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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.14 no.2 São João del-Rei abr./jun. 2019

 

Juventudes e qualidade de vida

 

Youth and quality of life

 

Juventud y calidad de vida

 

 

Gislaine Cristina PereiraI; Sílvia ZuffoII; Eliana Gonçalves MouraIII

IUniversidade Feevale/RS
IIUniversidade Feevale/RS
IIIDocente da Universidade Feevale/RS

 

 


RESUMO

Qualidade de vida resulta da percepção do indivíduo de sua inserção na vida. Nesse sentido, estudos sobre qualidade de vida e juventudes ainda são pouco debatidos na sociedade, sendo a temática atribuída, na maioria dos casos, aos idosos. Desse modo, este trabalho visa ao entendimento do que seria qualidade de vida por meio de percepções cotidianas que jovens participantes de uma unidade do Projeto Pescar, em Canoas/RS, trazem sobre o tema. Para isso, foi realizada uma pesquisa de abordagem qualitativa, com método da observação participante, sendo as respostas categorizadas de acordo com os aspectos citados pelos jovens com mais relevância. Os resultados apontam como categorias mais importantes para a maioria dos jovens família, convívio social e saúde, concluindo-se, assim, que para os sujeitos participantes do Projeto Pescar, esses temas são essenciais para o alcance da qualidade de vida.

Palavras-chave: Juventudes. Qualidade de vida. Projeto social.


ABSTRACT

Studies on the quality of life and the youth are not properly debated in society yet; the subject is usually categorized in other fields of social studies. This study is an approach to the quality of life of young participants from a unit of Project Pescar in Canoas/RS through their own perspective. In order to achieve that aim, a qualitative research has been done using the method of participant observation, which took the answers and categorized them according to the relevance that the youngsters themselves defined. The results show that the most relevant categories for the majority of them are the following: family, social interaction and health care. The conclusion is that, for the participants of Project Pescar, those are the essential categories for a better quality of life.

Keywords: Youth. Quality of life. Social project.


RESUMEN

Los estudios sobre calidad de vida y juventud todavía son poco debatidos en la sociedad, siendo la temática atribuida a otras categorías sociales. De este modo, este trabajo pretende aproximar el entendimiento de los jóvenes participantes de una unidad del Proyecto Pescar en Canoas/RS, acerca de la calidad de vida, a través de las propias percepciones que traen sobre el tema en el cotidiano. Para ello, se realizó una investigación de abordaje cualitativo, con método de la observación participante, siendo las respuestas categorizadas de acuerdo con los aspectos citados por los jóvenes con mayor relevancia. Los resultados apuntan como categorías más importantes para la mayoría de los jóvenes: familia, convivencia social y salud, concluyendo, así, que para los sujetos participantes del Proyecto Pescar, estos temas son esenciales para el alcance de la calidad de vida.

Palabras clave: Juventudes. Calidad de vida. Proyecto social.


 

 

Introdução

A temática relativa às juventudes ocupa lugar de destaque nos debates acadêmicos e desperta crescente interesse da sociedade. Ainda que os tradicionais estudos oriundos do campo da saúde considerem que se trata de um estágio do desenvolvimento humano, importa ressaltar que essa etapa da vida não deve ser analisada individualmente, mas, sim, no âmbito coletivo (Ariés, 1981; Perondi, 2013). Nesse sentido, a qualidade de vida das juventudes configura um desafio analítico de grande relevância, já que implica conhecer as idiossincrasias de uma vasta diversidade de modos de ser jovem, a fim de subsidiar políticas públicas que promovam a saúde e o bem-estar de uma população tão plural.

