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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.14 no.4 São João del-Rei out./dez. 2019

 

Machado de Assis e sua leitora Nise da Silveira

 

Machado de Assis and his reader Nise da Silveira

 

Machado de Assis y su lector Nise da Silveira

 

 

Teresinha V. Zimbrão da SilvaI; Elizabeth Christina Cotta MelloII

IDoutorado e Pós-doutorado em Literatura. Professora Titular da Faculdade de Letras da UFJF
IIPós-doutorado em Ciência CBPF - MCT

 

 


RESUMO

Neste artigo, trabalhamos com duas áreas de conhecimento: Literatura e Psicologia Junguiana. Nossa proposta é interdisciplinar: pretendemos analisar dois contos intitulados "O espelho" e "A causa secreta", do escritor brasileiro Machado de Assis, a partir dos trabalhos junguianos da psiquiatra brasileira Nise da Silveira.

Palavras-chave: Machado de Assis. Nise da Silveira. Psicologia junguiana.


ABSTRACT

In this article, we will be working with two areas of knowledge: Literature and Jungian Psychology. Our proposal is interdisciplinary: we intend to analyze two short stories entitleds, O espelho and A causa secreta, by Brazilian writer Machado de Assis, from the point of view of Jungian works by Brazilian psychiatric Nise da Silveira.

Keywords: Machado de Assis. Nise da Silveira. Jungian Psychology.


RESUMEN

En este artículo, trabajaremos con dos áreas de conocimiento: Literatura y Psicología Junguiana. Nuestra propuesta es interdisciplinaria: pretendemos analizar dos historias cortas tituladas, O espelho y A causa secreta, del escritor brasileño Machado de Assis, considerando las obras junguianas de la psiquiatra brasileña Nise da Silveira.

Palabras-cabe: Machado de Assis. Nise da Silveira. Psicologia junguiana.


 

 

É certo e até mesmo evidente que a Psicologia, ciência dos processos anímicos, pode relacionar-se com o campo da Literatura.

(Jung, 1985, p. 74)

Que resta ao psicólogo fazer, ainda hoje, em relação à obra de Machado de Assis senão admirar o autor?

(Silveira, 1968/1997, p. 140)

 

Introdução

Os estudos sobre Literatura e Psicologia integram uma pesquisa que tem uma proposta interdisciplinar: a leitura de textos literários à luz da Psicologia junguiana. No volume intitulado em português O Espírito na Arte e na Ciência (Jung, 1985), encontramos dois ensaios de Carl Gustav Jung que tratam, de modo explícito, sobre as relações entre os campos de conhecimentos da Literatura e da Psicologia, são eles: "Relação da Psicologia Analítica com a obra de arte poética", escrito em 1922, e "Psicologia e poesia", escrito em 1930. Lemos, então, que a força imagística da poesia, que pertence ao domínio da Literatura e da Estética, é um fenômeno psíquico e, como tal, pertence também ao domínio da Psicologia. Ao comentar esses ensaios, Nise da Silveira, psiquiatra introdutora do pensamento de Jung no Brasil, sublinha que a Psicologia junguiana pode contribuir para o estudo dos processos psicológicos da atividade criadora e da produção artística (Silveira, 1968/1997). Logo, tanto Jung quanto Nise da Silveira defendem o que chamaríamos hoje de interdisciplinaridade, espaço onde o presente artigo pretende se situar, ao se propor a ler dois contos de Machado de Assis - "O espelho" (1997b, pp. 345-352), publicado em 1882, e "A causa secreta" (1997b, pp. 511-519), publicado em 1885 - à luz das observações junguianas da leitora que tanto admirava o escritor brasileiro: a própria Nise da Silveira. Mas antes de entrarmos no tema principal do artigo, algumas considerações se fazem necessárias.

 

Literatura psicológica e Literatura visionária

Principiemos por notar que, nos seus ensaios sobre Literatura e Psicologia, Jung diferencia dois procedimentos distintos na criação da obra literária: o psicológico e o visionário. No primeiro, estão presentes conteúdos que a consciência conhece ou pode pressentir, já no segundo, há a presença predominante de conteúdos ignorados que parecem provir das profundezas do inconsciente. Sobre a obra visionária, Jung sublinha (1985, p. 78): "Neste segundo modo tudo se inverte: o tema ou vivência que se torna conteúdo da elaboração artística nos é desconhecido. Sua essência, estranha, de natureza profunda, parece provir de abismos de uma época arcaica, ou de mundos de sombra e de luz sobre-humanos". Jung (1985, pp. 79-80) explica que uma profunda obscuridade envolve a origem dos temas visionários, tanto que diante deles, "[h]á uma exigência óbvia de comentários, explicações; sentimo-nos surpreendidos, desconcertados, confusos desconfiados ou, o que é pior, chegamos a experimentar repugnância". As obras visionárias, continua Jung (1985, p. 80), "nada evocam do que lembra a vida cotidiana, mas tornam vivos os sonhos, as angústias noturnas, os pressentimentos inquietantes que despertam nos recantos obscuros da alma", elas nos conduzem a "áreas desconhecidas e ocultas, a coisas que, por sua natureza, são secretas" (p. 83). Diferindo, portanto, da obra psicológica que, provindo do domínio da experiência humana mais cotidiana e conhecida, se move nos "limites do que é psicologicamente compreensível e assimilável" (p. 78).

