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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.15 no.2 São João del-Rei abr./jun. 2020
Direito social à Educação no Brasil pós-1988: Programa Mais Educação e a PNAS na gestão da pobreza
Social law to Education in Brazil post-1988: More Education Program and PNAS in Poverty Management
Derecho social a la Educación en Brasil post-1988: Programa Más Educación y la PNAS en la gestión de la pobreza
Daniel Dall'Igna EckerI; Neuza Maria de Fátima GuareschiII; Samantha TorresIII
IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul
IIIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul
RESUMO
O artigo versa sobre a articulação entre o Programa Mais Educação (PME) e a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) como via de garantia do direito social à Educação no Brasil pós-1988. Para isso, analisa a Constituição Federal de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, a PNAS e o Programa Mais Educação, situando como os discursos da estatística, justiça, economia e território, que foram, nos documentos e historicamente, sendo integrados na formulação das políticas e programas de garantia do direito à Educação pós-1988. Por meio dos resultados, infere que as estratégias do Estado para o acesso universal ao direito à Educação entre o PME e PNAS, amparado sob o discurso da esfera pública como via para alteração das desigualdades sociais, possibilitaram gerir uma parcela específica da população: sujeitos carentes, pobres, vulneráveis ou em risco.
Palavras-chave: Direitos Sociais. Direito à Educação. Educação integral. Assistência social. Brasil.
ABSTRACT
The article deals with the articulation between the More Education Program (PME) and the National Social Assistance Policy (PNAS) as a way of guaranteeing social law to Education in Brazil after 1988. For this, it analyzes the jurisdiction of the Federal Constitution of 1988, the Law on Guidelines and Bases of National Education of 1996, the PNAS and the More Education Program, situating as the discourses of statistics, justice, economy and territory were, in the documents and historically, integrated into the formulation of policies and programs to guarantee the right to Education after 1988. By means of the results show that the State's strategies for universal access to the right to Education between PMEs and PNAS, supported by the discourse of the public sphere, as a way to change social inequalities, made it possible to manage a certain part of the population: poor, vulnerable or at risk.
Keywords: Social rights. Right to Education. Integral education. Social Assistance. Brazil.
RESUMEN
El artículo versa sobre la articulación entre el Programa Más Educación (PME) y la Política Nacional de Asistencia Social (PNAS) como vía de garantía del derecho social a la Educación en Brasil post-1988. Para ello, analiza la Constitución Federal de 1988, de la Ley de Directrices y Bases de la Educación Nacional de 1996, de la PNAS y del Programa Más Educación, situando como los discursos de la estadística, justicia, economía y territorio fueron, en los documentos e históricamente, siendo integrados en la formulación de las políticas y programas de garantía del derecho a la Educación, después de 1988. Por medio de los resultados se desprende que las estrategias del Estado para el acceso universal al derecho a la Educación entre la PME y el PNAS, amparado bajo el discurso de la esfera pública como vía para alteración de las desigualdades sociales, posibilitaron gestionar una parte de la población: sujetos carentes, pobres, vulnerables o en riesgo.
Palabras clave: Derechos sociales. Derecho a la Educación. Educación integral. Asistencia social. Brasil.
Introdução
O acesso à Educação no Brasil, por séculos, foi destinado com prioridade a uma pequena parcela da população de forma seletiva e elitizada, mantendo por muitos anos distante dos discursos oficiais de Estado a noção do direito universal e gratuito à Educação (Ecker, 2016). A noção de direito à Educação foi inserida na Constituição de 1934 e, mesmo assim, não produziu efeitos suficientes para garantir a produção de serviços públicos, universais e gratuitos, acessíveis a todos(as) naquele período (Cury, 2007). Assim, a Educação manteve-se como campo de disputas e de embates ao longo do século XX e, na Constituição de 1988, no Capítulo II - dos Direitos Sociais, foi incluída como um dos fundamentos da República Federativa, no que se referia ao desenvolvimento de um Estado Democrático de Direito (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).
Sob o argumento de ser um direito público subjetivo,1, no nível fundamental, a Educação, a partir dos anos 1980, ganhou destaque nos argumentos e ações estatais como estratégia de inclusão social e, via Ministério da Educação (MEC) e seu Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), possibilitou a criação de uma série de programas e políticas voltadas a essa finalidade (Ministério da Educação, 2015a). A ideia de inclusão social pelas políticas públicas de Educação tornou-se imperativo do Estado brasileiro: indivíduos, famílias, sociedade, empresas, instituições filantrópicas, entre outros, foram convocados a se envolverem, atuando como parceiros voluntários do Estado nos projetos de inserção social pela Educação (Lopes & Rech, 2013).
A seção específica da Assistência Social, apesar de não se referir diretamente à Educação na Constituição de 1988, foi inserida na jurisdição nacional concomitantemente à afirmação da educação como Direito social. Desse modo, ambas foram integradas como estratégias do Estado para garantir direitos e inclusões: incluir, promover, garantir, habilitar, reabilitar, amparar e proteger são termos recorrentes na Política Nacional de Assistência Social (Lasta, 2015). Nesse caso, a população-alvo das inclusões pela articulação entre PNAS e Educação foram, inicialmente, as famílias consideradas carentes, para, em seguida, serem os vulneráveis, excluídos e em risco social que compunham o processo histórico desigual do Brasil (Fernandes, 2013).
