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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.14 no.3 São João del-Rei jul./set. 2019

 

O ensino da ética em Psicologia Comunitária em Minas Gerais: notas sobre a formação profissional

 

The teaching of ethics in Community Psychology in Minas Gerais: notes on professional training

 

La enseñanza de la ética en Psicología Comunitaria en Minas Gerais: notas sobre la formación profesional

 

 

Fernando Santana de PaivaI; Amata Xavier MedeirosII; Mariana de Almeida PintoIII; Marina Fernandes Toledo LourençoIV; Matheus XistoV; Pedro Henrique Antunes da CostaVI; Telmo Mota RonzaniVII; Kissila Teixeira MendesVIII

IDoutor em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Coordenador do Grupo de Pesquisa Martín-Baró: Psicologia Social, Política e Direitos Humanos
IIPsicóloga. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
IIIPsicóloga. Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
IVGraduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Bolsista IC/Fapemig
VGraduando em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Bolsista IC/Fapemig
VIDoutor em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
VIIDoutor em Psicologia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Coordenador do Crepeia (UFJF)
VIIIPsicóloga. Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

 

 


RESUMO

O presente estudo é parte de um projeto realizado em diferentes países da América Latina, que tem como objetivo compreender como a dimensão ética se manifesta na formação em Psicologia Comunitária (PC). Para tanto, foram analisados 23 ementas e planos de ensino dessa disciplina ofertada em cursos de Psicologia de instituições públicas e privadas de Minas Gerais (MG). Foram realizadas ainda seis entrevistas semiestruturadas com professores de PC e três grupos focais com graduandos em Psicologia. Os resultados encontrados confirmam a existência de diferentes abordagens teórico-metodológicas no âmbito da PC, apontam para a convergência entre os docentes em propiciar o ensino da ética a partir de preceitos participativos e dialógicos no âmbito comunitário, mas também algumas dificuldades para a apreensão desse debate entre os estudantes. Destacamos a importância em se explicitar as especificidades da ética em PC, bem como a relevância de constantes revisões no processo formativo na área.

Palavras-chave: Ética. Psicologia Comunitária. Capacitação profissional.


ABSTRACT

The present research is part of a project carried out in different countries of Latin America. The aim is to understand how the dimension of ethics appears in the Community Psychology (PC) training. We analysed 23 teaching plans of PC which are offered in Psychologies courses of public and private institutions in Minas Gerais (MG), Brazil. We accomplished six semi-structured interviews with teachers and three focus groups with undergraduate students in Psychology. The results endorse the existence of different theoretical and methodological approaches on the PC`s field. Furthermore we´ve found that teachers is working to propitiate the teaching of ethics based on participatory and dialogical perspectives, but also some difficulties for the learning of this debate among students were be found. We emphasize the importance of clarifying the specificities of ethic on the PC, as well as the relevance of the constant revision in the training process in this area.

Keywords: Ethic. Community Psychology. Professional training.


RESUMEN

El presente estudio es parte de un proyecto desarrollado en distintos países de América Latina, que tiene como objetivo comprender cómo la dimensión ética se manifiesta en la formación en Psicología Comunitaria (PC). Se analizaron 23 planes de enseñanza de esta disciplina ofrecida en cursos de Psicología de instituciones públicas y privadas de la provincia de Minas Gerais (MG), Brasil. Llevamos a cabo seis entrevistas semiestructuradas con maestros de PC y tres grupos focales con estudiantes. Los resultados confirman la existencia de diferentes enfoques teórico-metodológicos en PC. Los maestros abordan la ética desde preceptos participativos y dialógicos, aunque fueran identificadas algunas dificultades para la aprehensión de este debate entre los estudiantes. Destacamos la importancia en explicitar las especificidades de la ética en PC, así como la relevancia de constantes revisiones en el proceso formativo en el área.

Palabras clave: Ética. Psicología Comunitaria. Capacitación profesional.


 

 

Introdução

A Psicologia Comunitária surge como campo da Psicologia durante a década de 1950 nos Estados Unidos e Europa (Cruz, Freitas & Amoretti, 2008). Na América Latina, considerando as particularidades de cada país, a PC se configurou, inicialmente, como um campo de práticas e, posteriormente, como uma nova disciplina no âmbito da Psicologia, ocupada não somente com o estudo e análise, mas com a produção de uma práxis voltada para a transformação da realidade social, marcada por intensas desigualdades e violação de Direitos Humanos (Ximenes & Góis, 2010; Gonçalves & Portugal, 2016).

No Brasil, a PC apresenta um caráter plural, no tocante aos aportes teóricos e metodológicos empregados, tendo obtido uma destacada atuação, no decorrer das últimas décadas, em diferentes movimentos sociais e, majoritariamente, na esfera das políticas públicas e sociais (Freitas, 2015, 2017). A realidade brasileira, marcada por agudos problemas econômicos, políticos e sociais, impõe desafios à PC em concretizar seu pressuposto de transformação social, com reflexos diretos no processo formativo na área. Afinal, como formar profissionais que sejam aptos para a atuação nessa área? Como contribuir para a formação de psicólogos que atuem a partir de valores que expressem um projeto ético e político de transformação da realidade social? No presente trabalho, nos questionamos, especificamente, sobre o papel da dimensão ética nesse processo, haja vista sua importância para a implementação e sustentação das ações de pesquisa e/ou intervenção em PC que objetivam garantir a participação ativa dos sujeitos, grupos e movimentos sociais em direção à construção de relações sociais mais humanas e igualitárias.

