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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.13 no.2 São João del-Rei abr./jun. 2018
Psicólogos orientais, estereótipos e relações étnico-raciais no Brasil
Oriental psychologists, stereotypes and ethnic-racial relations in Brazil
Psicólogos orientales, los estereotipos y las relaciones étnico-raciales en Brasil
Thaís Yurie IshikawaI; Alessandro de Oliveira dos SantosII
IEstudante de graduação do Instituto de Psicologia da USP. E-mail: thaisyishikawa@gmail.com
IIDocente do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da USP. E-mail: alos@usp.br
RESUMO
Este estudo qualitativo focalizou as relações étnico-raciais segundo a concepção de um segmento de psicólogos orientais da cidade de São Paulo, descrevendo os estereótipos associados a esse pertencimento étnico-racial e cultural e a influência ou não destes sobre a identidade pessoal e a atuação profissional desses psicólogos. Foram realizadas 8 entrevistas, com 2 homens e 6 mulheres, entre 31 e 70 anos, da cidade de São Paulo. A análise de conteúdo das entrevistas evidenciou a racialização dos orientais no Brasil, ou seja, como as relações interpessoais e profissionais são mediadas por sua diferença fenotípica. Tal diferença se revela por meio de apelidos e vocativos, na forma como o oriental é colocado como diferente nas relações, e pelos estereótipos que lhes são atribuídos.
Palavras-chave: Relações étnico-raciais. População oriental. Estereótipos. Pesquisa qualitativa. Psicologia Social.
ABSTRACT
This qualitative study focused on ethnic-racial relations according to the conception of a segment of oriental psychologists in the city of São Paulo, describing the stereotypes associated with this ethnic-racial and cultural affiliation and their influence on personal identity and performance of these psychologists. A total of 8 interviews have been made, with 2 men and 6 women, between 31 and 70 year, in São Paulo city. The interviews analysis showed the racialization of oriental people in Brazil, as their interpersonal and professional relations are mediated by their phenotypical difference. This difference is revealed in some nicknames, in the way oriental people are seen as the different element, and through the stereotypes build around their social image.
Keywords: Ethnic-racial relations. Oriental people. Stereotypes. Qualitative research. Social Psychology.
RESUMEN
Este estudio cualitativo enfocó las relaciones étnico-raciales según la concepción de un segmento de psicólogos orientales de la ciudad de São Paulo, describiendo los estereotipos asociados a esa pertenencia étnico-racial y cultural y la influencia o no de los mismos sobre la identidad personal y la actuación profesional de estos psicólogos. Se llevaron a cabo 8 entrevistas con 2 hombres y 6 mujeres, entre 31 y 70 años, en la ciudad de Sao Paulo. Las análisis de contenido de las entrevistas mostraron la racialización de esta población en Brasil, es decir, como las relaciones interpersonales y profesionales están mediados por su diferencia fenotípica. Esta diferencia se revela a través de apodos, en la forma en que se coloca el oriental como diferente en las relaciones, y a través de los estereotipos que se les asignan.
Palabras clave: Relaciones étnico-raciales. Población oriental. Estereotipos. Investigación cualitativa. Psicología Social.
Introdução
As relações étnico-raciais no Brasil, assim como as relações de gênero e classe, compõem as relações sociais brasileiras e têm sido objeto de estudo da Psicologia, como ciência e profissão (Leite, 1966; Souza, 1982; Carone & Bento, 2002; Schucman 2014). Entretanto, pouca atenção tem sido dada às relações étnico-raciais do ponto de vista dos imigrantes e descendentes de imigrantes do continente asiático que vivem no país (Suda & Souza, 2006). Em geral, essa população compartilha dos mesmos indicadores sociais que a população branca, mostrando que seu pertencimento étnico-racial não se transforma em desigualdades de acesso a bens, serviços e oportunidades, como ocorre, notadamente, com a população negra (Paixão, Rossetto, Montovanele & Carvano, 2010). Contudo, o fato de não gerar desigualdades de acesso a bens, serviços e oportunidades, não quer dizer igualdade de tratamento nas relações sociais envolvendo os orientais.
O Brasil conta com expressivo contingente de descendentes de imigrantes do continente asiático compondo sua população, sobretudo japoneses, chineses e coreanos, sendo a cidade de São Paulo a região do país com maior concentração desse contingente. O Censo 2010 do IBGE verificou a presença de 2.084.288 brasileiros autodeclarados amarelos, representando 1,09% da população. Na cidade de São Paulo, dos 11.253.503 habitantes, 247.577,066 autodeclaram-se amarelos no Censo 2010, representando 2,2% dos habitantes (IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2016).
A imigração japonesa para o Brasil teve início em 1908 e tornou-se relevante a partir de 1930 devido ao intenso fluxo migratório para fazendas do interior do Estado de São Paulo, marcando presença até hoje na atividade rural e hortifrutigranjeira. A imigração chinesa data do início do século XX, intensificando-se no fim da década de 1940 com a implantação do socialismo e fundação da China Nacionalista. A imigração coreana, por sua vez, apesar de iniciada entre 1923 e 1926, intensificou-se somente no fim da década de 1960 e início de 1970. Assim como os japoneses, a maioria dos coreanos e chineses também se concentrou em São Paulo, desenvolvendo atividades ligadas à produção e comercialização de alimentos e de bens manufaturados (Museu da Imigração, 2016) - utilizamos o termo oriental para designar os imigrantes japoneses, chineses, coreanos e seus descendentes no Brasil, em vez dos termos amarelo ou asiático. Na literatura internacional, o termo asiático, asian em inglês, tem sido o mais comum para se referir a esse grupo, sobretudo, nos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido (Cheung, Fiske, Lin & Kwan, 2005; Brown, 2010; Islam, Khanlou & Tamim, 2014). Nos Estados Unidos e Canadá, são considerados asian as pessoas de origem vietnamita, filipina, indiana, paquistanesa, chinesa, coreana, entre outras. Já no Reino Unido, o termo asian refere-se quase que exclusivamente aos habitantes do sul do continente asiático, englobando Índia e países vizinhos.
