SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.16 número1Periferia, violência e estigma sob o enfoque da promoção da saúde: relato de experiência na comunidade de Mata Escura, Salvador/BahiaSubjetividade e espaço: análises com Michel Foucault índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.1 São João del-Rei jan./mar. 2021

 

"Foguete ou tiro?": a produção de subjetividade de juventudes a partir do território

 

"Rocket or Shot?": the Production of Youth Subjectivity from the Territory

 

"Fuegos artificiales o disparo?": la producción de subjetividad de juventud a partir del territorio

 

 

Paloma de Almeida Albergaria LannaI; Matheus Henrique SilvaII; Lara Brum de CalaisIII

IGraduada em Psicologia pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF). E-mail: palomalanna95@gmail.com
IIGraduado em Psicologia pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF). Mestrando pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) na linha de pesquisa "Processos Psicossociais e Saúde". E-mail: matheus_psi@outlook.com
IIIDoutora em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: laracalais@hotmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo objetiva analisar os efeitos que o território produz na construção da subjetividade da população jovem moradora de um bairro periférico da cidade de Juiz de Fora/MG. A pesquisa se deu a partir do referencial metodológico da Pesquisa-Ação Participante de base qualitativa e tem como ferramenta de levantamento de informações o grupo focal, mediado pelo roteiro com perguntas disparadoras da discussão. Ao todo, participaram da pesquisa 10 jovens, entre meninas e meninos. Por meio dos grupos focais realizados, foi possível compreender que o território exerce grande influência na construção de subjetividades, principalmente no que tange à categoria juventude e, esse território, é perpassado por diversos outros fatores como a violência, o tráfico de drogas e o medo. Todas essas questões compõem as realidades e forjam conceitos sobre os sujeitos que as vivenciam, influenciando assim rotas, hábitos e sentimentos de pertencimento a um lugar.

Palavras-chave: Juventude. Subjetividade. Território. Psicologia Social.


ABSTRACT

This article aims to analyze the effects that the territory produces in the construction of the subjectivity of the young population, living in a peripheral neighborhood of the city of Juiz de Fora / MG. The research is based on the methodological framework of the Participatory Research-Participant Action and has as a tool for gathering information, the focus group, mediated by the script with questions triggering the discussion. Altogether, 10 young girls and boys participated in the research. Through the focus groups, it was possible to understand that the territory exerts a great influence in the construction of subjectivities, especially in the category of youth, and in this same territory, is crossed by several other factors such as violence, drug trafficking and fear. All these questions compose the realities and forge concepts about the subjects that inhabit them, thus influencing routes, habits and feelings of belonging to a place.

Keywords: Youth. Subjectivity. Territory. Social Psychology.


RESUMEN

El presente artículo objetiva analizar los efectos que el territorio produce en la construcción de la subjetividad de la población joven, moradora de un barrio periférico de la ciudad de Juiz de Fora / MG. La investigación se dio a partir del referencial metodológico de la Investigación-Acción Participante de base cualitativa y, tiene como herramienta de levantamiento de informaciones, el grupo focal, mediado por el guión con preguntas disparadoras de la discusión. En total, participaron de la investigación 10 jóvenes, entre niñas y niños. A través de los grupos focales realizados, fue posible comprender que el territorio, atravesado por diversos factores como la violencia, el tráfico de drogas y el miedo, compone las realidades y forja conceptos sobre los sujetos que en ellas habitan, influenciando así rutas, hábitos y sentimientos de pertenencia a un lugar.

Palabras clave: Juventud. La subjetividad. Territorio. Psicología Social.