Para Jung, é a obra visionária, e não a psicológica, que mais oferece possibilidades de interpretação ao psicólogo. Na obra psicológica, o autor antecipa a psicologia particular de seus personagens, sobrando ao psicólogo pouco a acrescentar àquilo que o autor já não o tenha dito e de forma melhor. Jung sublinha (1985, p. 76): "O assim chamado romance psicológico, por exemplo, [...] tem por assim dizer sua própria psicologia, que o psicólogo poderia, no máximo, completar ou criticar". Apesar de Jung desencorajar então o estudo de obras psicológicas, preferindo estudar as visionárias, o presente artigo defende que a Psicologia junguiana pode também acrescentar muito à leitura dessas obras, e não somente às visionárias como sugere Jung. Afinal, como sublinha Nise da Silveira ([1968]/1997, p. 139): "Numerosos graus existem entre esses dois tipos de obras de arte", e explica: "Muitas vezes ideias oriundas de planos profundos do inconsciente insinuam-se desapercebidas em meio às coisas cotidianas, trazendo de súbito a um poema ou a página de um romance um toque singular de vibrações", singularidade que mereceria ser então explicitada, seja na obra visionária, seja na obra psicológica.

Pois é a obra psicológica que interessa ao presente artigo, e, como exemplo desta, no contexto da Literatura Brasileira, sublinhamos a obra machadiana (Assis, 1997). De fato, Nise da Silveira, considerando a diferenciação proposta por Jung, e como leitora de Machado de Assis, afirmou a respeito: "Na literatura brasileira vamos encontrar excelentes exemplos de obras psicológicas nos romances e contos de Machado de Assis" (Silveira, [1968]/1997, p. 139). Sabe-se que o autor muito bem disseca a alma humana e suas paixões, construindo a sua própria psicologia. Sendo assim, um dos estudos possíveis, a partir do diálogo da Literatura com a Psicologia junguiana, é a atuação do estudioso, seja ele um crítico literário e/ou psicólogo, no sentido de "completar" o que estiver implícito na psicologia machadiana, tornando-a, na medida do possível, explícita à luz de Jung. Afinal, o Bruxo do Cosme Velho é um autor conhecido pela produção de obras abertas à espera de um leitor para as "completar", nisso incluindo a sua psicologia. Pois a partir do diálogo com as observações de Nise da Silveira, pretendemos explicitar uma proposta de leitura que se oferece como contribuição aos campos de conhecimentos tanto da Crítica Literária quanto da Psicologia.

 

Processo de individuação

Como já sugerimos, a leitura junguiana da obra psicológica pode ser tão produtiva quanto da obra visionária, sobretudo se essa leitura se der à luz do conceito central da Psicologia de Jung, ou seja, o Processo de Individuação. O termo Individuação se refere à totalidade de um processo de desenvolvimento psíquico e de autoconhecimento. Segundo a Psicologia junguiana, todo ser humano tem em si o potencial para se desenvolver e conhecer a si mesmo, ainda que esse desenvolvimento possa ser obstacularizado por dificuldades momentâneas, neuroses e outras psicopatologias. O processo é impulsionado por forças instintivas inconscientes, contudo, o homem pode influenciá-lo quando consegue estabelecer, por meio dos sonhos e de outras manifestações, incluindo as artísticas, um produtivo diálogo entre consciente e inconsciente. É a partir daí que aspectos fragmentados da personalidade irão se integrando na realização de um indivíduo que, ao se conhecer cada vez mais, experimentará a si como mais inteiro

Pois, note-se, que é possível analisar o Processo de Individuação das personagens literárias, sendo que essa análise pode contribuir, e muito, para a compreensão da obra como um todo e do próprio ser humano nela problematizado. No caso de Machado de Assis, no que diz respeito à interdisciplinaridade entre Literatura e Psicologia, já existe um número consistente de leituras freudianas/lacanianas, sendo assim, o presente artigo, dialogando com as observações de Nise da Silveira, pretende contribuir para preencher a carência de leituras junguianas, as quais têm o potencial para explicitar o quanto esse autor brasileiro de obras psicológicas muito bem descreve as psicopatologias e neuroses humanas a obstacularizar o Processo de Individuação de suas personagens, podendo fazê-lo melhor do que muitos tratados psicológicos. De fato, sobre a obra literária psicológica, Nise da Silveira ([1968]/1997, p. 138) afirma: "Seria muito vantajoso que o estudante trocasse vários de seus manuais de psicologia, por exemplo, pela Busca do tempo perdido de Proust". E aqui, acrescentamos: também pela obra de Machado de Assis. Afinal, tal exercício de leitura, como já mencionamos, pretende-se como contribuição não só à Crítica Literária, mas também à Psicologia. Pois iniciemos, enfim, a tal leitura

 

Nise da Silveira, leitora de Machado de Assis1

Nise da Silveira foi uma leitora atenta de Machado de Assis e comentou a obra do autor em, pelo menos, quatro textos: no seu primeiro livro Jung: vida e obra (1968/1997); no livro Imagens do Inconsciente (1981/2015); no livro Farra do Boi, (1989); e na introdução inédita, escrita em 1993, à revista Quaternio.

