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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.14 no.1 São João del-Rei jan./mar. 2019
Música: formando tribos, constituindo identidades sociais
Music: forming tribes, constituting social identities
Música: formando tribos, constituyendo identidades sociales
Robson Kleber de Souza MatosI; Rosemberg Cavalcanti BelemII
IPsicólogo do Complexo Hospitalar da Universidade de Pernambuco. Formado pela Universidade Federal de Pernambuco. Especialista em Saúde Mental pelo Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental da Universidade Estadual de Montes Claros
IIPsicólogo e mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Psicólogo na Secretaria de Educação do estado de Pernambuco e na Secretaria de Saúde da cidade do Recife, como Psicólogo do Consultório na Rua
RESUMO
Neste trabalho investigou-se em que medida a construção da identidade social está relacionada à escolha de um determinado seguimento musical por jovens de uma tribo. Com esse objetivo, buscou-se ainda refletir sobre outras questões a esta relacionada, a saber: como se dá o processo de integração a uma determinada tribo por esses jovens? Como eles, por meio de seu grupo, constroem representações dos demais grupos, do seu próprio grupo e de si mesmo? De que forma se dá as práticas sociais desses indivíduos - tanto ingroup, quanto outgroup? Para atender tais objetivos, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com diferentes sujeitos de algumas tribos musicais, que posteriormente foram analisadas qualitativamente por meio de categorias de análise temáticas baseadas na Teoria da Identidade Social de Tajfel e que mostraram como a música pode funcionar como compositora de tribos urbanas e consequentemente de identidades sociais.
Palavras-chaves: Música. Tribos urbanas. Identidades sociais.
ABSTRACT
In this work we investigated to what extent the construction of the social identity is related to the choice of a certain musical follow-up by young people of a tribe. Through this objective, we look for to reflect on other issues related to it, namely: how does the process of integration of a particular tribe by these young people take place? How do they, through their group, construct representations of the other groups, of their own group and of themselves? How do you give the social practices of these individuals - both in the ingroup and in the outgroup? To meet these objectives, semi-structured interviews with different subjects of some musical tribes were carried out, which were later analyzed qualitatively through thematic analysis categories based on Tajfel's Social Identity Theory and which showed how music can function as a composer of urban tribes and consequently of social identities.
Keywords: Music. Urban tribes. Social identities.
RESUMEN
En este trabajo se investigó en qué medida la construcción de la identidad social está relacionada con la elección de un determinado seguimiento musical por jóvenes de una tribu. A través de ese objetivo, se buscó aún reflexionar sobre otras cuestiones a esta relacionada, a saber: cómo proceso de integración a una determinada tribu por esos jóvenes? Como ellos, a través de su grupo, construyen representaciones de los demás grupos, de su propio grupo y de sí mismo? ¿De qué forma se dan las prácticas sociales de esos individuos - tanto en el ingroup, como en el outgroup? Para atender tales objetivos se realizaron entrevistas semiestructuradas con diferentes sujetos de algunas tribus musicales, que posteriormente fueron analizadas cualitativamente a través de categorías de análisis temáticas basadas en la Teoría de la Identidad Social de Tajfel y que mostraron cómo la música puede funcionar como compositora de tribus urbanas y consecuentemente de identidades sociales.
Palabras claves: Música. Tribus urbanas. Las identidades sociales.
Introdução
Há muito tempo a música está presente nas mais diversas formas de expressão cultural do homem e é fundamental, não só por uma óptica técnica, mas também sob uma perspectiva social mais ampla. Pinto (2001), em seu estudo sobre questões da antropologia sonora, afirma que a música deve, em primeiro lugar, para além de elementos estéticos, ser considerada como uma forma de comunicação que tem, igualmente a qualquer tipo de linguagem, seus próprios códigos. Com efeito, em seu livro The Anthropology of Music, fundamental para a abordagem antropológica da música, Merriam (1964) defende que a música é um fenômeno que existe unicamente em termos de interação social, feito de pessoas para outras pessoas. Um comportamento socialmente aprendido que possibilita uma forma simbólica de comunicação na inter-relação entre indivíduo e grupo.
Destaca-se, entre esses aspectos, o poder da música como instrumento de "tribalização", funcionando como objeto socializante na formação de grupos. Esses grupos possibilitam para seus membros um forte vínculo de afetividade e sociabilidade, bem como características que propiciam o nascimento de uma identidade baseada em características compartilhadas por eles. Portanto, entendendo a necessidade de estudos com enfoque nessa perspectiva mais abrangente de música, que está presente na vida e no cotidiano das pessoas, buscou-se neste trabalho investigar em que medida a construção da identidade social está relacionada à escolha de um determinado seguimento musical por jovens de uma tribo.
O que toca as tribos urbanas
A realidade do tribalismo está aí, cegante, para o melhor e para o pior. É uma realidade incontornável e não está limitada a uma área geográfica particular. Ainda há muito o que se pensar sobre isso.
(Maffesoli, 2007, p. 98)
As sociabilidades juvenis têm sido objetos de estudos em diversos contextos. Iniciado em 1970, a consideração das culturas juvenis como "efeitos de sociabilidade" (Costa, 2003) ganhou corpo por meio dos esforços do Centro de Estudos Culturais Contemporâneos da Universidade de Birmigham (CCCS) para entender a subcultura da jovem classe trabalhadora surgida após a Segunda Guerra Mundial, bem como seus estilos e atividades (Freire Filho, 2005). Considerando a importância da evolução e dos contrapontos desses estudos para entendimento da relação entre jovens, identidades e música, será feita uma digressão a fim de apresentar algumas perspectivas que servem de base para o estudo das práticas culturais e dinâmicas identitárias contemporâneas.
