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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.15 no.2 São João del-Rei abr./jun. 2020
Sentidos subjetivos da prática interdisciplinar do psicólogo nos Centros de Atenção Psicossocial - Caps
Subjective senses of the interdisciplinary psychologist practice in Psychosocial Care Centers
Sentidos subjetivos de la práctica interdisciplinaria del psicólogo en los Centros de Atención Psicosocial
Rosiane Magalhães de OliveiraI; Norma da Luz FerrariniII
IPsicóloga. Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Psicóloga da Secretaria Municipal de Saúde de São José dos Pinhais, Paraná
IIPsicóloga. Mestre em Psicologia pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Pós-doutora em Psicologia pela Universidade de Évora, Portugal. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR)
RESUMO
Este artigo versa sobre os sentidos subjetivos da prática profissional do psicólogo em equipe interdisciplinar nos Caps. Esta pesquisa segue os preceitos da Epistemologia Qualitativa, propostos por Fernando González Rey. Foram realizadas observações participantes e entrevistadas quatro psicólogas de três diferentes Caps. A análise decorreu da construção e sistematização de indicadores, que possibilitaram a formação de núcleos de sentidos e a construção de um modelo de inteligibilidade do fenômeno estudado. Os resultados denotam que a atuação interdisciplinar do psicólogo nos Caps está permeada por sentidos subjetivos que evidenciam a complexidade, desafios, dificuldades e limitações de se trabalhar de forma interdisciplinar, bem como a potencialidade do trabalho em equipe e a importância do psicólogo como integrante desta. Conclui-se que nos Caps encontrou-se um importante lugar de atuação em meio à equipe interdisciplinar, onde é percebida a potencialidade do trabalho conjunto e da interlocução dos saberes.
Palavras-chave: Prática do psicólogo. Interdisciplinaridade. Centros de Atenção Psicossocial - Caps. Sentidos subjetivos.
ABSTRACT
This article discuss the subjective senses of the professional practice of the psychologist in interdisciplinary CAPS teams. This research follows the precepts of Qualitative Epistemology, proposed by Fernando González Rey. Participant observations were made and four psychologists from three different CAPS were interviewed. The analysis was based on the construction and systematization of indicators, which enabled the formation of sense nuclei and the construction of a model of intelligibility of the studied phenomenon. The results indicate that the interdisciplinary work of the psychologist in the CAPS is permeated by subjective senses which reveal the complexity, challenges, difficulties and limitations of working in an interdisciplinary way, as well as the potentiality of team work and the importance of the psychologist as a member of this group. It is concluded that the CAPS are an important place to work in interdisciplinary team, where the potential of joint work and of the interlocution of knowledge is perceived.
Keywords: Psychologist practice. Interdisciplinarity. Psychosocial Care Center - CAPS. Subjective senses.
RESUMEN
Este artículo es sobre los sentidos subjetivos de la práctica profesional del psicólogo en equipo interdisciplinario en los Caps. Esta investigación sigue los preceptos de la Epistemología Cualitativa, propuestos por Fernando González Rey. Se realizaron observaciones participantes y fueron entrevistadas cuatro psicólogas de tres Caps diferentes. El análisis se debió a la construcción y sistematización de indicadores, que posibilitaron la formación de núcleos de sentidos y la construcción de un modelo de inteligibilidad del fenómeno estudiado. Los resultados muestran que la actuación interdisciplinaria del psicólogo en los Caps es permeada por sentidos subjetivos que evidencian la complejidad, desafíos, dificultades y limitaciones de trabajar de forma interdisciplinaria, así como la potencialidad del trabajo en equipo y la importancia del psicólogo como integrante de ésta. Se concluye que en los Caps se ha encontrado un importante lugar de actuación en medio del equipo interdisciplinario, donde se percibe la potencialidad del trabajo conjunto y de la interlocución de los saberes.
Palabras clave: Práctica del psicólogo. Interdisciplinariedad. Centros de Atención Psicosocial - Caps. Sentidos subjetivos.
Introdução
O presente artigo busca identificar e discutir os sentidos subjetivos que emergem na prática profissional do psicólogo que atua em equipe interdisciplinar nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps). Procura-se refletir sobre as possíveis implicações da prática interdisciplinar nos processos de subjetivação dos profissionais que atuam na área de saúde mental, buscando-se construir novas zonas de inteligibilidade sobre a interdisciplinaridade e sobre a atuação do psicólogo.
Como aporte teórico deste estudo, segue-se a Teoria da Subjetividade proposta por Fernando González Rey, a qual se articula com a Epistemologia Qualitativa e com o Método Construtivo-Interpretativo. Segundo essa abordagem, teoria, epistemologia e método compõem um tripé no qual se ampara a produção de conhecimento (González Rey, 2002; 2005; González Rey & Martínez, 2017). Nessa proposta, a subjetividade é concebida, em uma perspectiva Histórico-Cultural, como um sistema complexo, em constante desenvolvimento, produzido simultaneamente nos níveis individual e social e abre uma nova possibilidade de compreender os processos humanos, com base nos sentidos subjetivos e configurações subjetivas que uma experiência produz (González Rey, 2002).
Tendo em vista que os Caps têm se constituído como um importante campo de trabalho para os psicólogos e que nessas instituições o psicólogo não atua de forma individual, mas inserido em uma equipe interprofissional, compreender o processo de subjetivação desses profissionais em meio às práticas interdisciplinares é de suma importância. Isso porque, na atualidade, as formas tradicionais de atuação do psicólogo já não contemplam as propostas dos serviços de saúde, as quais prezam por um olhar abrangente e que envolva diversas perspectivas profissionais. Nesse sentido, é possível aventar ainda que os estudos que focam a temática da interdisciplinaridade podem contribuir com a formação do psicólogo ao se discutir as práticas profissionais nos campos de atuação que se configuram na atualidade.
