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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.14 no.2 São João del-Rei abr./jun. 2019
Entre a cruz e a espada: tensões entre a Igreja Católica e o Estado na emergência da proteção social à infância e juventude no Brasil
Between the devil and the deep sea: tensions between the Catholic Church and the State in the emergence of social protection of children and youth in Brazil
Entre la cruz y la espada: tensiones entre la Iglesia Católica y el Estado en la emergencia de la protección social a la infancia y juventud en Brasil
Rodrigo KreherI; Neuza Maria de Fátima GuareschiII
IDoutorando em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2016). Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. E-mail: guigo.roots@gmail.com
IIPós-doutora pelo Institute of Educatinon na University College of London (2014). Doutora em Educação pela University of Wisconsin - Madison (1998). Mestra em Psicologia Social e da Personalidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1991). Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1979). E-mail: nmguares@gmail.com
RESUMO
Este artigo discute os arranjos institucionais entre Igreja e Estado em relação ao cuidado da população juvenil empobrecida. Para tanto, a discussão teórica realizada teve como metodologia a análise dos dispositivos legais das Constituições de 1891, 1934 e 1988, que tratam das relações entre as instituições religiosas e o Estado brasileiro, bem como de pesquisa bibliográfica sobre o tema. Dessa forma, apresentamos as diferentes configurações da relação entre Igreja e Estado, de modo a problematizar as ações da Igreja Católica na condução da vida desses jovens. Para essa problematização, nos fundamentamos na noção foucaultiana de governamentalidade e seus conceitos adjacentes, tais como disciplina, biopolítica e periculosidade. Com isso, este ensaio teórico aponta como os efeitos dessas articulações no exercício de cuidado e controle da vida dessa população, em contextos históricos diferentes, contribuíram para a emergência de uma lógica de assistência à infância, adolescência e juventude pautada pela caridade, filantropia e moralismo cristão, presentes ainda hoje na execução de programas e políticas públicas destinadas à juventude.
Palavras-chave: Estado. Igreja. Políticas públicas. Juventude. Governamentalidade.
ABSTRACT
This article discusses the institutional arrangements between the Church and the State regarding the care of the impoverished youth population. For that, the theoretical discussion was based on an analysis of the legal provisions of the Constitutions of 1891, 1934 and 1988 dealing with relations between religious institutions and the Brazilian State, as well as bibliographical research on the subject. In this way, we present the different configurations of the relationship between Church and State, in order to problematize the actions of the Catholic Church in the conduct of the life of these young people. For this problematization, we are based on the Foucauldian notion of governmentality and its adjacent concepts, such as discipline, biopolitics and dangerousness. Thus, this theoretical essay points out how the effects of these articulations in the exercise of care and control of the life of this population, in different historical contexts, contributed to the emergence of a logic of care for children, adolescents and youth based on charity, philanthropy and moralism Christians, who are still present today in the implementation of public policies and programs for youth.
Keywords: State. Church. Public policies. Youth. Governamentality.
RESUMEN
Este artículo discute los arreglos institucionales entre Iglesia y Estado en lo que concierne al cuidado de la población juvenil empobrecida. Para ello, la discusión teórica realizada tuvo como metodología el análisis de los dispositivos legales de las Constituciones de 1891, 1934 y 1988 que tratan de las relaciones entre las instituciones religiosas y el Estado brasileño, así como de investigación bibliográfica sobre el tema. De esta forma, presentamos las diferentes configuraciones de la relación entre Iglesia y Estado, de modo a problematizar las acciones de la Iglesia Católica en la conducción de la vida de esos jóvenes. Para esta problematización, nos basamos en la noción foucaultiana de gubernamentalidad y sus conceptos adyacentes, tales como disciplina, biopolítica y peligrosidad. Con ello, este ensayo teórico apunta como los efectos de esas articulaciones en el ejercicio de cuidado y control de la vida de esta población, en contextos históricos diferentes, contribuyeron a la emergencia de una lógica de asistencia a la infancia, adolescencia y juventud pautada por la caridad, filantropía y moralismo cristianos, presentes aún hoy en la ejecución de programas y políticas públicas destinadas a la juventud.
Palabras clave: Estado. Iglesia. Políticas públicas. Juventud. Governamentalidad.
Introdução
Neste artigo, buscamos dar visibilidade a alguns momentos das relações e tensões exercidas entre a Igreja e o Estado, que ao longo do percurso histórico brasileiro têm contribuído para a produção de uma racionalidade de cuidado, proteção e governo em torno da população juvenil empobrecida. Esses momentos emergem na escrita a partir do exercício de rastreá-los quando na história ainda designavam um jogo de forças em um campo problemático que, por meio de discursos e mecanismos políticos e científicos, articularam a instauração de determinados modos de conceber política e culturalmente essa problemática.
Com esse movimento de problematizar aquilo que pode nos parecer como algo dado, essencial, progressivo e óbvio; suscitamos justamente a desnaturalização dessa história, interrogando a respeito das condições de possibilidade que a tornaram possível do modo como tradicionalmente a conhecemos hoje e, ao mesmo tempo, questionando se necessariamente assim ela deve continuar.
Tendo isso em vista, desenvolvemos nossas problematizações apontando, de um lado, como a afirmação do princípio jurídico e político da laicidade, verificado desde o art. 72 da primeira Constituição republicana de 1891, do art. 113 da Constituição de 1934 e do art. 19 da Carta Magna de 1988, acompanhado por um relativo processo de secularização de nossa sociedade - ao posicionarem e deslocarem as relações políticas entre Estado e Igreja - foi produzindo uma racionalidade de cuidado, proteção e governo da infância, adolescência e juventude brasileiras. Para tanto, por outro lado, tomamos como principais materiais de análise os códigos e legislações destinados à formulação de direitos e políticas dirigidos ao governo das populações em questão. Assim, passamos pelo Código de Menores de 1927, sua reformulação em 1979 e o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990.
Para essa problematização, nos fundamentamos na noção foucaultiana de governamentalidade e seus conceitos adjacentes, tais como disciplina, biopolítica e periculosidade. Com isso, este ensaio teórico aponta como os efeitos dessas articulações no exercício de cuidado e controle da vida dessa população, em contextos históricos diferentes, contribuíram para a emergência de uma lógica de assistência à infância, adolescência e juventude pautada pela caridade, filantropia e moralismo cristão, presentes ainda hoje na execução de programas e políticas públicas destinadas à juventude.
Uma leitura foucaultiana do governo da infância e da adolescência
Para tornar possível a problematização à qual nos propomos, partimos do conceito de governamentalidade, elaborado por Michel Foucault a partir de 1978 em seu curso "Segurança, Território, População", ministrado no Collège de France, o qual se refere à atualização e apropriação como uma racionalidade de Estado na modernidade, a partir do fim do século XVI e início do século XVII, de técnicas arcaicas, sobretudo, desenvolvidas e utilizadas pela igreja ocidental cristã ao longo da Idade Média como estratégia de condução da vida individual e coletiva. Com isso, por governamentalidade compreendemos a construção e o movimento de pensamento ou racionalidade que foi se disseminando pela modernidade - tanto em termos de estrutura e organização quanto em termos de fundamentação da sua razão de ser -, tornando possível a formulação e a implementação de estratégias e táticas sobre determinada população. A intenção desse processo é atingir objetivos e finalidades bem específicos, previamente definidos e relativamente previsíveis quanto aos seus resultados, tendo na instituição familiar o seu principal perímetro e área de atuação, desde onde seria possível governar.