Com a promulgação da Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), em 1993, e da PNAS, em 2004, a Educação foi afirmada como importante mecanismo intersetorial de proteção contra as diferentes formas de exclusão social (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2004). Nesse processo, programas e políticas integrando Educação e Economia emergiram: Programa de Erradicação do Trabalho infantil (Peti), Programa Nacional de Renda Mínima - "Bolsa Escola", Programa Brasil Jovem, Programa Bolsa Família (PBF), entre outros, possibilitando o elo entre Educação e a Política Nacional de Assistência Social nos discursos do Estado (Lockmann, 2013).
No ano de 2011, representantes do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) indicaram que o Mais Educação deveria ser considerado um Programa complementar à PNAS. Naquele período,2 MEC e MDS estabeleceram ações estratégicas visando ampliar o acesso ao Mais Educação pelos beneficiários do Bolsa Família. A justificativa se amparava no argumento de que os beneficiados pelo Bolsa Família refletiriam o quadro histórico de desigualdades e de vulnerabilidades sociais do contexto brasileiro. A meta governamental prevista para até o fim de 2014 era a de que todos os estados do Brasil concentrassem esforços para que, pelo menos, metade de todas as escolas com Educação integral fossem compostas por uma maioria de alunos do Bolsa Família (MDS, 2011).
O Programa Mais Educação foi criado por meio da Portaria Interministerial nº 17/07 e regulamentado pelo Decreto nº 7.083/10 com o objetivo de fomentar a Educação integral de crianças, adolescentes e jovens, por meio de atividades socioeducativas no turno inverso ao escolar. Utilizando práticas intersetoriais, o Mais Educação afirmou, em 2011, sua articulação com a Política Nacional de Assistência Social no processo de garantia do direito social à Educação no Brasil. De acordo com as notícias do Governo Federal da época, estava previsto o repasse de R$ 180 milhões para o financiamento do Mais Educação nos próximos anos e, conjuntamente, definiu-se a progressiva extensão do ensino fundamental para turno integral como uma das 20 metas pactuadas no Plano Nacional da Educação (PNE) de 2014-2024 (Ministério da Educação, 2015b).
É nesse panorama que o presente artigo3 versa sobre a articulação entre o Programa Mais Educação (PME) e a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) como via de garantia do direito social à Educação no Brasil pós-1988. A partir da análise da Constituição Federal de 1988, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996, da PNAS e do PME, situa como os discursos4 da estatística, justiça, economia e território foram, nos documentos e historicamente, sendo integrados na formulação das políticas e programas de garantia do direito à Educação depois da Constituição Federal de 1988 (CF). Por meio dos resultados, infere que as estratégias do Estado para o acesso universal ao direito à Educação entre o PME e a PNAS, amparado sob o discurso da esfera pública como via para alteração das desigualdades sociais, tornaram possível gerir uma determinada parcela da população: sujeitos carentes, pobres, vulneráveis ou em situação de risco.
Percursos metodológicos
A seleção dos documentos que compuseram o foco deste artigo foi produzida tendo como objetivo trazer para discussão como a articulação entre Educação e a PNAS foi sendo construída no Brasil para garantia do direito social à Educação, depois da Constituição Federal de 1988. Para isso, em um primeiro momento, fez-se a leitura da Constituição Federal do Brasil de 1988, objetivando compreender como a noção de direito à Educação foi sendo engendrada em torno das práticas do Estado brasileiro: a quais elementos ela foi sendo conectada e com quais discursos se articulou.
Na segunda etapa, analisou-se a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996) e a Política Nacional de Assistência Social (MDS, 2004), com o intuito de verificar como as diretrizes e bases da Educação foram sendo produzidas, depois da Constituição de 1988, em torno da garantia do direito social à Educação e a aproximação com a PNAS. Por fim, na terceira etapa, esmiunçou-se as jurisdições que constituem o Programa Mais Educação, objetivando evidenciar os discursos recorrentes nesses materiais e como eles se articularam com as ações que envolveram a garantia do direito social à Educação no Brasil pós-1988. Os documentos selecionados foram: a) Portaria Interministerial nº 17/07 (que cria o Mais Educação); b) Decreto nº 7.083/10 (que regulamenta o Programa); c) "Passo a Passo: Mais Educação" (que detalha sua implementação).
Para efetivação dessas etapas, realizou-se a leitura das jurisdições, dando ênfase à aparição dos seguintes marcadores: instrução, ensino, Educação, educar, educador, educadores, educadoras, educativo, educacional, educacionais, colégio, escola, universidade e direito. A escolha desses marcadores objetivou articular suas emergências nas jurisdições às configurações sócio-históricas em torno da garantia do direito à Educação pós-Constituição de 1988. De acordo com Lasta (2009), o uso de marcadores permite colocar em análise instituições e discursos naturalizados como verdadeiros, em torno dos objetos de pesquisa, os quais, quando naturalizados, tornam possível o estabelecimento de práticas de governo das vidas e da produção de sujeitos.
Dessa forma, a análise e discussão dos materiais se efetivaram por meio de uma perspectiva foucaultiana, de inspiração pós-estruturalista, visando compreender como se estabeleceu arranjos entre governo, verdade e sujeito por entre os discursos propostos pelas políticas aqui em questão. Esse movimento de análise emerge a partir da prática de pesquisa histórico-filosófica em que situar os discursos presentes nas legislações e políticas, enquanto domínio da experiência e historicidade, coloca em questão as relações entre "[...] as estruturas de racionalidade que articulam o discurso verdadeiro e os mecanismos de assujeitamento que lhe estão ligados, questão a qual se vê bem que desloca os objetos históricos habituais e familiares aos historiadores para o problema do sujeito e da verdade" (Foucault, 2005, p. 84).