No presente texto, apresentamos os resultados de um estudo sobre qualidade de vida de jovens participantes das diversas ações voltadas às temáticas das juventudes desenvolvidas no âmbito do Projeto Pescar, logo, dentre essas temáticas, há a da qualidade de vida. Desse modo, atuando há 40 anos diretamente com jovens considerados "em situação de vulnerabilidade social", na faixa etária de 16 a 19 anos, o Projeto Pescar está presente em diversos estados brasileiros, bem como na Argentina, no Peru, no Paraguai e na África, buscando a inclusão social dos jovens atendidos por meio do investimento em seus desenvolvimentos pessoais, em suas cidadanias e, além disso, em seus aperfeiçoamentos profissionais.

O processo de formação implementado contempla uma metodologia definida pela Fundação Projeto Pescar que defende o investimento da carga horária em 60% dedicados ao Desenvolvimento Pessoal e à Cidadania e 40% voltados para a Iniciação Profissional do jovem. Inserida no contexto do Desenvolvimento Pessoal e Cidadania, a metodologia apresenta-se dividida em temáticas específicas, incluindo-se aqui a qualidade de vida (FPP, 2015).

A missão do Projeto Pescar é promover espaços de desenvolvimento pessoal e qualificação profissional aos jovens atendidos, logo, objetiva a inserção social e minimização das ditas "vulnerabilidades" vivenciadas por eles em uma "homologia de posição entre, por exemplo, os 'inúteis para o mundo', representados pelos vagabundos antes da Revolução Industrial, e diferentes categorias de 'inempregáveis' de hoje" (Castel, 2010, p. 27).

 

O estudo sobre qualidade de vida

O objetivo geral do estudo foi analisar o que os jovens atendidos pelo Projeto Pescar entendiam por qualidade de vida e quais os fatores que, segundo eles, influenciavam para que tivessem uma boa qualidade de vida. Tratou-se de uma pesquisa exploratória e descritiva, de abordagem qualitativa. O estudo foi realizado na unidade Sulgás, localizada em um município da região metropolitana de Porto Alegre/RS. O grupo foi composto por 18 jovens, sendo seis meninas e 12 meninos, cuja escolaridade situava-se entre o 9º ano do Ensino Fundamental e o 3º ano do Ensino Médio. A maioria dos jovens contava com o apoio da família - geralmente representada pela figura feminina, como avó, mãe ou tia - para participar das atividades.

A coleta de dados ocorreu em um único encontro. O tema tornou-se interesse dos jovens a partir do convite efetuado ao grupo pela representante da Comissão Interna de Prevenção a Acidentes (Cipa) para uma palestra sobre Qualidade de Vida no Trabalho, na programação da Semana Interna de Prevenção a Acidentes de Trabalho (Sipat). Antes mesmo de responder ao convite, observou-se que os jovens participantes do grupo passaram a debater o título da palestra. Assim, no primeiro momento, utilizando o método de observação participante, foi realizada uma roda de conversa sobre o que já haviam ouvido falar sobre qualidade de vida. Em seguida, foi sugerido que refletissem individualmente sobre a qualidade de vida em seu contexto, registrando, por escrito, o que entendiam por qualidade de vida e quais fatores na sua trajetória influenciavam sua qualidade de vida.

Os dados apresentados são resultado da resposta individualmente elaborada pelo jovem para as seguintes perguntas: 1. O que é qualidade de vida para você? 2. Quais os fatores consideras que influenciam para que tenhas uma boa qualidade de vida. Desse modo, todas as 18 respostas foram transcritas, organizadas em um único texto e compreendidas segundo análise de conteúdo, por meio da técnica da análise temática. Conforme Minayo (2002; 2004), a análise temática está direcionada à noção do tema e está vinculada a uma informação sobre um assunto determinado, podendo ser representada por uma palavra, uma frase ou um resumo.

Tendo em vista a multiplicidade de juventudes que compõem o contexto social, torna-se relevante apresentar, a seguir, algumas considerações sobre as juventudes, bem como esclarecer a concepção teórica sobre qualidade de vida que subsidia o trabalho.