Atreladas à noção de governamentalidade estão a disciplina e a biopolítica, compreendidas como a forma pelas quais esta é exercida. O mecanismo da disciplina emerge com mais intensidade ao longo dos séculos XVIII e XIX até o início do século XX. Durante esse período, a lógica que vai informar o modo pelo qual o governo dos indivíduos será exercido é a da vigilância e a da correção, e as estruturas que a viabilizarão serão as instituições de confinamento. Assim, a vida dos indivíduos, sustentada por uma compreensão biológica e de uma sucessão de eventos lineares, será fragmentada em etapas que definirão, para alguns mais e para outros menos, onde, quando e como seus corpos e suas existências serão individualizados e, assim, administrados. Na sociedade caracterizada pela tecnologia disciplinar, os sujeitos passarão suas vidas entrando e saindo, permanentemente, de uma série de instituições, a família, a escola, o exército, a fábrica - vigilância -, se necessário o hospital e, para quando falharem com esse projeto, a prisão ou o hospital psiquiátrico - correção.
Já a biopolítica emerge com mais amplitude após a II Guerra Mundial, anunciando o declínio da disciplina, ainda que não pressuponha o seu desaparecimento. Esse outro mecanismo de poder, argumentado no dispositivo da segurança e dependente da noção de população, se constituirá como modo de governo, não mais pela lógica da individualização do sujeito e do seu confinamento. Na biopolítica, o controle exercido não está mais no nível do corpo e administrar não é mais o verbo imperativo. A palavra de ordem é gestão e o verbo é gerir. Gerir não o sujeito corporificado e individualizado, mas sim esse conjunto de multiplicidades mais ou menos perpassadas e expostas a toda uma sorte e série de elementos variáveis, e ao mesmo tempo repetitivos, que é a população.
Portanto, para a biopolítica, as instituições fechadas não serão mais imprescindíveis, a gestão da população se dará no espaço aberto, a partir da produção de saberes estatísticos e demográficos (como natalidade, mortalidade, expectativa de vida e empregabilidade), que estabelecerão, em relação à população, o normal e o anormal, o aceitável e o inaceitável. Nesse sentido, difere também da disciplina, uma vez que esta busca, ao fim e ao cabo, o enquadramento do corpo individual dentro da norma, processo de normatização, ao passo que para a biopolítica importa a regulação, a modulação, da diferença e dos comportamentos dentro de uma margem estabelecida, processo de normalização.
Com isso, desenvolvemos nossa discussão apontando como, em um primeiro momento, as relações entre a Igreja Católica e o Estado contribuíram para a constituição de uma lógica de cuidado e controle da população infantojuvenil sustentada pelo discurso "menorista" e exercida por intermédio de instituições de confinamento, de caráter filantrópico e de caridade, vinculadas ao catolicismo. Posteriormente, abordamos tais relações na implementação da Doutrina do Menor em Situação Irregular, em um contexto de ditadura civil-militar e politização da Igreja, levada a cabo por uma reforma do primeiro código de menores. Por fim, discutimos como a partir de 1990, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e mais recentemente com as políticas públicas destinadas especificamente à juventude, os arranjos entre Igreja e Estado se rearticulam na execução desses programas e políticas.
Focos de tensão para a emergência de uma problemática da infância e da adolescência
Ainda na primeira metade do século XIX, as práticas de cuidado e proteção em torno da infância, reconhecidas por lei, articulavam-se pelas relações entre Estado e Igreja. Se por um lado o Estado responsabilizava-se pela manutenção financeira dos estabelecimentos criados para abrigar a infância; por outro, a Igreja ocupava-se com aspectos como a administração desses locais e, efetivamente, com aquilo que se compreendia por cuidado e proteção dessas crianças. Tais práticas, fundamentadas na ideologia cristã da caridade, se constituíam por meio de instituições religiosas católicas que recolhiam tanto as crianças órfãs quanto as abandonadas das ruas das cidades brasileiras.
Essas práticas já eram percebidas desde o Brasil Colônia (1500-1822), quando a Igreja Católica era a única instância integradora entre índios, negros e o modelo de organização social branco e europeu que se impunha pelo padrão de colonização português. Silva (2014) explica que essa integração era feita por meio de seminários religiosos ou pela educação e catequização exercida pela Companhia de Jesus. Quanto ao cuidado e proteção daqueles percebidos como desassistidos, desafortunados ou miseráveis, este era realizado principalmente pelas Santas Casas de Misericórdia.
Segundo Abreu (2001), as Santas Casas de Misericórdia, inicialmente, se constituíam como confrarias de leigos, podendo receber contribuições de qualquer indivíduo tomado por um espírito cristão de fraternidade, o que fez com que elas caíssem nas graças da Coroa Portuguesa e do Papado, sendo por estes incorporadas. As primeiras surgiram em Lisboa por volta de 1498 e em menos de um século formavam uma poderosa rede de caridade com mais de 100 unidades em Portugal e 50 em suas colônias e territórios ultramarinos. Nesse contexto das grandes navegações, invasões e colonização de territórios além-mar, aliam-se interesses políticos e religiosos: se para a Coroa Portuguesa era econômica e politicamente interessante a expansão de seus domínios territoriais, também assim era para a Igreja Católica a expansão da fé cristã sobre a Terra.
A responsabilidade pela organização religiosa das terras conquistadas obrigava a Coroa portuguesa a financiar as estruturas eclesiásticas que se implantavam nos territórios ultramarinos, dotando igrejas paroquiais e conventos, concedendo esmolas a frades e a missionários, pagando o vencimento dos clérigos, do meirinho e do pai dos cristãos. (Abreu, 2001, p. 595)
Diferentemente das outras colônias portuguesas, as Santas Casas de Misericórdia no Brasil aparecem quase 50 anos depois da invasão portuguesa, quando a colônia já gozava de certa valorização e rentabilidade econômica, bem como de uma estrutura política e administrativa organizada pelas capitanias hereditárias, o que, segundo Abreu (2001), contribuiu para o desenvolvimento e legitimação dessas instituições ao longo da história de nosso país.
Até o final do período colonial, as Santas Casas de Misericórdia detinham o monopólio do que pode ser compreendido como assistência. No decorrer dessa trajetória, o seu campo de atuação foi expandido, a assistência prestada não se resumia mais somente aos membros das confrarias e seus familiares, mas também aos doentes, presos, mulheres viúvas e órfãos, crianças abandonadas. Os hospitais, que nas colônias serviam basicamente aos militares com ferimentos e debilidades ocasionadas pelas guerras, foram progressivamente anexados aos domínios administrativos e de trabalho das Misericórdias, passando a serem oferecidos como serviços prestados ao público em geral.
No que se refere à Educação, Rizzini (1993) aponta que somente na segunda metade do século XIX começa a se pronunciar um debate em torno da criação de uma rede de ensino pública que ampliaria o acesso da população a ela. Nesse período, a concepção de um espaço voltado para o ensino de crianças não era concebida sem o entendimento de que era necessário formá-las tanto intelectual quanto moralmente. No entanto, Bulcão (2002) não deixa esquecer que nas décadas seguintes tal debate foi enfraquecido, dando lugar a políticas argumentadas na origem socioeconômica e familiar das crianças, discriminando-as entre crianças e menores.
A segunda metade do século XIX trouxe importantes transformações estruturais para a sociedade brasileira. Na gênese dessas transformações estava a necessidade do país de se adequar à ordem política e econômica internacional ainda em processo de consolidação. No campo político, o modelo era o republicanismo, e no econômico, o liberalismo. O movimento que em 1889, por meio de uma proclamação com contornos de golpe, fez nascer a república tupiniquim vinha sendo gestado em diversos setores sociais já há alguns anos.