Como dito, espalhavam-se após a Segunda Guerra Mundial diversos grupos juvenis que serviram de base para os estudos das subculturas realizados pelo CCCS - mods, rocks, rastafáris, skinheads, etc. O que estava em pauta nesses estudos era como tais jovens inseridos nesses grupos lidavam com a ordem social - fosse para forjar, por intermédio do grupo, uma aceitação à ordem, fosse, igualmente por meio do grupo, para encorajar os estratos subordinados a resistir à opressão, contestar ideologias e estruturas de poder conservadora. A intenção do CCCS era de ressignificar o conceito mercadológico da cultura juvenil, fornecendo, em vez disso, um retrato mais meticuloso das raízes sociais, econômicas e culturais das várias subculturas juvenis, bem como das suas relações com as divisões de trabalhos e de produção, sem, no entanto, descartar as questões etárias e geracionais (Freire Filho, 2005; Freire Filho & Fernandes, 2006).
Apesar do caráter pioneiro e da importância dos estudos subculturais do CCCS, a partir de 1990 tais estudos passaram a conviver com diversas críticas, elencadas por Freire Filho e Fernandes (2006). Dentre tais críticas destacam-se a ênfase dada na abordagem do estilo visual, quase elaborando uma taxonomia de estilos e maneirismos dos grupos, em detrimento da análise da função das atividades e do consumo musical. Também surge como crítica a opção por pronunciamentos teóricos mais generalizantes e a recusa em examinar o que as subculturas de fato fazem e quais os significados dessas atividades para os próprios jovens.
No esteio dessas críticas, surgem os estudos pós-subculturais, cujo principal objetivo é "reavaliar a relação entre jovens, música, estilo e identidade, no terreno social cambiante do novo milênio, em que fluxos e subcorrentes locais se rearticulam e reestruturam de maneira complexa, produção novas e híbridas constelações culturais" (Weinzierl & Muggleton, 2003, p. 2). Os estudos pós-subculturais têm como principais marcos teóricos a sociologia do gosto de Bourdieu (2007), a teoria da performidade de Butler (2011, 2013) e o conceito de tribalismo de Maffesoli (1987). Com tais marcos teóricos, novas terminologias ganham terreno (cenas; canais; comunidades emocionais; estilos de vida; neotribos) em substituição ao conceito de subcultura. Tendo em vista a impossibilidade de abordar, neste artigo, as diversas terminologias e conceitos supracitados, optar-se-á pelo uso do conceito de tribalismo ou neotribalismo juvenil, conforme proposto pelo sociólogo francês Michel Maffesoli, usando-o como base para a análise da relação entre música, tribos urbanas e identidades sociais.
Dito isso, Maffesoli (1987), em seu seminal estudo sobre tribos chamado O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades em massa, cunhou o termo tribos urbanas para designar os grupos - na maioria das vezes compostos por jovens - "desestruturados", controversos e subversivos que permeavam a realidade social contemporânea. Como pontua Pais (2004), não por acaso, a palavra tribo é um elemento de composição de palavras que exprime a ideia de atrito (do grego tribé), isto é, a resistência de corpos que se opõem quando se confrontam. Essa dimensão de resistência grupal, substantivamente ligada à ideia de atrito, encontra-se presente no fenômeno das tribos urbanas.
Maffesoli (2007) indica que esse fenômeno é uma decorrência da pós-modernidade, sendo por intermédio dessas tribos que os indivíduos reagiriam face à anemia suscitada por um social demasiado racionalizado, representando a urgência de uma sociedade empática: partilha das emoções, partilha dos afetos. Para entender um processo decorrente da pós-modernidade, é necessária uma pequena digressão para explicar o que é a modernidade e quais suas vicissitudes.
A modernidade foi um projeto de cultura iniciado na Europa entre o Renascentismo e o século XVII, quando o sujeito passou a se centrar no eu e na consciência, apoiado, primordialmente, na teoria Cartesiana. Nessa realidade, a construção da individualidade passou a ser eminentemente narcísica, no sentido de que o indivíduo é particularmente insensível a compromissos com ideias de condutas coletivamente orientados; nessa concepção o homem é o centro de tudo.
Hoje se vive em um tempo em que a modernidade é alvo de críticas, no qual esse Eu centrado na razão é posto em questão. Vivemos em uma era pós-moderna, que presencia o fracasso desse sujeito moderno centrado no Eu, fazendo com que eles se sintam "desalojados" em relação à sua própria identidade. Em uma acepção psicanalítica desse fenômeno, Freud argumenta no Mal-estar da civilização que o preço pago pelo sujeito por apostar na modernidade é o desamparo. Como mostra Jurandir Freire Costa (1999), o eu desamparado é a versão deflacionária da farsa narcísica do eu triunfante. Em outros termos, quando a modernidade traz a ideia do homem como centro do mundo, com a imagem de um eu senhor de si mesmo, dotado de poder e de consciência, a psicanálise, em contrapartida, responde com a ideia de um eu precário, fadado à incompletude, ao mal-estar e à constante procura do Outro para remediar o seu desamparo.