Nesse estudo, entende-se por interdisciplinaridade a interação de diferentes campos do saber com o objetivo de ampliar o conhecimento e as práticas, por meio do intercâmbio, colaboração e diálogo entre diversos saberes (Roquete, Amorim, Barbosa, Souza, & Carvalho 2012). No âmbito da saúde mental, o conceito de interdisciplinaridade também vem sendo aplicado por se entender que a saúde é complexa e multifacetada. Assim, as práticas de cuidado exigem diversidade e multiplicidade de conhecimentos. Essa é a proposta do modelo de atenção psicossocial em saúde mental, o qual se contrapõe ao modelo psiquiátrico outrora existente. Na atenção psicossocial, busca-se olhar para a existência e sofrimento humano, e não para a doença, entendendo-se que não há campo de saber que seja suficiente para dar conta dessa complexidade de forma isolada. Essa perspectiva privilegia o cuidado compartilhado entre as diversas disciplinas de conhecimento (Yasui, Luzio, & Amarante, 2018).
No Brasil, a regulamentação da Psicologia como profissão aconteceu em 1962, e a consolidação da prática profissional do psicólogo se deu no contexto da clínica, escolas e organizações. No campo da saúde, a atuação dos psicólogos esteve principalmente alocada na clínica privada, marcando fortemente uma prática elitista e individualista. Contudo, transformações no cenário social, econômico e cultural levaram a mudanças e ampliação da atuação desse profissional, sobretudo no âmbito da saúde mental. Com a significativa expansão das políticas públicas e consequente crescimento da presença dos psicólogos nesses serviços, em especial nos de saúde, se abriu um vasto campo de trabalho (CFP, 2013; Silva, 2015).
Considerando a atuação dos profissionais de Psicologia nas políticas públicas de saúde mental, sobretudo nos Caps, que são considerados serviços estratégicos na atenção em saúde mental no âmbito do Sistema único de Saúde (SUS), pesquisas têm demonstrado que nos espaços dos Caps está se delineando um novo fazer da prática psicológica, marcado pela pluralidade de ações e reinvenção das práticas psi (Cantele & Arpini, 2017). Para Silva (2015), o contexto das políticas públicas brasileiras, que conta com número insuficiente de profissionais, se comparado à grande demanda pelos serviços, tem levado os psicólogos a reorientar e reinventar suas práticas, dando prioridade a atendimentos em grupos, promoção da saúde e o trabalho em equipes multiprofissionais.
Na atuação nos Caps, o psicólogo não estará sozinho, mas integrado a uma equipe com diversidade de profissionais, de forma que sua prática se amplia, somando suas ações às de outros profissionais do serviço, numa proposta em que se prioriza o trabalho em equipe interdisciplinar. Diante disso, muitas vezes, os psicólogos encontram-se despreparados para atuar nesse modelo atual de atenção em saúde mental, tendo em vista que a formação tradicional, fortemente marcada pelo modelo clínico, não dá conta dessa nova realidade de trabalho. Por isso, os profissionais "veem-se desafiados a superar esses impasses buscando novas práticas que possam atender de forma mais satisfatória à demanda e, ao mesmo tempo, às expectativas em relação à inserção do profissional de Psicologia no Novo Modelo de Atenção em Saúde Mental" (Cantele, Arpini, & Roso, 2012, p. 920).
Uma pesquisa realizada pelo Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (Crepop), do Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2013), com psicólogos atuantes em Caps de todo o Brasil, apresenta um conjunto diversificado de atividades profissionais, tais como acolhimento, discussão de casos em equipe multiprofissional, psicoterapias individual e grupal, atendimentos às crises, elaboração de projetos terapêuticos individuais de cuidado, atividades de reinserção social, atividades em contato direto com a comunidade, oficinas com utilização de diferentes recursos (música, leitura e escrita, cuidados com corpo e beleza, etc.), programas de geração de trabalho e economia solidária, entre outras.
A consolidação do modelo psicossocial na atenção em saúde mental também aponta para a necessidade de que os currículos dos cursos de graduação em Psicologia sejam aprimorados, ampliando o repertório teórico-prático, a fim de dar conta dessas demandas que se apresentam no âmbito da saúde, com vistas à prevenção, promoção, proteção e reabilitação psicossocial, nos níveis individuais e coletivos. Ou seja, que se proporcione uma formação mais condizente com as atuais demandas de saúde mental, contemplando a construção de um olhar crítico sobre as políticas públicas de saúde mental. E consequentemente um melhor preparo profissional para atuar nas Políticas de Saúde Mental, com maior poder de ação dos psicólogos no cotidiano dos serviços (Tardivo, Salles, & Gabriel Filho, 2013; Macedo & Dimenstein, 2016).
Por fim, entende-se que o psicólogo, como constituinte da equipe de um Caps, busca em seu cotidiano de trabalho, com os demais profissionais, formas de trabalhar que deem conta das demandas do cuidado em saúde mental, com foco na reabilitação psicossocial dos sujeitos. Contudo, a atuação do psicólogo nos Caps, como política pública de saúde, diferencia-se daquelas tradicionalmente apregoadas como pertinentes à clínica. Não há um modelo prescrito de como deve ser a atuação do psicólogo nesse contexto, o que possibilita ao profissional uma autonomia na construção de seu modo de atuação, permitindo grande variabilidade e criatividade no desenvolvimento de seu trabalho. Isso mostra que o psicólogo que atua em Caps precisa estar aberto a reinventar suas práticas e também a dialogar com outros saberes, somando-se a estes e buscando estratégias coletivas para o enfrentamento dos problemas e dificuldades que se apresentam nesse contexto.