De acordo com Bulcão (2002), a partir de 1850, ganham força no âmbito do Direito brasileiro discussões referentes aos escravos e seus filhos. Em 1871, promulga-se a Lei do Ventre Livre, a qual garantiria a liberdade dos filhos de escravos nascidos desde então. Ainda com a autora, essa lei desloca as preocupações com o futuro dos filhos dos escravos da esfera privada, antes determinado pelas famílias donas de seus corpos, para o Estado.
Mais tarde, em 1885, entra em vigor a Lei dos Sexagenários, a partir da qual os escravos com mais de 65 anos estavam liberados de suas obrigações; porém, ao contrário do que se pode pensar, a Lei Saraiva-Cotejipe, como também ficou conhecida, não objetivou reconhecer o direito a qualquer coisa próxima de uma aposentadoria ou assistência ao negro ex-trabalhador escravo, apenas compreendeu que para os senhores brancos a relação custo-benefício em manter um indivíduo envelhecido e com rendimento reduzido nas lavouras não configurava lucro.
Esses debates em torno da condição de vida do negro escravizado têm seu auge em 1888, quando é assinada a Lei Áurea e o regime escravagista é formalmente abolido. Com isso, aproximadamente meio milhão de pessoas automaticamente deixam de ser escravas e passam a ser mão de obra assalariada em potencial, porém tendo como destino, na maioria das vezes, perambular sem trabalho e sem moradia pelas ruas das principais cidades brasileiras.
Paralelamente a esses movimentos abolicionistas, a segunda metade do século XIX também foi marcada pela intensificação da imigração europeia, especificamente a partir de 1870. Esses imigrantes, provenientes de países como Alemanha, Itália e Polônia, eram inicialmente levados para trabalhar no campo, em especial nos cafezais paulistas, e posteriormente serviram como massa proletária para o recente processo de industrialização brasileiro.
A articulação desse contexto de transformação da mão de obra escrava em liberta, a chegada de imigrantes europeus para trabalharem no campo e na cidade e a intensificação de um recente processo de industrialização colaboraram, em um primeiro momento, para o aumento da mão de obra assalariada disponível e, em um segundo momento, para o rápido esgotamento desse mesmo mercado de trabalho.
Tais acontecimentos contribuíram para que em 1889 fosse proclamada a república. De acordo com Villa (2011), o velho regime monárquico estava socialmente deslegitimado, pois, ao mesmo tempo em que perdia cada vez mais o apoio dos escravocratas, não conseguia se sustentar dentre os nomes que a nova economia do café colocava em cena. Porém, conforme o autor, até aquele momento, a ideologia republicana não fazia eco no discurso político brasileiro. Conta que, dos 125 parlamentares eleitos, apenas dois eram republicanos.
No entanto, o que tornou possível a passagem quase que da noite para o dia de um Brasil monárquico para um republicano teria sido o medo das elites de que a coroa, a fim de assegurar a sua manutenção no poder, implementasse reformas econômicas e sociais. Além disso, a ideia de uma república organizada no modelo de uma federação redistribuía o poder até então mais centralizado nas mãos do Imperador, que, não por coincidência, passou a ser exercido pelos membros das antigas oligarquias regionais.
Posterior à instauração da ordem republicana, dois movimentos de adequação da sociedade ao novo regime foram importantes, na medida em que corroboraram para a elaboração do modo como o país administra os seus desafortunados de toda ordem. Em 1890, se edita o Código Penal, que além de ser o primeiro em nossa história a versar sobre a matéria foi também a primeira lei de caráter permanente a ser promulgada pela recente república. De 1889 até 1890, foram publicados inúmeros decretos, a maioria em caráter provisório, criando desde cargos públicos até feriados e símbolos, como as armas, a bandeira, o brasão e o hino nacional. Com os cargos, o que se queria era afastar cada vez mais qualquer intento de retomada do poder pela família real; e com os símbolos, a legitimação do novo regime perante a sociedade.
Já um Código Penal, em 1890, deixava claro o quão imprescindível e interessante era organizar como a penalidade passaria a ser administrada. Lembremos que nesse período uma horda de pretos pobres e desempregados vagavam esfomeados e sem rumo pelas ruas, becos e vielas das cidades. Como denuncia Bocco (2009), se associou sem pestanejar a condição de pobreza que os escravos libertos viviam a todo um catálogo de comportamentos considerados perigosos.
No ano seguinte (1891) tem lugar a nossa primeira Constituição Republicana. Inovadora, na medida em que para a época rompe radicalmente, ao menos do ponto de vista formal, com a Igreja Católica e faz aportar no Brasil a laicidade de Estado. De acordo com Giumbelli (2008), em se tratando de efeitos práticos desencadeados na sociedade, os princípios da liberdade religiosa e da igualdade entre os cultos passam a ser incorporados pelo Direito brasileiro (art. 72, § 3º), os registros outrora eclesiásticos tornam-se civis (art. 72, § 4º, CR/1891), os cemitérios secularizados (art. 72, § 5º, CR/1891), e o ensino também passa a ser leigo (art. 72, § 6º, CR/1891).
Esse movimento de laicização da sociedade não ocorreu apenas no Brasil. No final do século XIX, outros países também enfrentavam a mesma questão. O autor ainda defende que, além de princípios, a laicidade, a liberdade e a igualdade religiosa são dispositivos que atuam na configuração das relações entre religião e Estado, de modo que, independentemente das especificidades que esse processo assumiu em nosso país, a laicidade se configurava como uma exigência política e econômica demandada internacionalmente pela modernidade.
Levando em consideração que no mundo ocidental esse período foi marcado pela consolidação do liberalismo como racionalidade política e econômica - por meio do modelo capitalista de produção -, suscitamos em que medida a desvinculação entre Estado e Igreja contribuiu para a viabilização de tais projetos, tendo em vista que séculos atrás o continente europeu se viu mergulhado em disputas político-religiosas que ao mesmo tempo em que fizeram emergir a liberdade religiosa e o pluralismo confessional também invocaram a formação dos estados-nação, dando maior controle sobre a economia para estes em detrimento da Igreja Católica.
É sabido que, ainda que paradoxalmente, no percurso de sua história, o Vaticano condenou categoricamente a exploração e o acúmulo de riquezas pelo homem, sobretudo quando estes se fundamentam na exploração do homem pelo homem. No contexto em questão não foi diferente. No mesmo ano de 1891, a Santa Sé, chefiada pelo Papa Leão XIII, editou a conhecida encíclica Rerum Novarum.
A Igreja Católica se viu, mais uma vez, passando por uma crise em relação ao poder de governo que exercia sobre a vida das pessoas, em um momento em que a aristocracia agrária europeia passou a comungar com o Estado liberal; a revolução industrial reorganizou a sociedade e as riquezas dividindo-as entre burgueses e operários; as ideologias posicionadas à esquerda, no contexto de um espectro político, se fortaleceram e os avanços técnico-científicos incidiram como melhorias na vida de poucos.
O movimento causado por essa encíclica papal, mundialmente conhecido como Doutrina Social da Igreja, atuou exatamente sobre essas questões. Silva (2014) aponta que uma das primeiras medidas tomadas pela Igreja foi a revisão da sua concepção de males sociais. De acordo com a autora, as consideradas precariedades que acometiam o mundo eram percebidas pela Igreja, no entanto, não como problemas estruturais e contextuais da sociedade, e sim como questões pessoais inerentes a uma moralidade e a um direito cristão.