Com isso, parte-se da premissa de que as produções dos enunciados jurídicos se formularam como estratégias de governamento, em razão das relações de poder, sendo os discursos que eles veiculam produções históricas e politicamente datadas, já que palavras "são também construções; na medida em que a linguagem também é constitutiva de práticas" (Fischer, 2001, p. 199). Desse modo, as propostas de intervenção produzidas pelas jurisdições aqui em análise são situadas enquanto dispositivos construídos por redes e campos sócio-históricos, que tornam possíveis a produção de modos de vida aos quais nos tornamos sujeitos, ou seja, remetem a processos de subjetivação específicos, datados e localizados historicamente (Hüning & Guareschi, 2009).
Resultados e discussões
Direito social à Educação no Brasil pós-1988: estatística, justiça, economia e território
A Constituição Federal de 1988 emerge em um momento histórico em que a Educação se afirmava como discurso de verdade, nas estratégias estatais, para o desenvolvimento nacional. Os acordos, alianças, parcerias, investimentos e negociações, desenvolvidas no regime civil-militar, entre a década de 1960 e 1980, permitiu a oficialização de diversos vínculos entre as políticas de Educação,5 a economia, o mercado internacional e o mercado local. É nesse momento que a Constituição Federal de 1988 afirmou, pela primeira vez na história do país, a titulação do Brasil como um Estado Democrático de Direito. É por meio dessa específica intenção democrática, aliada a um anseio por desenvolvimento, que se criam os direitos sociais, entre eles o direito à Educação (Ecker, 2016).
De acordo com Cury (2007), a emergência da Educação como direito social na Constituição de 1988 emerge em um contexto sócio-histórico de crescimento econômico e demográfico do país, em que a expansão da rede escolar e universitária se conectava à complexidade de uma sociedade fabricada globalmente. Com isso, estatísticas emergem como estratégia de reconhecimento do aparelho educacional pelo Estado: estudos técnicos, recenseamentos e cálculos ofereceram subsídios discursivos às tomadas de decisões com relação às políticas educacionais. Contudo, o que não se esperava eram os resultados obtidos: as estatísticas mostraram que a construção da Educação no Brasil havia se produzido por um processo histórico-educacional visivelmente seletivo e elitista (Cury, 2007).
O reconhecimento das disparidades sociais em torno da Educação produziu o desejo de luta pela garantia de melhores condições de ensino e de aprendizagem. Desenvolver a Educação no país era situá-la em comparação com a de outros países, principalmente os considerados de primeiro mundo. Produzir um sujeito da Educação em uma sociedade globalizada referia-se à fabricação de políticas públicas que atuassem sobre a oferta e proteção de determinados direitos. Esses direitos remetiam a específicos moldes de cidadania formatados globalmente (Cury, 2007).
Nessa lógica, a conexão entre Educação e a noção de cidadania, vinculada diretamente ao exercício do trabalho, materializou-se como discurso na Constituição da República de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996. Cidadania, exercício da cidadania e cidadania do educando aparecem como termos associados a uma suposta "formação comum indispensável" (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, art. 22) para o brasileiro. Nas jurisdições, a cidadania torna-se fundamento inerente à constituição do Estado Democrático de Direito, alvo privativo da União em termos de legislação, protegida juridicamente sempre que se torne inviável seu exercício (Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996; Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).
A noção de trabalho, concomitantemente, emerge 25 vezes na LDB e 92 vezes na CF de 1988 e, no vínculo entre Educação e a produção da cidadania, situa as ações educativas, principalmente, como via da preparação básica, progresso e qualificação para o trabalho: "§ 2º A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho" (Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996, apud Ramez, 2005, p. 7). Orientar para o trabalho, preparar geral para o trabalho, habilitar profissionalmente, integrar diferentes formas de trabalho, educação especial para o trabalho, incentivar o trabalho e conduzir um "permanente desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva" (Ramez, 2005, p.20), são diretrizes que embasam o modo como as políticas, nos diferentes níveis educacionais, são oficialmente perpassadas pela noção de trabalho como discurso de verdade naturalizada.
A partir de 1988, as jurisdições do Estado sobre as políticas de Educação articularam, explicitamente, cidadania e trabalho como discurso em torno da fabricação do direito social à Educação no Brasil. Em meio a esse processo, Freitas (2008) discute, com base na LDB de 1996, a forma como começa a ser produzido o discurso da "educação básica" no contexto nacional, diretamente atrelado ao alinhamento discursivo do trabalho, da cidadania e da noção de obrigatoriedade. Acumulando discursos em torno da construção do direito à Educação no país, incitativamente, a ideia de obrigatoriedade compôs a jurisdição Constitucional do Brasil de 1988 e tornou-se central no Plano Decenal de Educação para Todos/1993, no Plano Nacional de Educação/2001 e no recente Plano de Desenvolvimento da Educação Básica (PDE).
Nesse momento, mesmo que não tenha enfatizado em suas diretrizes a gratuidade e universalidade em todos os níveis de ensino, a ideia de direito social à Educação, incluída na CF de 1988, abriu campos de possibilidade para que o Estado regulador produzisse certa normatização. Essa normatização, em ação, possibilitou manusear a Educação via políticas públicas entre um campo que pode ir desde a justificativa de um direito até a imposição de uma compulsoriedade pelo discurso da obrigatoriedade. Ao afirmar no art. 207 o acesso ao ensino fundamental como direito público subjetivo, a Constituição de 1988 estabeleceu uma regulamentação que permite governar tanto as crianças e adolescentes como suas famílias, sociedade e o próprio Estado, na articulação direito-dever sob a possibilidade, até, de eliminação de obstáculos para essa ação (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).