O termo amarelo, por sua vez, faz parte de uma classificação demográfica criada pelo IBGE a fim de obter indicadores sociais da população com base no quesito cor-raça-etnia, sendo eminentemente uma categoria analítica. Guimarães (2003), ao refletir sobre os termos utilizados em pesquisas que abordam o fenótipo das pessoas, propõe a distinção entre categorias analíticas e nativas. Segundo o autor, as categorias nativas são aquelas mais usuais do dia a dia e que fazem parte do senso comum das relações sociais. Ora, o termo amarelo não tem expressão no senso comum, ou seja, não é usualmente utilizado pelos brasileiros. Do mesmo modo o termo asiático, tendo em vista a ênfase dada ao fenótipo em nosso país. Dificilmente no Brasil um paquistanês ou indiano de cor de pele escura, embora sendo asiático, seria associado, por conta de seu fenótipo, ao mesmo grupo de pertencimento étnico-racial de um japonês ou coreano. Por isso, preferimos utilizar o termo oriental, dada sua capacidade de expressar um conjunto de experiências comuns no país associadas à presença dos japoneses, chineses, coreanos e seus descendentes.
Outra decisão conceitual foi a escolha pelo termo raça-etnia para se referir aos orientais. A raça é um constructo sociológico que faz sentido somente em um contexto histórico, visto que não é possível definir geneticamente diferentes raças humanas. Trata-se de uma construção social que remete a discursos sobre as origens de um grupo com base em traços fisionômicos, transpostos para qualidades morais e intelectuais. Já o conceito etnia costuma ser utilizado para atribuição de características de pessoas que provém do mesmo lugar, território, origem geográfica. No Brasil, a cor de pele tem sido a categoria nativa mais utilizada pela população. Mas ela é orientada pela própria ideia de raça, isto é, conforme a cor da pele e determinados traços fisionômicos (cabelo, nariz, cor dos olhos, entre outros), acredita-se na transmissão hereditária e genética de qualidades, essências e características (Guimarães, 2003).
A categoria raça é distintiva de uma diferença social percebida como imediata e, em geral, implica na atribuição de estereótipo e identidade. Consideramos a categoria raça imprescindível ao tratar dos orientais no Brasil, tendo em vista que a identificação das pessoas associadas a esse grupo ocorre no país com base no fenótipo (sobretudo traços faciais), sendo atribuído a partir dele determinados estereótipos, como seriedade e inteligência. Ademais, essa atribuição de estereótipos vem, geralmente, acompanhada de referências aos países de origem da família (Japão, China e Coreia), exigindo, por conseguinte, também o uso do termo etnia.
Os estereótipos são crenças construídas socioculturamente e transmitidas por agentes de socialização como a família, a escola, a religião e os meios de comunicação. Não se baseiam na experiência pessoal e consistem em generalização e atribuição de valor a características de um grupo. Por se tratarem de julgamentos anteriores à experiência, podem produzir a deformação da imagem do outro, envolvendo distorção e empobrecimento da realidade. Nesse sentido, também podem ser compreendidos como uma construção defensiva para lidar com as diferenças - étnico-racial, de gênero, de orientação sexual, associada à deficiência, entre outras (Amaral, 1995; Pereira, 2002; Bosi, 2004).
A identidade, por sua vez, remete as concepções sobre si mesmo, o outro e o grupo, reunindo três características: relação, permanência e transformação. A relação diz respeito à necessidade de um outro eu para que a identidade possa se forjar. Nesse sentido, ela sempre se dá na relação com outrem. Essa relação entre o eu e o outro promove vínculos com um determinado grupo ou comunidade e, sob essa perspectiva, identidade significa o efeito dos vínculos que permanecem no sujeito dos seus grupos de identificação (Augé, 1999). A identidade também pode conter a transformação, na medida em que é uma autointerpretação da pessoa referente aos papéis sociais que lhe são atribuídos e que exerce em seus grupos de identificação, permitindo que a pessoa interpele representações cristalizadas de si mesma em um processo constante de metamorfose (Ciampa, 1987).
Este artigo focaliza as relações étnico-raciais brasileiras segundo a concepção de um segmento de psicólogos orientais da cidade de São Paulo, descrevendo os estereótipos associados a esse pertencimento étnico-racial e cultural e a influência ou não destes sobre a identidade pessoal e a atuação profissional desses psicólogos. O termo concepção remete à maneira pessoal de enxergar, sentir ou compreender algo sobre determinado objeto ou situação (Casteleiro, 2001). Nesse sentido, investigar a concepção de psicólogos orientais acerca das relações étnico-raciais brasileiras significa refletir sobre suas práticas, opiniões e falas a esse respeito.