Nesse sentido, interpretava a questão social (expressão datada de 1830), pela linguagem filosófica que concebia a sociedade como um organismo doente a ser curado. Daí a noção de males sociais, que não era só dela. Nem mesmo a noção de problema social fazia parte das noções iniciais com o social. (Silva, 2014, p. 93)
Nesse sentido, a Rerum Novarum indicou um processo de renovação do papel da Igreja de São Pedro, de modo que esta, sem deixar de lado a função de transcendência que exercia, passou a tomar os conflitos sociais na perspectiva de desafios seculares, isto é, da ordem da vida dos homens, assumindo para si e para o mundo uma função concretamente política.
No entanto, considerando que os principais movimentos que preocupavam a Igreja eram o liberalismo, o comunismo e o anarquismo; estes, em ascensão, passaram a ser considerados por ela as raízes do mal que se apoderava da humanidade, sendo a encíclica de 1891 o documento que em nome da renovação, não só da Igreja, mas também dos rumos da vida na Terra, explicaria como e por que deveriam ser combatidos.
Quanto ao liberalismo, a Igreja se posicionou a favor do papel do Estado como regulador das relações econômicas. Para a moralidade cristã católica, os acúmulos e excessos constituem pecado, de modo que alguma instância terrena deveria estar encarregada de impedir que os ricos ficassem cada vez mais ricos. Nesse documento, o Papa Leão XIII chega a afirmar que na vida após a morte os ricos serão julgados pelo excesso de riqueza. Por outro lado, ao longo de seu corpo textual, a encíclica sustenta energicamente a importância da propriedade privada como um dos elementos ordenadores das relações em sociedade, oferecendo como conforto aos desprovidos dela que "o que importa é o reino dos céus - lá no andar superior seremos todos iguais" (Silva, 2014, p. 96).
Nesse documento, a Igreja também se manifestou sobre as relações trabalhistas, influenciando os Estados na produção de suas legislações em torno do tema e atuando no exercício de apaziguar as tensões entre trabalhadores e patrões. A Rerum Novarum, por exemplo, se ocupou da jornada de trabalho e da saúde do trabalhador. Naquilo que diz respeito ao trabalho realizado por mulheres e crianças, aconselha às primeiras os afazeres domésticos e às segundas a observância de idade adequada para o ingresso no mercado de trabalho. Nesse ponto, aparece também a noção de alguns trabalhos que podem ser desenvolvidos por criança, desde que não atentem à vida, à saúde e ao bom desenvolvimento físico e moral dos infantes. Essas questões trabalhistas revelam também a preocupação da Igreja com a manutenção da organização familiar tradicional, o que é reforçado quando justifica o recebimento de um ordenado fixo e periódico por parte do trabalhador para o seu sustento e o de sua família.
O direito à greve foi radicalmente condenado, entendendo que essas paradas por melhores condições de trabalho provocam conflitos entre os polos das relações trabalhistas e desarmonizam aquilo que a Igreja passou a tomar por campo social. Aconselha aos trabalhadores a economia de seus salários a fim de construírem seu próprio patrimônio. Nesse sentido, Silva (2014) aponta a valorização da propriedade privada como elemento divino e natural ensejado pela instituição católica. Em efeitos, esse papel tanto de mediadora entre Estado, setor privado e trabalhadores quanto de ordenadora das relações sociais, incorporando e influenciando demandas em torno da elaboração de direitos sociais e trabalhistas funcionava, em certa medida, como uma estratégia para barrar os movimentos comunistas e anarquistas, objetivando certa contenção das tensões sociais. Não nos esqueçamos que, em última instância, o que essa política cristã almejava era a manutenção da ordem e das estruturas sociais sob as quais historicamente exercia incisivo governo.
No Brasil, a influência da Doutrina Social da Igreja também se fez presente, guardadas algumas particularidades. Nesse contexto, a instituição, preocupada apenas com a preservação das antigas estruturas, sejam elas familiares, religiosas, jurídicas ou políticas, levou algum tempo para se pronunciar em torno da noção de questão social que a sua metrópole política e religiosa desenvolvera. No âmbito político-institucional, durante o período conhecido por República Velha, centrou seu discurso na separação entre Estado e Igreja instaurada pela Constituição de 1891. Ao mesmo tempo em que reivindicava o seu papel na formação do país como igreja e religião oficial até então - posto que também não queria ser confundida e igualada aos cultos menores como os de matriz africana ou o espiritismo e o protestantismo trazidos com os imigrantes europeus (Giumbelli, 2000) -, reclamava o processo de secularização pelo qual a sociedade passava, fazendo o prognóstico de um futuro sombrio para o país e apontando como cura para o enfraquecimento da fé, e daquilo que entendia como ócio, a religião e o trabalho (Silva, 2014).
Com essas preocupações em mente, e no horizonte a ameaça de movimentos comunistas que começavam a se organizar no país, é que a Igreja passou a se aproximar da classe operária. Inicialmente, com uma clara intenção catequizadora, acabou sendo em certa medida sensibilizada pelas questões relativas às condições de vida e de trabalho experimentadas pelos trabalhadores. Esse período ficou conhecido como Catolicismo Social Brasileiro, de modo que nas décadas subsequentes, a Igreja passou a participar e mesmo viabilizar o debate sobre a elaboração de legislações de proteção aos trabalhadores, sem deixar de colocar em circulação o discurso da ética e moral cristãs.
O Estado e a Igreja na assistência aos "menores"
Diante desse contexto sociopolítico, vimos florescer em 12 de outubro de 1927 a primeira grande lei da República Brasileira dedicada à assistência e proteção à infância. O Decreto nº 17.943-A, também conhecido como "Código Mello Mattos" em razão do juiz, professor e político José Cândido de Mello Mattos ter sido o grande idealizador desse projeto, é não raro considerado o marco de inauguração da questão do "menor".
Ao trabalhar a partir desse termo, "menor", o Código de 1927, produz dois deslocamentos importantes; primeiro, divide a infância em "crianças" e "menores"; e concentrando seus esforços naquela parcela compreendida como "menores", opera uma segunda e interna divisão. Àqueles aos quais se destinou a alegoria do "menor", passam a ser tomados como objeto de intervenção por parte de uma série de instituições como, de um lado, os abandonados e órfãos e, de outro, os delinquentes perigosos.
Na lógica incorporada por esse Código, aqueles "menores" considerados "crianças" eram os filhos da burguesia, nascidos e criados no interior do modelo familiar tradicional. Em geral, essas crianças eram brancas e desde cedo subjetivadas pelos valores morais liberais burgueses e cristãos. A elas o Código não se aplicava; o que não quer dizer que não eram objeto de práticas intervencionistas, a diferença é que eram outras.
Essa figura entendida como "criança" deveria ser preservada e protegida pela família, frequentaria as boas escolas ou receberia educação em casa; aprenderia sobre Filosofia e o pensamento político da época e seria sensibilizada para as mais belas artes. Seu corpo e sua saúde também seriam alvos dos mais atentos olhares, os pais e a Pedagogia incidiriam sobre seus gestos e movimentos, o objetivo era um corpo adestrado. Aos varões, a virilidade sob medida, e às donzelas, o recato e a delicadeza. O saber médico atentaria para desde os riscos externos à casa aos quais a criança eventualmente se expunha até os gostos mais particulares e as brincadeiras mais íntimas. A sexualidade, desde cedo, seria vigiada, moralizada, medicalizada, e a porta do quarto jamais estaria fechada.