De fato, no capítulo sobre "A obra de arte e o artista", em Jung: vida e obra, a psiquiatra junguiana assim descreveu os personagens machadianos, Rubião, do romance Quincas Borba (1997a), Bentinho e Capitu, de Dom Casmurro (1997b).

Machado de Assis mostra ao leitor que no coração humano surgem certos sentimentos que nem sempre são aceitáveis às claridades da consciência. Para apanhar em flagrante esses sentimentos, ele não escolhe sujeitos particularmente perversos. É no professor mineiro, tipo de bom homem, é em Bentinho, menino ingênuo, que ele surpreende os movimentos dos desejos egoístas. O mesmo decerto ocorrerá a todos os seres humanos. Capitu é estudada desde menina no olhar oblíquo, nos gestos, no comportamento dissimulado e sinuoso, com a minúcia que teria um zoólogo diante de um animal fadado a cumprir leis inescapáveis, inerentes a sua natureza. (Silveira, 1968/ 1997, pp. 139-140)

Nise da Silveira chama a atenção para o fato de Machado de Assis desmascarar os seus personagens, mostrando os seus sentimentos mais sombrios. Nesse mesmo texto, ela ainda menciona o conto machadiano "A mulher de preto" para exemplificar que o autor tematiza em sua obra, além do desmascaramento, outro conceito caro à Psicologia, o lapso.

No conto, "A mulher de preto", publicado em 1870, Machado mostra saber que o indivíduo, possuído por um sentimento, poderá trair-se, trocando involuntariamente uma palavra por outra. Foi o que aconteceu ao jovem Estêvão, apaixonado pela esposa do deputado Meneses, numa conversa em roda de políticos. (Silveira, 1968/1997, p. 140)

De fato, Estêvão, todo entregue em pensamentos à sua amada, responde distraído sobre uma determinada situação política: "É lindíssima!" (Assis, 1970/1997c, p. 59). De onde sublinha a psiquiatra junguiana a respeito da genialidade do autor brasileiro que antecedeu em mais de 30 anos a conceituação freudiana: "O livro de Freud Psicopatologia da vida cotidiana, no qual são estudados os lapsos, foi publicado em 1904. Que resta ao psicólogo fazer, ainda hoje, em relação à obra de Machado de Assis senão admirar o autor?" (Silveira, 1968/1997, p. 140).

Em Imagens do Inconsciente de 1981, Nise da Silveira (2015), ao descrever os pacientes psiquiátricos sob seus cuidados no hospital do Engenho de Dentro, e as suas relações com animais, como parte da terapêutica ocupacional, comenta a respeito do romance machadiano Quincas Borba. "Não é novidade que uma ligação profunda possa estabelecer-se entre o louco e o cão. Machado de Assis narra em Quincas Borba a história de um cão que amou dois loucos. [...] Não se esperaria encontrar a sensível inteligência de Machado de Assis em todo o mundo (p. 92).

Na introdução inédita de 1993 à revista Quaternio, a psiquiatra junguiana, ao analisar o tema dos opostos bem/mal, exemplifica com o conto machadiano "A Igreja do Diabo". Voltando ao livro Jung: vida e obra, no capítulo sobre "Processo de Individuação", Nise da Silveira define persona a partir do conto machadiano "O espelho". E no livro, Farra de boi de 1989, ao analisar o tema do mal e da sombra na sua manifestação sádica, menciona o conto "A causa secreta". Pois, nas seções que se seguem, procuraremos dialogar com as observações feitas por Nise da Silveira a esses dois contos machadianos.

 

O espelho

Nenhum exemplo ilustrará melhor o que seja a persona que o conto de Machado de Assis "O Espelho".

(Silveira, 1968/1997, p. 80)

Ao explicar as etapas do Processo de Individuação no seu livro de 1968, Jung: vida e obra, Nise da Silveira ilustra a sua definição de persona comentando o conto "O espelho".

Nesse conto, Machado apresenta a teoria de que o homem tem duas almas: "uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro [...]. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; e assim também a polca, o voltarete, um livro, u'a máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor etc." E narra o caso de um jovem que, sendo nomeado alferes da Guarda Nacional, tanto se identificou com a patente que o "alferes eliminou o homem". (Silveira, 1968/1997, p. 80)

De fato, lemos, no início do conto, que a personagem Jacobina, capitalista de uns 50 anos de idade, apresenta aos seus amigos numa noite em Santa Teresa, bairro da corte do Rio de Janeiro, a sua teoria das duas almas do homem. Para demonstrá-la, narra um episódio do tempo em que era pobre, morava numa vila provinciana, tinha 25 anos e acabara de ser nomeado alferes da guarda nacional, um acontecimento que lhe trouxe então muito orgulho e distinção, a ponto de os familiares passarem a lhe chamar não mais pelo nome, e sim por alferes, incluindo uma tia que morava num sítio distante com seus escravos e a quem ele foi visitar. Lemos ainda no conto que circunstâncias externas - a tia viajou às pressas, os escravos fugiram - obrigaram Jacobina a ficar sozinho no sítio. O conto continua e a psiquiatra junguiana observa:

Quando, por circunstâncias especiais, ele foi obrigado a ficar sozinho numa casa de campo onde não havia ninguém para prestar as louvações e marcas de respeito devidas ao alferes, sentiu-se completamente vazio. Até sua imagem no espelho, ele a via esfumada sem contorno nítido. Esse fenômeno estranho levou-o ao pânico. Desesperado, lembrou-se de vestir a farda de alferes. "O vidro reproduziu então a figura integral, nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso, era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior". (Silveira, 1968/1997, p. 80)

Complementando as observações de Nise da Silveira, notemos que, sozinho no sítio, e na falta de outro concreto para reconhecer a sua persona, Jacobina achou um substitutivo: o espelho. O ato de vestir concretamente a máscara de alferes em frente ao espelho proporcionou-lhe ver a si mesmo como outro o veria e, assim, achar a sua alma exterior, ausente com a tia, fugida com os escravos. Somente então, recolocando a máscara e vendo a sua imagem nítida, é que superou seu desespero. Nise da Silveira (1968/1997, p. 80 ) assim conclui suas observações sobre o conto machadiano: "Quanto mais a persona aderir à pele do ator, tanto mais dolorosa será a operação psicológica para despi-la".

De fato, se colocarmos em diálogo a descrição de Jung da psique com a teoria machadiana das duas almas, ou seja, o eixo introvertido ego-self dialogando com a definição de alma interior e o eixo extrovertido ego-persona dialogando com a definição de alma exterior, poderemos então, como observa Silveira, ler no conto um caso de identificação do ego com a persona. Portanto, à luz junguiana, em "O espelho", explicita-se a história de um homem cuja persona de alferes aderira de tal modo ao rosto que, ao ter sido essa máscara dissolvida contra a sua vontade, teve o homem o sentimento doloroso da quase dissolução do próprio rosto. A identificação do ego com a persona é uma psicopatologia a que está sujeito o ser humano no seu processo de individuação e autoconhecimento, e que foi explicitada na análise de "O espelho". Passemos, então, às observações de Nise da Silveira sobre o outro conto machadiano que nos propomos a ler neste artigo.

 

A causa secreta

[...] o sadismo que tem por objeto o animal e o sadismo que toma por objeto outro ser humano, movem-se indiscriminadamente. Não será preciso procurar exemplos em livros de medicina. A agudeza super-sensível de Machado de Assis apreendeu todas as nuances desse fenômeno no seu conto "Causa secreta", publicado em 1896.

(Silveira, 1989, p. 69)

No livro, Farra de boi, de 1989, ao analisar o tema do mal e da sombra na sua manifestação sádica, Nise da Silveira menciona o conto machadiano "A causa secreta" para exemplificar que o sadismo do ser humano em relação ao animal e o sadismo em relação a outro ser humano estão muito próximos, a ponto de indiscriminadamente moverem-se de lá para cá e vice-versa.

Em "A causa secreta", lemos a estória do estudante de Medicina Garcia, do capitalista Fortunato, homem de uns 40 anos, e de Maria Luísa, jovem esposa do último. Fortunato conheceu Garcia por ocasião de ajudarem ambos um vizinho de Garcia, encontrado pelo capitalista, na rua, com sérios ferimentos. Fortunato mostrou-se então enfermeiro muito dedicado e, apesar do olhar duro, seco e frio, sensibilizou Garcia. Este passou a frequentar a casa do capitalista e se apaixonou por sua esposa. Um dia, ao rememorar como se conheceram, Fortunato convidou Garcia, já formado em Medicina, para fundarem juntos uma Casa de Saúde. O capitalista revelou-se então um enfermeiro dedicadíssimo, começou a estudar Anatomia e Fisiologia e a fazer experiências, rasgando e envenenando gatos, cães e ratos num laboratório que construiu na própria casa. Nise da Silveira observa a respeito:

Os animais gritavam desesperadamente e isso tornou-se causa de grande aflição para Maria Luísa. A situação atingiu seu ponto mais alto quando um dia Garcia havia ido jantar com o casal. Fortunato apanhara um rato. Garcia viu-o "sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e sobre a qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava. Entre o polegar e o índice da mão esquerda segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma tesoura. No momento em que o Garcia entrou, Fortunato cortava ao rato uma das patas; em seguida desceu o infeliz até a chama, rápido, para não matá-lo, e dispôs-se a fazer o mesmo à terceira, pois já lhe havia cortado a primeira. Garcia estacou horrorizado. - Mate-o logo! disse-lhe. - Já vai. E com um sorriso único, reflexo de alma satisfeita, alguma coisa que traduzia a delícia íntima das sensações supremas, Fortunato cortou a terceira pata ao rato, e fez pela terceira vez o mesmo movimento até a chama. O miserável estorcia-se, guinchando, ensanguentado, chamuscado, e não acabava de morrer. [...] Faltava cortar a última pata; Fortunato cortou-a muito devagar, acompanhando a tesoura com os olhos; a pata caiu, e ele ficou olhando para o rato meio cadáver". [...] Garcia conclui que Fortunato tem a "necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem. (Silveira, 1989, p. 70)