Método e processo de construção da informação
Trata-se de um estudo qualitativo, seguindo os preceitos da Epistemologia Qualitativa, que é a expressão teórico-metodológica e epistemológica da Teoria da Subjetividade proposta por Fernando González Rey (2002; 2005; González Rey & Martínez, 2017). A Epistemologia Qualitativa é uma proposta teórica e metodológica para o estudo científico da subjetividade numa concepção histórico-cultural. Nessa perspectiva, considera a subjetividade como principal objeto da Psicologia (González Rey, 2002; 2005).
Para a presente pesquisa, foi formada uma amostra proposital, de interesse, composta por quatro psicólogas atuantes em três diferentes Caps (Caps Infantojuvenil, Caps Álcool e Drogas e Caps II - Transtorno Mental) de um município do estado do Paraná. Essas profissionais contemplavam todas as psicólogas inseridas em Caps naquele município no período de realização da pesquisa.
O levantamento de informações se deu por meio da realização de entrevistas individuais e semiestruturadas e observação participante realizada em cada um dos serviços.
A entrevista semiestruturada foi escolhida por ser flexível e aberta, possibilitando a comunicação e a livre expressão das participantes. Como instrumento de produção de informações, a entrevista possibilita uma conversação de livre expressão, sendo possível não centrar nas perguntas e respostas, mas permitir emergir zonas de sentidos subjetivos que se organizam no curso da expressão do sujeito (González Rey, 2005).
Nessas entrevistas, o diálogo foi orientado por um roteiro elaborado pelas pesquisadoras, composto por questões abertas sobre interdisciplinaridade e cuidados em saúde mental, baseadas em tópicos norteadores do diálogo, fundamentados na literatura pesquisada e na experiência nessa área. Além dessas questões, foi possível o desenvolvimento de outras, conforme se estabelecia o diálogo entre as participantes e a pesquisadora, o que é possibilitado graças à maleabilidade da entrevista semiestruturada e da pesquisa de orientação qualitativa. As entrevistas foram realizadas em local reservado e gravadas em equipamento digital, mediante autorização das entrevistadas e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
A observação participante realizada em cada um dos três Caps permitiu o contato direto da pesquisadora com o contexto de trabalho das participantes. Durante essas observações, foram coletados principalmente dados referentes ao funcionamento e caracterização dos serviços, os quais foram registrados sistematicamente em diário de campo.
Essas atividades de produção de dados ocorreram somente depois da aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Setor de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Paraná (parecer consubstanciado nº 1.705.661, de 31/8/2016).
O material empírico produzido durante as entrevistas e observações foi inicialmente organizado e transcrito. Em seguida, foi realizada a leitura minuciosa do material buscando identificar os indicadores e estabelecer relações entre os dados e a teoria adotada. Os indicadores são construções, produzidas com finalidade explicativa que dão sentido ao não observável, propiciando o desenvolvimento de hipóteses que articulam as ideias do pesquisador e as manifestações do estudado. Em outras palavras, os indicadores possibilitam a síntese entre o empírico, o teórico e o observado (González Rey, 2002).
Para a construção dos indicadores, foi realizada a leitura minuciosa do material transcrito identificando palavras e trechos de fala e informações que revelam indícios da forma de pensar, sentir e agir dos sujeitos. Os indicadores são construções provenientes de falas, frases, expressões, emoções, reflexões e informações que indicam a presença de afetos e a recorrência de referências (tanto diretas quanto indiretas) ao tema em diferentes instrumentos e em diferentes momentos (González Rey, 2002; 2005).
Posteriormente, foram formados núcleos de sentidos, construídos a partir da sistematização dos indicadores encontrados. Nesse momento, foi realizada a articulação dos indicadores, buscando-se critérios de similaridade, complementaridade e/ou contraposições entre eles. Para a formação dos núcleos de sentidos, os indicadores, anteriormente sistematizados, foram vinculados e sintetizados, de modo a revelarem de forma mais profunda a realidade estudada. Nessa fase, buscaram-se os sentidos que o sujeito atribui para a realidade estudada.
Nas entrevistas realizadas, abordaram-se sobre a prática do psicólogo, suas especificidades e possibilidades, a formação em Psicologia, a identidade do profissional de Psicologia e, ainda, a atuação em equipe interdisciplinar, suas dificuldades e potencialidades.
As informações produzidas durante a dinâmica conversacional, propiciada pelas entrevistas, permitiram a construção de indicadores e a consequente formação de núcleos de sentidos. Tal sistematização permitiu a inteligibilidade acerca das informações e seus possíveis desdobramentos. No presente artigo, serão discutidos cinco núcleos de sentidos formados, os quais a partir, deste momento, compõem os subtópicos que se seguem.
O psicólogo como integrante da equipe interdisciplinar dos Caps: o sentido subjetivo da importância profissional
A Psicologia se constitui como uma área profissional que pode compor a equipe técnica dos Caps, tal qual previsto pela legislação de saúde mental (Portaria nº 336, 2002). A legislação não especifica que todos os Caps necessariamente contenham o psicólogo na composição de seu quadro profissional, pois a decisão sobre quais funcionários constituirão as equipes fica a critério da gestão de cada município, de acordo com a especificidade da demanda. No entanto, todos os Caps que compõem a presente investigação têm esse profissional em suas equipes, integrado com as demais áreas. Não há dúvida de que o trabalho do psicólogo nesse contexto é de grande relevância, o que foi ressaltado de forma unânime no discurso das entrevistadas.