Ética, como disciplina filosófica, pode apresentar diferentes acepções, a depender da perspectiva de cada pensador. Entretanto, acordamos com Barroco (2010) de que a ética conserva determinadas características que fazem parte da natureza do pensamento filosófico, como o caráter universalizante e a preocupação com a essência dos fenômenos. Consideramos que ética pode ser compreendida como uma disciplina filosófica que procura refletir sobre os costumes, tendo o intuito de responder questões do tipo: como se deve viver a vida? Ou que vida queremos viver coletivamente? (La Taile, 2016). Nesse sentido, de acordo com Bolívar (2005), seria responsabilidade das instituições de ensino superior (IES) contribuir para que os profissionais desenvolvam uma visão e sentido ético, que possa orientar sua prática, assim como promover a reflexão sobre suas ações, a partir de valores e princípios socialmente acordados, no encontro com os sujeitos da intervenção.

Além disso, conforme adverte Guareschi (2009), a ética deve ser concebida como uma dimensão crítica e propositiva, constituída em meio às relações sociais, o que representa a adoção de um posicionamento político dos sujeitos diante das diferentes situações que necessitam de análise e intervenção. Barroco (2010) assevera, ainda, que ética em verdade se refere ao exercício humano de crítica à vida cotidiana, no tocante aos seus aspectos morais, em que se destacam as práticas sociais de discriminação, preconceito e individualismo que denotam nosso tempo histórico.

No âmbito da PC, Montero (2001, 2004a) considera que a ética é uma dimensão essencial no processo de análise e produção de conhecimento, determinando o modo de intervenção profissional. Essa dimensão se refere às relações estabelecidas entre os sujeitos na ação e/ou no conhecimento produzido, que podem reforçar o status quo ou propiciar a superação de um padrão de dominação histórico. A ética remete, assim, ao reconhecimento e à inserção do outro no processo de trabalho, tendo como base uma relação dialógica, pautada pelo respeito e pela coautoria na pesquisa e/ou intervenção em PC.

Tal perspectiva vai ao encontro das preocupações existentes em outros campos e paradigmas do conhecimento, importantes para a constituição da PC na América Latina, como a Psicologia Crítica e a Psicologia da Libertação, que, historicamente, expressam um determinado horizonte ético e político em seu quefazer (Montero, 2004b). Crítico a um quefazer asséptico e a-histórico em Psicologia. Martín-Baró (2015), por exemplo, considera que no âmbito da ética profissional em Psicologia, em razão dos preceitos filosóficos e científicos em disputa nesse campo, conformou-se um tipo de ética considerada artificial, tida como uma espécie de anexo ao saber técnico-científico, uma vez que não estaria relacionada aos processos histórico-sociais e políticos em construção.

Autores como Winkler (2007) e Prilleltensky (2001) corroboram com as críticas aventadas anteriormente e sinalizam, ainda, que, no campo da PC, sobressaem problemas e situações no cotidiano de atuação e, portanto, de relevância para a formação profissional, não vivenciadas em outros campos da Psicologia, como a atuação clínica. Serrano-Garcia (2010), por sua vez, considera que as particularidades existentes no processo de intervenção profissional em PC irão exigir um redimensionamento da dimensão ética, historicamente, trabalhada na formação em Psicologia, tendo em vista as relações estabelecidas com os sujeitos da ação, bem como os cenários e contextos de atuação, marcados por situações de conflitos de ordem política, institucional e cultural.

No Brasil, os trabalhos realizados no âmbito das políticas públicas e nos movimentos sociais, tão expressivos nos cenários de formação, colocam os estudantes e professores de PC diante de dilemas - precarização, clientelismo, relações de poder etc. - que podem dificultar e ao mesmo tempo se tornam essenciais no desenrolar da atuação profissional, tendo em vista os preceitos éticos e políticos da área. A despeito dos desafios encontrados, Rodríguez, Cuesta, Recto e Mosquera (2016) consideram que no intuito de fomentar o ensino da ética em PC, deve-se buscar promover uma formação que assegure a análise da realidade social, assim como a diversidade sociocultural na qual nos inserimos. Nesse sentido, as dificuldades e também as potencialidades construídas visando à concretização dos trabalhos na área prescindem de um posicionamento ético dos atores envolvidos, que estarão em constante negociação com o contexto no qual se inserem.

A partir do exposto, o objetivo do presente artigo é apresentar uma síntese dos resultados de uma investigação que objetivou compreender como a dimensão ética se manifesta na formação em PC, a partir da análise das ementas e planos de ensino dessa disciplina, além dos sentidos produzidos por professores e estudantes de graduação em Psicologia de algumas IES, de caráter público e privado, do Estado de Minas Gerais (MG), Brasil.