Dessa maneira, o neotribalismo juvenil corresponderia a uma espécie de resposta a esse desamparo, a essa sociedade fragmentada, fria, individualista, competitiva e burocrática. A vivência no interior das tribos abre aos jovens a possibilidade de um encontro afetivo, passional, bem como criação de um espaço de dissidência e de um canal simbólico de expressão identitária (Maffesoli, 2007).
As tribos seriam um meio pelo qual os sujeitos poderiam "combater" a impessoalidade e anonimato dessas sociedades, permitindo aos seus membros a criação de um sentimento de pertença, de vínculos de sociabilidade e laços pessoais, assim como códigos de comunicação e comportamentos particulares.
Falando em outros termos, se os indivíduos que integram algumas tribos urbanas se distanciam de determinados padrões sociais, não é propriamente com o objetivo de se isolarem de tudo que os rodeia, mas para se reencontrarem com grupos de referências mais próximos dos seus ideais. Como consequência das dificuldades de preservarem a sua diferença nas tramas da sociedade convencional, investem-se em redes relacionais de proximidades que recriam novas cenas urbanas e de filiações social, sendo essas suas principais diferenças em relação a outros grupos de pares de natureza contratual: as tribos expressam formas específicas de sociabilidades. É, pois, em formas de sociabilidade e formações de identidade que devemos pensar quando falamos de tribos urbanas, sociabilidades que se orientam por normas autorreferenciais de natureza estética e ética e que se assentam na produção de vínculos identitários (Pais, 2004).
Já designado o surgimento e a concepção das tribos urbanas, alguns questionamentos podem ser feitos. O que une esses grupos? Qual o "elemento ligador" que faz com que tantas pessoas se aglutinem ao redor de uma (ou algumas) causa/causas comum? Nesse sentido, Maffesoli (1987) destaca que esses agrupamentos não se dão em função de uma de estrutura organizacional política,1, corporativa, estruturada, mas sim em virtude de afinidades. Uma dessas afinidades que está presente na imensa maioria dessas tribos - e é nesta que este trabalho se focará - é a dos gostos musicais.
Música, compondo tribos e identidades sociais
É crescente o número de pessoas que se unem por meio da música; formando grupos, ou as chamadas tribos, criando, assim, meios de sociabilidade, definindo valores, códigos, regras e referências identitária. Atualmente uma tribo urbana bastante difundida e facilmente identificada devido a suas vestimentas e seus penteados peculiares é a dos Emocores, surgida no fim dos anos 1980 nos EUA, cujo ápice se deu no Brasil a partir de 2003. Mas esse fenômeno não é algo recente, visto que a influência da música na formação de identidade e no comportamento das pessoas pode ser observada na beatlemania, ocorrida durante a década de 1960, que influenciou milhões de jovens ao redor do mundo de uma forma nunca antes vista.
Percebe-se que a música é um instrumento importante na vida de diversas pessoas, servindo de base para diferentes propósitos e interesses. A escolha de um determinado gênero musical é preponderante na configuração da identidade pessoal e social de alguns jovens. Janotti Jr (2003) ao falar sobre como se dá a formação e as escolhas de determinados gêneros musicais na cultura massiva pontua que, embora aspectos mercadológicos estejam marcadamente presentes na constituição desses gêneros, estes não descrevem somente quem são os consumidores potenciais, mas também o que esses produtos significam para eles. Na formação e escolha de determinado gênero musical, estão presentes três aspectos básicos, defende o autor: regras econômicas, que envolvem as relações de consumo; regras semióticas, que envolvem as estratégias de produções de sentido e às expressões comunicacionais do texto musical e, por fim, as regras técnicas e formais, como as convenções de execução e habilidades que cada gênero supõe.
Outrossim, Sá e Janotti Jr. (2013) ressaltam a importância de trazer a noção de cena, bem como a oposição entre essa noção e a ideia de comunidades musicais. Enquanto comunidades musicais define um grupo estável cujo envolvimento com música tem por função tomar a forma da exploração de idiomas musicais enraizados geográfico-historicamente, a noção de cena remete a um grupo demarcado por um espaço cultural no qual coexistem práticas musicais de forma múltipla, por meio de variadas formas de trocas. De um lado, nas comunidades, trabalha-se a favor da estabilização de uma tradição musical, do outro, nas cenas, busca-se um diálogo cosmopolita e relativizador e que tem na mudança seu cenário mais importante (Sá & Janotti Jr, 2013).
A ideia de cena musical, portanto, não contrapõe a noção de tribalismo apresentado por Maffesoli, mas a complementa e põe em jogo a noção de espaço urbano no compêndio de conceitos que envolve as pesquisas musicais. Conforme definido por Stahl (2014, p. 56), citado por Freire Filho (2009), cena musical seria caracterizada como "um tipo específico de contexto cultural urbano e prática de codificação espacial - que oferece meio diferenciados para compreender complexos circuitos, afiliações, redes e pontos de contato que informam as práticas culturais e as dinâmicas identitárias dos grupos juvenis, no contexto dos espaços urbanos contemporâneos".