No campo da Educação, a Constituição Federal de 1988 é considerada a Constituição do Brasil que mais alinhou recursos e especificou a redação em torno da declaração do direito à Educação. Suas jurisdições afirmaram como discurso a importância das ações do educar em torno do Estado e, pela via do direito, introduziram uma série de regulamentações, diretrizes, artigos e parágrafos, que aperfeiçoaram o modo como se articulou Educação e governamento a partir de 1990. Aliando Estado e família em torno do dever e do direito à Educação, com a colaboração da sociedade, em termos de inovação, a CF de 1988 é a primeira Constituição brasileira que explicita os recursos possíveis de serem acionados, caso haja necessidade de obrigar o Poder Público a cumprir seu dever (Oliveira, 1999).
Assim, a tensão produzida a partir dos discursos inseridos na Constituição, envolvendo justiça e Educação, tornou possível emergir diversos movimentos sociais e debates públicos em prol da garantia de efetivação dos artigos previstos em lei; como é o caso do Movimento Pró-Educação, que reivindicava vagas em escolas públicas, assim como ações em torno da baixa formação dos professores, referente às pedagogias inadequadas e sobre os padrões de qualidade em torno do direito à Educação (Oliveira, 1999). A questão do padrão de qualidade, constante preocupação dos movimentos sociais e debates em torno da Educação, permitiu alinhar os discursos da economia, incisivamente, à produção da Educação como direito social a partir da CF de 1988.
De acordo com Lockmann (2013), será nesse momento que poderíamos pensar na emergência de um modo de governar de inspiração neoliberal no Brasil. Discursos sobre eficácia, melhoria, levantamentos, censos, padrões de qualidade, expansões, fontes, recursos, erradicações, qualificações, profissionalizações, inserções, melhorias de desempenho, empreendimentos e atualizações sustentam, pelo uso de uma razão neoliberal, a forma como o livre mercado e a economia se introduziram nas práticas educacionais, sob a justificativa do direito social.
Por meio do Ministério da Educação, em articulação com as diretrizes do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), a produção do direito à Educação pós-1988 vinculou-se de modo mais incisivo às questões econômicas ao instituir um fundo, advindo de impostos e transferências, disponível para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. O Fundeb, antigo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (Fundef), instituiu um fundo para a Educação nacional, garantindo certa autonomia das políticas de Educação. Tornar o ensino fundamental obrigatório e gratuito, por parte do Estado, requeria recursos que pudessem mantê-lo e desenvolvê-lo e, nessa perspectiva, se instituíram os fundos (Cury, 2007).
O território, organizado pela divisão entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, incluiu-se como outra estratégia discursiva de gestão do direito social à Educação, depois da Constituição Federal de 1988. Assim, tornou-se referência na operacionalização da Educação pela articulação entre economia, território e gestão. O impacto da organização da Educação por uma lógica territorial, na garantia do acesso ao direito social à Educação, alterou a forma como os sistemas de ensino, seus financiamentos (impostos e fundos), padrões de qualidade e de oportunidades foram aplicados na manutenção e desenvolvimento do ensino no Brasil, nos diferentes territórios. Programas de alimentação e de assistência à saúde, a garantia do ensino obrigatório e o salário-educação, por exemplo, tiveram suas cotas orçamentárias de acordo com a arrecadação da contribuição social obtidas pelas esferas estaduais e municipais de cada região (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).
Pela via do financiamento, seja pela União, Estados, Distrito Federal, seja pelos Municípios, o acesso ao direito social à Educação no Brasil, por meio dos mais variados programas, alinhou Educação e Economia como discurso, sustentando-se, também, pelos vínculos estabelecidos entre instâncias públicas e privadas. Desde a Seção I - da Educação, na CF de 1988, que define a Educação como direito de todos e dever do Estado, o ensino no país foi oficializado por meio de uma série de diretrizes que vincularam a ideia de público e privado, legitimando a garantia do direito social à Educação abrangendo, também, a inclusão de escolas comunitárias, confessionais e filantrópicas: "Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: [...] III - [...] coexistência de instituições públicas e privadas de ensino" (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).
Desse modo, a constituição de uma aparelhagem educacional articulada em torno do discurso sobre público e privado, para garantia do direito social à Educação, delineou formas nas quais as práticas educacionais foram se constituindo no Brasil. Público e privado articularam-se por meio da Constituição Federal de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, oficializando um Estado que se sustenta e se desenvolve, entre os diversos elementos, por meio de práticas de garantia de direito à Educação amparadas pela coexistência discursiva de duas esferas:
Art. 19. As instituições de ensino dos diferentes níveis classificam-se nas seguintes categorias administrativas:
I - públicas, assim entendidas as criadas ou incorporadas, mantidas e administradas pelo Poder Público;
II - privadas, assim entendidas as mantidas e administradas por pessoas físicas ou jurídicas de direito privado. (Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996).
A articulação entre público e privado, na CF de 1988 e na LDB de 1996, legitimou a presença dessas esferas no ensino brasileiro e oficializou um Estado Democrático de Direito que sustenta ações de garantia do direito social à Educação por práticas educacionais que fazem coexistir dois campos discursivos do educar. Entretanto, as políticas que serão produzidas em torno da Educação, após a promulgação dessas jurisdições, incidirão massivamente apenas sobre uma dessas esferas discursivas, a saber: a pública. Com a concomitante inserção da Seção IV - Da Assistência Social na CF de 1988, o discurso sobre a gestão do público tornou-se imperativo da tática política brasileira e operacionalizou, principalmente, pelo discurso do direito social, a justificativa de articulação entre o Ministério da Educação e o Ministério do Desenvolvimento Social na formulação de diversos programas e políticas sociais.