 

 

Introdução

Diferentes áreas do saber dedicam-se a compreender as relações produzidas em sociedade. Saberes das Ciências Humanas e Sociais dedicam-se a investigar os modos de tais relações em articulação com as dimensões sociais, políticas, culturais e econômicas. Na arena da Psicologia, campo em que se situam as problematizações do presente artigo, a Psicologia Social, em sua vertente crítica e histórica, também se debruça sobre as complexidades que envolvem as relações sujeito-sociedade, com olhar sobre os marcadores sociais que perpassam a produção objetiva e subjetiva do mundo. Nessa perspectiva, a dimensão territorial - como marcador que vincula as relações socioespaciais - situa-se como foco das análises aqui estabelecidas, em constante relação com as áreas de produção do conhecimento que também intentam tais análises.

Destarte, o objetivo empreendido pela presente pesquisa concentra-se em compreender os efeitos recíprocos da dimensão do território sobre a produção da subjetividade das juventudes, entendendo tais efeitos como uma relação complexa e interrelacional. Isso especialmente relacionado à experiência de jovens moradores/as de um bairro situado em contexto de periferia da cidade de Juiz de Fora/MG. Com base especialmente nas contribuições de Santos (2009), entende-se que o espaço geográfico pode ser analisado como "território usado", incluindo as esferas de sua apropriação em diferentes níveis, visto que, abordando-o dessa forma, possibilita-se maior abrangência dos efeitos dos processos do uso socioterritorial. Isso nos convida a (re)pensar as relações que são produzidas e mediadas entre o lugar, a formação socioespacial e o mundo, entendendo que o território é constituído por formas complexas, onde são criadas tramas relacionais que ora se complementam, ora se conflituam.

A dimensão territorial é entendida, portanto, como condição para a existência das relações, marcadas historicamente entre o espaço e o tempo, que se fundem de forma dialética produzindo uma totalidade histórica e concreta (Santos, 2011). Incluem-se assim processos de intencionalidades e jogos de forças que pautam as existências, sobretudo relacionadas aos modos de produção da sociedade. Conforme ressalta Souza (1995, p. 353), "o território é fundamentalmente um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder" e, dessa forma, é constituído pelas situações históricas que fundam a sociedade - especialmente no caso do Brasil, afetado pela herança de colonização de configurações estruturalmente racistas e patriarcais (Souza, 1995).

Assim, as discussões levantadas nas análises deste artigo envolvem as relações entre espaço, desigualdade social, formação subjetiva e efeitos nas experiências das juventudes, principalmente aquelas que circulam em territórios periferizados pelo processo de constituição das cidades e pelo modo de funcionamento do sistema econômico e político vigente (Castro & Bicalho, 2013). As argumentações que se seguem apresentam, portanto, uma investigação sobre como as relações estabelecidas no/com o território, representado aqui simbolicamente pelo espaço da rua/bairro, constroem subjetivamente elementos da juventude situada em um bairro de periferia da cidade de Juiz de Fora/MG. O foco da pesquisa voltou-se tanto para os efeitos dessa experiência territorial da realidade investigada quanto para as possibilidades de resistência, ação e transformação perante tal realidade.

 

Metodologia

A pesquisa em questão teve como referencial metodológico a Pesquisa-Ação Participante, de base qualitativa, que pressupõe a horizontalidade na relação entre pesquisador-pesquisado, no sentido de produzir interlocuções com o campo. De acordo com Brandão (2000), tal referencial integra estratégias de pesquisa que contam com a participação dos grupos sociais pesquisados, assumindo, dessa forma, a necessidade de dar voz aos jovens informantes envolvidos na pesquisa, tendo sido, para tanto, o grupo focal uma ferramenta estratégica no levantamento de informações.

O grupo focal se caracteriza como uma ferramenta metodológica relevante para pesquisas com referencial participativo, pois, ao propor a formação de um grupo com os participantes da pesquisa, tem o diálogo e a produção conjunta de informações como principal objetivo. Nesse sentido, a pesquisa teve a participação de 10 jovens, com idade entre 14 e 16 anos, matriculados no 9º ano da Escola Municipal Santa Cândida, moradores do bairro Santa Cândida, na cidade de Juiz de Fora/MG. Não foram incluídos na pesquisa jovens que tinham idade inferior a 14 anos, não estivessem matriculados na Escola Municipal Santa Cândida e residissem em outro bairro.