Nesse contexto, pode ser citado no Brasil o movimento Manguebit (ou Manguebeat), surgido no Recife no início da década de 1990 - que ultrapassou os limites da cidade e se difundiu por diversas partes do mundo - o qual possibilitou aos jovens da periferia, por meio da música e da valorização das estéticas locais, um meio para construir sua identidade, tornando possível sua inclusão social, fazendo com que eles deixassem de ser vistos como potenciais causadores de problemas sociais para serem vistos como sujeitos criadores de um novo tipo de arte. Uma arte que, por sua vez, propõe uma ressignificação radical dos ideais estéticos-ideológicos locais e que exalta práticas cotidianas e saberes locais sujeitados (Foucault, 1999), numa clara oposição aos saberes hierarquizantes e universalizantes contemplados pelas instâncias decisórias da sociedade.
A partir de tais conceitos, depreende-se como os gêneros musicais se articulam às cenas e às tribos na formação das identidades sociais. Os indivíduos utilizam a música com propósitos avaliativos no processo de identificação grupal, sugerindo a importância desse veículo de comunicação de massa em diversas situações em que o jovem se encontra no dia a dia, permeando seu relacionamento interpessoal e, inclusive, influenciando a escolha do vestuário e a atração e rejeição por determinados grupos (Sim & Koh, 2009; Pimentel, Gouveia & Vasconcelos, 2005).
Ainda sobre como a música está imbricada na cultura juvenil, Pais (1998) assinala que as preferências musicais são acompanhadas de atitudes específicas que reforçam - mas também ultrapassam - os gostos musicais. É nesse ponto que se configuram as tribos musicais. O vestuário, a linguagem e modo de agir de determinadas tribos refletem um meio de diferenciação grupal, um modo de eles próprios se categorizarem e criarem e fortificarem sua identidade grupal, bem como sentimentos de pertença a essas tribos. Sendo assim, esses grupos atribuem à preferência musical um papel crucial nos processos de formação de uma identidade social.
Mas o que seria essa identidade social mencionada? São diversas as definições dadas à identidade social, mudando de acordo com cada teórico da Psicologia Social. A concepção usada neste trabalho é da Escola de Bristol, proposto principalmente por Tajfel e Turner, e "que se refere a um envolvimento emocional e cognitivo dos indivíduos no grupo de pertença e as consequentes expressões comportamentais desse envolvimento no quadro da relação intergrupos" (Amâncio, p. 206). A identidade social seria a parte do nosso autoconceito que resulta ao mesmo tempo de sabermos que pertencemos a um dado grupo social e do valor ou significado emocional que atribuímos a essa pertença. (Tajfel, 1983).
Na Teoria da Identidade Social, um conceito fundamental para a formação de uma identidade é o de categorização social. O termo categorização social se refere ao modo de categorizar o sujeito na sociedade, servindo como um instrumento para criar um lugar para o indivíduo na sociedade. "Categorização social é um sistema de orientação que ajuda a criar e definir o lugar do indivíduo na sociedade" (Tajfel, 1983, p. 291).
É nesse sentido que grupos como as tribos urbanas oferecem um meio para o sujeito construir seu lugar na sociedade. Também é por meio das categorizações sociais que os indivíduos buscam se diferençar positivamente dos demais grupos (outgroup), destacando sempre as qualidades do seu grupo (ingroup), gerando um sentimento de pertença e uma valorização aos aspectos significantes que existem em comum nesse determinado grupo.
A categorização social não serve apenas para se diferenciar de outros grupos, mas também para criar uma identidade social, uma vez que esta está associada ao conhecimento de pertença, evocado pela já mencionada categorização, o significado emocional e avaliativo que resulta dessa pertença exprimir-se-á no favoritismo pelo próprio grupo em detrimento do outro, gerando, dessa maneira, uma identidade social positiva (Amâncio, 1993).
Usando novamente o paradigma das tribos urbanas, fica fácil entender o porquê de existir uma rivalidade e uma visão negativa de algumas tribos em relação a outras, como a tribo dos headbangers2 e os clubbers.3
Este trabalho buscou, por meio das teorias já citadas, analisar a relação existente entre música e a inserção de sujeitos em uma determinada tribo musical, criando, consequentemente, uma identidade social, assim como comportamentos coletivamente orientados desse grupo, incluindo o modo como esses grupos se diferenciam dos demais. Isso foi feito com entrevistas e visitas a ambientes de encontro dessas tribos, também conhecidos como guetos, que permitiu uma observação direta dos comportamentos dessas tribos.
Metodologia
Para realização desta pesquisa, foram escolhidos três jovens que se incluem em diferentes tribos musicais, que foram escolhidos ao acaso em "locais de encontro" dessas tribos. Os sujeitos estão na faixa etária de 18 a 20 anos. Os entrevistados não têm nenhuma relação entre si, sequer tiveram contato um com outro, visto que as entrevistas foram realizadas separadamente. A escolha dos participantes foi aleatória, sem que eles tenham tido nenhum contato prévio com o realizador da entrevista.
Sujeito 1 (S1): Dezenove anos, estudante universitário. Afirma que tem como estilo musical predileto o heavy metal, não sendo aberto a escutar "novos sons". Escuta esse tipo de som desde os 15 anos e diz que atualmente é bem menos radical do que quando começou a escutar.
Sujeito 2 (S2): Dezoito anos, estudante. Define-se como regueiro, mas também apaixonado por rock. Escuta reggae desde os 14 anos.
Sujeito 3 (S3): Vinte anos, estudante universitário. Tem como estilo preferido o reggae, mas diz que também escuta outros estilos, como hardcore e pop/rock. Começou a escutar esse tipo de música há dois anos.