Direito social à Educação: Programa Mais Educação e a PNAS na gestão da pobreza
O discurso sobre a Educação como direito de todos(as) nas Constituições do Brasil é anterior à inserção da Assistência Social como seção específica na jurisdição de 1988. Anteriormente ao vínculo entre Educação e PNAS, como via de garantia do direito social à educação, as políticas de Educação já operavam uma série de ações e programas de forma independente, via Ministério da Educação, sob o discurso da inclusão social por meio das políticas públicas. A inovação, como estratégia de governo, que teremos na CF de 1988 na Educação e na Assistência Social é a inserção, pela primeira vez, da Educação integrada à noção de direito social e a Assistência Social como seção específica.
Na Constituição Federal de 1988, na Seção IV - Da Assistência Social, não há referência direta ao campo da Educação. O que temos de aproximação da criação dessa seção com os argumentos das políticas de Educação da época é a ideia de inclusão e promoção social utilizada como plano de governo.
Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;
II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;
III - a promoção da integração ao mercado de trabalho
Parágrafo único. É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular a programa de apoio à inclusão e promoção social até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, grifos nossos).
Pelo que consta na CF de 1988, a Assistência Social6 tem, entre seus objetivos, o de promover a inclusão e promoção social em torno da família, da maternidade, da infância, da adolescência7 e da velhice. A materialização desse princípio ocorrerá com a elaboração, em 2003, do Sistema Único de Assistência Social (Suas), pelo qual o acesso à Política Nacional de Assistência Social se dará pela condição de sujeito de direitos em três níveis de complexidade: Centro de Referência em Assistência Social (Cras), Centro de Referência Especializado em Assistência Social (Creas) e os Serviços de Proteção Social Especial.8 Segundo a Política Nacional de Assistência Social, o público usuário do Suas são os(as) cidadãos(ãs) e grupos em situações de vulnerabilidade e risco social (MDS, 2004, p. 10).
Na descrição da PNAS, é possível visualizar um recorte específico da população sobre a qual a Assistência Social, como política pública, incide: os sujeitos em situações de vulnerabilidade e risco social. A ideia de Educação, que emerge em apenas um ponto da PNAS, é descrita como uma das esferas intersetoriais na qual se deve articular para intervir em torno das exclusões e vulnerabilidades. Assim, a execução de ações intersetoriais prevê, considerando as desigualdades socioterritoriais, intervenções sobre os sujeitos de forma vinculada aos objetivos de garantia dos mínimos sociais e à universalização dos direitos (MDS, 2004).
A atenuação das desigualdades, pela inclusão na Educação, sustenta um dos valores institucionais do Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação, autarquia responsável por financiar e executar políticas do MEC. O Brasil Carinhoso, política integrada à PNAS, assim como o Programa Dinheiro Direto na Escola, Brasil Profissionalizado, Caminho da Escola e o Programa de Financiamento Estudantil (Fies), compõe algumas das ações do FNDE que integram Economia, inclusão social e Educação (MEC, 2015a).
Foi por meio de financiamento via FNDE que, em 2011, o Ministério do Desenvolvimento Social e o MEC priorizaram a implantação do Programa Mais Educação em escolas com grande volume de alunos beneficiados pelo Programa Bolsa Família (MDS, 2011). Essa integração de Ministérios oficializou discursivamente o vínculo entre Educação e a PNAS como estratégia de garantia do direito à Educação, com foco na população considerada vulnerável e em risco, possibilitando novamente a gestão desse recorte populacional, via esfera pública. O Programa Mais Educação, criado em 2007, por meio da Portaria Normativa Interministerial nº 17, e regulamentado pelo Decreto nº 7.083, de 27 de janeiro de 2010, objetivava fomentar a Educação integral de crianças, adolescentes e jovens por meio de atividades socioeducativas no turno inverso ao escolar.
O manual do Mais Educação sugere priorizar, na adoção de critérios para definição do público indicado ao Programa, estudantes que "estão em situação de risco, vulnerabilidade social e sem assistência [...] estudantes de séries onde são detectados índices de evasão e/ou repetência", podendo incluir outros(as) alunos(as) (MEC, s/d, p.13). Até 2011 havia ocorrido a inscrição de mais de 11,7 mil escolas no Programa, número que representava 67% do total de unidades que comportavam a maioria de alunos(as) atendidos(as) pelo Bolsa Família. Até o fim de 2014, a meta pactuada entre o Ministério da Educação e o Ministério do Desenvolvimento Social era inserir 50% dos estudantes beneficiados pelo Bolsa Família na Educação integral (MDS, 2011).
Ao integrar o direito social à Educação e a PNAS, via Mais Educação e Bolsa Família, a gestão dos sujeitos por esfera pública, articulada pelos Ministérios, tem permitido ao Estado alinhavar o discurso sobre a garantia do acesso à Educação, em um nível de ensino que já é considerado obrigatório no país, com as condicionalidades impostas pelo Programa Bolsa Família. Ao ser beneficiário do PBF, são impostas condicionalidades aos membros familiares, entre as quais está a frequência escolar exigida às crianças e adolescentes que, se não cumprida, acarreta a suspensão do benefício (Ministério da Cidadania, 2019). Dessa forma, o usuário do Programa Bolsa Família, ao ser integrado no Programa Mais Educação, insere-se em uma condicionalidade que não diz respeito apenas a uma frequência na escola, mas, principalmente, uma frequência de tempo integral e possibilitando certa compulsoriedade.