 

Percurso metodológico

O presente estudo é parte do projeto intitulado "Ética na formação em Psicologia Comunitária", realizado em diferentes países da América Latina. Trata-se de uma pesquisa do tipo exploratória e descritiva, ancorada na abordagem qualitativa de produção do conhecimento (Minayo, 2009). Para a construção dos dados, foram utilizadas diferentes estratégias, fontes e participantes. A realização da pesquisa se deu a partir de duas etapas: 1. Coleta e análise dos planos de ensino e ementas de disciplinas e estágios curriculares em PC de (IES) públicas e privadas de MG; 2. Entrevistas semiestruturadas e grupos focais com docentes responsáveis por essa disciplina, além de alunos de graduação em Psicologia com experiência em PC, respectivamente.

Inicialmente, por intermédio do Conselho Regional de Psicologia de MG (subsede Sudeste), conseguimos uma listagem com 60 IES que ofertavam até o ano de 2016 o curso de Psicologia em MG. Essas instituições foram contatadas via e-mail e/ou telefone com vistas à disponibilização dos documentos anteriormente informados. Cumpre salientar que obtivemos o retorno de somente 16 IES, sendo 13 privadas e 3 públicas. Em algumas delas, foram coletados mais de um documento, uma vez que eram ofertadas disciplinas teóricas e outras de caráter prático, totalizando assim 23 ementas e planos de ensino. A maior parte do material recolhido correspondia às disciplinas intituladas "Psicologia Comunitária", havendo algumas variações, como "Psicologia Institucional e Comunitária", "Intervenção Psicossocial e Práticas Comunitárias" e "Psicologia Comunitária e Intervenção Psicossocial".

Os documentos coletados foram analisados com o intuito de identificar os conteúdos que orientam a formação em PC nas IES, com especial atenção à presença da dimensão ética nesse processo. Essa etapa contribuiu também para a confecção dos roteiros de entrevistas e grupos focais realizados. A partir disso, foram realizadas seis entrevistas com professores (dois de IES pública e quatro de IES particular) e três grupos focais com estudantes, oriundos de duas IES públicas e quatro IES privadas de MG. Os 3 grupos focais foram realizados nas cidades de Juiz de Fora e São João del-Rei, contando com a participação de 17 alunos que cursavam os últimos anos de faculdade. Em relação ao corpo discente, adotamos os seguintes critérios para participação nos grupos focais: a) haver concluído a disciplina de PC; b) participação em estágio curricular, extracurricular ou projeto de extensão na área. No tocante aos professores, foram entrevistados aqueles responsáveis pela disciplina no momento de realização da pesquisa.

O roteiro, tanto dos grupos focais quanto das entrevistas, abordava: trajetória de formação e contato com a PC; interfaces entre a PC e Psicologia; Ética e PC; estratégias para se abordar a ética na PC (conteúdos, metodologias, referenciais teóricos, cenários e atores); desafios e potencialidades para uma formação ética na área. As perguntas foram devidamente adaptadas para professores e alunos, reconhecendo as diferenças nas posições de ambos no processo de formação.

Todo o processo de construção de dados ocorreu entre dezembro de 2017 e dezembro de 2018. O material construído via entrevistas e grupos focais foi gravado em mídia eletrônica, transcrito e lido na íntegra. Assim como os documentos obtidos, tal material foi analisado a partir da Análise de Conteúdo do tipo temática (Gomes, 2008), contando com o apoio do software Atlas.ti, versão 7.2. O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos. Toda a investigação seguiu os princípios éticos estipulados pela Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. Os participantes consentiram sobre a realização da pesquisa, assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Em casos de citação de falas das entrevistas e grupos focais, foram utilizados os códigos de professor/a acrescido de nome fictício, além de GF1, 2 ou 3, mantendo a condição de anonimato.

 

Resultados

A formação em PC e o lugar da ética nas ementas e planos de ensino

O Quadro 1 indica os eixos temáticos utilizados como guias para a formação em PC, bem como as subcategorias construídas. Não foram encontradas diferenças substanciais em relação aos conteúdos abordados, considerando a natureza da IES (pública ou privada).

Constatamos que há uma preocupação em se assegurar, na formação em PC, a compreensão do histórico e constituição desse campo no Brasil e na América Latina. Existe também a presença de diferentes paradigmas, que são apresentados no processo formativo, expressando o caráter plural do campo no tocante às abordagens e maneiras de se analisar e intervir com sujeitos e nas comunidades. Os objetivos traçados para a formação expressam o que, tradicionalmente, vem sendo cunhado como o papel da PC, como fortalecimento comunitário, promoção da autonomia e transformação social. Entretanto, vale ressaltar a presença de preceitos relacionados à promoção da saúde e bem-estar, avaliação e acolhimento psicológico, que pode expressar algumas particularidades do que fazer em PC no universo analisado.

Observamos nos documentos a presença de categorias/conceitos como cidadania, relações de poder, pobreza, gênero, dentre outros, que sinalizam para um leque variado de discussões que são realizadas durante o processo formativo. Indubitavelmente, não é possível precisar qual a direção ética e política dada, uma vez que isso não fica, necessariamente, claro nos documentos analisados. Em relação às metodologias de trabalho ensinadas em PC, confirmamos a presença de perspectivas que visam assegurar a participação popular, além da observação, entrevistas e diários de campo, tidos como importantes contribuições de epistemologias críticas e qualitativas no processo de produção do conhecimento no âmbito das ciências humanas e sociais.