Para efetuação das entrevistas semiestruturadas, foi usado um MP3 para gravação de voz. Uma posterior transcrição foi realizada com ajuda do software Via Voice. A entrevista buscou abarcar determinados pontos como:
- Que tipo de música esse sujeito escuta;
- O que o fez gostar desse tipo de música;
- Qual opinião a respeito de uma pessoa (não conhecida) que tenha o mesmo gosto musical e atitudes parecidas e qual opinião a respeito de uma pessoa (não conhecida) que tenha um diferente gosto musical;
- Existe algum meio de diferençar pessoas com mesmos gostos e pessoas com gostos diferentes.
Primeiramente, foi elaborado um roteiro de entrevista padrão que foi usado com todos os sujeitos. Feito isso, as entrevistas foram realizadas em locais considerados "guetos" por essas tribos, onde além da entrevista em si foi observado o comportamento da tribo como um todo nesse ambiente. A entrevista não teve nenhum tempo limite, ficando à escolha dos sujeitos e do entrevistador o momento ideal de encerrá-la. As falas foram analisadas com a técnica de análise de conteúdo e organizadas de acordo com os objetivos delineados na pesquisa, com extração dos trechos mais significativos dos depoimentos e, na busca da compreensão de elementos pertinentes ao tema, os conteúdos foram desmembrados em categorias de análise, na tentativa de identificar pontos de semelhança e diferença entre discursos.
Quanto aos procedimentos éticos, resguardou-se a preservação dos dados, a confidencialidade, a ética e o anonimato dos indivíduos pesquisados, sendo que as entrevistas foram feitas com o consentimento de todos os entrevistados, preservando-os de toda e qualquer apreensão ou danos. Dessa forma, para manter o sigilo dos entrevistados, e para melhor identificá-los, serão utilizadas siglas na identificação das falas, seguida de numeração dada conforme ordem de realização das entrevistas.
Resultados e Discussão
Tomando como referências os núcleos de interesse contido no roteiro de entrevista, foram elaboradas quatro categorias objetivando uma melhor análise. Tais categorias se dividem em "Música e ideologia"; "Música como aglutinadora social"; "Música, categorização social e identidade positiva" e, finalmente, "Música e identidade social".
Música e ideologia
A música e o ato de fazer música estão sempre permeados de significados a ela subjacentes, muitas vezes no campo político e ideológico. Assim, por exemplo, em uma parada militar, a marcha não serve apenas para o desfile ritmado dos soldados, mas também reflete uma gama de outros significados, como toda uma simbologia de poder, organização, hierarquia e bravura para eles (Ikeda, 2007). Essa categoria está interessada em um desses significados subjacentes da música, mais especificamente o caráter ideológico, presente em grande parte do discurso dos entrevistados.
- Regueiros pensam em mudar o mundo com suas ideias positivas. Política é um assunto que a gente conversa bastante, o que acontece no país em termos gerais, o assunto do regueiro é sempre positivo, visando uma melhoria, para o bem comum. Regueiro pensam que em tudo há um lado bom, em tudo há uma salvação. A gente leva o reggae não como estilo, mas como religião. (S2)
- Mas eu me identifico muito com o reggae, é uma vibração tão boa que me passa, não apenas pelo ritmo que é calmo, mas pelas letras que falam de tudo. Do racismo, da desigualdade, do amor que precisamos ter com as pessoas, são coisas que entram em uma sintonia. Tem músicas que eu chego a me arrepiar. É incrível. (S3)
- [...] Se diferenciam pela forma de pensar. Ideologia, principalmente. Tem um jeito de diferenciar sim. Pela conversa, pelo jeito de falar, a gente sente a diferença. Um roqueiro tem um estilo mais rebelde, independente, é uma coisa mais revolucionária. (S1)
Mesmo não sendo inicialmente um dos pontos de análises que seria abordado e em nenhum momento serem perguntados diretamente sobre o caráter ideológico da música - no sentido da música como formadoras de formas de pensar -, esse tema foi recorrente na fala de todos os entrevistados. Isso recai sobre o que Friedlander (2002) e Fradique (2003) argumentam, quando eles apontam que a escolha musical por determinados neotribos juvenis, nos quais estão incluídos os headbangers e os regueiros, é uma maneira de construir formas de pensar, sendo um processo de conscientização. Percebe-se no discurso de S2 e S3, que fazem parte da mesma tribo, uma coerência, pois eles falam basicamente sobre o mesmo tema, que é a positividade e o caráter político que perpassam o "pensar reggae'. Já o S1 atribui a forma de pensar independente e revolucionária dos headbangers como um meio de se diferenciar das demais tribos, sendo esta, portanto, também, uma categorização social da tribo, uma vez que pode se inferir que ele atribui às características "rebelde, independente e revolucionário" um caráter positivo.
Nota-se, dessa maneira, que ao escolher um determinado seguimento musical os entrevistados carregam com esse tipo de música uma série de pensamentos e ideias relativamente coesos entre esses membros, que, além de servir como referências identitárias para eles, também funcionam como marcadores sociais dessas tribos para o outgroup.
Música como "aglutinadora" social
Como já mencionado ao longo do trabalho, as tribos urbanas não se unem de forma organizada e estruturada, mas por afinidades, podendo ser uma dessas afinidades a música, que funcionaria como um "ponto de contato em comum" entre esses diversos sujeitos na formação de uma tribo. Essa categoria tem por objetivo analisar em que medida a música pode ser responsável pela formação das tribos musicais, assim como analisar, também, como se dá a relação dos indivíduos em uma mesma tribo.