 

Juventudes

A temática relativa às juventudes está longe de consensos, a começar pela definição do próprio período de desenvolvimento ao qual se refere. A Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (Cepal) afirma que ainda permanece uma "tarea compleja, tanto para el mundo acadêmico como para los gobiernos, delimitar una categoria de juventud que permita estabelecer cuales son los limites de esta etapa de la vida y como visibilizar sus particularidades sociohistoricas y necessidades" (2004, p. 290).

Para a ONU, a juventude corresponde à fase da vida situada entre os 15 e os 24 anos e, no Estatuto da Juventude, aprovado em 2013 no Brasil, a juventude define-se como a fase situada entre os 15 e os 29 anos. Ademais, em alguns países a juventude pode ser considerada como a fase que vai até os 35 anos. Não obstante, Flores (2016) assevera que para além de questões biológicas, também devem ser consideradas questões sociais e contingenciais que delimitam esse período da vida.

Sabe-se, consequentemente, que, ao longo da história, a juventude foi considerada, pela maioria dos autores, como um "vir a ser", como condição única de transitoriedade. Segundo Abramo (2008), somente em meados do século XX emergiu a conceito "juventude", compreendida como um tempo a mais de preparação para a vida "adulta". De acordo com a referida autora, a partir daí a preparação da juventude passou a demandar instituições especializadas - a escola, implicando a suspensão do mundo produtivo. Desse modo, livre das obrigações do trabalho e dedicada ao estudo em uma instituição escolar, a juventude passou a ser definida menos pelo critério do desenvolvimento biológico do que pela "condição juvenil" que passou a caracteriza.

Com efeito, nos últimos 15 anos, uma importante questão surgiu nos debates acerca da temática juventude: como sujeitos, os jovens passaram a ser considerados a partir do lugar social que ocupam, dando visibilidade para "o estudante", "o delinquente", "o vagabundo" que compõem as diferentes juventudes. Assim, concebido como um ser humano único, aberto ao mundo, com desejos e características próprias, foi se fortalecendo a importância da participação dos jovens na sociedade como expressão do reconhecimento de si como sujeito de direito (Perondi, 2013).

Considerando que vivemos em uma sociedade em constante transformação, de múltiplas exigências, caracterizada por crises em diversas instâncias (Bocayuva & Veiga, 1999), as questões que se colocam às juventudes são cada vez mais dramáticas, exigindo grandes esforços de adaptações. Nesse emaranhado global mutante, de forma plural, as juventudes tentam se adequar às suas realidades específicas, criando estilos próprios de interação. De acordo com Mário Simão, do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro, cada juventude "carrega as marcas e os valores de uma sociedade" (2014, p. 4). Trata-se de uma construção sociocultural, que tem por pilares uma gama de saberes e poderes, capazes de sustentá-la como categoria social (Abramo, 2008).

Perondi (2013) assevera que o Brasil começa a perceber, com ajuda de toda a produção teórica, que a juventude não é somente uma fase de passagem da infância para vida adulta, nem um estado singular com uma definição homogênea. O referido autor entende que o termo juventude esconde grande complexidade, abrangendo uma diversidade de expressões juvenis, e defende o reconhecimento plural do jovem, por meio da adoção do termo juventudes. Também Fraga (2003) enfatiza que a juventude não é homogênea e afirma que falar de juventudes abre espaço para o reconhecimento das diferenças existentes nesse grupo - tais como condição social, raça, etnia, gênero, que marcam a forma de vivenciar essa fase. Como o jovem pobre que é inserido na vida adulta precocemente, os negros e os índios são alvos de violência, e as meninas, por conseguinte, são atingidas pelo comportamento de uma sociedade machista. Esses exemplos evidenciam as especificidades de cada juventude e as profundas diferenças existentes entre os sujeitos que a compõe.

Assim, os jovens são pensados a partir da construção histórica e cultural. Há duas principais formas de situar os jovens socialmente. A primeira, a partir de sua localização nas instituições hegemônicas como família e escola, que veem o jovem em condição passiva, um ser em formação para acessar o futuro na esfera adulta. A segunda, a partir de sua localização nos espaços de socialização juvenil, criados por meio das brechas dos espaços institucionais ou no tempo livre. O diferencial dessa segunda forma é que os jovens são criadores desse processo (Perondi, 2013).