Em suma, uma rede mesclada entre o público e o privado, formada por uma série de discursos médico-legais, morais e religiosos, se edifica para recolher e proteger tanto as ditas "crianças" quanto suas famílias - com toda atenção também em torno da figura da mulher dona de casa/esposa/mãe - dos perigos de contaminação que a vida fora da propriedade privada lhes espreitava. Como aponta Rizzini (2011), o governo dessas vidas se pautava pela arte de cultivar bons indivíduos.
As "não crianças", aqueles compreendidos pelo Código de 1927 como "menores", eram em geral os filhos dos negros ex-escravos, em muitos casos, filhos bastardos dos senhores brancos com suas escravas negras, ou ainda de imigrantes europeus desempregados. Pouco importava o arranjo familiar em que haviam sido concebidos, não eram em hipótese alguma as "crianças" da tradicional família burguesa.
É curioso pensar como em nosso país o dia de decreto da referida lei, 12 de outubro, foi progressivamente sendo capturado pelo mercado e pela sociedade e transformado em uma data em que milhares de crianças, sobretudo aquelas filhas da classe média, são celebradas e presenteadas pelo fato de serem crianças, quando o acontecimento que a originou afirmava uma legislação e todo um aparato institucional extremamente repressivo sobre aquelas que nem crianças tinham o direito de ser.
A categoria "menor", conforme apontado anteriormente, passava por uma segunda divisão. Se o Código Mello de Mattos, em um primeiro movimento, procurou eleger qual joio teria o direito de vir a ser trigo, com aqueles que não lograram ser plantados e colhidos, decidiu por classificá-los em sementes reaproveitáveis e descartáveis.
A primeira classificação interna dizia respeito aos "menores" abandonados, bastardos, expostos, órfãos e desvalidos. Percebidos como "recuperáveis", na medida em que ainda não haviam cometido nenhuma ilegalidade, o Juizado de Menores deveria encaminhá-los para os abrigos, oferecendo-lhes assistência, educação e segurança. A segunda classificação interna, tocante àqueles que foram flagrados cometendo pequenos furtos, roubos ou até mesmo algumas imoralidades - inaceitáveis para suas idades -, a ordem era o recolhimento pelo comissário de polícia, entrega ao juiz e consecutivo encaminhamento às instituições de correção e disciplinamento.
Na prática, o que de fato acontecia com esses "menores" não era tão discriminado como pode parecer. Abandonados e/ou delinquentes, ambos marginalizados socialmente, eram muitas vezes depositados nas mesmas instituições e, ainda que fossem para lugares diferentes, o cuidado e a proteção que lhes eram dispendidos eram muito semelhantes.
Esses mecanismos eram sustentados por discursos de gênese europeia que passaram a circular em nossas principais cidades, assumindo contornos e adaptações à brasileira. Para administrar a horda de escravos libertos e imigrantes desempregados, que, ao melhor estilo do Direito Penal, vadiavam pelas ruas, se fez funcionar o correlato entre "periculosidade" e "vigilância". A preocupação com a ordem urbana era tamanha que se fez necessário atribuir a essa população o discurso de perigosos iminentes para sobre eles poder agir. A noção de periculosidade cai como uma luva.
De acordo com Foucault (2011), essa formulação do fim do século XIX, proposta inicialmente pelas teorias penais, afirma que "o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam" (Foucault, 2011, p. 85). Nesse sentido, se passa a tomar e a temer determinados grupos de indivíduos a partir de possíveis atos que venham a praticar ou até mesmo a futuras situações das quais possam se aproximar. Esse futuro malfadado e o poder de agir sobre ele encontram legitimidade quando forjam associações entre pobreza, desemprego, raça e modos de vida que, divergentes do ideário burguês e cristão, são entendidos com arbitrariedade sobre suas condições de existência.
Incorporada a noção de periculosidade e fabricado o indivíduo potencialmente perigoso, fazia-se necessária a criação de uma solução para o problema. A pergunta interrogava sobre como administrá-lo. Segundo Foucault (2011), a periculosidade faz emergir todo um conjunto de práticas e instituições as quais chamou de instituições de sequestro. Essas instituições têm por objetivo fixar esses indivíduos em seu interior, ou seja, demarcar suas posições e definir suas funções nessa trama e controlar para que suas existências jamais se distanciem desta. Operava-se um sequestro de seus corpos, virtualidades e tempo de vida. Para esse processo, o autor deu o nome de normatização (Foucault, 2008); em efeitos, o que se buscava era assegurar que indivíduo e norma correspondessem aos dois lados de uma mesma moeda. As sociedades que a partir do século XIX passaram a funcionar sob essa lógica se denominaram sociedades disciplinares, as quais, inclusive o Brasil, têm como um de seus sustentáculos a "vigilância".
Vigilância permanente sobre os indivíduos por alguém que exerce sobre eles um poder - mestre-escola, chefe de oficina, médico, psiquiatra, diretor de prisão - e que, enquanto exerce esse poder, tem a possibilidade tanto de vigiar quanto de constituir, sobre aqueles que se vigia, a respeito deles, um saber. (Foucault, 2011, p. 88)
Estamos falando aqui dos manicômios e dos loucos, das fábricas e seus operários, dos exércitos e seus soldados, das escolas e seus alunos, e também de todas aquelas outras instituições públicas e privadas que vão se multiplicando e se colocando como destinos àqueles que acabam entrando no catálogo de indesejáveis da sociedade. Encontram-se aí nossos menores pobres, pretos, abandonados e delinquentes e, para eles, os asilos, as casas de correção, as escolas agrícolas, orfanatos e patronatos.
Em um período no qual se observa uma progressiva diminuição da influência da Igreja Católica nas práticas de governamento do mundo ocidental, quando se tem lugar um intenso processo de laicização dos Estados e de secularização das sociedades, vemos o fortalecimento de saberes técnico-científicos e, em certa medida, uma sobreposição destes naqueles campos que outrora eram dominados pelo discurso religioso.
Nesse sentido, imbricados às noções de periculosidade e vigilância, em um jogo de forças no qual um se alia ao outro, passam a circular os discursos higienistas, eugenistas e moralistas. A Medicina será a grande porta-voz do higienismo social, o qual condenou a miscigenação racial, formulando a ideia de que por meio dela apareceriam toda sorte de doenças físicas e morais (Coimbra, 2003), de modo que ordenar e segregar não só os indivíduos, mas também os espaços de circulação pelas cidades, passou a ser uma questão de saúde pública.
Apoiado nesses discursos, começou a se desenhar o que mais tarde se transformaria em uma rede de apoio e proteção à infância. Em termos de direitos, se passou a garantir "proteção legal" ao infante até os 18 anos de idade, incluindo-os assim na esfera de direito e tutela do Estado. A roda dos expostos1 é abolida. No entanto, permanece sob sigilo o registro paterno, deixando clara a intenção de proteger a identidade daqueles respeitados homens e pais de família que, eventualmente, se aventuravam em relacionamentos extraconjugais.
O termo "abandono físico e/ou moral" é incorporado e como solução para o problema tem lugar o instituto jurídico da suspensão e/ou perda do poder dos pais. Considerando que a boa criação dos filhos era ditada pelo modelo familiar burguês e cristão, a criminalização das estratégias de sobrevivência elaboradas pelas famílias pobres é consequentemente legalizada.