- Fica mais fácil conversar quando sei que a pessoa gosta igual a mim. Antigamente bem mais, hoje assim, quer dizer... na época do auge pra mim eu dizia assim "deu *****, ele gosta de tal banda". (S1)
- Me sinto mais aceito, sei lá, acho que aqui todo mundo é meio igual. (S1)
- Parece que entre regueiros o papo flui mais rápido, os interesses são parecidos. A coisa é bem mais simples, a gente discute sobre reggae e tal. Já com outras pessoas, parece que rola uma discussão diferente, meio que ideias paralelas [sic]. Não é que regueiros sejam ou pensem de maneira igual, mas as ideias são mais simétricas. (S2)
- Acho que tipo quando a gente se reúne é uma coisa muito boa. Tu sente que tá todo mundo ali, sabe? Com os pés no chão, querendo sempre e sempre o melhor pra todos. É uma positividade concentrada em palavras tão simples e humildes, entende? De uma outra forma de se expressar. Bom, música é a linha que me une aos meus amigos. (S3)
A primeira fala de S1 denota uma "empatia inicial" que ele sente por pessoas que têm um mesmo gosto musical, mesmo que para ele seja desconhecido. Durante o resto de sua fala, ele mostra como se sente aceito no ambiente em que se encontrava - que, como já dito, era um ponto de encontro dessa tribo - por considerar que ali todos são "meio iguais". Já a fala de S2 e S3 remetem à relação entre os membros dessa tribo depois de já inseridos nela, que segundo eles "fluem" de maneira mais rápida por haver uma comunhão de interesses e ideias, uma vez que, como fala S2, "as ideias são mais simétricas".
Essas falas são interessantes, pois tocam em um dos pontos abordados por Maffesoli (1987), e já mencionado ao longo do trabalho, que afirma que a filiação de um jovem a uma determinada tribo se dá por uma questão de empatia, de feeling, sendo a música, nesse caso, o elemento principal nessa inserção. A frase "Bem, música é a linha que me une aos meus amigos", dita por S3, resume bem a relação existente entre a música e a formação das tribos urbanas, sendo a música o meio pelo qual os sujeitos criam uma "empatia inicial", suscitada pela fala do Sujeito 1, e socializam mais facilmente com outros sujeitos de gostos parecidos, "fechando-se" em grupos sociais que compartilhem e valorizem essas características que eles têm em comum. A trajetória desses sujeitos é simples e identificável. Uma vez que gostam de determinados tipos de música, muitas vezes não benquistos por boa parte da população, eles buscam outros sujeitos que compartilhem e deem valor a esse gosto, inserindo-se dessa maneira em suas respectivas tribos e consequentemente configurando-as.
Interessante, ainda, notar a descrição da sensação de "fluição" e de positividade ao ouvir determinado gênero musical. Isso vai ao encontro da noção de escuta nômade, apontado por Santos (2000), que, por sua vez, se apoia nas definições que Wisnik (1989, p. 17) oferece sobre som e sentido: "o som é onda, os corpos vibram, e essas vibrações transmitem-se sob formas de propagação ondulatória, capazes de serem captadas pelos nossos ouvidos, e interpretados pelo nosso cérebro, o que lhe dá configurações e sentido". Dessa forma, a autora defende a ideia de música operando como força, instalando-se como linhas de fugas (Guatarri & Deleuze, 2000) que atravessam os corpos, permitindo uma "interpenetração sem obstrução" (Santos, 2000, p. 66).
A música operando como força significa dizer que o que está em pauta não é necessariamente os eixos harmônicos e estruturais, mas sim a ação direta provocada no sistema nervoso desse ouvinte, permitindo o "imediatismo assombroso da sensação". Com efeito, a música e escuta tornam-se fluidas e livres, desenvolvendo-se por conexões rizomáticas e que, como rizoma, leva-nos as percorrê-las, conectando-se livremente de um ponto a outro, sem trajetórias fixas. Uma escuta que se dá por conexões livres, que "flui" entre um espaço e outro, operando por contágio (Santos, 2000; Guatarri & Deleuze, 2000).
Música, categorização social e identidade positiva
O processo de categorização social e comparação social são os elos primordiais para a construção da identidade. Para Tajfel (1983, p. 290), a categorização social é o processo por meio do qual "[...] se reúnem os objetos ou acontecimentos sociais em grupos, que são equivalentes no que diz respeito às ações, intenções e sistemas de crenças do indivíduo". Esse processo de comparação social se dá por meio do confronto entre o ingroup e outgroup, quando os indivíduos muitas vezes atribuem uma valoração positiva (identidade positiva) ao seu grupo e negativa ao outgroup, sendo esse um mecanismo básico na formação da identidade social.