Num primeiro momento, posteriormente ao contato com a escola para início da pesquisa, foi realizada uma dinâmica com os alunos do 9º ano da escola, com o objetivo de reconhecer e aproximar os pesquisadores ao campo. Nessa ocasião, os/as alunos/as conversavam coletivamente, com a mediação de um roteiro com temas sugeridos pelos pesquisadores, a respeito de suas experiências cotidianas. Por intermédio desse primeiro contato com os jovens, também foi possível identificar quais deles atenderiam aos critérios de inclusão, anteriormente citados, para participar da pesquisa.

Em momento posterior, foram realizados dois grupos focais, os quais continham cinco alunos/as em cada um, sendo que os/as participantes de cada grupo foram escolhidos por sorteio. Durante a realização dos grupos focais, foi utilizado o recurso da gravação de voz, após consentimento livre e esclarecido dos/as participantes e aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF)1

Os relatos obtidos por meio dos grupos focais foram transcritos de forma integral, com o intuito de produzir material documental que pudesse ser analisado a partir da perspectiva da Análise de Produção de Sentido, conforme proposto por Spink (2013). De acordo com a autora, o sentido é uma construção social, coletiva e interativa, podendo-se dizer que nenhum indivíduo produzirá sentido sozinho, sendo essa produção marcada pelas relações sociais e, por sua vez, por questões históricas e culturais. Nessa perspectiva, a linguagem é um fator fundamental na produção de sentidos, pois viabiliza essa produção, caracterizando o que a autora chamou de Práticas Discursivas. Assim, as entrevistas podem ser compreendidas como ação e interação, perpassadas pelo contexto e pela relação entre entrevistador e entrevistado (Spink, 2010).

Sendo assim, a análise dos dados deu-se a partir da imersão nas informações coletadas, sem, a princípio, "encaixar" essas narrativas em temas já definidos, embora estes acabem refletindo, em alguma medida, o roteiro de entrevista. Com esses eixos temáticos identificados nas narrativas, as práticas discursivas puderam ser então analisadas, sem considerar apenas o conteúdo dessas práticas, mas também o uso feito destas. Para isso, foram desenvolvidos os mapas de associação de ideias, organizados em um quadro em que as colunas são definidas a partir de temas e sentidos identificados nos relatos. A ideia foi organizar os conteúdos das narrativas, isto é, os sentidos obtidos, a partir desses temas.

Em geral, os temas levantados refletem o roteiro de entrevista, porém, nem sempre podem ser definidos a priori, como já pontuado anteriormente. Na análise dos sentidos obtidos a partir dos grupos focais, foram identificados seis eixos temáticos: Lazer; Lugar/Circulação/Território; Violência; Escola; União e Juventude. Em seguida, baseando-se em cada tema, foram nomeados os sentidos, sendo que, para cada eixo temático, foram identificados de um a seis sentidos, como se vê na Tabela 1. Portanto, a pesquisa foi organizada em 5 eixos temáticos e 16 sentidos atribuídos às experiências encontradas com os relatos, que serão apresentados e discutidos a seguir.

 

Análise e discussão

As discussões sobre cidades e juventudes envolvem elementos históricos e trânsitos políticos que produzem distintas formas de ocupar o espaço e de apropriação deste como direito. Nesse sentido, as análises e discussões advindas da presente pesquisa serão aqui explicitadas a partir de seus eixos temáticos, relacionando-os aos debates sobre território, juventudes, cidade e subjetividade.

