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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.14 no.3 São João del-Rei jul./set. 2019
Fernando Santana de PaivaI; James Ferreira Moura Jr.II; Maria Teresita Castillo LeónIII
Ifernandosantana.paiva@yahoo.com.br
IIamesferreirajr@gmail.com
IIIcastillo.tete@gmail.com
Este número temático, "Ética na formação em Psicologia Comunitária", é uma iniciativa da Rede de Formação em Psicologia Comunitária, da Pesquisa "Ética na formação em Psicologia Comunitária no Brasil", financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e da Revista Pesquisa e Práticas Psicossociais (PPP) do departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del-rei. Este número especial surge da Pesquisa internacional "Ética na formação em Psicologia Comunitária na América Latina" desenvolvida pela Rede de Formação Latino-Americana em Psicologia Comunitária.
A Rede é um espaço de intercâmbio acadêmico entre diferentes países da região, cujo objetivo é promover a cooperação entre as instituições com o fim de realizar, conjuntamente, atividades de índole acadêmica centradas na formação em Psicologia Comunitária na América Latina. Nesse sentido, a investigação em tela visa atingir esse objetivo, fortalecendo a formação profissional no âmbito da Psicologia em nosso continente.
Esta pesquisa teve como países participantes: Chile, Uruguai, México, Brasil, Porto Rico, Peru, Colômbia, Equador e Venezuela. Os resultados da investigação refletiram os sentidos e como a ética se manifesta nos trabalhos comunitários desenvolvidos na Psicologia Comunitária. Assim, tem-se como meta melhorar esses trabalhos com fins de trazer mais processos de fortalecimento pessoal e comunitários, como também mudanças sociais mais consolidadas. No Brasil, a pesquisa foi desenvolvida no Ceará, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, sendo somente esse último estado participante com financiamento da Fapemig.
As autoras e autores com artigos vinculadas à pesquisa de ética analisaram os projetos curriculares dos cursos de graduação em Psicologia e os programas das disciplinas de Psicologia Comunitária das universidades que aceitaram participar da pesquisa em diferentes nações. Em alguns países, conseguiu-se realizar as análises de maneira nacional, em outros somente em um contexto local. Também, foram realizadas entrevistas e grupos focais com professoras/es e estudantes sobre o sentido da ética no ensino e na prática em Psicologia Comunitária ou disciplinas afins. No entanto, este número especial também contempla produções que versaram sobre a ética na formação e na pesquisa de maneira ampliada a partir de questões comunitárias. Ou seja, foram assimiladas experiências de cunho interventivo, ensaios teóricos e relatos de experiências que problematizam desde um horizonte ético e político o processo de formação e os desafios vivenciados na atuação profissional nesse campo. Neste número temático, há dois blocos de artigos. O primeiro tem cinco produções vinculadas à pesquisa internacional de ética de diferentes países (Brasil, México, Uruguai e Peru). No segundo bloco, há artigos brasileiros sobre experiências de atuação em Psicologia Comunitária, como também discussões éticas vinculadas à formação em Psicologia e suas interfaces com as questões comunitárias.
Assim, no primeiro bloco de produções vinculadas diretamente à pesquisa "Ética na formação em Psicologia Comunitária", o artigo "Presencias y Ausencias de la Ética en la formación en Psicología Comunitaria en el Perú", de Miryam Rivera-Holguín, Tesania Velázquez, Adriana Hildenbrand, Andrea Wakeham e Carolina Vera, da Pontificia Universidad Católica del Perú (PUCP), tem como objetivo identificar a presença e ausência de componentes éticos no ensino dessa área como parte da formação profissional de graduados do ensino médio em Psicologia em nível nacional no Peru. Esta produção faz parte da investigação internacional e tem como especificidade o alcance de um panorama sobre a própria Psicologia Comunitária e a dificuldade do ensino da dimensão ética. Concebe-se a necessidade de evidenciar as produções em Psicologia Comunitária da América Latina e de problemáticas locais como base para a formação ética.
As/os autores Alana Braga Alencar, Verônica Morais Ximenez, da Universidade Federal do Ceará, e James Ferreira Moura Jr., da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira, investigaram o lugar da ética da formação em Psicologia Comunitária a partir do paradigma da libertação. O estudo foi realizado no estado do Ceará com discentes e docentes de Psicologia Comunitária de instituições públicas e privadas de ensino superior, além de análise das ementas e planos de ensino. A ética é tratada como uma dimensão transversal no processo de ensino da disciplina com ênfase na utilização de mediações práticas. Ademais, a ética da libertação é apontada como uma alternativa para uma formação crítica no âmbito da Psicologia Comunitária.