Contudo, cabe observar que os direitos das juventudes e o seu entendimento como sujeito de direito é recente. Apenas em 2010, com a criação da PEC da juventude como proposta da emenda constitucional, as juventudes tiveram sua inserção oficial no capítulo de direitos e garantias fundamentais na Constituição Federal. Capítulo esse, ademais, complementado pelo Plano Nacional da Juventude, que determinou incorporar integralmente os jovens no desenvolvimento do país e teve, em 2013, a aprovação do Estatuto da Juventude (Flores, 2016).

Distintamente de outros países da América Latina, no caso brasileiro, as ações desencadeadas pelas agências das Nações Unidas a partir do Ano Internacional da Juventude, em 1985, tiveram pouca repercussão na formulação de programas ou organismos específicos de políticas para esse grupo social (Ipea, 2016). Nesse aspecto, retoma-se a ideia de Ruas (1998) quando declara que os processos e natureza social somente passariam a fazer parte das agendas públicas a partir do momento em que passassem para a condição de natureza política, ou seja, do momento em que deixariam de representar o "estado de coisas", ou seja, mudar do estado que se encontra ou é entendido.

Finalmente, o Estatuto da Juventude aprovado em 2013 emerge tendo como principal objetivo a garantia de direitos fundamentais para o desenvolvimento e emancipação do jovem no Brasil. Assim, o cenário evolutivo sobre a concepção do termo "Juventude" traça um percurso marcado pelo surgimento e implementação das políticas públicas voltadas para essa fase da vida, reconhecendo que a "juventude" é afetada pelo contexto social e sofre o impacto de suas significativas transformações de forma diferenciada, demandando cuidados específicos. Considerando que a sociedade atual, marcada pelas profundas e intensas transformações da chamada pós-modernidade, repercute sobre as condições objetivas e no perfil da juventude e seu modo de viver, entende-se que qualquer estudo deverá necessariamente abordar essa reflexão, como está sendo demonstrado neste estudo.

Enfim, torna-se relevante entender a dinâmica presente no contexto atual das juventudes, mais do que isso, constitui uma "estratégia essencial para que se possa apostar em sociedades mais justas no acesso ao bem-estar e à participação cidadã [...] possibilitando-se maiores níveis de inclusão social dos jovens" (Henrique & Novaes, 2007, p. 7). Em outras palavras, o desenvolvimento de políticas públicas voltadas para a área, respeitando as diferenças e visando solidificar a sustentabilidade e a democracia no país, depende do conhecimento que evidencie as idiossincrasias das juventudes.

Nesse sentido, entendemos como valiosas todas as oportunidades para a instauração de espaços de escuta que acolham o debate sobre as mais variadas temáticas relativas às juventudes. O presente trabalho resultou do reconhecimento de uma oportunidade emergida no grupo que acolheu a reflexão sobre qualidade de vida dos jovens participantes do Projeto Pescar.

 

Qualidade de vida

A qualidade de vida constitui uma temática transversal que atinge inúmeras áreas do conhecimento humano, biológico, social, político, econômico, médico, etc. - resultantes de estudos científicos e não científicos (Almeida, Gutierrez, & Marques, 2012), o que implica em uma plêiade de compreensões, nem sempre convergentes, a respeito do tema.

Desse modo, de acordo com Herculano (2000), o debate acerca do termo "qualidade de vida" remete à necessidade de compreendê-lo como relativo, como uma questão que varia de acordo com diferenças individuais, sociais e culturais, bem como de acordo com o maior ou menor acesso às inovações tecnológicas. Na medida em que "os próprios determinantes e condicionantes do processo saúde-doença são multifatoriais e complexos", o debate sobre qualidade de vida deve reconhecer e considerar que saúde e doenças são processos resultantes de "um continuum relacionado com aspectos econômicos, sociais e culturais" (Gaspar & Gaspar, 2008, p. 21).