Ademais, o quadro teórico encontrado nos documentos aponta para a utilização de autores e autoras da Psicologia Social em uma vertente crítica, havendo a presença de brasileiros e de outros latino-americanos. Cumpre assinalar a presença de autores de outras áreas, como da saúde coletiva, que sinaliza certa interdisciplinaridade tão comumente observada no âmbito da PC. No tocante à dimensão ética, observamos que a esta não ocupa espaço central nos planos e ementas, levando a crer que tal debate tende a ocorrer de maneira transversal a partir dos diferentes conteúdos, paradigmas e temáticas abordadas.

Concepções sobre a dimensão ética entre professoras(es) de PC

Os relatos obtidos a partir das entrevistas realizadas com o corpo docente se assemelham e refletem, em alguma medida, o conteúdo expresso nos planos de ensino e nas ementas curriculares dos cursos analisados. Nesse sentido, embora tenhamos observado a adoção de diferentes perspectivas teórico-metodológicas por parte dos professores, foi possível perceber elementos comuns no que diz respeito tanto à compreensão sobre as contribuições e particularidades da PC quanto à importância da dimensão ética para o campo, para a Psicologia e para a construção do saber e para a análise da realidade.

No que tange ao entendimento sobre a categoria "ética", o conjunto dos entrevistados ressalta a distinção entre a ética regimental e normativa, materializada, segundo eles, no código de ética da profissão, e a ética intitulada ora da "relação", ora do "cotidiano", da "vivência" e do "cuidado". Embora a maioria dos participantes reconheça o papel do código de ética como uma diretriz para a atuação profissional, foi dada mais importância à ética denominada valorativa, por ser considerada uma expressão da concepção de homem e de sociedade adotada. Desse modo, enquanto a ética regimental foi compreendida a partir de suas limitações - vinculadas ao modelo clínico tradicional do quefazer psicológico -, a ética valorativa (das "relações"; do "cuidado", etc.) foi apontada como um fundamento importante da PC para o questionamento do domínio de práticas individualizantes.

[...] E eu percebo que os alunos, eles, é, causam um certo estranhamento, às vezes, quando a gente fala de uma ética do cuidado, de uma ética da prática, da vivência, da experiência, enfim. [...] Quando a gente fala em PC da inserção do psicólogo no contexto comunitário, uma das questões principais seria essa ética do cuidado, da relação com o outro, né? [...] [os alunos] estão acostumados a ver essa ética normatizadora, normatizadora como eu te disse, e sempre muito pautados numa óptica clínica [...]. (Professora Rosa)

A partir de alguns relatos, percebemos a existência de uma forte vinculação entre a dimensão ética e determinados pressupostos da PC, que se voltam, sobretudo, para o trabalho participativo com os sujeitos a fim de fortalecer processos de "consciência, autonomia, empoderamento, ampliação de direitos e de transformação da realidade social", de acordo com o que foi dito pela Professora Clara. Ademais, conforme explicita um dos entrevistados:

[...] Eu acho que a nossa perspectiva de Psicologia Social e de Psicologia Comunitária propôs uma nova dimensão "pra" pensar a ética, que é uma dimensão assim, de um compromisso ético com aquele sujeito e com a transformação da realidade em que ele vive. Eu vejo a ética da Psicologia assim e acho que a dimensão ética extrapolou o código de ética e extrapolou as orientações das comissões de fiscalização dos conselhos. [...] Na prática, a gente construiu uma ética no cotidiano do trabalho do psicólogo, eu acho que foi isso que aconteceu [...]. (Professor Paulo)

Os docentes indicam que a ética se constitui a partir da articulação entre teoria e prática, da imersão na realidade social concreta, elementos primordiais para a constituição da PC na América Latina. A maioria dos(as) entrevistados, ao discorrer sobre a importância da chamada ética das relações e do cuidado, destaca a necessidade de se combater as desigualdades sociais, lutar por relações mais democráticas e por direitos a partir da atuação nas políticas públicas - sendo, frequentemente, citados o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (Suas) -, setores que têm, cada vez mais, incorporado psicólogos(as) e, junto a isso, tem atraído o horizonte de perspectivas voltadas para o trabalho social e comunitário, conforme relatado a seguir: "[...] Então, eu acho que a ética, primordialmente, passa um pouco sobre isso, sobre sua concepção de sociedade [...], sobre o papel do Estado no fornecimento dessas políticas públicas e como que eu entendo mesmo o meu micromundo. [...]" (Professora Angela).

Ademais, a professora Angela considera que a ética perpassa "o jeito que você se relaciona" no cotidiano e que, embora a PC tenha potencializado a compreensão dessa categoria, ela extrapola tal campo, na medida em que "tem a ver com nossa formação de cidadania". Nessa mesma direção, outros dois participantes complementam:

[...] Cada vez mais, a gente precisa resgatar qual a ética da Psicologia, que é uma ética que visa a gente consolidar práticas democráticas, a gente consolidar Direitos Humanos, a gente consolidar direitos sociais [...] E a ética, pra mim, "tá" nesse sentido mesmo de um compromisso, não com o regimental, que também faz parte do campo da atuação ética [...] Mas é a ética, no sentido mais amplo, é o compromisso do profissional com aquilo que falta os direitos fundamentais, né? [...]. (Professora Clara)