Este seria então o segredo de Fortunato, o prazer com a dor alheia, a causa secreta que dá título ao conto. Sobre o episódio final da estória, a psiquiatra junguiana comenta:

Maria Luísa adoeceu. Tuberculose. O marido apelou para todos os recursos médicos a fim de salvá-la. Mas, "nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a índole do marido sobrepujou qualquer outra afeição. Não a deixou mais; fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e minada de morte [...] não lhe perdoou um só minuto de agonia" [...].

No velório, Machado leva o leitor a extremos. Fortunato surpreende Garcia beijando na testa o cadáver de Maria Luísa, e ainda, outra vez inclinando-se para mais um beijo, irrompe em lágrimas. Fortunato observa tudo sem ser visto. Pensou: o beijo poderia bem ser o epílogo de um adultério. Mas não teve ciúmes. "Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranquilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa". (Silveira, 1989, p. 70-71)

Nise da Silveira, com as suas observações sobre o conto, chama a atenção para o impulso sádico movendo-se em Fortunato, manifestando-se seja no prazer de contemplar o sofrimento de enfermos, incluindo o da sua própria esposa, seja na tortura requintada de gatos, cães e ratos, ou no prazer delicioso com a dor de Garcia, o amigo e possível amante de Maria Luísa. A psiquiatra junguiana conclui que

Seu prazer com o sofrimento alheio não encontra obstáculo em voltar-se do animal para o ser humano. A dor do possível amante de sua mulher desperta nele indizível delícia. Não seria possível ir mais longe nesse movimento sádico que resvala do objeto animal para o objeto homem. Grande mestre foi Machado de Assis! Esgotou o assunto. (Silveira, 1989, p. 71)

Machado esgotou o assunto no que diz respeito ao sadismo individual que integra a sombra pessoal, mas o que de fato interessa a Nise da Silveira nesse texto é chegar à sombra coletiva para analisar a Farra do Boi, um festival catarinense no qual o boi é torturado.

Mas a sombra com seus múltiplos componentes, inclusive o sadismo, ultrapassa os limites do pessoal e alonga-se na sombra coletiva. A sombra coletiva manifesta-se externamente sob duas formas: personificada numa única figura humana execrada, por exemplo, Judas, malhado no sábado de Aleluia, líder político que encarna o mal coletivo do momento; ou como fenômeno de massa incontrolável, detonado em situações diversas, pela reativação da sombra dos indivíduos que a constituem. [...] É neste contexto que se insere a Farra do Boi. (Silveira, 1989, p. 71)

A psiquiatra junguiana ainda sublinha que o comportamento da massa manifesta-se num nível de consciência ainda mais baixo do que o próprio comportamento individual dos integrantes desta. Anônimo na multidão, o indivíduo não se responsabiliza por seus atos. Sua psique consciente é de todo possuída pela sombra coletiva que o arrasta a fenômenos de regressão e aos mais baixos níveis de consciência. É o que acontece, explica ela, na Farra do Boi e alerta:

[...] valerá não esquecer que, tal como o sadismo de Fortunato, personagem do conto de Machado de Assis, que na sua impassibilidade buscava satisfação ora no animal, ora no ser humano, nada surpreenderá se os "farristas" torturadores do boi derem uma reviravolta súbita e dirigirem sua mira a seres humanos. (Silveira, 1989, p. 72)

Pois voltemos a Machado de Assis e aos seus dois contos, "O espelho" e "A causa secreta". Notemos que as observações de Nise da Silveira sobre esses contos explicitam dois conceitos que a Psicologia junguiana define como persona e sombra, as duas faces da máscara, etapas importantes do processo de individuação que aprofundaremos em seguida.

 