Essa reflexão se mostra oportuna e atual, por um lado, em função da fertilidade, nesse momento, dos estudos sobre relações étnico-raciais no Brasil, sobretudo, entre negros e brancos, estimulando a investigação dessas relações no âmbito de outros segmentos da população. E, por outro lado, pelo fato de o Brasil ter recebido, nos últimos anos, um novo contingente de imigrantes, de fenótipos e culturas diversos das matrizes étnico-raciais e culturais que historicamente deram origem ao povo brasileiro, o que reacende o debate sobre a presença e força das características físicas (fenótipos) e culturais e dos estereótipos daí derivados na mediação das relações sociais entre os brasileiros.
Método
Estudo qualitativo, descritivo e exploratório (Minayo, 1993), realizado por meio de entrevistas com 8 psicólogos na faixa etária entre 31 e 70 anos que atuam em diferentes áreas do campo psi como clínicas particulares, hospitais, escolas de ensino médio, recursos humanos de empresas e ensino de psicologia em faculdades. Os entrevistados foram convidados a participar voluntariamente do estudo por meio de carta convite, enviada pelas redes sociais e por e-mail. Não guardam relação de amizade, parentesco, trabalho ou ensino entre si, sendo selecionados com base em sua descendência oriental, comprovada pelo sobrenome e/ou fenótipo.
Todos os entrevistados descendem de japoneses, sendo metade exclusivamente de famílias japonesas e a outra metade de famílias japonesas com famílias brancas ou negras. Os nomes dos entrevistados não foram identificados e nem substituídos por nomes fictícios, optando-se pela utilização de números para nomeá-los. A coleta dos dados ocorreu ao longo do primeiro semestre de 2016, mediante assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos participantes do estudo. O Quadro 1 apresentado a seguir contém informações sobre o perfil dos entrevistados.
As entrevistas duraram em média 60 minutos e tiveram como fio condutor um roteiro de perguntas abordando temas como: raça-etnia e identidade; e formação e intervenção do psicólogo no tema das relações étnico-raciais.
Todas as entrevistas foram gravadas em áudio e o material transcrito. Em seguida, fizemos uma análise buscando os principais conteúdos que emergiram. Posteriormente, houve o agrupamento desses conteúdos em quatro categorias: autoclassificação e heteroclassificação de cor-raça-etnia; racialização dos orientais; estereótipos dos orientais no Brasil; formação e atuação no tema das relações étnico-raciais. A construção das categorias foi feita com base nas similaridades temáticas presentes nos relatos de modo a permitir agrupamentos e discussões mais homogêneas sobre os conteúdos (Carlomagno & Rocha, 2016). Ao fim, selecionamos excertos de relatos dos entrevistados para exemplificar os conteúdos recorrentes em cada categoria.
O estudo faz parte de uma pesquisa maior,1 em andamento, que busca delimitar a contribuição da Psicologia, como profissão, na compreensão das relações étnico-raciais no Brasil, investigando a atuação de psicólogos brancos, negros e orientais sobre essa temática e no enfrentamento do racismo. Essa pesquisa foi aprovada no Comitê de Ética de Pesquisa do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
O presente artigo, de caráter ensaístico, apresenta os principais resultados obtidos no âmbito desta pesquisa maior no segmento de psicólogos orientais investigado.
Resultados
Autoclassificação e heteroclassificação de cor-raça-etnia
As entrevistas forneceram elementos sobre a identidade étnico-racial dos psicólogos orientais. Dentre as quatro psicólogas descendentes de famílias japonesas e famílias brancas ou negras, apenas uma se autodeclarou amarela, enquanto as outras três se autodeclararam branca, mestiça e "brasileira" [sic]. Já os dois psicólogos homens, descendentes de famílias japonesas, autodeclararam-se amarelos.
Apesar da variação em termos de autoclassificação, todos relataram que, quando a classificação étnico-racial advém de outra pessoa, processo conhecido como heteroclassificação, predomina sobre eles a denominação de orientais. Os trechos de entrevistas apresentados a seguir exemplificam como essa heteroclassificação, pautada no fenotípico, muitas vezes, se opõe e invalida a autoclassificação dos entrevistados:
A minha identidade sempre foi uma identidade brasileira, misturada, até porque minha família era miscigenada. [...] onde eu morei tinha pouco oriental, eles me achavam japonesa, tinha pessoas da escola que chamavam de "japa", "chinesa" [...] [mas] eu nunca me achei só japonesa [...] se eu falar que sou descendente de negro ninguém acredita, olha para mim e fala "não, você é descendente de japonês". (Entrevista 4, mulher, 35 anos)
É, então, já pensei nisso, mas eu... branca [...] eu tenho consciência desse olhar diferente [...] tem gente que chama de "japa" e tem gente que fala "mas você é mestiça?" (Entrevista 6, mulher, 46 anos)
[...] eu sempre fiquei nessa coisa do mestiço [...] mas geralmente quando tem que preencher cor [em algum questionário], eu ponho lá [cor] amarela [...] lá em [cidade onde nasceu] não tinha japonês [...] a gente era diferente, e as pessoas lidavam de uma maneira diferente [...] na hora que você falava "branca" [autoclassificação de cor-raça-etnia], [respondiam] "não, você não é branca, você é amarela, é oriental, japonês" [...] ai eu falava "ah, tá bom, então eu sou amarela". (Entrevista 7, mulher, 38 anos)
A entrevistada 8 destacou como a identidade étnico-racial dos mestiços é confusa para ela, ora se sentindo parte de um grupo, ora de outro, e sempre com alguma sensação de não pertencimento total, de estranhamento. Ela contou que: "Quando eu fiz o primário, me lembro no recreio de querer brincar com as meninas, elas falavam 'não, você não é daqui, você é japonesa, vai brincar com elas'. E eu chegava lá [no grupo das japonesas] e falavam 'não, você não é japonesa'. Então eu senti isso bastante (Entrevista 8, mulher, 60 anos).