[...] Então, eu acho que o fator claro em ética se tornou um falar na própria construção de uma intersubjetividade mais autônoma, mais democrática, uma formação mais democrática. Cidadania passou a ser tema da Psicologia Comunitária; eu acho que cidadania passa a ser um objeto de ação do psicólogo também. Aí você tem uma articulação que foi muito feliz, entre Psicologia Comunitária, ética, cidadania e políticas públicas. (Professor Paulo)

Dessa maneira, os docentes reconhecem a importância da dimensão ética no campo da PC, ao mesmo tempo em que sinalizam a necessidade de se ampliar a discussão para toda a formação em Psicologia. Como prática cotidiana do cuidado e da relação com o outro, a ética é atrelada à concepção de homem e de transformação da realidade social, ainda que as perspectivas adotadas pelos entrevistados não tenham sido, devidamente, explicitadas. A garantia de direitos humanos, sobretudo, das maiorias populares, a participação social, a ampliação de pautas democráticas e da cidadania, bem como o fortalecimento das políticas públicas aparecem, nas entrevistas, como temas centrais e, ao que parece, por vezes, como um horizonte último para a construção de uma formação e atuação ética e comprometida socialmente.

A ética em sala de aula: metodologias de ensino adotadas

De acordo com os relatos dos docentes, as estratégias metodológicas utilizadas em sala de aula para estimular a reflexão sobre a desigualdade social e o ensino da dimensão ética são no sentido de desenvolver propostas dialógicas, buscando o rompimento com o modelo expositivo, a partir de discussões ativas sobre situações ou assuntos não tão comuns em outras abordagens da Psicologia, conforme aponta o seguinte relato: "Eu trabalho em sala de aula com temas que são, não sei se seria polêmica a palavra, mas são questões, marcadores sociais, as questões étnico-raciais, de classe, de gênero, população LGBT, Direitos Humanos, enfim" (Professora Rosa).

Outra professora entrevistada apresenta a seguinte narrativa sobre a maneira de se trabalhar a ética na formação em PC.

Eu procuro trabalhar isso, eu sempre trago para o cenário atual. Foi muito interessante ontem, por exemplo, na disciplina, a gente "tá" fazendo seminários, né, então a gente tá discutindo um texto, que ele fala sobre categorização social e exclusão, e aí a gente trouxe o tema do racismo [...] eu tenho que ter muito manejo para colocar essas temáticas, mas eu não deixo de fazê-lo, né. [...] E, claro, fazendo uma discussão, também, sobre essas questões que se colocam, né, e, com isso, tentando trabalhar de maneira a despertar o aluno para uma consciência crítica, porque eu acho que isso é uma discussão, também, da Psicologia Comunitária, né. (Professora Clara)

A partir da compreensão da fundamentação teórico-prática da PC, os docentes afirmam lançar mão, portanto, tanto de textos, sobretudo os que abordam a atuação de psicólogos no campo de políticas públicas, quanto do relato de experiências práticas como estágios, projetos de extensão e de pesquisa-intervenção.

A minha disciplina, ela tem uma parte grande de formação prática nesse sentido, e eu procuro colocar os alunos na realidade de atuação do profissional de Psicologia nesses espaços e nessas políticas públicas. Procuro indicar como material de referência, de fundamentação, textos de autores que fazem essa articulação, de um compromisso ético com o compromisso de formação profissional e com a ideia de uma construção de uma ciência psicológica transformadora da realidade. (Professor Paulo)

Uma das dificuldades apresentadas na tentativa de construção de um modelo metodológico participativo no ensino da ética relaciona-se com o grande número de alunos nas turmas em alguns cursos, sobretudo, em faculdades particulares.

Há umas duas semanas atrás a gente tava discutindo isso na disciplina. Aí eu parei para refletir com os alunos, né. Refletir entre aspas, porque como se reflete com noventa alunos em uma turma, né? É um pouco difícil. Mas, assim, parei para tentar discutir com os alunos a questão de como eles entendem a pobreza no Brasil. (Professora Angela)

Outro fator relevante apontado pelos docentes diz respeito à forma indireta a partir da qual abordam a ética em sala de aula, por meio das discussões e temas anteriormente citados, e sem, necessariamente, nomeá-los como ensino dessa dimensão, conforme colocado na seguinte fala.

Olha, eu tenho abordado de forma indireta. Porque, por exemplo, acho que cada tema que a gente discute é como se essa discussão atravessasse todos os temas. Inclusive eu não chamo de ética, assim. Por isso eu te perguntei o que você tá chamando de ética. Porque quando eu falo com a turma para discutir como eles compreendem pobreza, ou como entendem a desigualdade social no Brasil, qual é o caminho, ou quando eu paro para discutir a construção de uma relação participativa, como que é isso, eu não dou o nome de ética. (Professora Angela)

Estudantes de Psicologia e o ensino-aprendizagem da ética em PC

Os estudantes apresentam algumas diferenças em relação à maneira como percebem a presença da dimensão ética na formação em PC. Para alguns, a ética deve ser trabalhada de maneira transversal no conjunto de todas as disciplinas, não havendo, portanto, a necessidade da especificidade de um único campo profissional, conforme o seguinte relato: "Às vezes, eu fico preocupado de, às vezes, a ética ficar apenas em uma matéria, sendo que ela deveria ser passada em todo o currículo, estar em todas as disciplinas []" (GF3).