As duas faces da máscara

A máscara é um artefato que aponta para a elaboração de um conflito inicial no processo de individuação (Jung, 1990). Paradoxalmente, a máscara tem sido utilizada como persona, na maior parte das vezes como sombra. Ela simboliza a presença do Deus (Vernant, 1988), até o substitui, mas justamente encarna, no sentido mitológico, os deuses que estão fora da cidade, no bosque, no outro lado, que representa o desconhecido e o sombrio. Nos contos de fada, o bosque, o além dos muros da cidade, é a morada de todo o perigo, onde "não há caminhos válidos, ou todos levam à casa da bruxa antropófaga que espera no centro do bosque; é um lugar de perdição ou de extravios, de escuridão hostil ou de espinhos que dificultam a marcha do viajante cansado" (Savater, 1982, p. 6). Mas há como esperar a colaboração das forças que aparecem: animais e outros personagens que conspiram para a transformação. Todo processo envolve, como nos contos e nos mitos, passagens de confronto. Penteu, por exemplo, o grego e herdeiro, não pode esperar reinar sem enfrentar a sombra de sua cidade: mitos e contos ensinam "que não basta ser herdeiro simplesmente. Todo legado precisa ser reconquistado, tem que ser perdido para poder ser ganho de novo, triunfalmente" (Savater, 1982, p. 6). O processo que Jung chama de individuação acontece porque a casa, símbolo do eu e de nosso espaço próprio, não pode ser a mesma dos pais no sentido simbólico: "a casa dos pais é o espaço que todo o possível já passou a necessário. Isso ocorre porque todo lar é uma aventura, mas para a criança é a aventura de outro" (Savater, 1982, p. 6). Precisamos seguir o nosso próprio caminho para depois poder voltar para a casa. Voltar para a casa após lidar com o aspecto sombrio da máscara que agora pode ser colocada e tirada do rosto sem com ela se identificar. Essa possibilidade é a capacidade de ir e voltar da casa dos pais, evitando o que acontece de mais comum: perder-se no olhar de filho, de criança ou adolescente, sem conseguir seguir o caminho ou ter que se afastar de forma definitiva porque a presença é excessiva, e não se consegue ir e vir.

É importante entender que a máscara tanto revela quanto esconde a face no sentido não somente concreto, restrito, mas também mais amplo, psíquico e social. Lembremos que os xamãs, comentados por Jung (2017), se diferenciam por meio da máscara, encarnando experiências religiosas. Ocuparemo-nos aqui dessa dualidade: o que é revelado, desvelado e o que se oculta, a partir da ideia da máscara.

Os termos persona e sombra podem ser compreendidos a partir da ideia de opostos na obra de Jung. Estudiosos como Vernant (1988) e Detienne (1988) estudaram as máscaras e os deuses mascarados. Os opostos para Jung fundamentam o processo de transformação, ainda que ele não negue a existência do múltiplo. As mudanças e a criação se iniciam, porém, pelo confronto com os opostos. A Psicologia Analítica se fundamenta no processo de criação (Conford apud Mello, 1991) e a cosmogonia nos mitos. A solenidade dos inícios envolve o futuro desdobrar alquímico, envolvendo várias etapas pela circulação de processos também criativos (circulatio) como afirma Jung (1990). Os opostos, no caso da cosmovisão junguiana, são a um só tempo opostos e complementares. Utilizando um paralelo da Física, da cosmologia quântica (Mello, 2002), podemos dizer que é similar (isomórfico não trivial) ao que se chama de matéria e antimatéria. Ou seja, podem ser complementares porque têm um eixo comum de sentido (sintaxe e semântico). Quando se encontram na consciência ao se confrontarem, se encaixam perfeitamente, apesar do desconforto que esse encontro produz.

Jung fala sobre a meta do processo de individuação: "não é outra coisa senão a de despojar o si-mesmo dos invólucros falsos da persona, assim como do poder sugestivo das imagens primordiais" (Jung, 2017, p. 64). Seja de fora, a partir dos compromissos sociais, e como dirá Jung, a partir da imitação, podemos ser dominados por aspectos coletivos, ou pelo oposto que são os aspectos sombrios, em especial pelas imagens primordiais. Em um primeiro momento, Jung define sombra como os aspectos da vida do indivíduo que não foram assimilados pela consciência deste, e inclui também as ditas imagens primordiais que influenciam o comportamento, e, na segunda etapa da vida, apontam para aspectos que não puderam ser desenvolvidos: uma criatividade que não teve energia nem espaço na vida para acontecer. O aspecto sombrio é o primeiro portal, passagem para alguma aproximação de si e do mundo. O símbolo da porta está ligado ao início de um processo e a criação de um novo modelo para o ser é o que Jung chama de processo de individuação (Jung, 2017).

Jung (1990) faz um levantamento desse enfrentamento radical e inicial do processo. Importante compreender que o processo terapêutico se dá quando há a dissolução (análise) dos opostos, e em tal medida que a união ou composição (síntese) da personalidade se torne uma necessidade imperiosa. Isso só será possível quando esses opostos forem para a consciência, o que vai trazer a necessidade imperiosa de serem integrados. "A confrontação com 'o outro' em nós é compensadora, pois deste modo ficamos conhecendo aspectos de nosso ser, que não permitiríamos que outros nos mostrassem e jamais admitiríamos perante nós mesmos" (Jung, 1990, p. 251).

Pesquisadores como Vernant (1988) e Detienne (1988) estudaram as máscaras e os deuses mascarados. A máscara é a expressão do Deus, ela é sua presença (Vermant, 1988). Dioniso é o Deus mascarado mais famoso na atualidade, e o seu estudo pode contribuir para o aprofundamento da questão da persona e da sombra. Sua importância simbólica foi sublinhada por Nietzsche e por vários autores junguianos, como Edinger (1990). Dioniso está para além da fronteira, ele não é aceito na Polis, ele não entra de forma consciente pela porta da frente da cidade. O simbolismo desse ato está relacionado à função do mito e de toda arte: trazer para dentro da experiência o que é pressentido. Por isso o mito e a arte são capazes de indicar caminhos, são fármacos, representam possibilidades de transformação. Também mostram o que pode acontecer caso não se consiga integrar na consciência as duas faces da máscara: a persona e a sombra.