- Antigamente eu só falava bem dizer com gente que gostava da mesma coisa que eu. Hoje em dia falo com todo mundo... com evangélico, com todo mundo, mesmo que eu não goste.[...] mas não é por causa disso que o cara vai deixar de falar com eles. Mas tem quem pense assim? Tem, e muitos, mas não é mais o meu caso. (S1)
-Num show de reggae você se sente em casa, todos são extremamente sociáveis, você sente a paz, já fui em vários shows de reggae, [...], eu nunca vi uma briga em um show de reggae, nem sequer uma discussão, a mentalidade é outra, o povo é mais maduro, mais da paz. (S2)
- Cara, você nunca vai se desentender com um regueiro. O reggae prega sempre paz e amor, se você curte o reggae de verdade, você sempre vai ser amigável e pacífico. Então regueiros são amigáveis com todos. E com outro regueiro então, nem se fala. Amizade forte mesmo. (S3)
- Um regueiro geralmente, se não curte, pelo menos respeita todos os tipos de tribos, e se sente bem entre elas, pois fazer novas amizades faz parte do reggae. Num show de reggae você se sente em casa, todos são extremamente sociáveis, você sente paz. (S2)
- É uma coisa meio estranha falar com pessoas de gostos diferentes. E eu tenho pavor de pagode, por exemplo. Então, acho que eu não me aproximaria desta pessoa com a intenção de aprender ou gostar de alguma coisa, porque seria totalmente fora do padrão, mas eu conheço muita gente que ama pagode e tudo mais, só que a relação minha com essas pessoas é que eu não falo de música. É apenas uma amizade. (S3)
Na fala de S1, que representa a tribo dos Headbangers, há indícios de discriminação e preconceito no agir da tribo, apesar de ele deixar claro que essa não é mais atitude que o representa. Esse comportamento é apontado por Tajfel (1983) como sendo relativamente normal no processo de categorização social, diz ele que a rejeição e o preconceito são tipos de defesa contra aqueles que se apresentam como ameaça ao nosso modo de vida e à nossa posição social, ou seja, à nossa identidade. Fazendo um breve paralelo entre a postura headbanger e a postura evangélica, percebe-se um "choque" entre essas visões, uma vez que muitas vezes a imagem do heavy metal está associada à arruaça, selvageria e ao paganismo,4 sendo o contrário da imagem proposta pelas instituições evangélicas e que, portanto, representam a esse grupo uma ameaça a sua identidade social, como mencionado por Tajfel.
Sociáveis, pacíficos, maduros e amorosos. Essas são as características atribuídas por S2 ou S3 ao próprio grupo quando perguntados como se dá a relação entre eles e pessoas com um mesmo gosto musical. A alternativa de categorização "escolhida" pelos sujeitos segue uma linha de representar-se positivamente em relação aos demais grupos, não atribuindo ao outgroup, portanto, características negativas. Ainda nas falas de S3, percebe-se um fato curioso. Quando perguntado como se dá as relações entre ele e outros jovens com mesmo gosto musical, ele encerra sua fala com a frase "Amizade forte mesmo", já quando perguntado como se dá a relação dele com jovens de outras tribos, ele encerra com "É apenas amizade". Nota-se que a relação desse sujeito na comunidade empática da tribo tem algo que vai além de uma "simples amizade", sendo uma relação mais sólida, de maior empatia por ter essas características positivas supracitadas por ele.
Tais achados corroboram com os achados de Oliveira, Camilo e Assunção (2003) ao estudarem as tribos urbanas como sistemas semióticos, no qual há a adoção de uma imagem estética compartilhada pelo grupo em que não basta os integrantes das tribos terem um visual semelhante entre si, é necessário ser diferentes dos demais. Não compartilhar essa imagem é ser normal, ou, "não ser nada".
De um modo geral, o que se pode perceber é que as identidades positivas que os entrevistados se atribuem refletem o tipo de som por eles escolhidos. Enquanto os sujeitos 2 e 3 reclamam as qualidades de "pacífico, maduros e sociáveis", qualidades essas que estão presentes nas letras e no contexto histórico do reggae, S1 - na fala "Um roqueiro tem um estilo mais rebelde, independente, é uma coisa mais revolucionária" - também sugere qualidades que recaem sobre a história e os conteúdos recorrentes do rock ao longo dos anos. Isso indica como a música é de fundamental importância na caracterização da identidade positiva desses sujeitos e, consequentemente, de sua categorização social.
Música e identidade social
Ao fazer parte de uma tribo, o jovem, com ela, constrói sua identidade social. Como dito, a música pode estar presente na inserção e na relação entre jovens ingroup e outgroup, bem como o papel da música no processo de categorização social. Categorizar-se socialmente e relacionar-se com "opostos" são os mecanismos básicos na construção de uma identidade social para esses jovens. Levando em conta o conceito apresentado por Tajfel (1983) de que "a identidade social seria a parte do nosso autoconceito que resulta ao mesmo tempo de sabermos que pertencemos a um dado grupo social e do valor ou significado emocional que atribuímos a essa pertença", essa categoria objetiva perceber como a escolha por determinado tipo de música influenciou e influencia os jovens entrevistados, refletindo em suas identidades sociais.