Com isso, vemos aparecer a figura da "soldada", de modo que o poder de guarda das "menores" abandonadas, por determinação judicial, poderia ser conferido às famílias ou às instituições públicas ou privadas. Quando encaminhadas às casas de famílias, essas meninas desempenhavam trabalhos domésticos, em contrapartida, os chefes das residências se responsabilizavam pela sua vigilância, educação e moral.
O Código de 1927 fixou a idade penal aos 14 anos, estabelecendo que aquele "menor" que se encontrava em conflito com a lei dos 14 aos 18 anos era submetido a processo especial passível de liberdade vigiada. Em comparação ao Código Penal de 1890, se considera esse documento um avanço, visto que naquele a imputabilidade se fixava abaixo dos dez anos de idade, de modo que "menores" e adultos apenados eram designados às mesmas instituições de confinamento. Outra modificação importante foi a presença do advogado de defesa, que até então não existia, indicativo de um mínimo de controle da juridicidade desses processos. No entanto, anos mais tarde, essa prerrogativa seria abolida.
Se com o princípio da laicidade incorporado pela Constituição de 1891, a Igreja Católica foi formalmente excluída do arranjo político-institucional do Estado e o Código de 1927 direciona "menores" e adultos em situação de cumprimento de pena para instituições distintas, mesmo anterior a tal lei, passa a se observar certa proliferação de instituições públicas e privadas específicas para a colocação dessa população infantojuvenil. Nesse sentido, podemos afirmar que o Código em questão veio também para dar respaldo legal às práticas que já eram realizadas. Em 1903, por exemplo, foi criada a Escola Correcional 15 de Novembro, a qual tinha por objetivo educar física e moralmente os "menores" de modo a integrá-los no mercado de trabalho. Asilos e orfanatos aliaram-se a esse mesmo discurso e em 1908 teve lugar o Patronato de Menores, conjunto de seis instituições filantrópicas fundadas por juristas, das quais quatro estavam sob a direção de religiosos. Já para as meninas infratoras, destinava-se a Escola Alfredo Pinto, coordenada pelas Irmãs do Bom Pastor (Faleiros, 2011).
Dessa forma, a Igreja Católica continuou a desenvolver seu trabalho caritativo em direção aos desprovidos de toda sorte, modificando um pouco a posição que até então ocupava. Também não se deve duvidar que mesmo aquelas instituições que não se encontravam sob a administração da Igreja não tinham suas práticas permeadas por conteúdo religioso. A lógica que formulava o problema social da infância pobre e a ele oferecia soluções estava contaminada pelo higienismo e a retirada dessas pessoas dos espaços públicos - limpeza urbana - e o seu confinamento em espaços delimitados de correção, educação para o trabalho e moralização de suas condutas tinham por finalidade, acima de tudo, a higienização de suas almas.
O trabalho infantil também passa a ser alvo de regulação, ficando proibido aos menores de 12 anos e aos menores de 14 que não tenham cumprido instrução primária (Faleiros, 2011, pp. 47-48), bem como aquele noturno ou que atente à vida, à saúde física e moral dos menores. A aplicação dessa norma e a sua fiscalização provocam certa reação negativa dos industriais, visto que ela não atendia aos seus interesses. Ainda que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) tenha sido sancionada em 1943, esse documento caracteriza-se por ser uma reunião das leis referentes às relações de trabalho até então existentes, na medida em que, tanto no Brasil como em outros países do Ocidente, a formulação das legislações em torno do tema, assim como as discussões que as antecedem, foram fomentadas pelas ideias da encíclica papal Rerum Novarum, fazendo-se presente também aqui a influência do catolicismo.
A partir da década de 1930, a racionalidade em torno das práticas de cuidado, proteção e governo da população infantojuvenil reafirma, com algumas transformações, o discurso da orientação correcional. Nesse período, é criado o Serviço de Assistência ao Menor (SAM), o qual se caracterizou pela orientação correcional repressiva, criação de reformatórios e novas casas de correção, patronatos agrícolas e escolas de aprendizagem de ofícios urbanos (Batista, 2003, p. 71).
Em relação à participação do religioso no espaço público, na Era Vargas, teve lugar uma rearticulação do setor público com o privado, fortalecendo as práticas de filantropia, o que viabilizou uma reorganização da Igreja Católica no que diz respeito à sua participação no campo de ação social e assistencial. A Constituição de 1934 reoficializa o arranjo entre Igreja e Estado excluído da norma constitucional desde 1891, na medida em que altera o princípio da laicidade assumido na primeira república (art. 113/6, CR/1934). Giumbelli (2008) relembra que o ensino religioso na rede pública passa a ser permitido (art. 113/5, CR/1934) e o casamento religioso uma alternativa legal ao casamento civil (art. 113/7, CR/1934), da mesma forma que as relações de colaboração e parceria entre Estado e Igreja, percebidas no terreno social, recebem reconhecimento legal. O autor (Giumbelli, 2008) ainda destaca que a função caritativa reconhecidamente desempenhada primeiro pela Igreja Católica e mais tarde pelas religiões espíritas, por meio de suas ações e práticas terapêuticas, contribuiu para a legitimação da presença do elemento religioso no espaço público brasileiro.
O período que segue de 1945 a 1964 é considerado como aquele que trouxe a derrocada do SAM. Faleiros (2011, p. 61) aponta que as críticas ao sistema vigente começam a emergir tanto por parte de atores governamentais como da sociedade, a imprensa e o parlamento começam a receber denúncias de abusos e maus-tratos praticados nos espaços regidos pelo SAM. Atores tanto do setor público quanto do privado começam a sustentar a extinção do sistema em questão e a criação de um novo órgão de assistência a partir da justificativa da proteção e do cuidado da criança e do adolescente, bem como de suas famílias. A criação desse novo órgão, denominado Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem), é aprovada pelo congresso em novembro de 1964, poucos meses após o golpe que instaurou o regime civil-militar brasileiro, de modo que a proposta apresentada se configurou, mais tarde, na Doutrina do Menor em Situação Irregular.
A infância e a adolescência entre a ditadura civil-militar e a politização da Igreja
Uma reformulação do Código de Menores de 1927 foi levada a cabo em 1979, quando o que se formulou como lógica de assistência à infância e adolescência foi a Doutrina do Menor em Situação Irregular. O discurso que passou a predominar naquilo que diz respeito ao modo como o Estado vai pensar a infância e a adolescência empobrecidas era a noção de que as questões relativas à situação de pobreza e marginalidade social desses indivíduos eram de responsabilidade quase que exclusiva dos arranjos e contextos familiares em que se encontravam.
Em outras palavras, a pobreza e a miséria, a fome, o desemprego, o analfabetismo e a evasão escolar, os "descuidados" com a saúde, as práticas e modos de vida divergentes daqueles produzidos e reproduzidos pelo ideário moral burguês, heterossexual, branco e cristão, não teriam relação com a realidade, ao mesmo tempo estrutural e contextual, forjada historicamente pelo país, seja no âmbito político, econômico e social, seja então à falta de acesso e garantia de direitos a qual tal população estava submetida. As problematizações de Coimbra, Matos e Torralba (2002) desvelam que, no campo da produção de subjetividades, o que se outorgava como verdade para essas vidas eram as noções de família desestruturada e fracasso dos pais em relação à criação de seus filhos.
O discurso da criança e do adolescente em situação irregular é tributário da Doutrina de Segurança Nacional em vigor na época. Naquele contexto, o país se via mergulhado em uma ditadura civil-militar (1964-1985) e a racionalidade política caracterizava-se pelo autoritarismo, burocracia e cientificismo. Tal doutrina estabelecia todo um catálogo de inimigos internos da nação; eram homens e mulheres, adultos e jovens, estudantes politicamente orientados à esquerda, socialistas, comunistas, entendidos como perigosos ao regime supostamente de preservação da democracia imposto pelos militares.