Além disso, os estudantes apresentaram mais dificuldades na delimitação do que vem a ser ética, especificamente, em se tratando da PC. Não fica claro, para alguns, a existência de uma diferença entre uma considerada "ética tradicional", vinculada ao código ou a contextos clínicos, e uma ética específica da PC. Assim, ao serem questionados sobre como a dimensão ética foi trabalhada ao longo da formação, os alunos citaram a disciplina específica voltada à leitura do código de ética e debates sobre casos clínicos ou situações problema que versavam sobre temáticas como "eutanásia, distanásia, ortotanásia, coisas assim" (GF2), bem como situações polêmicas do Conselho de Psicologia, que não, necessariamente, se aproximam da realidade vivenciada no campo da PC.

Não vejo que seja uma diferença muito grande, porque quando você vê a ética lá na disciplina da ética, outros professores clínicos falando de ética, eu acho que está tudo relacionado ao respeito com a pessoa, no caso dos clínicos, com o paciente, o respeito às pessoas. (GF2, grifo nosso).

Eu tive uma experiência muito boa com o professor Z, com a metodologia de ensino que ele teve em sala de aula, que foi basicamente fazer uma lista de casos polêmicos, a gente fez junta, né, L.? Fez uma lista dos processos mais famosos do Conselho Federal de Psicologia. Antiéticos, dos casos mais infames. (GF3).

A partir de certa imprecisão encontrada entre o corpo discente, sobressai uma concepção de ética, conforme sinalizado acima, que se aproxima ao modelo clínico, pautando-se na lógica do anonimato e do sigilo, que são necessários no atendimento às pessoas.

E assim, dentre todos esses profissionais, o único que tem a obrigação de guardar sigilo é a gente ali. Então, é tomar muito cuidado, porque algumas coisas os outros devem saber, tipo a queixa principal, mas a gente tem que tomar um cuidado, principalmente em relação ao sigilo, de não passar coisas que é especificidade nosso saber, que a pessoa contou porque somos psicólogos. (GF1)

Ao mesmo tempo, os estudantes concordam que é necessária a adoção de uma postura e um saber/fazer no âmbito da Psicologia que vise questionar e ultrapassar uma ética considerada normativa e procedimental, ligada, segundo eles, ao código de ética da profissão, observando as contingências que permeiam a ação profissional, conforme o relato que segue.

É, e de reflexão mesmo, sempre, das suas práticas. Eu acho que se tem muito da ética ligada ao código tradicional, por exemplo. Mas eu não acho que é simplesmente você reproduzir o que tá ali, mas também criticar a sua conduta de acordo com a situação. Eu acho que aí sim reside o compromisso ético, você olhar o que deve ser feito de acordo com algumas regras básicas, e outras até pra essa crítica dessa quebra dessas regras. (GF1)

Eles consideram ainda que outras posturas são fundamentais em relação à ética em PC, como o não julgamento, a importância da relação horizontal entre profissional e o sujeito, bem como a preocupação com a não psicopatologização da vida, conforme os trechos abaixo.

Pensando um pouco no que foi falado sobre ética, eu acho que na prática que eu desenvolvi por meio dos estágios essa ética ela fundamentou a prática, ela veio no sentido de que em momento algum a gente tentou criar demandas ou encaixar a comunidade em modelos metodológicos que a gente tinha como pressupostos pro estágio. (GF3)

[...] Porque eu, ao mesmo tempo, tenho que tomar um cuidado, acho que ao mesmo tempo passa pela ética, de não psicopatologizar todos, no sentido de que "ah, todo mundo precisa desse cuidado". Mas tem também aqueles que precisam, então ok, tem as condutas éticas pra isso. Eu acho que a ética vem pra isso, pra esse cuidado de não psicopatologização. (GF1)

Por fim, no intuito de se pensar em uma ética que seja específica para o campo da PC, os estudantes sinalizam a ideia do compromisso social. De acordo com eles, a atuação em PC implica uma reflexão sobre o papel do psicólogo e, reconhecem, ainda, a necessidade de se adotar uma postura crítica e política sobre a atuação.

Psicólogo que tá atuando também tem um papel político. Eu acho que a Psicologia Comunitária traz pra esse campo reflexões críticas pra muitos psicólogos pensarem: "que que eu to fazendo com esse conhecimento?" "A quem eu to servindo?" "Por que estou servindo a essas pessoas e não àquelas?" Traz reflexões do tipo: "pra quem estou fazendo pesquisa?" "Pra quem estou fazendo intervenção?" "Por que estou fazendo pesquisa-intervenção, ou só pesquisa, ou só intervenção?" (GF2)

 

Discussão

A PC tem se constituído como uma importante disciplina no âmbito da formação e intervenção profissional em Psicologia. Na atual conjuntura, marcada pelo conservadorismo e retrocessos nos planos político, social e econômico, a formação profissional para essa área enfrentará novos e importantes desafios, visando concretizar a participação social, consolidar práticas democráticas, superar relações históricas de dominação, e, nessa direção, contribuir na edificação de um projeto ético-político de verdadeira transformação social (Jiménez-Domingues, 2004).