Desse modo, o sujeito acessa o serviço da Política Nacional de Assistência Social para ter garantia de direitos devido a sua condição socioeconômica; a ele são concedidos benefícios, programas e propostas de inclusão que estabelecem condicionalidades e, nesse arranjo discursivo, o sujeito se vê entrelaçado à política: seja sob o argumento da obrigatoriedade em torno da Educação (ensino fundamental), seja pelo risco de perda do benefício imposto pela condicionalidade. Assim, o discurso do acesso ao direito social à Educação, pela articulação entre PBF e PME, opera em torno dos sujeitos-alvo, vulneráveis e em risco, uma gestão que condiciona condutas específicas e abre espaço para acessos e cerceamentos, simultaneamente.
De acordo com Silva e Silva (2014), as políticas que sustentam o Mais Educação têm justificado a ampliação da jornada escolar com o objetivo pedagógico de proteger e educar, que, na leitura das autoras, renova e aprofunda a ideia de uma Educação compensatória. Essa compensação responsabilizaria a instituição escolar e os educadores pela guarda de crianças e adolescentes, prevalecendo uma "política do 'disciplinamento da pobreza', tarefa atribuída às escolas nos países subdesenvolvidos, conforme recomendações do Banco Mundial, desde a década de 1990" (Silva & Silva, 2014, p. 119). Produzir uma política compensatória, que alia o discurso do direito social à Educação com práticas de compulsoriedade, tem produzido não só um disciplinamento da pobreza, mas, como apontam os resultados da presente discussão, o uso da pobreza para o desenvolvimento do Estado e os interesses do capital, sustentado pelo discurso da "importância das políticas públicas para o desenvolvimento social".
Os discursos estatísticos produzidos em cima da articulação política entre Educação e a PNAS possibilitaram aliar Economia e densidade populacional (população relativa alçada pela política) como estratégia discursiva do Estado para se afirmar como nação desenvolvida. Desde 2010, o número de matrículas em Educação integral no ensino fundamental cresceu 139%, chegando a 3,1 milhões de estudantes em 2014 (MEC, 2014). Para 2015, no campo econômico, estava prevista a liberação, pelo Ministério da Educação, de R$ 180 milhões para as escolas cadastradas no Programa, entendendo o Estado essa estratégia de gestão como percurso necessário para avançar no desenvolvimento da Educação no Brasil (MEC, 2015b).
A articulação entre a garantia do direito social à Educação e certa compulsoriedade se torna uma estratégia discursiva interessante para um país que almeja desenvolver-se com foco na Economia. Desenvolvimento que, em uma perspectiva neoliberal, tem a ideia de metas e resultados diretamente vinculada ao investimento monetário que se faz em um setor público específico. Pensando na relação das propostas pedagógicas do PME com as práticas da PNAS, recorremos às discussões de Lasta (2015), quando a autora aponta sobre a forma como os discursos de inclusão na PNAS têm permitido, por meio de políticas e programas, certa ampliação da ideia de inclusão social para algo que produziria, também, o que se poderia nominar de inclusão produtiva. Incluir produtivamente, articulando Educação e a PNAS por meio do Programa Mais Educação, seria pensar na produção de um sujeito ativo, produtivo economicamente que, por meio dos investimentos que se faz sobre ele, é possível torná-lo capital humano, ou seja, um sujeito capaz de se integrar e permanecer ativamente nos jogos de mercado, no mercado de trabalho e na empregabilidade.
Contudo, a articulação discursiva entre Educação e a PNAS pelo PME situa os discursos de garantia do direito social à Educação e a produção de um sujeito produtivo em um específico nível de ensino: o fundamental. Como sugerem os dados analisados, talvez seja nesse recorte de ensino específico que se torne estratégico, como aponta Silva e Silva (2014), que o Programa opere por uma pedagogia que anula no método de ensino questões essenciais de desigualdades sociais e de crítica ao capitalismo. Situar essa discussão sobre o objetivo do Programa poderia desestabilizar uma pedagogia sofismática, levando em consideração que, como aponta o processo histórico da Educação no Brasil, a preocupação com a formação do povo, da classe popular e em seguida da população pobre como um todo se constituiu, de forma geral, voltada ao nível do ensino fundamental ou técnico. A inclusão de pobres em apenas esse nível de ensino torna-se uma perversa estratégia de gestão que acarreta em manter específicas desiguais configurações sociais, oficializando monopólios econômicos e de status sociais.
Como sugere Cury (2007), produzir um sujeito da Educação para uma sociedade globalizada e neoliberal refere fabricar políticas públicas que ofertem a proteção de determinados direitos. Segundo os dados analisados, pode-se sugerir que, na gestão da população considerada vulnerável e em risco, na articulação entre Educação e a PNAS, os moldes de cidadania referem-se também à manutenção de específicos acessos, que dizem respeito ao nível educacional ofertado como direito. Concomitante a esse específico nível de ensino, pela junção discursiva entre o Mais Educação e o Programa Bolsa Família, se produz uma gestão da população pobre, cerceada pelo tempo integral dentro da escola,9 sujeita a uma cidadania com certo caráter de compulsoriedade, por meio das condicionalidades que o PBF prevê.
O Programa Mais Educação, na relação entre Educação e a PNAS, ao instituir a Educação integral voltada para a população pobre, torna possível materializar alguns dos discursos ideológicos sobre Educação integral que surgiram na década de 1930, em que a gestão da pobreza era debatida entre políticos e intelectuais em torno de uma Educação pública integral (Cavaliere, 2010). Entretanto, o discurso recorrente atual não fará mais referência ao turno integral como forma de gestão do povo e das massas populares, mas, sim, como estratégia de produção do direito social à Educação para a população como um todo. A inversão do discurso de gestão para a do direito remete também a um processo no qual a Educação foi se transformando: deixou de ser caracterizada como um serviço de elite, ou usada para gerir como "úteis" os sujeitos pobres, para ser atribuída como algo "inerente ao ser humano" (Ecker, 2016).