O conhecido "milagre brasileiro", caracterizado por um período de intensa industrialização e dependente de investimentos por parte do capital estrangeiro, iniciado durante o governo do presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961), precisava ser preservado e impulsionado. Ao lado das noções de ordem e progresso, consagradas pelo pavilhão brasileiro, adicionou-se o imperativo da segurança. Do ponto de vista político e econômico, o que estava em curso era a viabilização de condições para a implementação de uma sólida e robusta lógica neoliberal.
Nesse catálogo de inimigos, acabaram entrando também aqueles que desde muito já vinham sendo perseguidos pelas políticas higienistas, eugenistas e moralistas que ganharam força com a aurora republicana. Dessa forma, deu-se continuidade à criminalização da pobreza e de seus filhos, imprimindo em alta resolução naqueles jovens, em especial os negros, do sexo masculino e moradores dos morros e favelas das grandes cidades brasileiras, a imagem de um dos inimigos internos da Nação.
Com a Doutrina da Situação Irregular, a estratégia que em parte se desdobrava era a de esconder com uma cortina de fumaça as discrepantes desigualdades sociais. O acirramento de tais problemas provocados, sobretudo, pelo arrocho salarial e pela intensificação da concentração de renda, levou inúmeras crianças e adolescentes para fora daquelas instituições incumbidas de produzir bons cidadãos.
Batista (2003) explica que nesse período as drogas começam a circular por entre os morros cariocas e a favela passa a ser o lugar de compra e venda de tais substâncias. Do outro lado da moeda, aparecem as estratégias de controle político por meio de uma truculenta segurança pública como tecnologia de perseguição daqueles que de alguma forma se apresentam próximos ou associados ao tráfico e guerra às drogas, como se convencionou chamar.
Nesse período, a Igreja, em certa medida excluída das relações políticas de Estado - com exceção daqueles setores que apoiaram a ditadura -, se coloca como uma importante defensora da democracia e dos direitos humanos, passando a participar inclusive da organização de movimentos sociais e partidos políticos. Vemos florescer a Teologia da Libertação, que teve grande importância não só no Brasil, mas na América Latina como um todo, na defesa e na luta por melhores condições de vida da população pobre. Tal teologia acaba também, em certa medida, se sustentando no que outrora se chamou de Doutrina Social da Igreja, considerada por muitos um certo flerte do catolicismo com alguns conteúdos socialistas.
Essa politização da cristandade católica diante dos problemas sociais brasileiros se faz sentir também com o aparecimento das Campanhas da Fraternidade, a partir de 1964. Como um projeto idealizado pela Cáritas Brasileira, organização não governamental vinculada à Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), a campanha inicialmente objetivava arrecadar fundos para suas ações sociais e assistenciais de modo a torná-las autônomas, sendo realizada pela primeira vez na quaresma de 1962, na cidade de Natal/RN. Dois anos mais tarde, passou a ser um projeto nacional. As primeiras campanhas realizadas tinham como tema questões relativas à vida interna da Igreja e às relações com os fiéis, ligando-se assim ao momento de renovação carismática que a instituição vivia. Com o passar dos anos, a campanha foi assumindo temas cada vez mais relacionados a uma problemática concreta que afeta a sociedade brasileira, conclamando e responsabilizando os fiéis na superação da questão apontada anualmente.
Em 2005, o tema era "Campanha da Fraternidade Ecumênica", com o lema "Felizes os que promovem a Paz", e tinha por objetivo promover a solidariedade e uma cultura de paz com a união das mais diversificadas igrejas cristãs e pessoas interessadas. Em 2013, ano de comemoração da 50ª campanha, a temática abordada foi "Fraternidade e Juventude" e o lema "Eis-me aqui, envia-me" (Is. 6,8); o objetivo principal desse ano foi o fortalecimento do protagonismo juvenil, para que com a Igreja e a mensagem de Jesus Cristo a juventude encontrasse acolhimento e apoio em relação aos contextos de mudança de valores que a época estaria impondo. Ao longo dos seus 53 anos de atuação, a CNBB trouxe como tema da campanha questões pertinentes à infância, adolescência e juventude inúmeras vezes (1987: "Fraternidade e Menor"; 1992: "Fraternidade e Juventude"; 1998: "Fraternidade e Educação"; 2001: "Fraternidade e as Drogas").
Também é nesse contexto que emergem como um poderoso fenômeno religioso as igrejas de denominação evangélica neopentecostal, tendo a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) como sua precursora. Essas igrejas se caracterizam por pregarem a Teologia da Prosperidade, a guerra contra o Diabo, retomando práticas de exorcismo como arma de combate e, ainda, por desempenharem seu proselitismo religioso por meio dos mais variados meios de comunicação, como televisão, rádio, Internet e mais recentemente pelas redes sociais. Mariano (1996) aponta que inicialmente se concentravam predominantemente entre as camadas mais empobrecidas da população, no entanto, essa realidade vem sendo alterada desde a ascensão financeira de alguns de seus membros, quando passaram a encontrar adeptos também nos segmentos de classe média.
Quanto a certo código de condutas e comportamentos, as igrejas neopentecostais costumam ser mais flexíveis com seus fiéis em oposição à rigidez ascética postulada pelas evangélicas anteriores a esse fenômeno. A esses é permitido usufruir de bens culturais e de consumo bastante diversificados e facilmente encontrados à disposição de grande parte da população, como diferentes estilos de cinema, literatura, música, roupa, etc., o que também se coloca como uma estratégia de diálogo e encontro com a população juvenil. Por outro lado, posicionam-se radicalmente contra temas como gravidez na adolescência, descriminalização do aborto, consumo de álcool e outras drogas, legalização do uso da maconha, manutenção da idade penal vigente, possibilidade de relações homossexuais e extraconjugais.
Entre a Doutrina da Proteção Integral e o Protagonismo Juvenil: instituições religiosas na era das políticas públicas e dos negócios
Em 13 de julho de 1990, foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente, resultado de um amplo debate realizado nos anos anteriores envolvendo agentes do campo dos direitos humanos, movimentos sociais em defesa dos direitos da criança e do adolescente, políticos, intelectuais e alguns setores religiosos, sobretudo da Igreja Católica. O ECA, como foi apelidado, constitui um importante avanço, na medida em que propõe uma ruptura com a lógica estabelecida pelos dois códigos menoristas anteriores (1927 e 1979).
Na esteira do processo de redemocratização do país, levado a cabo pelo Movimento Diretas Já em 1984, Assembleia Constituinte de 1986 e, em seguida, com a promulgação da Constituição de 1988, tais movimentos acabam por recolocar, talvez mais do ponto de vista da lei escrita, a garantia de direitos à população como objetivo central da política brasileira. Nesse sentido, passamos a ter juridicamente assegurado todo um sistema de direitos e garantias compreendidas como humano-fundamentais.
Contudo, se a construção de uma nova maneira de pensar as problemáticas relativas à infância e à adolescência estava fortalecida naquele momento no interior do nosso país, não se deve ignorar que esta é signatária de uma discussão que ganhou corpo internacionalmente a partir da década de 1980, liderada pela Organização das Nações Unidas (ONU), tendo como documento de referência a Convenção Internacional dos Direitos da Criança do ano de 1989.