Segundo Crocker (1995), referindo-se ao economista Amartya Sen, o termo qualidade de vida pode ser definido com base em dois conceitos principais: capacitação e funcionalidade. A capacitação diz respeito às possíveis combinações de tudo que a pessoa está apta a ser ou fazer; enquanto a funcionalidade, às diversas coisas que ela é ou faz. Desse modo, entende-se que a capacitação reflete, em cada sujeito, as combinações alternativas de funcionalidades que ele pode conseguir. Nesse sentido, seguindo as ideias do referido autor, "a qualidade de vida pode ser avaliada em termos da capacitação para alcançar funcionalidades" (p. 30). Ou seja, não se avalia a qualidade de vida como um simples conjunto de bens, confortos e/ou serviços, mas por meio das oportunidades efetivas às quais a pessoa dispõe para ser o que é. Oportunidades dadas pelas realizações coletivas, histórias e presentes (Herculano, 2000).

Conforme Gaspar e Gaspar (2008, p. 25), "a qualidade de vida [...] pode ser vista como um constructo psicológico que descreve aspectos físicos, psicológicos, mentais, sociais e funcionais do bem-estar". Essa visão ampliada constitui o grande diferencial da prática dos profissionais da área das ciências humanas e da saúde.

Segundo Almeida e Gutierrez (2010), os estudos sobre qualidade de vida classificam-se de acordo com quatro abordagens: socioeconômica, biomédica, psicológica e geral. Trata-se de um modo de conceber e analisar qualidade de vida de forma mais ampla, constituindo uma alternativa viável para fugir do reducionismo biomédico. Minayo, Hartz e Buss (2000) abordam o tema como uma representação social baseada em parâmetros subjetivos e objetivos - aqueles seriam o bem-estar, a felicidade, o amor, o prazer e a realização social; estes, o resultado do desenvolvimento econômico e social de cada região.

Segundo Minayo, Hartz e Buss (2000), o entendimento de qualidade de vida é uma noção eminentemente humana, que busca expressar o grau de satisfação do indivíduo em relação à vida familiar, à amorosa, à ambiental e à própria estética existencial. O termo abrange muitos significados que refletem experiências individuais e coletivas. Abrange também a dimensão cultural que, em cada sociedade, reflete valores e necessidades hierarquizados de diferentes modos. Por fim, em sociedades heterogêneas com grande desigualdade social, as concepções de qualidade de vida e bem-estar são igualmente resultado de condições estratificadas e, portanto, relativas.

A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece a dimensão subjetiva da qualidade de vida, ligada às experiências do sujeito, admitindo que depende da percepção do indivíduo a respeito de suas necessidades (se estão sendo satisfeitas ou não) e da oportunidade de alcançá-las. Ou seja, a concepção de qualidade de vida da OMS considera o contexto da cultura e os sistemas de valores nos quais o sujeito está inserido.

Soares e outros (2011) confirmam que, desde da década de 1990, há consenso entre os estudiosos sobre a natureza subjetiva e multidimensional do construto teórico "qualidade de vida". A ideia de qualidade de vida não se restringe à satisfação de necessidades materiais: está relacionada a valores não materiais, como a inserção social, a felicidade, a liberdade, o bem-estar, entre outros.

Contudo, ainda que o interesse sobre qualidade de vida tenha aumentado nas últimas décadas, ainda são escassos estudos que abordam qualidade de vida e juventude. Nesse sentido, justificamos a realização do presente estudo, que priorizou conhecer a percepção dos próprios jovens acerca das "suas" qualidades de vida, levando em conta seu direito de acesso a padrões adequados que atendam às suas necessidades físicas, mentais e de desenvolvimento social, contribuindo com seu bem-estar (Ferreira, 2013).