Há indicadores que demonstram a relevância desse profissional compondo as equipes, sinalizando o sentido subjetivo de importância do psicólogo na equipe de um Caps. Durante as entrevistas, falou-se sobre um saber psicológico, um conhecimento distinto, que permite um olhar diferenciado na atenção à saúde mental. Para as entrevistadas, o saber psicológico permite a esse profissional favorecer a escuta do paciente, refletir sobre a dinâmica psicológica do caso, focar o sujeito e não a doença, contribuindo com as outras áreas profissionais que também atuam nessas instituições.
Em concordância com esses dados, Cantele e Arpini (2017), em um estudo que teve como objetivo compreender a prática do psicólogo por meio do olhar das equipes dos Caps, também encontraram resultados que indicam a escuta diferenciada como uma especificidade da Psicologia e a importante participação do psicólogo no conjunto de ações que constituem o trabalho interdisciplinar nos Caps.
É significativo notar que durante as observações nos serviços também foi possível perceber a importância do psicólogo nas equipes dos Caps como o profissional a quem se recorre quando há dúvidas sobre algum caso, quando existe alguma situação de crise a ser atendida, como um articulador durante reuniões de discussão de casos, muitas vezes esperando-se pela opinião específica desse profissional para que alguma decisão possa ser tomada.
Nesse aspecto, a partir dos pressupostos da Teoria da Subjetividade, de González Rey, é possível compreender que o sentido de importância do psicólogo como componente da equipe multiprofissional de um Caps está presente tanto na subjetividade individual das psicólogas quanto na subjetividade social que circunda os serviços e que também constitui a subjetividade individual dos demais profissionais que ali trabalham.
As complexas demandas do trabalho: o sentido subjetivo da limitação profissional
Apesar da atuação do psicólogo ser entendida como fundamental nas equipes dos Caps, algumas zonas de sentido despontaram no discurso das profissionais indicando também limitações profissionais diante as complexas demandas de trabalho. Esse sentido subjetivo de impotência profissional aparece tanto mediante demandas da equipe quanto do paciente e está relacionado a aspectos pessoais, profissionais e da gestão dos serviços e traz consigo o sentido de que, apesar de ser uma atuação importante, é também difícil ser psicóloga em Caps, haja vista a complexidade do trabalho.
Parece haver consenso entre outros profissionais que compõem as equipes dos Caps a ideia de que o psicólogo deve ser acionado quando os demais profissionais não sabem o que fazer, ou seja, quando outras alternativas já foram tentadas e não houve evolução do caso, em outras palavras, há a expectativa que o psicólogo resolva os problemas e que tenha respostas. Essas demandas da equipe, o que se espera que o psicólogo faça, estão muitas vezes além da capacitação profissional, ultrapassando limites pessoais e até mesmo profissionais, indo além daquilo que é função desse profissional.
Outras vezes o sentido subjetivo de limitação profissional aparece diante das demandas dos pacientes. O profissional identifica dificuldades sobre as quais não tem como ajudar, seja por falta de tempo, de recursos materiais e até mesmo por entraves da forma de gestão. Com isso, surge também o sentimento de frustração, pois as profissionais identificam como poderiam ajudar a pessoa que está em sofrimento psíquico, mas percebem que os serviços não oferecem minimamente o que é preconizado em lei.
Evidencia-se uma contradição entre o saber do profissional e as limitações ocasionadas pela precariedade dos serviços, pois entre a política instituída e a efetivação do trabalho em saúde mental há uma trama complexa. Há indicadores que mostram aspectos da subjetividade individual dos profissionais, que exprimem uma intencionalidade de um trabalho melhor e mais efetivo, que emergem o desejo de oferecer um trabalho que alcance as necessidades dos usuários e ofereça uma real atenção psicossocial àqueles que sofrem com os transtornos mentais. Contudo, há também elementos que sinalizam um descaso político, objetivado em situações precárias de trabalho, falta de recursos humanos e materiais, falta de investimento da administração pública no setor de saúde mental, que acarreta na falta de condições para fazer o trabalho da melhor forma. Esse cenário social e político gera tensões nos sujeitos que trabalham no cuidado em saúde mental diante das limitações para se atender à demanda que se apresenta.
A complexidade da demanda do trabalho do psicólogo nos Caps é um fator que vem sendo exposto também em outros estudos. Cantele et al. (2012), em uma investigação sobre a experiência dos profissionais da Psicologia nos Caps, da mesma forma que no presente estudo, encontraram resultados que evidenciaram sentimentos de impotência, frustração e medo vivenciados pelos psicólogos que atuam em Caps. Os estudiosos também encontraram dados indicando o desafio que é trabalhar em Caps e o despreparo acadêmico, devido a fragilidades da formação que não oferece capacitação adequada para a atuação no contexto das Políticas de Saúde Mental (Cantele et al., 2012; Macedo & Dimenstein, 2016; Mota & Costa, 2017).
De igual modo, a pesquisa realizada pelo Crepop/CFP com psicólogos atuantes em Caps evidenciou desafios e dificuldades relativos ao trabalho nessas instituições. Entre os resultados encontrados, foram apontadas questões políticas e administrativas, burocracias, falta de rede de assistência integrada, dificuldades relacionadas a recursos materiais e humanos, às condições de trabalho, além de desafios relativos à formação e prática profissional, assim como do trabalho multiprofissional (CFP, 2013).