Essa concomitância produziu legislações, políticas, discursos e processos de subjetivação semelhantes em torno da infância e da adolescência em muitos países. Na América Latina, por exemplo, mais ou menos no mesmo período, países como o Uruguai e a Argentina também se ocuparam de tais questões. Aqui e nesses países, guardadas as suas especificidades, a lógica que passou a pautar as discussões e a produzir as legislações sustentava que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos. No Brasil, essa lógica vai aparecer sob a insígnia de Doutrina da Proteção Integral.
Essa doutrina, ao reconhecer a população com idades até 18 anos como sujeitos de direitos, abandona, ao menos do ponto de vista documental, o termo "menor", não só utilizado pelos dois códigos anteriores, mas também amplamente difundido na sociedade. Nesse sentido, a Doutrina da Proteção Integral pode ser considerada um avanço quando desloca o entendimento das fragilidades em torno da infância e adolescência pobre brasileira para a sociedade e o poder público, afirmando que essas questões são, em primeiro lugar, efeitos do processo de estruturação socioeconômica e política de nosso país. Dessa forma, o ECA procura expiar a culpa atribuída às famílias pobres pelas legislações passadas, reconhecendo nessas famílias estratégias e práticas de cuidado possíveis e legítimas a partir do contexto em que acontecem, fortalecendo assim os laços familiares e as redes de ancoragem socioafetivas e comunitárias.
A tese sustentada por essa doutrina retoma a aposta feita pela Constituição de 1988, reafirmando que a construção e a efetivação de políticas públicas eficientes e eficazes são fundamentais para a transformação da realidade de abandono e desamparo infantil (Coimbra, 2009). Por outro lado, ao mesmo tempo em que o ECA reconhece crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, assim o faz os compreendendo como sujeitos, principalmente, objetos de proteção e tutela exercidas pela família, sociedade e Estado.
Se a emergência desse discurso propõe a alteração da lógica menorista instituída, rompendo com a tradicional divisão entre infância pobre e burguesa, o conceito de proteção integral ainda mantém em funcionamento aquelas concepções biologicistas e psicologizantes, as quais objetivam a criança e o adolescente como seres em desenvolvimento e formação. Em uma via de mão dupla, essas concepções lhes impõem que aquilo que são singularidades, vicissitudes, modos de experimentar e conduzir a vida, ainda que contingentes e transitórios, seriam naturais e intrínsecos desse tempo de vida e, justamente por isso, imprescindíveis de serem administrados e geridos.
Em certo nível, o ECA reforça a ideia de que esses sujeitos ainda não têm capacidade suficiente para participarem da invenção de suas vidas, estando sob responsabilidade constante daquelas instituições que outorgaram para si o discurso da autoridade: a família, a escola, a igreja, a Medicina, a justiça etc. Em termos, o que se reproduz, sutil, porém continuamente, é um silenciamento e/ou uma surdez diante de tais vozes e desejos. Com isso, torna-se possível afirmar que mais do que sujeitos de direitos, crianças e adolescentes permanecem como sujeitos do Direito, esteja ele no plano secular ou divino.
Sob essa égide, a partir de 1990, vemos se tramar toda uma teia de ações, projetos e programas, alguns de governo, outros de Estado, naquilo que tange à agenda política assumida à infância e adolescência. Essas políticas públicas, ainda que voltadas à infância e adolescência, em função do marco etário expresso nesse documento para a definição da categoria adolescente (18 anos), acabaram atingindo significativa parcela da população atualmente compreendida como juventude.
Isso se deu em razão do fato de que embora o termo "juventude" já circulasse há bastante tempo, tanto teoricamente no meio acadêmico quanto de forma expressa ou tácita por entre as instituições públicas e privadas, movimentos sociais, políticos ou religiosos, bem como na sociedade em geral, ele ainda não havia sido usado para designar por parte do Estado uma categoria instituída. Isto é, um segmento populacional que seria oficialmente objeto de intervenção estatal naquilo que diz respeito ao modo como passaria a ser pensado, falado, ouvido, quantificado, qualificado, calculado, projetado, manejado e desejado.
Sendo assim, para além da concepção biologicista e psicologizante que o termo adolescente tradicionalmente comporta, o ECA acabava também por fragmentar a atual categoria juventude em dois grandes grupos, de modo que uma segunda parte dessa população, aquela com idade igual ou superior a 18 anos, recebia tratamento universal, na medida em que era reconhecida como adulta, no que diz respeito ao acesso às políticas públicas e ao exercício da cidadania.
Muitas dessas políticas foram implementadas na confluência entre Estado e Igreja; se de um lado as diretrizes e os recursos têm origem na plataforma de governo e arrecadação de tributos, de outro, tornou-se prática comum a contratação de pessoas jurídicas, tais como associações e fundações, vinculadas a entidades religiosas, que, ao receberem o montante financeiro, se encarregam tanto de administrá-lo - dando conta de todos os gastos necessários com estrutura, materiais e profissionais - quanto do desenvolvimento das ações e atividades que envolvem diretamente o público infantil, adolescente e juvenil.
Esse arranjo, além de expressamente autorizado pela própria Constituição de 1988, se encontra também legitimado social e culturalmente, visto que em especial a Igreja Católica tem desempenhado historicamente forte papel caritativo no governo das populações tidas como miseráveis e/ou fragilizadas socioeconomicamente. Em alguns casos, a contratação de tais entidades prescinde, inclusive, do rito legal ordinário exigido para a formalização dessas parcerias, uma vez que, em muitas localidades, as únicas instituições que preenchem os requisitos definidos pela legislação, ou tem aquilo que essa mesma lei entende por notório saber e vasta tradição tocante à matéria, são de matriz religiosa.
Considerações finais
Neste artigo, discutimos como os arranjos institucionais entre o Estado brasileiro e a Igreja Católica aparecem na produção da proteção social à infância e à adolescência no Brasil a partir do século XIX. A partir de uma perspectiva foucaultiana, por meio da qual objetivamos mostrar como essa determinada formulação política, perpassada pelo pensamento religioso, produziu também uma específica e localizada forma de pensar e conceber a problemática do cuidado, da proteção e do controle da infância e da adolescência, bem como as continuidades e descontinuidades dessa prática.
Para tanto, abordamos concomitantemente como esse arranjo político está presente nas Constituições de 1891, 1934 e 1988, as práticas religiosas que contribuem para a emergência de uma certa noção de proteção à infância e adolescência e a tradução dessas práticas nos principais códigos e legislações sobre o tema. Com isso, neste trabalho, propusemos menos uma história das políticas de assistência à infância e à adolescência no Brasil, ou então uma análise da execução dessas políticas no contemporâneo, e mais: como esses focos de tensão nos indicam como um complexo pensamento composto por ideais de caridade, filantropia e moralismo cristão foi responsável pelo aparecimento de um conjunto de práticas destinadas ao governo da vida da população infantojuvenil brasileira, em especial daquela empobrecida.
Por fim, destacamos o quanto o discurso religioso continua operando no campo das políticas de assistência à infância e à adolescência, em conjunto com o sistema de garantia de direitos implementado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente a partir de 1990, seja no âmbito da implementação e execução de políticas públicas, seja no modo como concebemos a infância, a adolescência e suas questões.
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Recebido em: 29/4/2016
Aprovado em: 19/6/2019
1 De acordo com Marcílio (2006), a roda dos expostos foi um dispositivo circular e giratório, normalmente, introduzido em uma parede, onde crianças recém-nascidas eram abandonadas e postas ao cuidado caritativo, sobretudo das Santas Casas de Misericórdia, a partir do século XVI.