Em Minas Gerais, foi realizada a investigação sobre o ensino da ética na formação em Psicologia Comunitária que resultou no artigo "O ensino da ética em Psicologia Comunitária em Minas Gerais: notas sobre a formação profissional". Os autores Fernando Santana de Paiva, Amata Xavier Medeiros, Mariana Almeida, Kissila Teixeira Mendes, Telmo Mota Ronzani, Pedro Henrique Costa, Marina Fernandes Lourenço e Matheus Costa Xisto, da Universidade Federal de Juiz de Fora, encontraram que existem diferentes abordagens teórico-metodológicas em Psicologia Comunitária, o que reflete diretamente nas concepções sobre ética e formação profissional na área. Além disso, apontaram a convergência entre os docentes em propiciar o ensino da ética a partir de preceitos participativos e dialógicos no âmbito comunitário, bem como dificuldades entre os discentes em apreenderem essa categoria em seu processo formativo. Por fim, apontam a importância de que sejam observadas as especificidades do debate sobre ética em Psicologia Comunitária.
"La Ética en la formación en Psicologia Comunitaria en Uruguay: oportunidades, riesgos y desafios" é o título do artigo das autoras Alicia Raquel Rodríguez, Sonia Mosquera, Gabby Recto e María Eugenia Burgos, da Universidad de la Republica. Elas analisaram os planos de ensino da disciplina Psicologia Comunitária e afins no "Currículo 2013 da Licenciatura em Psicologia na Universidade da República no Uruguai" e refletem sobre os riscos e desafios ainda presentes para a formação, destacando a necessidade de atualizar a disciplina, tendo em vista as caraterísticas apresentadas pela sociedade contemporânea e suas exigências para o campo da Psicologia Comunitária.
O manuscrito "Ética y Psicología Social Comunitaria entre los 'psicólogos en formación' de la Facultad de Ciencias Humanas-UABC", de autoria de Pedro Antonio Be Ramírez, Maria Teresita Castillo León, Claudia Salinas Boldo, Emilia Cristina González Machado e Erika Paola Reyes Piñuelas, da Universidad Autonoma de Yucatan, no México, objetivou refletir sobre o lugar da ética na formação dos psicólogos. O estudo, que contou com a participação de docentes e discentes, apontou que esses atores reconhecem a importância do trabalho que deve ser realizado nas comunidades no processo formativo na área. Além disso, a intervenção sociocomunitária prescinde de um sentido ético que implica não apenas a mera informação, mas, sobretudo, o fortalecimento da participação comunitária com o intuito de se produzir mudanças sociais que se traduzam no bem-estar das comunidades.
No segundo bloco, o cenário de práticas na formação também foi objeto de análise de dois artigos do presente número especial. O artigo "Estágio básico em contextos comunitários: momento práxico na formação em Psicologia Social Comunitária", de Amailson Sandro Barros e Marion Barros Ferreira Almeida, da Universidade Federal do Mato Grosso, tem como panorama a política pública de Assistência Social em interface com a formação acadêmica. Os autores traçam como objetivo discorrer sobre o estágio básico de Psicologia em contextos comunitários, tendo o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) como espaço e via de acesso às comunidades. Discute-se a relação entre teoria e prática, sendo o estágio como esse campo de análise, e indica-se o aperfeiçoamento da formação para uma inserção concreta na dinâmica comunitária.
O manuscrito "Das 'coisas jogadas fora': ensaio sobre um estágio em Psicologia Social e processos comunitários", de José Rodrigues de Alvarenga Filho, da Universidade Federal de São João del-Rei, analisa a realização de um estágio em Psicologia Comunitária em um abrigo para população em situação de rua no município do Rio de Janeiro. O autor salienta o contexto em que se desenvolveu a intervenção, marcada pela realização de megaeventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas. Políticas higienistas, de caráter repressivo e de criminalização dos "ditos indesejáveis", foram apontadas como um projeto político em meio ao qual o estágio possibilitou um espaço de acolhimento, cuidado e escuta atenta das experiências vivenciadas pelos sujeitos inseridos em tal realidade.
Outra importante contribuição para a concretização deste número temático advém de manuscritos que problematizam a formação de um prisma ético e crítico em Psicologia, a partir da incorporação dos debates promovidos pelo feminismo e pela fundamental discussão racial em nosso país. Trazendo a ética como uma reflexão para a questão racial na formação acadêmica em Psicologia, o artigo "Psicólogas brancas e relações étnico-raciais: em busca de formação crítica sobre a branquitude", de Jacqueline Meireles, Mariana Feldmann, Tamiris da Silva Cantares, Simone Gibran Nogueira e Raquel Souza Lobo Guzzo, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), tem como objetivo apresentar uma síntese de discussões realizadas em um grupo de estudos sobre relações étnico-raciais, composto por psicólogas brancas pós-graduandas, pelo período de três semestres. Dessa maneira, concebe-se a necessidade de compreender a branquitude na atuação nas comunidades, pois na América Latina há um histórico de conflitos raciais provindos a partir da colonização. Dessa maneira, para uma atuação crítica nesse contexto, é imprescindível debater a formação a partir das questões étnico-raciais e o racismo estruturante presente no nosso contexto.