No tocante à formação em PC, Baima (2014) aponta a existência de algumas dificuldades no sentido de efetivação dessa disciplina no bojo da Psicologia, em razão de ainda prevalecer, em grande parte dos cursos de graduação do país, uma concepção hegemônica de atuação calcada no modelo clínico, em consultórios particulares, que é distinta à prática comunitária. Além disso, o baixo número de créditos oferecidos, as condições desfavoráveis encontradas por professores (via precarização da educação superior) e a necessidade de reformulação da grade curricular dos cursos de Psicologia, visando facilitar a inserção de estudantes na área de PC, são algumas das limitações encontradas no âmbito da formação nesse campo, de acordo com a pesquisa realizada por Azevêdo e Pardo (2014).

A partir dos documentos (planos e ementas) analisados, encontramos a existência de diferentes abordagens utilizadas no processo formativo em PC, sinalizando um cenário de pluralidade teórica e epistemológica no tocante à constituição desse campo em nossa realidade. A esse respeito, autores como Wiesenfeld (2014) e Álvaro e Garrido (2017) consideram que a PC latino-americana tem desenvolvido, ao longo de sua trajetória, um aporte teórico-metodológico marcado pela interdisciplinaridade e pluralidade de abordagens. Ainda de acordo com Vieira-Silva e Freitas (2017), a PC no estado de Minas Gerais, assim como em outros contextos, tem uma história marcada pela incorporação de diferentes abordagens teóricas e metodológicas, o que pode ser constatado nesta pesquisa.

Especificamente no tocante à presença da dimensão ética nas ementas e planos de ensino, cabe assinalar que esta não é abordada como categoria central no processo de ensino. Entretanto, é válido assinalar que a adoção dos paradigmas anteriormente identificados no Quadro 1 (libertação, crítico, redes sociais, etc.), dos objetivos almejados, além das categorias elencadas para o processo de ensino-aprendizagem, parece sinalizar para uma preocupação dos atores envolvidos em propiciar uma formação que busque analisar e intervir sobre a realidade, marcada por assimetrias e desigualdades sociais e políticas. Além disso, tais conteúdos expressam valores e princípios que são norteadores para a PC latino-americana, conforme salientam Serrano-Garcia (2010) e Winkler, Alvear, Olivares e Pasmanik (2014).

Em relação aos docentes, os relatos apontam para a compreensão da importância da ética na construção do quefazer psicológico. Os professores convergem para uma noção de ética que é forjada em meio às relações sociais, refletindo aquilo que enfatiza Martín-Baró (2015) sobre representar o ponto de partida e o horizonte de ação adiante da realidade que devem guiar os profissionais. Há uma tentativa, entre os docentes, de propiciar uma formação a partir de debates acerca de temáticas atuais e assegurar mais contato com a realidade social na qual os alunos estão inseridos. Esse aspecto é imprescindível para que a dimensão ética possa de alguma maneira ser colocada como ponto de debate, pois, de acordo com Serrano-Garcia (2010), é fundamental assegurar a dimensão da práxis no processo formativo, em que a análise e intervenção sobre a realidade possam produzir efetivas transformações nos atores envolvidos no processo, incluindo aqui docentes e discentes.

Conforme observado, existem diferentes perspectivas teóricas e epistemológicas presentes no campo da PC, que aparecem, também, nas próprias concepções adotadas pelos docentes para remeter à dimensão ética, denominada de "valorativa", "do cuidado" e/ou "das relações". A despeito dessas diferenças, conforme pontuado anteriormente, observamos uma busca pela ruptura com as práticas psicológicas de matriz individualizante, que, limitadas a uma certa leitura do código de ética, acabam por normatizar a atuação profissional, na medida em que se baseiam em visões enrijecidas dos fenômenos psicossociais, não contemplando as necessidades da práxis em PC (Winkler, 2007; Winkler, Alvear, Olivares & Pasmanik, 2012).

De qualquer maneira, é válido nos questionarmos sobre em que medida as concepções dos docentes em relação à ética e, mesmo sobre o papel da PC, podem afetar o processo formativo nessa área. Assim, pode ser importante refletirmos sobre a importância de que as diferentes leituras presentes na área sejam cada vez mais esclarecidas no processo formativo, além de estarem devidamente documentadas nos planos de ensino que orientam a formação. Conforme salienta Freitas (2015), nem tudo que se diz sociocomunitário, efetivamente, chega a sê-lo. Tampouco, nem tudo que almeja transformar a realidade, verdadeiramente, pretende fazê-lo.

Vale ainda salientar que dentre os resultados encontrados entre os professores, assim como nos documentos analisados, observamos uma possível tendência em delimitar a ação da PC nos dispositivos das políticas públicas. Em razão da importância que tais cenários têm, tanto para a formação quanto para a atuação profissional, consideramos ser necessário o reconhecimento dos reais limites e potencialidades de nossa atuação nesse campo, no tocante à transformação social e a emancipação (Lacerda Jr., 2015).

