselhamento é considerado como uma ação educativa, de modo a prevenir e promover o desenvolvimento do(a) acolhido(a) por meio de suas escolhas, o que poderá viabilizar a mediação de conflitos ou, ainda, a resolução de problemas.

De acordo com Porto (2004), o processo de acolhimento inclui a avaliação do risco de fatores ligados ao problema, por exemplo, a violência que permeia as relações conjugais, bem como o debate sobre como prevenir e consolidar relacionamentos mais saudáveis. Rifiotis (2004) afirma que muitas das mulheres vítimas de violência expressam surpresa com as possibilidades que vão surgindo no atendimento, tais como a orientação jurídica, quando passam a conhecer seus direitos, que na maioria das vezes eram desconhecidos, como se observa nas falas de P12 e P2: "Estou me sentindo muito melhor após o atendimento, com certeza vou procurar ajuda (direitos legais)" [sic]; "Antes não sabia de que forma a justiça podia me ajudar" [sic].

Conforme pode se perceber, as entrevistadas apontam que o acolhimento psicológico é um auxílio no que se refere ao fenômeno em questão, denotando-se a importância de uma postura ética e profissional durante sua intervenção. Day (2003) ressalta que o estudo da violência conjugal exige uma atitude de muita tolerância e sensibilidade, isso pode ser observado nos relatos das participantes: "Antes do atendimento não sabia o que era medida protetiva ou como acontecia" (P12, 52 anos); "Estou me sentindo muito melhor após o atendimento. Com certeza vou procurar ajuda" (P4, 24 anos).

De acordo com o exposto, foi possível observar a importância do atendimento psicológico destinado a esse público-alvo. Conforme Mayorca, Borges e Barcellos (2014), a partir do acolhimento é possível que o sujeito encontre os elementos que ficaram perdidos e que, recombinados, são estratégicos no desenvolvimento das capacidades pessoais de resiliência e simbolização, assim como na elaboração criativa de um novo futuro. E, assim sendo, é imperioso mencionar a necessidade de capacitação dos profissionais que atuam no atendimento às mulheres em situação de violência, por meio de programas de educação, para que percebam, reconheçam e compreendam como intervir diante dessa delicada situação (Menezes et al., 2003).

 

Considerações finais

O presente estudo teve por objetivo identificar a relevância do acolhimento psicológico oferecido em um Serviço Especializado às mulheres em situação de violência conjugal e conjuntamente analisar as características das mulheres atendidas no acolhimento. Referente a isso, salientam-se alguns aspectos proeminentes: a) baixa escolaridade; b) influência do histórico familiar e repetição de modelo parental agressivo e violento; c) esperança pela mudança de comportamento por parte do (ex)cônjuge; e) não procurar auxílio da justiça por relatarem medo do que venha a acontecer com filhos e/ou família e a afetividade pelo parceiro.

Em vista de tal cenário, foi possível constatar que diversas das mulheres em situação de ameaça/agressão, ao registrarem o boletim de ocorrência, não desejam apenas punir seu agressor, mas resgatar a relação familiar e conviver sem violência, com respeito e harmonia. Nesse sentido, os pedidos de auxílio por parte dessas mulheres estão relacionados ao enfoque de queixa de sua realidade, bem como o desejo parcial de saída desta.

Ressalta-se que este estudo se referiu a mulheres que residem em uma região do sul do Brasil, portanto, os dados aludem ao contexto sociocultural correspondente à referida região. Isto porque, tal estudo realizado na região Norte do Brasil, por exemplo, poderia vir a explicitar resultados distintos ou incomuns, justamente em função da realidade sociocultural que pode se apresentar adversa. Contudo, percebeu-se, por meio dos estudos, que apesar das peculiaridades, reproduzem-se os aspectos da cultura patriarcal de norte a sul.

Com relação às limitações metodológicas do presente estudo, pode-se mencionar a dificuldade em acessar as mulheres encaminhadas após registrarem o boletim de ocorrência, em função de elas não retornarem ao local de registro. Considerando a necessidade de atender aos critérios de saturação dos dados, foi possível realizar a entrevista com 14 participantes. Entretanto, só foi possível realizar a coleta de dados após diversas tentativas para seleção das participantes. As dificuldades ocorreram em virtude da adesão ao retorno das participantes até a delegacia e a inclusão delas no acolhimento.

Verificou-se a importância do acolhimento psicológico destinado ao público em questão, cabendo ao profissional trabalhar de forma assertiva e ética com base na problemática levantada pela mulher em situação de violência, tendo em vista que tal procedimento e perspectiva deverá considerar o fenômeno de forma integral e sistêmica.

No que se refere à realidade da temática presente, o acolhimento psicológico proporciona ao acolhido(a) um outro olhar de si mesmo(a) quanto à situação que vivencia, ou seja, não se focaliza somente o ato de violência, mas sim as repercussões deste na vida integrada do sujeito, em seus diferentes aspectos, como o histórico familiar, cultura, crenças, valores, escolaridade, entre outros.

Recomenda-se, portanto, que esses espaços especializados no atendimento a mulheres em situação de violência (p.ex.: Delegacia de Proteção à Mulher) tenham equipes qualificadas e providas de ambiente apropriado para favorecer a escuta da queixa e prestar orientação quanto às medidas cabíveis, a fim de oferecer subsídios a essas mulheres para o enfrentamento e/ou reflexão de suas respectivas demandas. Aponta-se a relevância de outros estudos que visem aprofundar a reflexão sobre os motivos e elementos que contribuem para essas mulheres permanecerem em uma relação permeada por violência (física e/ou psicológica), bem como os aspectos psicológicos envolvidos na dinâmica conjugal que utiliza a violência como modo de comunicação ou resolução de conflitos.

Por fim, pode-se refletir acerca do importante papel que a Psicologia tem diante da temática no cenário contemporâneo, no qual a violência permeia lares, reproduzindo-se como um ciclo hostil de atos violentos e fatores de risco para o desenvolvimento humano e a vida familiar. Considera-se, outrossim, que a escuta qualificada e os encaminhamentos cabíveis exercidos pelos profissionais da Psicologia e demais integrantes envolvidos no processo constituam-se fatores de proteção aos direitos das mulheres e medidas de prevenção à violência conjugal.

 

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Recebido em 06/08/2017
Aprovado em 27/03/2018

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