Outro aspecto importante a ser notado é que foi opinião unânime entre as entrevistadas que a formação em Psicologia não capacita o profissional para o trabalho interdisciplinar, o que acarreta em limitação profissional, pois a formação universitária foca no atendimento individualizado, que não pressupõe a troca de saberes entre os profissionais.
Além da falta de capacitação para o trabalho interdisciplinar, a análise das informações salientou a falta de capacitação para o trabalho em saúde pública. As participantes reconhecem que a graduação em Psicologia contemplou de forma superficial esse campo de atuação e que o aprendizado aconteceu na prática. Diante do exposto, é preciso discutir sobre o papel das universidades, principalmente as públicas, que deveriam prezar por uma formação voltada às esferas do serviço público, mas que, muitas vezes, tendem a focar predominantemente a atuação nas instituições privadas e serviços particulares, tendo como consequência disso profissionais com formações deficitárias e insuficientes.
De igual modo, Macedo e Dimenstein (2016), em uma análise sobre saberes e práticas dos psicólogos que atuam na política de atenção em saúde mental, encontraram resultados indicando que a formação em Psicologia, tanto em nível de graduação quanto de pós-graduação, oferece conhecimento insuficiente para os psicólogos atuarem na perspectiva psicossocial em saúde mental. Os estudos referem ainda que a formação em Psicologia não fornece subsídio teórico-técnico voltado à atuação interdisciplinar (Macedo & Dimenstein, 2016) e os currículos não acompanham as exigências do contexto atual, pois as reflexões teóricas não acompanham a propagação das práticas na mesma proporção (Schneider, Cerutti, Martins, & Nieweglowski, 2014).
Diante disso, há que se considerar a necessidade urgente de adequação dos currículos universitários à realidade das políticas públicas brasileiras, visando a uma formação efetiva, que valorize o trabalho em equipe e a atuação na perspectiva psicossocial, principalmente ao se considerar que atualmente o setor público se constitui no maior empregador (40,3%) de psicólogos no Brasil (Macedo & Dimenstein, 2016; Mota & Costa, 2017).
A prática profissional do psicólogo que atua em Caps: dinâmica de trabalho diferenciada como sentido
Durante a realização das entrevistas, as participantes foram também indagadas acerca das atividades de trabalho do psicólogo que atua em Caps. Atividades diversas foram elencadas pelas profissionais, evidenciando o sentido subjetivo de que a atuação em Caps pressupõe uma dinâmica diferenciada de trabalho, demarcando que esse contexto se distingue consideravelmente das práticas de vanguarda da Psicologia, notadamente voltadas aos contextos clínico, escolar e organizacional.
Nos Caps, preconiza-se que o trabalho seja realizado de forma interdisciplinar, contemplando diversos profissionais em sua equipe técnica, de forma que a assistência prestada seja diversificada, composta por atividades variadas.
O sentido subjetivo que é dado às práticas do psicólogo que atua em equipe interdisciplinar na atenção à saúde mental é o de ser um trabalho dinâmico, composto por atividades diferenciadas, as quais envolvem a discussão dos casos atendidos com os outros profissionais integrantes das equipes e que de forma sistematizada poderiam ser divididas em: clínicas, burocráticas e de articulação de rede.
Entre as atividades clínicas, podem-se considerar os grupos (terapêuticos, psicoterapêuticos, psicoeducativo, focal, operativo e oficinas), os atendimentos individuais (psicoterapêutico, de técnico de referência e triagem), os atendimentos de familiares (individuais ou grupais), o plantão de acolhimento, as palestras externas, as visitas domiciliares e as reuniões de discussão de casos e de definição de plano terapêutico singular (PTS). As atividades burocráticas envolvem atividades administrativas (respostas de ofícios, relatórios de atendimento, atestados, elaboração de documentos, atendimento de telefone, entre outros), orientações sobre o funcionamento do serviço e busca ativa de pacientes. As atividades de articulação de rede envolvem todas as formas de interlocução com outros serviços, sejam da própria Rede de Atenção Psicossocial - Raps (unidades básicas de saúde, ambulatório de especialidades, unidades de pronto atendimento, hospitais, comunidades terapêuticas, etc.), sejam intersetoriais. Estas envolvendo outros serviços, como os de assistência social (Centro de Referência da Assistência Social - Cras, Centro de Referência Especializado da Assistência Social - Creas -, Abrigos), de educação (escolas, Centro de Atendimento Educacional Especializado e outros serviços municipais vinculados à educação), Conselho Tutelar, Ministério Público, Poder Judiciário, de cultura, esporte e lazer.
Diante do exposto, é possível entender que, como o trabalho nos Caps prevê uma ampla gama de atividades, a prática do psicólogo nesses serviços se constitui de forma bastante dinâmica, envolvendo atividades diversificadas. Não se restringe ao paciente e ao contexto estrito do serviço, externalizando-se na articulação e interlocução com outros órgãos.
Em concomitância com o sentido subjetivo que se apresenta entre as profissionais entrevistadas acerca de uma dinâmica de trabalho diferenciada no contexto dos Caps, Dimenstein e Macedo (2012, p. 236) explicam que, com os avanços da Reforma Psiquiátrica, a partir do fim da década de 1980, foi possível observar o "desenvolvimento de práticas inovadoras de cuidado e de assistência em função de um conceito mais ampliado e complexo de saúde mental, o que exigiu modelos efetivamente transdisciplinares de integração de saberes".