As entrevistas mostram que a identidade étnico-racial de oriental é fortalecida, legitimada ou enfraquecida, dependendo da relação que a pessoa estabelece com os estereótipos adjudicados ao seu grupo de pertencimento étnico-racial. A identidade dos Nikkei (descendentes de japoneses) é fortalecida quando a pessoa se reconhece nos estereótipos estabelecidos no Brasil sobre os orientais, ou mesmo quando se identifica com valores e características da cultura japonesa. Na situação oposta, essa identidade é enfraquecida quando a pessoa não se vê dentro do estereótipo de um "oriental típico". A seguir apresentamos algumas falas que exemplificam ambas as situações.
Essa coisa responsável, séria, de se dedicar, que é comum no japonês, é um valor da cultura [...] quando eu fui para o Japão eu me identifiquei [...] acho que é mais uma questão cultural e de valores […]. (Entrevista 3, mulher, 59 anos)
Eu acho que eu reproduzi muito a expectativa, nesse ponto muito forte, a expectativa do meu pai, que era oriental, assim "tem que ir bem na escola" e ao mesmo tempo "o filho tem que ser obediente". Então eu sempre tive uma preocupação muito grande em ir bem na escola [...] nunca repeti de ano, sempre tirei notas altas. (Entrevista 8, mulher, 60 anos)
Eu tenho uma coisa de uma rigidez, que pode até ser lida como uma falta de jogo de cintura, mas uma rigidez, uma preocupação ética, em ser justa [...] imparcial [...]. Eu não sou alguém fluente, que tem oratória, minha mãe também [não] era [...] eu ligo isso à ascendência japonesa. (Entrevista 6, mulher, 46 anos)
Eu acho que minha raça é japonesa, mas acho que culturalmente eu me considero um ser meio híbrido [...] sou nascido no Brasil, e apesar dos meus pais serem japoneses [...] não me considero 100%, culturalmente como japonês. [...] eu não sou um japonês típico [...] tem uma percepção de como são os japoneses, os orientais: o cara quieto, sisudo, fala pouco [...] pela minha formação, meu jeito, é totalmente diferente. (Entrevista 5, homem, 44 anos)
Racialização dos orientais
Os entrevistados trouxeram relatos que evidenciam a racialização dos orientais no Brasil, por meio de apelidos e vocativos e na forma como o oriental é colocado como diferente no âmbito das relações sociais.
Eles estabeleceram vivências ambíguas com os apelidos que remetiam à sua aparência física e ascendência oriental, ora sentindo-se incomodados, ora familiarizados, ora apropriados de tais nomeações. Os trechos a seguir apresentam relatos nos quais os entrevistados se incomodaram com os apelidos que, em geral, surgiam como gozação acerca da aparência física.
Eram os brasileiros [na infância], xingavam a gente, falavam "o japonês", puxavam os olhinhos. [...] no caminho até a padaria eu ia ser abordado por alguém que ia me chamar de japonês garantido "nô", "arigatô". Não era assim ofensivo, mas era gozador. (Entrevista 1, homem, 70 anos)
Teve uma época que isso incomodou, eu tinha colegas muito próximas, amigas [...] começavam a me chamar no corredor "o japa!", isso começou a me incomodar. (Entrevista 4, mulher, 35 anos)
Eu já tive quando eu era criança [...] um apelido no acampamento que era o fim, que era "china bigode". (Entrevista 6, mulher, 46 anos)
Apesar do incômodo, duas entrevistadas se mostraram familiarizadas e até se apropriaram dos apelidos.
Às vezes eu falo aos meus sobrinhos "ah, cadê meu japa?", "vem cá, japonesa, com a madrinha", minha filha é loira, eu falo "cadê minha japa loira?". Mas sempre de uma maneira carinhosa [...] sabia que estavam zoando às vezes [na escola quando chamavam de "japa"], mas não tinha um efeito do tipo "nossa..." [algo que incomodava]. (Entrevista 7, mulher, 38 anos)
Um termo que eu acho horroroso [...] "japoronga". Eu chamo ele [marido] de japorongo, meio piada assim. (Entrevista 6, mulher, 46 anos)
Essas falas mostram como os apelidos "japa" ou "japoronga" são evocados por outras pessoas, muitas vezes, com o sentido de brincadeira ou piada e apropriados pelos entrevistados para referirem-se a si mesmos e aos outros orientais, utilizando-os, muitas vezes, como forma de se referenciar e como manifestação de carinho. A entrevistada 7 contou que esse movimento de apropriação foi importante para que ela não recebesse os apelidos de forma ofensiva, e sim carinhosa, apesar de perceber seu caráter gozador.
Também foram relatadas situações em que o oriental é apontado ou colocado como alguém que se diferencia dos demais, do grupo ou da situação. Os trechos a seguir expressam essas situações.