Já o artigo "Diálogos entre ética feminista e experiências de Psicologia Social Comunitária", das autoras Sandra Estrada-Maldonado, da Universidad de Guanajuato, no México, María Malena Lenta e Jorgelina Di Iorio, da Universidad de Buenos Aires, na Argentina, problematiza, a partir de uma ética feminista, as práticas de investigação e intervenção comunitária que têm as mulheres como protagonistas. Para tanto foram analisadas duas experiências interventivas na Argentina e uma no México. As autoras concluem que o diálogo entre os diferentes feminismos e as Psicologias Comunitárias podem favorecer a construção da autonomia, assim como problematizar as relações entre saber-poder que são observadas no que fazer da área.
"Decolonialidade e pesquisas narrativas: contribuições para a Psicologia Comunitária" é o título do artigo de Ricardo Dias de Castro e Cláudia Mayorga, da Universidade Federal de Minas Gerais, que procuram apresentar de maneira instigante as aproximações possíveis entre as pesquisas narrativas e a Psicologia Comunitária. O texto problematiza a necessidade dos cuidados éticos e políticos envolvidos nas análises das narrativas no contexto comunitário, que são perpassados, dentre outros aspectos, pelos elementos da colonização latina que produzem lugares de enunciação distintos entre os diferentes sujeitos que são marcados pelas diferenças/desigualdades na sociedade brasileira. Diante dessa realidade, o trabalho sugere a importância de se construir um espaço simbólico que interpele a narrativa de desigualdade, visando abrir novas significações acerca do lugar de subalternizado unicamente como vítima. O autor e a autora consideram que isso pode ser importante para se promover possíveis deslocamentos produzidos por narrativas comunitárias tradicionais, desde um prisma ético e permeado pela autocrítica.
E, por último, mas não menos importante, temos o artigo "Estratégias para o fortalecimento de redes sociais comunitárias: a experiência dos bairros Tupi e Lajedo, em Belo Horizonte/MG", de Isabela Saraiva de Queiroz, Liza Fensterseifer, Manoela da Silva Costa Marra, Humberto de Aquino Costa, Thatiury Sales Araújo, Thaís Natiele Bessa de Miranda, Isadora Silva Fonseca e Natasha Cristina da Costa Carvalho, da Universidade Federal de São João del-Rei e da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Esse trabalho tem como objetivo sistematizar estratégias para o fortalecimento de uma rede comunitária localizada em Belo Horizonte, desmobilizada em decorrência de conflitos existentes entre suas lideranças e pela forte presença de viés político-partidário nas relações comunitárias. Assim, a partir de uma pesquisa participante, as autoras e autores deslindam sobre a participação comunitária e seus desafios em rede comunitária complexa e atual. Aponta-se a recuperação da história da comunidade e do afeto como ferramentas de mobilização comunitária como fazendo parte da dimensão ética.
O número especial em tela é, além de muito relevante, de extrema importância no atual cenário que vivemos no Brasil e na América Latina. O embate em torno de diferentes projetos éticos e políticos de sociabilidade encontra-se em um de seus momentos mais críticos dos últimos tempos. Ideais conservadores, com forte teor ideológico, facínora e totalitário nos rondam e se apresentam a partir da tentativa de impor o medo como mediação simbólica e de silenciar vozes dissonantes em nosso combalido modo de vida. O neoliberalismo com sua agenda focada no individualismo e no consumo tornam-se centrais, amparando e fortalecendo essa agenda autoritária em diversos países latinos e no Brasil.
A Psicologia Comunitária, assim como toda e qualquer área do conhecimento científico que almeja ser lembrado como crítico, dentro e fora da Psicologia, só tem razão de ser, porque nos momentos mais duros e difíceis teve a coragem de se pronunciar e denunciar a barbárie, o genocídio e a violência. E certamente não será diferente agora! Por esta razão, fortalecer a Ética no processo formativo em Psicologia nunca foi tão necessário e essencial. Trata-se, a nosso ver, de um pilar sobre o qual nos manteremos firmes no propósito de construirmos uma práxis efetivamente transformadora e libertária. Indubitavelmente, os trabalhos aqui apresentados guardam essas características, pois a partir de diferentes sujeitos e contextos, seja no Brasil e/ou nos demais países da América Latina, temos produzido uma Psicologia (Comunitária) que se edifica na relação com o outro, visto como sujeito ativo, propositivo e capaz de analisar e modificar a si e o mundo a sua volta.