Esse movimento de naturalização da Educação, iniciado, principalmente, em torno da Declaração do Homem e do Cidadão no século XVIII na França, tornou possível, nas diretrizes do Programa Mais Educação, anular discursivamente toda uma discussão sobre a Educação integral que estava colocada no Brasil do início do século XX. Naquele período, Educação pública referia-se diretamente à gestão do povo e das classes populares e pobres. A Educação integral, como via de domesticação e cura das classes populares, como estratégia de libertar o povo da ignorância e transformar o "povo-criança" em "povo-nação", eram argumentos recorrentes na época (Cavaliere, 2010, p. 251).
A noção de civilizar e de moralizar pela Educação integral foi muito utilizada naquela época e, nas jurisdições atuais analisadas, foi transmutada para a ideia de sócio-educar. Jaqueline Moll, professora e pesquisadora que compôs o Ministério da Educação na tarefa de dirigir a Diretoria de Educação Integral, Direitos Humanos e Cidadania (e de coordenar esforços para concretização do Programa Mais Educação), retoma a noção de civilizar em seus discursos, porém numa perspectiva de produção de cidadania. Em entrevista à TV Supren, Jaqueline discorre sobre o fato de que, na contemporaneidade, não é presumível pensar a cidade sem pensar na Educação: "é preciso que a escola se conecte com o que está no seu entorno" (Moll, 2012, 4:20min).
Inspirada em Paulo Freire e em outros autores como Anísio Teixeira, a pesquisadora retoma esses autores como referência para afirmar o discurso da Educação integral como via para produzir uma Educação pública, de qualidade e democrática. Entretanto, apesar de frequentemente usar citações de Anísio Teixeira em seus trabalhos, os argumentos da pesquisadora anularão as ideias de Anísio dos anos 1930, que se referiam à ampliação da jornada escolar para desenvolvimento da Economia e da gestão das massas, pelas "elites de pensadores, sábios, cientistas, técnicos, e educadores, [...] Se o problema fundamental das democracias é a educação das massas populares, os melhores e os mais capazes, por seleção, devem formar o vértice de uma pirâmide de base imensa" (Azevedo et al., 2006, p. 200, grifos nossos).
Anteriormente ignorantes, que precisavam ser gerenciados; atualmente sujeitos de direito à Educação que merecem exercer cidadania e alterar sua condição de desigualdade social. O que se tem por evidência é que as modificações em torno dos discursos sobre o direito social à Educação, na articulação com a PNAS, foram se atualizando ao longo dos séculos. Ao vincular Educação, estatística, justiça, Economia e território às tecnologias de Estado, sob o imperativo das políticas públicas, o discurso do direito social à Educação abriu campos de possibilidades para operacionalizar a gestão dos sujeitos vulneráveis e em risco, pobres ou excluídos, sob arranjos específicos e possibilitando certa compulsoriedade.
Considerações finais
Por meio da discussão proposta neste artigo, colocou-se em análise elementos que compuseram a construção do direito social à Educação no Brasil e sua proximidade com a Política Nacional de Assistência Social, depois da Constituição Federal de 1988. Nesse processo, por meio da análise de jurisdições, apontou-se sobre o modo como o arranjo entre Educação, estatística, justiça, Economia e território às tecnologias de Estado, articulado à constante produção de discursos sobre a redemocratização do país, permitiu produzir certo imperativo do público como via para superação das desigualdades sociais e gestão dos sujeitos vulneráveis e em risco, pobres ou excluídos, sob arranjos específicos e possibilitando certa compulsoriedade.
A inserção da Assistência Social, como seção específica, e da noção de direito social à Educação, na Constituição Federal de 1988, remeteu a uma tecnologia de governo que operacionalizou a articulação entre Educação e a PNAS de forma tática. Em um primeiro momento, pela via da transferência de renda, integrada à obrigatoriedade escolar, para, em seguida, ser justificada pela garantia do direito à Educação como via para alteração de desigualdades sociais pelo Programa Mais Educação. Práticas de um Estado que se autodenomina como "Democrático de Direito", com foco na Economia, produziu certa inclusão e contenção dos sujeitos consideráveis vulneráveis e em risco, possibilitando estratégias de compulsoriedade, ao integrar PME e o Programa Bolsa Família.
Como evidenciam os dados de análise, depois da Constituição Federal de 1988, a gestão do público tornou-se imperativo dos governos e fabricou uma série de ações engendradas entre Ministérios sobre a população considerada carente, vulnerável e em risco, sob tecnologias específicas. A junção entre Educação e a PNAS, pelas políticas públicas, tem permitido a aproximação do Brasil com lógicas de operacionalidade de sociedades globalizadas, em que os números estatísticos e de investimento econômico crescem constantemente em torno das políticas sociais. Ao mesmo tempo, esse investimento operacionaliza a gestão da população pobre como capital rentável, mas não rentável em todos os níveis de ensino, situando a garantia do direito à Educação apenas no nível fundamental e planejando a extensiva progressão das escolas públicas de nível fundamental para regime de tempo integral.