Tinha uma questão de, como eu era diferente, ter um negócio de "ai, que bonitinha, olha o cabelo dela preto" [...] de uma certa maneira eu acabei sendo muito paparicada. (Entrevista 7, mulher, 38 anos)
[...] em contato às vezes com equipe de trabalho [...] então, por exemplo, "ah, você vem de família japonesa né, então você chega de tal jeito." [...] já apareceu isso lá na formação que a gente dá para educadores. Então "ah, porque na cultura japonesa é assim?", ou "lá no Japão a educação é de tal jeito?". (Entrevista 2, mulher, 31 anos)
Tais situações apresentam uma diferenciação no âmbito das relações sociais que se dá muito diretamente pelo fenótipo. Com base na neutralidade étnico-racial construída ao redor da identidade das pessoas de cor de pele branca, as pessoas com fenótipo não branco são imediatamente racializadas em suas relações. Já os descendentes de famílias de imigrantes da Europa e Oriente Médio, por exemplo, embora também carreguem características fenotípicas de sua ancestralidade (italianos, espanhóis, portugueses, russos, turcos, árabes, israelenses) são incluídos no Brasil na categoria de pessoas de cor de pele branca.
Para exemplificar melhor esse ponto, basta retomar a situação relatada pela entrevistada 2 e imaginar uma mulher descendente de família italiana em vez de japonesa. O grau de proximidade com o país de origem da família é o mesmo, por exemplo, ambas pertencem à terceira geração da família no Brasil. A racialização da descendente de japoneses e a não racialização da descendente de italianos produz um comentário como "lá no Japão a educação é de tal jeito?". O que é improvável de ocorrer com uma descendente de italianos. Esta dificilmente escutaria um comentário como "lá na Itália a educação é de tal jeito?".
Estereótipos dos orientais no Brasil
Os entrevistados conseguiram recuperar alguma situação em que os estereótipos da inteligência, da competência, da seriedade e da dedicação acima da média foram evidenciados por meio de comentários ou atitudes de outras pessoas, como exemplificam os relatos a seguir.
[...] eu lembro meu primeiro dia de trabalho no [banco] cheguei lá de terno, gravata e óculos, entrei na sala, era um departamento enorme, e todo mundo ficou em silêncio de repente, com uma expressão séria e eu pensei "nossa o que aconteceu?". Aí eu vim a descobrir depois que os caras falaram "chegou o japonês da auditoria". Eles acharam que eu era da auditória e todo mundo focou no trabalho. (Entrevista 5, homem, 44 anos)
[...] os japoneses têm [...] uma certa imagem de seriedade, de ser inteligente, aquelas coisas assim de "se quer garantir vaga [passar no vestibular] você mata um japonês". (Entrevista 3, mulher, 59 anos)
Há expectativas em relação ao oriental, uma expectativa sempre muito forte em relação às ciências exatas, desde o início da educação infantil. "se é oriental, tem que ser bom em matemática" ou "sendo oriental vai ter dificuldades em língua portuguesa". E veja como eu caio nessa, minha neta que tem 4 anos, ela faz continha já de cabeça [...] e eu falo "é [sobrenome japonês] mesmo!". É brincadeira, obviamente eu não acredito nisso, mas para ver como a gente acaba reproduzindo esses estereótipos. (Entrevista 8, mulher, 60 anos)
[...] em relação a japonês, por exemplo, eu já acho de antemão que é bom. Então, por exemplo, eu vou escolher um médico no livrinho do plano [de saúde], até se calhar a especialidade com o lugar do consultório eu já vou com "ah, tem um nome japonês". (Entrevista 6, mulher, 46 anos)
As entrevistadas 8 e 6 mostram que os estereótipos não vêm apenas dos outros, também são reproduzidos por elas.
Relatos de entrevistados que foram procurados por clientes ou pacientes orientais, devido à ascendência, sugerem ainda que os estereótipos de seriedade e competência incidem sobre os integrantes desse grupo e são, muitas vezes, propagados dentro dele. Os entrevistados, contudo, não levantaram essa possibilidade e consideraram essa procura direcionada para um profissional oriental impulsionada por uma identificação étnico-racial e cultural entre os descendentes de japoneses ou por uma preferência em manter a rede de relações dentro da comunidade. Segundo o entrevistado 1: "A gente está inserido aqui, né [na comunidade]. Então eu tenho vários pacientes descendentes de japoneses". Tal afirmação vem ao encontro do estudo de Hatanaka (2002), que constatou que o modo de organização dos imigrantes japoneses quando chegaram ao Brasil, em associações, colônias e comunidades, contribui para fortalecer os laços e as redes de relações internas desse grupo, sendo reproduzido até hoje.
Seja por identificação étnico-racial, seja por estar inserido na colônia, ou seja ainda por acreditar na competência e na seriedade, a preferência por profissionais orientais foi notada por todos os psicólogos entrevistados que fazem ou já fizeram atendimento clínico, como exemplificam os trechos abaixo.
A minha mãe era psicóloga clínica, tinha o sobrenome do meu pai, japonês, então às vezes quando aparecia um ou outro japonês perdido na nossa cidade vinham pelo sobrenome, só que aí levavam um susto porque não encontravam uma japonesa. (Entrevista 7, mulher, 38 anos)
Aqui no consultório já recebi orientais que me procuraram porque eu era uma psicóloga oriental [...] "eu vim porque foi indicação". Aí você vê que o rol de profissionais que indicavam eram [sic] de orientais, médico, geriatra [...] tem isso da colônia oriental [...] existe uma aceitação maior entre os orientais [...] Porque é nítido que essa afinidade acontece. (Entrevista 4, mulher, 35 anos)
Os entrevistados também assinalaram que a paridade étnico-racial e cultural facilitou o trabalho na clínica com alguns pacientes ou em trabalhos conjuntos com outros profissionais orientais, como exemplificam os relatos a seguir.