- Tudo, né. O jeito de se vestir, de andar, forma de pensar, ideologia... (S1)
- Hoje em dia nem é tanto assim, não ligo pra isso mais não. Antigamente eu não usava uma roupa colorida. Não usava colorida nenhuma, não tinha nenhuma na minha gaveta, achava que iam dizer: "ah, ele não gosta de rock não". Hoje acho uma besteira, tenho pouquíssimas roupas pretas. Depois que a fase passa, a pessoa cresce. (S1)
- Cara, sou regueiro. (S2)
- Cara, há tempos atrás se você me pedisse fazer essa entrevista, eu não faria e seria super mal-educado com você. Eu era estressado, mal-humorado e tinha pavio curto. Era o tipo de pessoa que você não queria ter como amigo. Graças ao reggae eu mudei, quando você ouve o reggae, você relaxa, você se acalma, depois você vai evoluindo e estudando a verdadeira história do reggae, vai vendo como o reggae foi capaz de mudar muitos, vai vendo como o movimento Rastafári mudou muita gente. Quando virei regueiro de verdade, eu mudei. Hoje sou amigável com todos, eu era sempre revoltado com tudo e com todos ao meu redor, mas quando virei regueiro, eu coloquei uma nova regra em minha vida: Primeiro eu me mudo, pra depois mudar o mundo. E é assim que o reggae me influencia até hoje, o reggae me traz paz, tranquilidade. (S2)
- Meu chão mesmo é reggae, reggae em primeiro lugar. Depois vem as outras bandinhas e tals. (S3)
Mesmo não sendo a intenção de fazer uma análise do discurso dos entrevistados, pode-se inferir na fala deles que expressões como "nós", "sou regueiro", "a gente se encontra", "meu chão é o reggae" expressam sentimentos de pertença, identificação e diferenciação identitária, fundamental para a constituição de identidades sociais.
Na segunda fala de S1, ele toca em um ponto fundamental nas tribos urbanas e também já abordado aqui: a questão corporal. Roupas, penteados, tatuagens e bodypiercing são meios encontrados pelos indivíduos para dar vazão a formas de expressão pessoal e de singularização social. Isso fica claro na fala de S1, quando a roupa preta pra ele era um meio de demonstrar que ele fazia parte daquela tribo, causando ânsia e até medo em não ser quisto como tal. Trazendo esse paradigma para outras tribos - como a dos regueiros, dos punkers, dos rappers, dos mangueboys, etc. -, percebe-se que nessas tribos há uma aparente uniformização, "um visual básico" entre os seus membros, sendo esse um meio de reafirmar sua identidade, tanto ingroup quanto outgroup.
Quando perguntados sobre de que modo o tipo música escolhido por eles os influenciaram e os influenciam, S1 e S2 são bastante enfáticos em atribuir que grande parte do seu comportamento se deve à escolha daquele determinado gosto musical. S2 relata como a escolha por esse tipo de música fez com que ele passasse a ter as características positivas, que anteriormente foram apontadas como parte da identidade positiva dessa tribo.
Essas falas mostram como a música pode ser responsável pela constituição de identidades sociais desses sujeitos. Mais uma vez ,traçando uma trajetória desses indivíduos, percebe-se que ao escolher um determinado tipo de música e "entrar" em uma tribo urbana esses sujeitos passam a ter uma série de referências identitárias compartilhadas com os outros membros, como uma "cartilha" a seguir para, além de ser respeitado na tribo, também ser reconhecido pelo outgroup como fazendo parte daquela tribo. Ou seja, isso recai exatamente no que Tajfel defende ao dizer que a identidade social surge do resultado do nosso conhecimento de saber que fazemos parte de um grupo, bem como o valor que damos a esse pertencimento, que é bem descrita por S2 na sua segunda fala.
Considerações finais
Tendo como base o objetivo primordial do trabalho, que foi buscar de que maneira a música pode influenciar na criação de identidades sociais por jovens de uma tribo, nota-se que essa influência se dá justamente a partir do momento que esses jovens se filiam a essas tribos. Como citou John Blacking (1995, p.223), "fazer música é um tipo especial de ação social que pode ter consequências importantes para outros tipos de ações sociais". No caso do presente trabalho, pôde-se reparar que a música atua como uma facilitadora social para jovens com gostos musicais parecidos. É, pois, a música que definirá como esses jovens se relacionarão com "os outros", sendo ela responsável por uma "empatia inicial" ou um preconceito e discriminação deles pelos demais.
Atrelada a essa questão está a necessidades de esses indivíduos deixaram claro a qual grupo pertencem, tanto para pessoas do seu grupo quanto para pessoas que não fazem parte dele. É aí que se configuram as tribos urbanas, pois ao se fechar em grupos de pessoas com características em comum, esses sujeitos criam novas formas de sociabilidades, constroem referências identitárias para si e representações dos demais grupos.
Portanto, com base nas análises aqui apresentadas, pôde-se apontar que a música pode atuar na constituição das identidades sociais desses sujeitos ao funcionar como principal catalisador na formação das tribos urbanas. Uma vez nessas tribos, esses jovens constroem suas identidades sociais, que refletem, também, aspectos relacionados àquele tipo de música por ele escolhido.
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Recebido em: 24/8/2017
Aprovado em: 20/2/2019
1 Casos como o dos Skinheads, uma tribo política surgida na Inglaterra no fim dos anos 1960 e que logo após se espalhou pelo mundo, contrariam essa visão de tribo proposta por Maffesoli. Esse apontamento feito em estudo realizado por Costa, Tornero e Tropea (1996) sobre o culto à imagem e autoafirmação das tribos urbanas por meio da violência.
2 Termo usado para designar membros de tribos que cultuam o heavy metal e suas variantes, também chamado metaleiros.
3 Termo inglês para designar pessoas que frequentam danceterias e escutam música eletrônica. Pouco usado no Brasil.
4 Neste trabalho não há a intenção de analisar se tais características são verdadeiras ou falsas, a questão da identidade e da representação do Heavy Metal é bem trabalhada no estudo de Silva (2008).