As políticas públicas representam conquistas históricas da classe trabalhadora e, portanto, são necessárias e fundamentais para a garantia de direitos sociais para milhares de brasileiros e brasileiras. Entretanto, são limitadas em seu papel de transformação real da vida da população, em razão das próprias condições impostas pelo modelo capitalista em nosso país, bem como do caldo cultural que as perpassam. Nesse sentido, pode ser importante uma análise crítica sobre tais cenários de formação, que devem ser valorizados e fortalecidos, ao mesmo tempo em que é preciso destacar que a atuação da PC está para além dos contornos das políticas públicas. Assim, garantir e fortalecer o diálogo, bem como as ações com os sujeitos, grupos e movimentos sociais, que são e/ou podem se tornar protagonistas da transformação da vida social, continua a ser uma importante mediação para a formação e atuação na área.

Em relação aos estudantes, cabe-nos perguntarmos: como eles têm apreendido a dimensão ética em PC no seu processo de formação? No que tange aos participantes desta pesquisa, embora muito mencionada, a discussão sobre ética ainda emerge centrada nos moldes individuais e calcado no modelo clínico. Os discentes ainda percebem a ética relacionada a um código de condutas, tais como o não julgamento, não preconceito, sigilo, respeito ao outro, dentre outras. Indubitavelmente, tais noções são importantes e necessárias para a atuação em PC, mas o posicionamento ético não se reduz a isso. Conforme salientam Winkler et al. (2014) e Osorio (2009), a PC prescinde de um embasamento ético de atuação que dialogue com os sujeitos da intervenção a partir da realidade na qual se está inserido. Portanto, determinados preceitos muito utilizados na prática clínica em Psicologia serão insuficientes no âmbito sociocomunitário, tendo em vista que os princípios da atuação são diferentes, assim como os problemas e necessidades enfrentadas serão outros (Sloan, 2009; Sarriera, 2010).

Por fim, cumpre assinalar a menção dos estudantes em relação ao compromisso social em PC, tido como um "horizonte ético" na profissão. A despeito de sua importância, é preciso problematizar que nem toda promessa de compromisso com a autonomia e emancipação são realmente condizentes com o projeto ético e político que orienta o campo da PC, conforme salientam Martín-Baró (2015) e Montero (2004a). A ideia de transformação social, que diz respeito à dimensão ética e política do quefazer profissional na área, tem sofrido sérias barreiras para se efetivar ao longo das últimas décadas.

Por conseguinte, com vistas a fortalecer a formação em PC, em especial no que diz respeito aos preceitos éticos e políticos do campo, pode ser importante superarmos certas carências - como o reconhecimento dos limites de certo compromisso social abstrato -, possivelmente, ainda observadas no processo formativo pelos alunos e, dessa forma, contribuir para que as ações que venham a ser realizadas nos contextos sociocomunitários estejam, realmente, afinadas com as pressuposições da PC latino-americana, de caráter crítico e transformador (Euzébios Filho, 2017; Lacerda Jr., 2013; Parker, 2007). Quiçá, esse movimento de constante reflexão sobre nossos pressupostos, assim como outros, poderá favorecer o desenvolvimento de novas rotas de ação, ainda não descobertas, levando à constante (re)invenção do quefazer profissional e, inevitavelmente, do processo de formação na área.

 

Considerações finais

O estudo realizado procurou analisar o lugar da dimensão ética no processo formativo em PC, considerando os planos de ensino e ementas curriculares, bem como alguns atores envolvidos no processo. Consideramos que a discussão sobre ética poderia, a partir dos resultados encontrados, ser inserida com maior clareza nos planos e ementas, o que poderá contribuir para fortalecer o seu debate no processo formativo. Avaliamos, por outro lado, que os docentes consideram a importância do debate ético na formação e procuram assegurar, a partir de diferentes estratégias, a apreensão de tal dimensão pelo corpo discente. Os estudantes, por sua vez, apresentam algumas imprecisões e dificuldades em compreender a especificidade do debate sobre ética em PC, reproduzindo uma leitura ainda marcada pelo método clínico.

Nesse sentido, pode ser importante trabalharmos para demonstrar as especificidades relacionadas aos pressupostos éticos da PC, que são social e historicamente construídos. Os debates realizados em sala de aula, sobre experiências e situações reais, devem ser continuamente atualizados e contextualizados com o intuito de explicitar as particularidades de atuação nesse campo. Ademais, a análise das práticas realizadas nos diferentes cenários de atuação exigirá uma constante reflexividade sobre o quefazer, implicando os diferentes atores na ação.

O presente estudo não objetiva, de maneira alguma, encerrar o debate sobre a formação em PC, configurando-se como uma possível contribuição para que possamos seguir a reflexão acerca da formação em Psicologia, considerando as suas especificidades. A pesquisa apresenta limitações, uma vez que nos ocupamos apenas do debate sobre a ética em PC, sendo, também, importante compreender como o tema surge nos projetos político-pedagógicos dos cursos, assim como verificar as especificidades de cada IES, uma vez que a formação em PC não se encerra unicamente em uma disciplina e sofre influências da direção ético-política de determinados cursos e IES. Além disso, pesquisas com profissionais já inseridos nos diferentes espaços de atuação, alunos de pós-graduação e, mesmo, com os sujeitos que sejam alvos da intervenção profissional poderão contribuir para avançarmos com o debate aqui colocado.

 

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Recebido em: 7/2/2019
Aprovado em: 28/5/2019

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