Ademais, debater a percepção de qualidade de vida com jovens em situação de vulnerabilidade constitui uma oportunidade de enfrentar carências e construir alternativas de enfrentamento e superação de fatores materiais e não materiais que dificultam seu bem-estar. Segundo Pires (2012), a percepção do sujeito sobre a qualidade de vida deve ser problematizada a partir de sua posição de vida no contexto cultural, bem como a partir do sistema de valores aos quais está submetido.

 

Projeto Pescar: juventude e suas percepções sobre qualidade de vida

A análise dos textos fez emergir oito aspectos relacionados à qualidade de vida, tomados como categorias temáticas, a saber: família; convívio social; saúde/bem-estar; sentir-se bem/estar bem consigo mesmo; sonhos/objetivos/sucesso/futuro; ética/honestidade/sinceridade/respeito; educação/conhecimento e profissão/trabalho. No âmbito dos limites deste texto, serão discutidas as categorias: família; convívio social e saúde/bem-estar.

 

Família e qualidade de vida

Para os jovens participantes deste trabalho, a família é um fator importante para a qualidade de vida. Geralmente apontada como fonte de motivação para o alcance dos seus objetivos, ela também aparece como alvo de seu apoio e auxílio. Trata-se de uma relação de interdependência que pode se efetivar de forma produtiva com as conquistas do jovem. Como contexto de estímulo ao atingimento das conquistas, fortemente vinculada ao incentivo para estudar, para os jovens participantes do presente estudo, a família não representa apenas o somatório descritivo de comportamentos, anseios e demandas, mas, acima de tudo, constitui o próprio lócus de interação da vida e da sua trajetória de vida. Como demonstram os excertos a seguir: "Minha família também influencia bastante, porque, se corro atrás, é para ajudá-los, e a nossa boa convivência ajuda" (Jovem 1) e "Uma boa educação oferecida pelos pais leva à qualidade de vida" (Jovem 2).

Importa destacar que as considerações sobre família na relação com qualidade de vida demonstram aproximação direta com a questão do convívio social, remetendo à boa convivência familiar e à união da família como muito significativos.

Qualidade de vida é ter um tempo vago para a família. (Jovem 8)

Ter uma boa convivência com a família fortalece a minha qualidade de vida. (Jovem 11)

Acho que a minha qualidade de vida é estar com minha autoestima, bem-estar familiar lá em cima. (Jovem 16)

Considera-se a família como o primeiro grupo social do qual o ser humano participa, pois "cada indivíduo ao nascer encontra-se em um sistema social criado através de gerações já existentes e que é assimilado por meio de inter-relações sociais" (Strey, 2002, p. 59).

 

Convívio social e qualidade de vida

Ao serem convidados a refletir sobre qualidade de vida, o convívio social emergiu como um importante elemento que, segundo os jovens participantes do estudo, relaciona-se diretamente com a sua obtenção. Por exemplo:

Qualidade de vida para mim não é só ter uma boa saúde, mas também é estar bem com a profissão, estar bem com os amigos, familiares ter uma vida bem-sucedida. (Jovem 1)

Ter um bom ciclo social, estabilidade emocional, o carinho e amor da família. (Jovem 2)

Qualidade é amigos leais, sonhos reais e saber que eu estou fazendo o certo para mim sendo ético, sem ferir ninguém. (Jovem 3)

Bom, qualidade de vida para mim é uma pessoa que vive no mundo em sociedade, tendo harmonia e simplicidade. É quando a pessoa se sente em harmonia com os outros, agindo em confiança e parceria, que se sente feliz no meio do povo. A pessoa acorda e já se sente bem, se sente nova, no mundo de pessoas boas e alegres, o amor, o se sentir bem com o próximo. O que me influencia são as pessoas boas, honestas, tranquilas, verdadeiras. É acordar pela manhã e se sentir bem, confiante e positiva. (Jovem 4)

Os excertos acima remetem às características de suporte social, as quais incluem necessidade de integração social, a estima, os laços de confiança e liberdade de expressar seus sentimentos. Segundo Teixeira (2013), a satisfação das necessidades básicas depende da interação com o outro, e essa interação pode acontecer em duas dimensões: emocional - que acontece por intermédio do afeto e da estima, e instrumental - que se caracteriza pelo acesso à informação e assistência material.