As mudanças ocorridas nas políticas públicas de saúde mental trouxeram aos psicólogos inseridos no setor público a necessidade de um repensar e reinventar suas práticas e modos de atuação, voltando-se a um fazer mais plural da prática psicológica (Dimenstein & Macedo, 2012; Oliveira & Caldana, 2016; Cantele & Arpini, 2017; Mota & Costa, 2017). Isso fica claro no discurso das psicólogas que atuam nos Caps pesquisados, as quais elegem entre as atividades que compõem sua rotina de trabalho uma gama de modalidades de intervenção bastante diversificadas daquelas práticas hegemônicas da Psicologia tradicional, que eram marcadas deliberadamente pelo atendimento clínico individual em consultório.
O sujeito individual está inserido, de forma constante, em espaços da subjetividade social, e sua condição de sujeito atualiza-se permanentemente na tensão produzida a partir das contradições entre suas configurações subjetivas individuais e os sentidos subjetivos produzidos em seu trânsito pelas atividades compartilhadas nos diferentes espaços sociais. É neste processo que o conhecimento tem lugar, definindo, assim sua riqueza dinâmica. (Gonzáles Rey, p. 25)
Com base no exposto e no que afirma Gonzáles Rey, é possível compreender que os Caps são importantes espaços sociais produtores de subjetividades e que os diversos profissionais que atuam nessas instituições estão constantemente produzindo novos sentidos subjetivos que se objetivam em suas práticas profissionais. Suas configurações subjetivas estão em transformação, pois a realidade objetiva com a qual se deparam impõe novas demandas e, consequentemente, produz novos conhecimentos.
A complexidade da atuação em equipe interdisciplinar: dificuldades e desafios que produzem sentidos subjetivos
Compreender a relação do psicólogo com os demais profissionais que compõem o quadro de trabalhadores dos Caps evidencia indicadores que denotam a complexidade de se trabalhar em equipe interdisciplinar. Se, por um lado, a atuação em conjunto facilita a diversificação das práticas laborais e a troca de conhecimentos, por outro, traz consigo dificuldades e desafios.
Dificuldades diversas foram elencadas pelas entrevistadas. As profissionais apontam que percebem deficit nas formações, tanto delas mesmas quanto de outros membros das equipes, insuficiência de conhecimento sobre saúde mental e falta de clareza quanto aos papéis profissionais em meio às ações laborais em equipe multiprofissional, assim como percebem que muitos profissionais não têm interesse pelo trabalho em saúde mental, que essa não é sua área de atuação de simpatia e, assim, não buscam aprofundar conhecimentos para o entendimento daquilo que é específico de sua profissão em de um Caps e de como poderiam exercer um melhor trabalho naquele contexto. Decorre disso que as práticas ficam limitadas, enfraquecendo o potencial que o Caps tem na atenção em saúde mental.
No contexto dos Caps, os psicólogos se deparam com a demanda por inovação de suas práticas, assim como com a necessidade de interlocução com outros profissionais. O modelo psicossocial de atenção em saúde mental prevê que o cuidado seja compartilhado entre os diferentes saberes, mas a prática diária dos serviços traz seus dilemas, pois nem sempre os profissionais parecem dispostos a esse compartilhamento de conhecimento. Sales e Dimenstein (2009) também descrevem como um desafio que os psicólogos que atuam em Caps enfrentam diariamente a necessidade de desenvolver ações em uma perspectiva interdisciplinar.
Paralelamente, outros elementos apontam para inconvenientes decorrentes dos aspectos pessoais envolvidos na inter-relação entre os diversos profissionais. Conflitos interpessoais ocasionados pela dificuldade para lidar com críticas, pela competitividade entre os técnicos, conflitos de opinião, desavenças, pensamentos contraditórios, ou seja, tudo aquilo que possa de alguma forma gerar resistências. Essas dificuldades muitas vezes geram desgastes nas equipes e tornam o trabalho pouco produtivo.
Zurba (2011) aponta a necessidade de que os psicólogos inseridos no âmbito do SUS incluam em suas estratégias de intervenções ações interdisciplinares. Contudo, ressalta que o fazer da Psicologia no contexto de equipe interdisciplinar requer o desenvolvimento de algumas habilidades, como a capacidade de trabalhar em conjunto, o compartilhar de conhecimentos e a empatia.
Os dados encontrados na pesquisa realizada pelo Crepop/CFP (CFP, 2013) com psicólogos atuantes em Caps também evidenciaram dificuldades e desafios advindos da atuação em conjunto com outros profissionais da equipe multiprofissional, assim como o trabalho intersetorial, com profissionais de outros serviços e de outras áreas. Pesquisas apontam ainda a inconsistência técnica dos profissionais diante das propostas da Política Nacional de Saúde Mental, numa tensão entre a perspectiva psicossocial e as abordagens estritamente clínicas e médico-centradas (CFP, 2013; Oliveira & Caldana, 2016).
Há indicadores que denotam também o fato de que muitos profissionais já são formados há muito tempo, não aprenderam a trabalhar numa perspectiva interdisciplinar. Suas formações não contemplaram as novas políticas em saúde, que demandam uma visão ampliada, que traz novos contextos de atuação. Somado a isso, muitos técnicos parecem mostrar-se enrijecidos em suas posturas profissionais e pouco abertos a mudanças em suas ações laborais.
É possível, então, questionar quais objetivos os profissionais têm buscado atender em suas ações e como produzem as intervenções numa perspectiva interdisciplinar, que é um dos princípios do trabalho em Caps. Tais indagações apontam para uma zona de sentidos subjetivos que envolvem o desafio e a dificuldade de se produzir intervenções interdisciplinares de fato. Um desafio que se dá em função da ampliação das áreas de atuação profissional criadas a partir da reforma psiquiátrica e de novas políticas públicas em saúde. Isso sugere que, embora o Caps ofereça um lugar importante à atuação do psicólogo, existe a necessidade de que suas práticas dialoguem com outros conhecimentos, que não seja um trabalho isolado, tal qual uma prática clínica tradicional.