[...] eu fiz acompanhamento terapêutico escolar de um menino oriental, essa proximidade cultural fez muita diferença na leitura clínica, na possibilidade [...] de eu reconhecer algumas estereotipias que se assemelhavam a palavras em japonês [paciente autista] [...] Teve outro caso também [...] era uma família de descendentes de japoneses, então tinha uma identificação nesse sentido [...] os pais vinham e falavam de um lugar parecido. (Entrevista 2, mulher, 31 anos)
[...] é diferente atender um idoso que está há muitos anos no Brasil, mas fala japonês, a aproximação cultural é mais forte do que um profissional não japonês [...] o fato de eu saber japonês, de eu entender a cultura, fica mais fácil a aproximação de vínculo [...] "ela entende minha cultura, ela sabe da minha identidade". (Entrevista 4, mulher, 35 anos)
Os estereótipos aparentam ser positivos, preconcebendo o grupo de orientais como pessoas sérias, inteligentes e aplicadas. Contudo, alguns entrevistados trouxeram situações em que tais atributos adquirem caráter indesejado, principalmente nas relações de trabalho, como exemplificado a seguir.
"ah, só podia ser uma japonesa sistemática, chata, de querer tudo certinho" [...] numa sutileza ou outra, você vê um comentário do tipo "é japonesa mesmo, então é chata", se eu vou implicar ou vou reclamar de alguma coisa. (Entrevista 7, mulher, 38 anos)
[...] quando eu entrei [no trabalho atual], ele [outro funcionário] me olhou e falou "ferrou" para as meninas que trabalham aqui [...] "o cara é japonês [...] "meu último chefe era japonês, era carne de pescoço, terrível, duro, exigente, nunca deu um sorriso, não tem vínculos afetivos e emocionais, só cobrança" [...]. Então quando eu entrei aqui ele ficou impactado negativamente. (Entrevista 5, homem, 44 anos)
Nessas situações, os efeitos dos estereótipos são mais nítidos. Os atributos de dedicação e seriedade são facilmente convertidos em rigorosidade, inflexibilidade e exigência exacerbada.
A entrevistada 4 descreve outro efeito indesejado desses estereótipos. Ela contou como se sentiu incomodada quando percebeu que suas ações, bem-sucedidas e avaliadas ao olhar externo, ultrapassavam a sua pessoa e eram atribuídos não ao seu esforço e capacidades pessoais e adquiridas, mas sim à sua ascendência oriental. Afirmou ter escutado comentários de colegas de trabalho como: "você faz porque você é japa"; "ah você é japonesa, então não leva bronca"; "você faz as coisas direito porque é japonesa". Diante desses comentários refletiu: "Faço as coisas direito porque acho que as coisas têm que ser feitas de maneira correta, nada a ver com eu ser japonesa ou não", e concluiu: "eu não acho que a minha eficiência e competência na hora de fazer os trabalhos devem estar atreladas a minha raça ou a minha origem".
As situações relatadas pelos entrevistados permitem pensar no caráter permanente dos estereótipos que envolvem os orientais no Brasil. O entrevistado 5, por exemplo, relatou comentários que ouviu de conhecidos e colegas que evidenciam esse caráter permanente. Ao se depararem com uma pessoa que não se reconhece no estereótipo do "oriental típico", ou seja, não se considera rígido, dedicado e "certinho", o entrevistado 5 foi colocado como sendo uma exceção. Ele teve de ouvir comentários como "o japonês mais negro que a gente conhece aqui" e vivenciar situações como a relatada a seguir.
[...] tem uma percepção de como são os japoneses, os orientais, o cara quieto, sisudo, fala pouco, e pela minha formação, meu jeito, é totalmente diferente. E isso causa muitas vezes um estranhamento, do tipo "mas... você é mesmo japonês?" [...] como uma brincadeira, do tipo "você é um falso japonês, porque japonês não é assim". (Entrevista 05, homem, 44 anos)
Formação e atuação no tema das relações étnico-raciais
As entrevistas mostram que o tema das relações étnico-raciais está presente na atuação desses profissionais, apesar de ter sido pouco abordado durante sua formação como psicólogos. Metade dos entrevistados, em geral os mais velhos, não se recordou de nenhum momento no qual o tema tenha sido abordado na graduação em Psicologia. Já a outra metade dos entrevistados, mais jovem, contou que teve contato com o tema durante a graduação, mas de forma pontual, periférica e diluída em discussões sobre identidade e diferenças culturais.