Dioniso tem o seu sentido revelado na festa do bode, a tragédia: a tragédia é o entregar-se para, após o despedaçamento, ressurgir de forma refeita. Dioniso também é especificamente o deus vegetal, em função do vinho, e é o Deus não só da Parreira e da Era, mas também o Deus que não pode entrar como aquele que governa a cidade porque está para além de seus muros, sendo vegetação e vida em transformação. É nesse sentido Deus da vida não integrada na consciência, por isso é também a morte do ego para a transformação, resume também Lopez-Pedraza (2002). Como a etimologia e estudos sobre a paixão estão associados à voz passiva, e ao que submete o indivíduo à experiência de transformação: sendo esse pathos etimologia tanto de patologia quanto de paixão.

Um detalhe importante desse mito: uma vez por ano exige-se que, em um único dia, o telhado seja refeito por uma de suas seguidoras. Invariavelmente, nessa empreitada, uma das bacantes cai de cima do telhado. Dioniso não é o arquiteto, quem tem esse objetivo de edificar é Apolo. Dioniso é aquele que faz tropeçar, a loucura, a mania, ele é um tombador de pessoas: a rasteira é reservada para quem "se esvaziou" (Detienne, 1988, p. 89). A ideia é que a vida precisa de flexibilidade e riqueza psíquica: quando ela é "vivida em um recipiente estreito" (Detienne, 1988, p. 89) acaba por não saber se manter em pé. Como as bacantes, precisamos em termos de psicologia individual aprender a fazer o ritual de forma rápida e com precisão para não cair, e quem tombar será desmembrado, porém o significado é que partes morrem para que aprendamos a viver. A paixão é um exemplo modelar em nossa cultura, trata-se de uma situação passiva, sintaticamente como voz passiva, mas que é preciso viver para transformar em ação, como no verbo amar (Mello, 2000).

Há um duplo caminho de fracasso nessa flexibilidade: recusar-se a integrar o filósofo e sacerdote Dioniso (Vernant, 1988) e o outro momento, ser incapaz de integrar os dois deuses, Apolo e Dioniso, por não ser capaz de fazer o serviço que acontece uma vez por ano somente. Após a vivência da dança e da entrega, é preciso subir para o telhado e manter-se até o final do ritual. Isso significa saber se colocar acima e lidar com a experiência dionisíaca, evitando desequilibrar-se no fazer apolíneo. Na prática da vida, é lidar com as polaridades, e poder sentir sem tombar. Nise da Silveira estudou Dioniso e fala que ele é um Deus da máscara como Artemis e Medusa. A máscara é a um só tempo o que revela e o que esconde: "a máscara é uma representação do deus, o bode, o animal simbólico do sacrifício, do culto dionisíaco, é substituto minoico" (Silveira, 1993, p. 71).

Como sabemos o "cristianismo é uma religião que deliberadamente se situa dentro da história" (Silveira, 1993, p. 19). Contudo, a "figura de Cristo amplia-se, aprofunda-se e fascina sobretudo porque encerra, além das qualificações históricas, certos atributos essenciais, com raízes nas fundações psíquicas de todos os homens e que haviam pertencido a outros deuses" (p. 19). Note-se que a ideia "arquetípica de sacrifício, presente em muitas mitologias, impregna a figura histórica de cristo": além de ser atemporal "a põe em conexão com outros divinos sacrificados do passado": Dioniso, segundo a Dra. Nise, é, a um só tempo, o vizinho de Cristo mais próximo e distante. E sobre Dioniso e Apolo, sobre persona e sombra, comenta a psiquiatra junguiana: "Penteu quis defender o pensamento racional, que começava a florescer na Grécia, das violentas forças irracionais agitadas por Dionysos. Mas faltava-lhe condições para uma empresa desse porte. [...] Faltava-lhe aquela sutiliza que viria caracterizar o gênio grego" (Silveira, 1993, p. 19).

As polaridades precisam se alternar, pretendemos ser pessoas identificadas com a luz e a bondade, mas racionalidade e excesso de orgulho é perigoso. Cadmo e Tirésias nos ensinam como lidar com Dioniso. Sobem a montanha, apesar da idade, e em silêncio aceitam a vida irracional da natureza que vive em nós. Lembra Nise da Silveira: "Os dois velhos encarnam a sabedoria, o conhecimento intuitivo, imediato, das leis da natureza. Tirésias diz a Penteu: 'Tens a língua ágil e pareces razoável, mas nas tuas palavras não há nem sombra de bom senso'. O coro reforça: 'A ciência não é sabedoria'". (Silveira, 1993, p. 19). Nise completa: "Dionysos odeia aqueles que não sabem afastar com prudência a sutileza do intelecto e os excessos de orgulho, afirma Eurípedes nas Bacantes (apud Silveira, 1993, p. 19). Penteu vai para o alto da árvore, lugar do ar (Bachelard, 1990), lugar do pensamento, do estar acima, mas ele sobe para esconder-se e ver, sem participar, o ritual dionisíaco. Sua simbólica é a de um masculino fálico, como diz Vernant (1999). As forças da Natureza que não tem lugar na Polis, que estão além do muro, vão destruí-lo: As forças instintivas, representadas pelas bacantes que Penteu pretendera algemar, desencadeiam-se furiosas contra ele. A frente está a sua mãe. Penteu é despedaçado, o aspecto terrível do arquétipo mãe foi constelado por Dyonisos vingativo" (Silveira, 1993, p. 25).