A complexidade de se trabalhar inserido em uma equipe multiprofissional também foi elencada por Cantele et al. (2012) como um desafio que se apresenta ao profissional que trabalha em Caps e que o leva a uma ressignificação de suas práticas, numa constante peleja entre o novo e o tradicional na Psicologia. Se as práticas tradicionais levavam o psicólogo a uma atuação isolada e individualizada, por outro lado uma das principais características que diferencia o trabalho no Caps é a atuação interdisciplinar.
À luz da Teoria da Subjetividade (González Rey, 2002; 2005) é possível compreender que o sentido subjetivo de complexidade do trabalho em equipe interdisciplinar vem se constituindo nos momentos de tensão e contradição entre aquilo que essas psicólogas trazem de suas formações profissionais, marcadas principalmente por práticas individualizadas, e as práticas contempladas em seus momentos atuais, que têm um papel essencial em sua constituição subjetiva e que permitem a construção do que se constitui o trabalho do psicólogo no contexto interdisciplinar dos Caps. A flexibilidade e complexidade da subjetividade permite gerar novos sentidos subjetivos, levando à reconfiguração da subjetividade por meio desses processos implicados em suas práticas laborais.
O sentido subjetivo de potencialidade do trabalho em equipe interdisciplinar no cuidado em saúde mental
Apesar de o trabalho em equipe interdisciplinar no CAPS despontar permeado por dificuldades e desafios, indicadores diversos também apontaram para o lado positivo dessa forma de atuação, emergindo o sentido subjetivo de uma prática que se torna potente ao dialogar com outros saberes. Há o reconhecimento de que, apesar da complexidade dessa forma de atuação, as práticas interdisciplinares são importantes, uma vez que permitem a soma de saberes, a troca de conhecimentos e ampliação da visão por meio de outros olhares profissionais. Ou seja, há a identificação de potencialidades e facilidades na atuação interdisciplinar.
As psicólogas constatam que atuar lado a lado com técnicos de outras especialidades permite um entendimento maior dos casos, trazendo auxílio e ganhos, na medida em que trazem outras percepções sobre o sofrimento psíquico, ampliando o olhar sobre cada caso e enriquecendo as ações. Isso permite que o trabalho seja mais produtivo, potente e dinâmico, alcançando-se melhores resultados.
Há indicadores também de que o trabalho interdisciplinar possibilita acompanhar os casos de forma longitudinal, uma vez que não é apenas um profissional que está em contato com a pessoa em tratamento. O trabalho nos Caps permite que a pessoa em sofrimento psíquico seja acompanhada por diferentes profissionais, em diferentes momentos, e que, posteriormente, os casos sejam discutidos em equipe. Isso amplia o alcance da atuação, potencializando os resultados e viabilizando um melhor entendimento das situações que circunscrevem a doença.
Outros elementos sugerem ainda que o trabalho em equipe multiprofissional possibilita o aprendizado e o crescimento profissional. Atuar em conjunto com outros profissionais possibilita a inter-relação de saber. Áreas de conhecimento que não são de domínio da Psicologia passam a ser conhecidas pelas trocas diárias entre os técnicos que atuam nos Caps. Há a ampliação do conhecimento e também a possibilidade de se diversificar a atuação profissional ao se trabalhar de modo interdisciplinar.
Essas reflexões positivas sobre a atuação interdisciplinar, que evidenciam o sentido subjetivo de potencialidade do trabalho do psicólogo inserido em equipe multidisciplinar, corroboram o que a literatura traz em defesa das práticas interdisciplinares nas políticas públicas de saúde e em especial nos Caps. Diversos autores apontam os benefícios da interdisciplinaridade, entre os quais é possível citar a articulação de saberes, atuação criativa, corresponsabilização nas práticas de cuidado, superação das concepções biologicistas e médico-centradas, superação do modelo manicomial, aumento da compreensão sobre os processos de saúde e doença, cooperação, integração e contextualização de ações (Vasconcelos, 2010; Juns & Lancman, 2011; Meirelles, Kantorski, & Hypolito, 2011; Cantele et al., 2012).
Para além do trabalho interdisciplinar no contexto do Caps, apontou-se também a possibilidade da atuação intersetorial, quando as ações são externalizadas e acontecem em conjunto com outros equipamentos da rede de atenção. A perspectiva de trabalho nos Caps envolve a articulação com outros serviços, pelos quais a pessoa em tratamento também circula, ou que podem se tornar necessários conforme a demanda de cada caso. A intersetorialidade também aparece como uma nova zona de sentido para se potencializar as ações dos psicólogos, com a interlocução com os outros serviços.
Apesar de todas as psicólogas relatarem sobre uma atuação interdisciplinar, tendo em vista que o próprio delineamento dado às entrevistas propiciava essa visão, durante o período de observação participante, foi possível constatar que os momentos interdisciplinares são escassos. Muitas vezes as discussões são superficiais, as práticas conjuntas são poucas e nem sempre existem momentos específicos de discussão entre todos os técnicos que compõem as equipes. Apenas dois dos três Caps investigados tem formalizado em sua rotina de atividades reuniões para discussão dos casos, sendo que em um deles, apesar de existir esse momento, a equipe encontra-se tão reduzida que muitas vezes a discussão é inviabilizada por ausência de profissionais, denunciando a precariedade e fragilidade do serviço público.