Não, não tinha nada [sobre raça, etnia]. Aliás o curso era bastante teórico [...] ainda mais por ser na época da repressão, esses temas mais sociais e políticos eram praticamente inexistentes. (Entrevista 3, mulher, 59 anos)
Tive uma disciplina, Psicologia das Massas [...] um professor trabalhou essa questão da identidade étnica, de raça [...] a gente teve um pouquinho disso numa disciplina na graduação, mas acho que desencadeado por essa coisa da identidade [...] essa coisa de raça sempre permeou algumas disciplinas, essa foi uma que o professor deu esse encaminhamento da Psicologia das Massas. (Entrevista 4, mulher, 35 anos)
Na graduação [...] a gente discutia a questão da violência doméstica, então às vezes eram temas que entravam: a questão de raça, da mulher, gênero, entrava por aí [...] depois isso foi visto na época do mestrado [...] temas de "vamos ver como a gente lida com a diferença", era uma coisa ou outra que aparecia, mas nada muito específico ou focado, muito diluído nas aulas das disciplinas. (Entrevista 7, mulher, 38 anos)
Talvez algo na disciplina de diferenças [...] Eu acho que nessa disciplina talvez tenha tido, mas não sei se especificamente sobre isso [raça, etnia] [...] Diretamente acho que não. São ideias que acabam sendo presentes na formação, mas oficialmente eu acho que não, não me recordo. (Entrevista 2, mulher, 31 anos)
[...]. Eu não sei identificar se foi em uma matéria, certamente no âmbito da Psicologia Social em algum momento, mas nada muito profundo, se não eu lembraria. Nunca numa questão do tipo "O que isso influencia? O quanto isso impacta?", eu não lembro de ter debatido isso profundamente [...] debate da academia mesmo, pouquíssimo. (Entrevista 5, homem, 44 anos)
Os entrevistados destacaram situações em que o tema das relações étnico-raciais se fez presente em sua atuação profissional, seja no atendimento clínico, em aula, seja no trabalho em equipe. Em geral, identificaram situações relacionadas ao racismo, preconceito e discriminação das pessoas de cor de pele negra. Mas também trouxeram situações em que a racialização e os estereótipos dos orientais emergiram. Os relatos a seguir exemplificam ambas as situações.
[...] lidar com o tema [relações étnico-raciais] é delicado [...] tenho problema para dar aula quando estou falando disso, meu olho vai diretamente para os alunos negros. Meio preocupada com a reação deles, eles quase não intervêm na aula quando o assunto é esse [...]. Essas aulas eu sei que causam um incômodo, tanto para brancos, para todos, para mim também. E aí tem uma coisa que fica assim mais bizarro que é uma japa [como professora]. (Entrevista 6, mulher, 46 anos)
[...] percebo, às vezes, quando uma aluna negra faz uma colocação muito boa um certo ar de surpresa. Ou quando tem uma aluna oriental que fala muito na sala de aula, as pessoas olham com um "nossa, você fala tanto, nem parece japonesa!". (Entrevista 8, mulher, 60 anos)
Eu lembro que [no consultório] tinha até um sentimento de me sentir meio ofendida, tipo eu lembro de um rapaz falando que um amigo estava namorando uma mestiça [filha de família oriental e família branca] e que ele achava um absurdo. (Entrevista 7, mulher, 38 anos)
[...] a maioria dos abrigos [onde trabalhou], a maioria era de negros, o discurso que se forma sobre isso [...] "ele é branquinho, vai ser adotado logo". Tem uma discursividade montada aí sobre práticas que reforçam a todo momento esses lugares. (Entrevista 2, mulher, 31 anos)
Ela [uma paciente] é negra, de família de negros e ela namorou um rapaz que não era negro, filho de fazendeiros, de uma certa posse, quando ela falou que estava grávida, o cara sumiu [...] possivelmente o pai da criança abandonou por causa disso, da não aceitação de um casamento com uma negra […]. (Entrevista 1, homem, 70 anos)
Apesar de terem destacado situações como as relatadas, chamou atenção o fato de muitos entrevistados demonstrarem estranhamento ou incômodo com os termos utilizados para abordar as relações étnico-raciais, sobretudo, com o termo raça. Notou-se certa dificuldade em falar abertamente sobre as relações étnico-raciais e muita preocupação em manter uma postura "politicamente correta". O que pode evidenciar uma lacuna na formação desses profissionais e que eles não se sentem preparados para lidar e intervir com demandas relacionadas ao tema.
Os entrevistados 1 e 3, por exemplo, fizeram relatos que revelam a dificuldade e incômodo de entrar em contato com tais demandas e acolher, nomear e dar sentido para as situações trazidas por seus clientes e pacientes, como exemplificado a seguir.
Eu tive um berçário/pré-escola quase 15 anos, nós tínhamos uma secretária que era negra, ela tinha essa consciência [étnico-racial] muito forte. Mas era um problema, porque toda vez que você ia colocar "olha, não é para fazer assim, é para fazer acolá", ou apontar alguma coisa que ela não estava fazendo bem, ela atribuía: "você está falando isso porque sou negra?". E a gente falava assim: "não é nada disso, é que você não está fazendo direito, independente se é negra ou não" [...] Mas ela levava isso o tempo todo assim. (Entrevista 3, mulher, 59 anos)
[...] tive um caso de um rapaz negro que sentia problemas de discriminação... tinha até dificuldade em namorar com a pessoa que ele queria, porque as moças... tinham moças que não o aceitavam por causa disso.[...] Aí [a intervenção] é mais por depressão, ele tinha crises de depressão, mas não era especificamente por... [cor ou raça-etnia]. (Entrevista 1, homem, 70 anos)
Nota-se que, embora o entrevistado 1 seja capaz de perceber como o pertencimento étnico-racial de uma pessoa, no caso um cliente de cor de pele negra, influencia nas suas relações sociais, não consegue trabalhar clinicamente com essa dimensão identitária, atribuindo o sofrimento do cliente a fatores pessoais.