Jung, ao longo de sua obra, comenta sobre a simbólica do ato sacrificial, em especial, nos últimos livros sobre alquimia, o autor busca uma compreensão para essa passagem, para o ato de aceitação do sombrio, do desconhecido em nós por trás da sombra. Em estudos alquímicos (Jung, 2017, p. 73), o ato sacrificial se traduz no propósito de transformação alquímica: "é característico o fato de que o sacerdote é ao mesmo tempo o sacrificador e o sacrificado". Nesse sentido, lidamos com o enfrentamento do ego e da sombra. Estamos diante da "importante ideia do autossacrifício." (Jung, 2017, p. 73). Cristo e Dioniso, como lembra Jung (2017, p. 74): são similares "Cristo foi um Deus que se sacrificou a si mesmo. Uma parte fundamental do ato sacrificial é o desmembramento" (p. 74). Desmembrado por Titãs, Dioniso é "afogado no caldeirão" (p. 74), cujo coração é salvo por Hera no último momento. Jung, citando Puller, lembra que o "altar em forma de taça também é uma espécie de caldeirão, no qual 'muitas pessoas são fervidas e queimadas'" (p. 74). No processo individual, isso significa que precisamos lidar primeiramente com "os afetos que afetam". Esse Deus está associado ao desmembramento e à operação alquímica da água, a solutio, no enfrentamento da sombra. "Segundo a lenda e um fragmento de Eurípedes, praticar ao culto orgiástico dionisíaco a irrupção da avidez animal, bem como dilaceramento com os dentes de animais vivos. Dioniso é até mesmo designado [...] o espírito indiviso e dividido" (p. 74). O objetivo final é a integração progressiva, e inesgotável, da sombra e a flexibilização da persona, bem como de todos os aspectos psíquicos em suas polaridades.

Importante ainda refletirmos que tanto a persona quanto a sombra têm um aspecto coletivo. A psique coletiva abriga "todos as virtudes específicas e todos os vícios da humanidade" (Jung, 2017, pp. 37-38). Em função da atualidade do assunto, em termos políticos de Brasil e de mundo, vale a pena trazer essa reflexão sobre o aspecto coletivo da persona e da sombra que se expressa na máscara. Jung lembra que é necessário que o indivíduo não seja dominado nem pelo seu mundo interior, nem pelo mundo exterior. O mito do salvador deve ser combatido tanto no âmbito terapêutico quanto no âmbito político-social. Explica Jung (2017, p. 39) que

Seria inexato dizer que alguém adquire prestígio devido à sua vontade de poder individual, trata-se, muito mais, de uma questão coletiva. Quando a sociedade em conjunto, necessita de uma figura que atue magicamente, serve-se da vontade de poder do indivíduo e da vontade de submissão da massa como veículo, possibilitando assim a criação do prestígio pessoal. E este último é um fenômeno de maior importância da vida coletiva dos povos, tal como nos mostra a história política em seus primórdios.

 

Considerações finais

Ao apresentar a leitura de dois contos de Machado de Assis, "O espelho" e "Causa secreta", à luz das observações junguianas de Nise da Silveira sobre persona e sombra, o artigo pretendeu dialogar com os campos de conhecimentos tanto da Crítica Literária quanto dos Estudos Psicológicos, defendendo assim, tal como Jung e Silveira, a interdisciplinaridade da pesquisa e do conhecimento. Por um lado, esperamos ter explicitado o quanto esse autor brasileiro muito bem descreveu as psicopatologias e neuroses humanas a obstacularizar o Processo de Individuação de suas personagens, e o quanto a leitura da sua obra pode ser produtiva para o psicólogo compreender melhor o ser humano. Por outro lado, esperamos também ter explicitado o quanto os estudos junguianos sobre a obra machadiana podem, por sua vez, contribuir para uma compreensão melhor desse autor brasileiro de uma literatura tão psicológica que, com a sua genialidade, como a própria Nise da Silveira sublinhou, antecedeu em mais de 30 anos grandes nomes da Psicologia, como Jung e Freud. Portanto, não é de se admirar que Machado de Assis tenha sido uma das leituras preferidas da psiquiatra introdutora de Jung no Brasil.

 

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Recebido em: 6/8/2019
Aprovado em: 17/10/2019

 

 

1 Agradecemos ao Prof. Dr. Walter Melo, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei, as referências bibliográficas sobre os comentários de Nise da Silveira a Machado de Assis.

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