Apontando nessa mesma direção, observou-se que apenas em um dos Caps são realizadas atividades terapêuticas em conjunto entre os profissionais. Tais como grupos em que as profissionais trabalham em conjunto, por exemplo, uma enfermeira e uma psicopedagoga realizam um grupo de brincadeiras com as crianças, e práticas de inserção social, como festas e passeios, que todos os profissionais realizam juntos. Contudo, não há como afirmar se elas podem realmente ser consideradas interdisciplinares, uma vez que não há como saber se acontece a troca de conhecimento durante a atuação. Nesse caso, fica a hipótese de que sejam apenas atividades que se assemelham ao modelo multiprofissional, apenas com os técnicos atuando lado a lado, mas sem existir a inter-relação do saber.
Essas contradições apontadas indicam não apenas a complexidade do trabalho interdisciplinar, como também denota a complexidade do estudo da subjetividade humana, pois é possível perceber que nas configurações subjetivas das profissionais que participaram deste estudo existem sentidos subjetivos permeados de sentimentos e emoções negativas e positivas. Diante disso, cabe lembrar que a categoria sentido subjetivo expressa justamente a unidade inseparável do simbólico e do emocional, em que cada um evoca o outro (González Rey & Martinez, 2017). Assim, os sentidos subjetivos que emergem nesse contexto surgem das diversas situações que se apresentam a essas psicólogas e caracterizam sua experiência profissional nos Caps. Tanto as experiências exitosas que vivenciam quanto as dificuldades que enfrentam são geradoras de sentidos que compõem seu sistema subjetivo, isso porque a subjetividade humana é um sistema complexo, dinâmico e processual, em constante organização, capaz de gerar desdobramentos diversos (González Rey & Martinez, 2017).
Considerações finais
Os psicólogos que atuam em Caps estão imersos cotidianamente em uma experiência que privilegia as práticas interdisciplinares. A partir dos pressupostos da Teoria da Subjetividade, de González Rey, e da compreensão do subjetivo é possível a construção de um modelo de inteligibilidade de processos sociais e individuais configurados de maneira singular no processo de trabalho interdisciplinar.
É possível compreender que os Caps são espaços sociais produtores de subjetividade e que o trabalho do psicólogo em equipe interdisciplinar nos Caps está entremeado por um sentido subjetivo de complexidade, que engloba tanto a importância do psicólogo como constituinte das equipes quanto sua limitação diante das intrincadas demandas que se apresentam no cotidiano do trabalho e que levam esse profissional a experimentar formas diversificadas de atuação que ampliam suas práticas. Além disso, ao mesmo tempo em que enfrenta os desafios e dificuldades próprios a uma interação entre diversos profissionais, entende que o trabalho conjunto é potente e eficaz.
Esses psicólogos expressam em suas práticas concretas uma subjetivação que implica sua subjetividade individual e a subjetividade social, numa integração de sentidos subjetivos singulares que se desdobram em suas trajetórias profissionais concretas. Atuando como sujeitos em suas atividades profissionais, inseridos nas equipes multiprofissionais, posicionam-se criticamente e levam também outros membros das equipes a posicionamentos reflexivos. Além disso, mesmo em meio às dificuldades e limitações que permeiam o trabalho nos Caps, esses psicólogos conseguem produzir novos espaços de subjetivação que se objetivam por meio das atividades práticas que vêm recriando a atuação psicológica e compondo uma dinâmica diferenciada de trabalho, que se distancia de práticas individualizantes que outrora predominaram na Psicologia.
Esses resultados encontrados estão em conformidade com o que outros autores pesquisaram sobre a atuação do psicólogo em equipe interdisciplinar nos Caps, os quais também apontam para os desafios existentes na atuação nos Caps, assim como para as limitações advindas da formação que privilegia a atuação clínica individualizada. Além disso, também denotam o surgimento de novas práticas e de um novo fazer dos psicólogos que atuam na atenção psicossocial em saúde mental (Sales & Dimenstein, 2009; Cantele et al., 2012; Dimenstein & Macedo, 2012; Schneider et al., 2014; Macedo & Dimenstein, 2016; Oliveira & Caldana, 2016; Cantele & Arpini, 2017; Mota & Costa, 2017).
O campo da saúde mental, sobretudo nos Caps, forjou um espaço importante para mudanças de paradigmas no que concerne à prática profissional do psicólogo em suas vertentes tradicionais, que estavam circunscritas principalmente à atuação clínica, individualizada, em consultório. Conforme González Rey (2019), a perspectiva da subjetividade gera novos caminhos na área da saúde mental ao valorizar: a complexidade subjetiva, social e cultural daquilo que dá sentido à vida, o que, em geral, não é abordado no âmbito das ações profissionais; a promoção do desenvolvimento subjetivo dos usuários e da equipe profissional a partir do posicionamento ativo diante de ações cotidianas e diante das representações dominantes sobre saúde mental.
Nos Caps, encontrou-se um novo e importante lugar de atuação para o psicólogo em meio à equipe interdisciplinar, sendo percebida a potencialidade que o trabalho conjunto e a interlocução dos saberes podem ter. Nesse sentido, é possível ainda uma reflexão crítica sobre a formação acadêmica dos psicólogos, apontando a necessidade de que se tenha uma formação mais voltada para essa área de atuação, a qual tem se constituído como um importante mercado de trabalho para esses profissionais, a fim de que a Psicologia se consolide como um campo de saber e profissão comprometidos com a saúde pública.
Referências
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Recebido em: 10/3/2019
Aprovado em: 14/4/2020