Discussão
Os resultados da análise de conteúdo das entrevistas apontam para a racialização dos orientais no Brasil, ou seja, como suas relações interpessoais e profissionais podem ser mediadas pela diferença fenotípica. Tal racialização acontece devido a uma marcação de alteridade condicionada por traços físicos herdados da ascendência japonesa, como os olhos puxados, a baixa estatura e os cabelos lisos e escuros. Também se revela por meio de apelidos e vocativos, na forma diferenciada com que os orientais são tratados e por meio dos estereótipos que lhes são atribuídos.
Os resultados também fornecem elementos para compreender como possivelmente se constrói a identidade étnico-racial dos orientais, que se mostrou em parte delimitada pela definição do outro e em parte constituída a partir da identificação com valores atribuídos aos descendentes de imigrantes japoneses no Brasil.
Lesser (2001) chama atenção para a aculturação pela qual passaram os imigrantes japoneses no Brasil, a partir da qual os descendentes se reconhecem em dois grupos: japoneses e brasileiros. Eles se sentem e se nomeiam brasileiros, mas no cotidiano são interpelados em relações sociais que os diferenciam. Sobre isso Suda e Souza (2006, p. 79) notam que
A denominação "japonês" revela a identidade atribuída a qualquer descendente, e a ela estão associadas várias exigências: quando seguem à risca o estereótipo do japonês, surgem críticas por serem "muito japoneses", sugerindo que sejam mais flexíveis em sua conduta; quando procuram se pautar pelas regras culturais e de comportamento dos brasileiros, são pressionados a serem "mais japoneses".
Independentemente da forma como cada entrevistado constitui sua identidade étnico-racial, todos se veem carregando, por conta do fenótipo, expectativas do mundo externo a respeito do seu comportamento e qualidades.
Apesar de os entrevistados demonstrarem incômodo em relação aos estereótipos que lhes são atribuídos, poucos se permitem sentir ou expressar tal incômodo, o que pode evidenciar que a racialização do oriental, além de naturalizada, é aparentemente inofensiva, uma vez que o pertencimento étnico-racial não gera desigualdades e que os estereótipos são considerados "positivos".
Os estereótipos fazem parte das relações étnico-raciais no Brasil e são potencialmente produtores de sofrimento. Taylor, Landreth e Bang (2005) e Santos e Acevedo (2013) defendem que os estereótipos aparentemente positivos podem impactar negativamente os orientais que não seguem os estereótipos adjudicados ao grupo, sentindo-se pressionados a moldarem seu comportamento, sua personalidade e seu desempenho.
O estudo forneceu elementos para compreender que os estereótipos associados ao pertencimento étnico-racial e cultural oriental podem ter influência sobre a atuação dos profissionais entrevistados, localizando-os em determinados lugares sociais e criando expectativas sobre seu comportamento social e desempenho intelectual. Os achados do estudo confirmam, por conseguinte, os argumentos de Guimarães (2003) e Schucman (2010) de que o discurso classificatório feito com base na raça-etnia imputa as pessoas pertencentes a determinados grupos étnico-raciais qualidades, características e essências supostamente transmitidas hereditariamente.
Uma limitação do estudo foi o fato de o grupo investigado não compor uma amostra probabilística estrito senso dos psicólogos orientais da cidade de São Paulo, mas apenas uma fotografia, ainda que parcial, dessa população, em uma tentativa de expressar sua riqueza em termos de faixa etária (entre 31 e 70 anos de idade), sexo (homens e mulheres) e áreas de atuação (clínicas particulares, hospitais, escolas de ensino médio, recursos humanos de empresas e ensino de Psicologia em faculdades). Nesse sentido, os resultados descritos devem ser tomados mais como elementos capazes de subsidiar a compreensão acerca de algumas concepções sobre relações étnico-raciais dos entrevistados do que propriamente como afirmações finais sobre como psicólogos orientais da cidade de São Paulo concebem tais relações.
O estudo se propôs a focalizar um grupo, muitas vezes, ofuscado na discussão das relações étnico-raciais no Brasil, procurando avançar na compreensão de sua complexidade no âmbito do contexto brasileiro e estimular o olhar para uma realidade ainda pouco investigada no âmbito da atuação dos psicólogos, ao incluir o sofrimento de todo e qualquer grupo ou indivíduo racializado.
Como em outros estudos (Cheung, Fiske, Lin & Kwan, 2005; Schucman 2014; Santos & Schucman, 2015), os achados apontam para a importância de se estimular a análise da categoria raça-etnia para que possamos compreender melhor como ela interfere na dinâmica da identidade e na perpetuação de estereótipos. Dessa forma, pôde-se perceber a importância dessa discussão para os psicólogos, no sentido de procurarem cada vez mais abrir-se e sensibilizar-se ao tema, acolhendo e trabalhando com o sofrimento advindo dos estereótipos de cunho étnico-racial, e minimizando os efeitos psicossociais dele decorrentes.
Referências
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Enviado em 09/09/2016
Aprovado em 11/04/2018
1 O estudo "Atuação de psicólogos no tema das relações étnico-raciais" está sendo realizado desde 2013 na cidade de São Paulo, sob a coordenação de Alessandro de Oliveira dos Santos e conta com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - Fapesp (Processo 2013/11199-2).