Os jovens mencionam dimensões de relações sociais, as quais consideram relevantes para ter qualidade de vida. Teixeira (2013) divide as dimensões em relações formais e informais. As relações formais, por exemplo, referem-se ao uso de serviços profissionais, médicos, professores etc.; já as relações informais incluem familiares, vizinhos e amigos. A referida autora também as classifica em níveis de suporte social; nível comunitário, que reflete o grau de participação do indivíduo em seu meio; nível de relacionamento no trabalho, de amizade e parentesco; e nível de relações íntimas, que estão ligadas ao bem-estar e à saúde.

 

Saúde e qualidade de vida

Outro tema destacado pelos jovens foi a relação entre qualidade de vida e saúde. Nesse sentido, os excertos abaixo esclarecem:

Qualidade de vida é estar com uma vida qualificada na área da saúde e bem-estar. É estar bem financeiramente, profissionalmente, ter felicidade de viver, estar com a mente e a alma tranquila. (Jovem 2)

Qualidade de vida é ter uma saúde saudável. (Jovem 12)

Qualidade de vida para mim é ter saúde na família e em si próprio. (Jovem 16)

Ao relacionarem qualidade de vida e saúde, os jovens retomam uma questão importante. Segundo Serra (2010), até início do século XX a saúde era considerada apenas como a condição de ausência de doença. Mais tarde, a Organização Mundial da Saúde (OMS) define saúde como o estado de completo bem-estar físico, mental e social. A partir de então, mais precisamente na década de 1990, o conceito de qualidade de vida emerge com forte ligação de interdependência com o conceito de saúde. Retoma-se, no entanto, segundo a referida autora, a necessidade de não os considerar equivalentes e não avaliar saúde e qualidade de vida da mesma forma, pois têm significados diferentes.

 

Considerações finais

O estudo aqui apresentado não pretendeu extrapolar seus resultados para além dos limites de um estudo de caso de cunho exploratório. Contudo, em relação à compreensão da qualidade de vida dos jovens participantes do Projeto Pescar Sulgás, logrou trazer importantes contribuições para o aprimoramento das ações que vêm sendo desenvolvidas nesse âmbito.

Nesse sentido, compreender que, para os jovens participantes, a família, o convívio social e a saúde ou bem-estar são condições de qualidade de vida que têm potencial para influenciar sua trajetória de vida, constituem um importante indicativo para o planejamento de futuras ações de formação. Considerando que a família constitui o primeiro espaço em que o indivíduo experiencia as relações sociais, torna-se compreensível a forte relação estabelecida pelos jovens entre os temas do convívio social, família e saúde.

Além disso, em vista de que os jovens também são participantes de um projeto social que visa à inserção em seu mundo do trabalho, convém problematizar a baixa associação entre qualidade de vida e trabalho, o que poderia justificar-se pela faixa etária do grupo. Não obstante, a omissão do tema trabalho também poderá estar relacionada à ação educativa implementada no referido projeto social, a qual está mais direcionada para o fortalecimento dos vínculos familiares, para o respeito às diferenças e para o autocuidado com a saúde.

De qualquer modo, entendemos que os resultados do presente estudo podem contribuir para os debates acerca dos processos de intervenções de aprendizagem que vêm sendo desenvolvidos no âmbito de projetos sociais semelhantes. Vale ressaltar que, tão importante quanto promover a inserção laboral de jovens como meio para a conquista de autonomia, também é de suma importância a promoção da qualidade de vida dos jovens. Isso porque a valorização da família, do convívio social e da saúde não podem estar descolados da vida dos jovens e são pressupostos básicos das políticas sociais, sendo considerados vetores de promoção da transformação social.

 

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Recebido em: 7/12/2017
Aprovado em: 15/3/2019

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