Inicialmente ignorantes, que precisavam ser gerenciados, para em seguida serem afirmados como sujeitos de direito à Educação, a população nomeada como vulnerável e em risco, pobre e excluída, foi sendo colocada no cerne da gestão governamental sob justificativa de que, modificando suas condições sociais, as desigualdades históricas do Brasil seriam superadas. Entretanto, como demonstra a discussão aqui proposta, o discurso do direito social à Educação atua em manter certa divisão de acessos e funções sociais ao priorizar que pobres, vulneráveis, carentes e em risco social acessem prioritariamente apenas o nível fundamental. Ao articular PME e PBF, no nível fundamental e com regime de tempo integral, a tecnologia governamental possibilitou, também, uma gestão de caráter cerceante e enclausuratório desse recorte populacional.
Longe de qualificar esses arranjos como avanços ou retrocessos, o processo de discussão permitiu desnaturalizar diversos elementos em torno da garantia do direito social à educação no país, evidenciando sobre a forma como os discursos sobre o educar foram sendo engendrados depois da Constituição de 1988, na aproximação com a Política Nacional de Assistência Social, remetendo a diferentes estratégias, verdades, sujeitos-alvo e elementos argumentativos. Esses discursos, atualmente marcados por uma lógica naturalizada da "educação como algo inerente do ser humano", remetem a alguns dos específicos arranjos de governo das vidas que ocorrem, via Estado, no Brasil.
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Recebido em: 10/10/2018
Aprovado em: 26/06/2019
1 O direito público subjetivo conforma-se como um instrumento jurídico de gerência da atuação do poder estatal. Em sua execução, ele permite ao seu titular constranger judicialmente o Estado a cumprir com o que deve, nesse caso, o que se refere ao acesso às políticas de Educação no nível fundamental. Por meio do desenvolvimento desse conceito, passou-se a reconhecer circunstâncias jurídicas em que o Poder Público tem o dever de dar, fazer ou não fazer algo em benefício de um particular. Como todo direito cujo objeto é uma prestação de outrem, ele supõe um comportamento ativo ou omissivo por parte do devedor (Duarte, 2004).
2 A presente discussão é um recorte histórico e se baseia na análise do Programa Mais Educação criado pela Portaria Interministerial nº 17/07 e regulamentado pelo Decreto nº 7.083/10. Em 2016, instituiu-se o Programa Novo Mais Educação, pela Portaria MEC nº 1.144/16 e a Resolução FNDE nº 17/17, alterando a configuração inicial do Programa e dos seus objetivos. Cabe destacar, também, os inúmeros eventos que aconteceram no Brasil nos últimos anos e interferiram nas políticas públicas do país, dos quais destacam-se a aprovação da PEC nº 241 ou nº 55, que interferem diretamente na execução dos programas públicos.
3 O artigo é um recorte da dissertação de mestrado intitulada A educação e a Política Nacional da Assistência Social: uma análise sobre o direito à Educação no Brasil. Pesquisa financiada com bolsa de mestrado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
4 A presente proposta integra pesquisas na área da Psicologia Social e Institucional de matriz pós-estruturalista, de base foucaultiana. Nelas, a produção de conhecimento reivindica uma epistemologia própria, já que não é contemplada pelas perspectivas tradicionalmente abordadas (Hüning & Scisleski, 2018). Com isso, um dos aspectos de sua produção científica é a desnaturalização de discursos do presente, para a produção de pensamentos, não de verdades forjadas, destacando a construção de um conhecimento particular, política e historicamente localizado (Ecker, 2018).
5 Estima-se que haja, de acordo com dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), 976 escolas públicas brasileiras com nomes de presidentes do período da Ditadura (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, 2015).
6 Ao analisar a articulação entre o Programa Mais Educação e a Política Nacional de Assistência Social, o artigo enfatiza elementos do campo educacional. Compreende-se que a Educação tem operacionalidade própria, assim como as políticas de assistência. Devido ao recorte da discussão aqui proposto, não se adentrou em questões específicas da Assistência Social, como sua tipificação, orçamento público ou aspectos históricos referentes a sua formulação como política. Para isso, sugere-se: Resolução nº 109 de 2009; Sposati (2004; 2007).
7 Cabe destacar, no campo da Assistência Social, o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos para crianças e adolescentes de 6 a 15 anos (MDS, 2016). Essa ação está prevista no âmbito da Proteção Social Básica na PNAS (2004) e contempla o mesmo público a quem se destina o Programa Mais Educação. Entre suas características, estão: "prevenir situações de risco [...] desenvolvimento de potencialidades e aquisições [...] fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. Destina-se à população que vive em situação de vulnerabilidade social decorrente da pobreza, privação (ausência de renda, precário ou nulo acesso aos serviços públicos, dentre outros) e/ou fragilização de vínculos afetivos - relacionais e de pertencimento social (discriminações etárias, étnicas, de gênero ou por deficiências, dentre outras)" (MDS, 2004, p. 33).
8 Em conformidade com a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, constituem Serviços de Proteção Social Especial de Alta Complexidade: Serviço de Acolhimento Institucional; Serviço de Acolhimento em República; Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora; Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti); Serviço de Proteção em Situações de Calamidades Públicas e de Emergências (Ministério da Cidadania, 2019).
9 O Programa Mais Educação prevê atividades no território, na comunidade e na cidade, entretanto, na época do estudo, as escolas contatadas que tinham o Programa ofertavam ações apenas dentro da própria escola, no turno inverso ao escolar. Tem-se conhecimento que a presente discussão não representa, e nem tem a intensão de representar, a multiplicidade de práticas possíveis por meio da política, mas, sim, levantar uma discussão específica sobre as ações governamentais e sua incidência sobre a gestão da pobreza.