A cidade, anterior ao surgimento dos veículos e o alargamento de suas vias, era espaço destinado à socialização entre as pessoas (Harvey, 2014). Todavia, com o advento do capitalismo, o espaço urbano passa a assumir função de negócio e mercadoria, em outras palavras, a cidade concebida dessa maneira contém valor de uso e valor de troca. As contradições fundamentam o processo de construção da cidade capitalista, onde em um polo se situa a produção social do espaço e, no outro, a sua apropriação privada, mediada pela propriedade. Destarte, a cidade ocupa um lugar de "bem intercambiável", passível de valor, acirrando sua concepção de negócio e segregação, ao passo em que também é o lugar no qual a população tece o viver (Alvarez, 2018). A dimensão de um espaço social se torna alheia a ela, pois o cerne de seu interesse está nos processos de produtividade e concorrência, com o intuito de se obter resultados. Por conseguinte, a ideia de pólis, cidade voltada para os encontros entre pessoas, não se encontra alinhada aos propósitos da "cidade-empresa", tendo a sua dimensão política rejeitada (Vaine, 2013).

Em função dessa e de outras configurações históricas na relação de classes, surgem loteamentos, boa parte das vezes, clandestinos, e suas casas construídas pelos próprios moradores, ressaltando as contradições existentes entre os espaços da cidade (Lefebvre, 2006; Sposito, 1988). Assim, a cidade passa a estar construída pelo modo de produção capitalista, sendo estruturada e moldada de acordo com seus interesses. Véras (2006) aponta que as políticas urbanas atuam como indutoras de urbanização, sendo "excludentes" para os mais pobres, levando-os para locais de habitação distantes, a "preços acessíveis", ou seja, para periferias longínquas. Dessa forma, a possibilidade de ser mais ou menos cidadão dependerá, fortemente, do ponto onde o indivíduo encontra-se localizado, sendo essa localização, na maioria das vezes, produto de uma combinação entre forças de mercado e decisões de governo.

Santos (2011) ainda destaca que o espaço urbano é diferentemente ocupado em função das classes em que se divide a sociedade. Essa repartição espacial das classes sociais é um fato que se verifica no espaço total do país e em cada região, mas é, sobretudo, um fenômeno urbano. Tal concepção torna-se ainda mais complexa quando interseccionada a outros elementos que, adicionando atravessadores de raça, geração, gênero, orientação sexual, entre outros, produz distintas condições de possibilidade de vida em sociedade (Crenshaw, 2002).

No que se refere à juventude, além de representar um fenômeno demográfico, esta aparece também como um fenômeno social, político e cultural, com suas concepções marcadas pelas temporalidades e espacialidades da história, reforçando-a como uma construção (Cassab, 2009). Assim, Abramo (2005) destaca os diferentes modos de inserção social, política e econômica dos jovens, que vão diferenciar, por exemplo, a forma como a juventude é vivenciada por meninas e meninos de distintas classes sociais e regiões geográficas. Nessa acepção, ser jovem, pobre e morador de periferia produzirá vivências sinalizadas por marcadores sociais, tais como classe e território, que irão interferir no modo como cada jovem vivencia a juventude.

Considerando tais argumentações, os eixos de análise apresentados a seguir entrecruzam as narrativas de jovens moradores do bairro Santa Cândida, da cidade de Juiz de Fora/MG, com as reflexões advindas da análise da composição da circulação das cidades e as produções subjetivas resultantes desse processo. Assim, as esferas da vida da juventude em questão serão categorizadas no sentido de viabilizar um entendimento destas; contudo, ressalta-se a relevância de situar a complexidade da vida e as distintas formas das relações estabelecidas pelos jovens com o espaço em diferentes tempos e lugares.

Eixo 1: lazer

O primeiro eixo levantado pela análise de produção de sentidos foi o Lazer. Identificaram-se neste eixo temático dois sentidos, a saber: bairro/cidade e privação. Tais sentidos apareceram nos relatos dos/as jovens participantes da pesquisa: o primeiro está relacionado às suas experiências no bairro Santa Cândida e na cidade como um todo; o segundo sentido relaciona-se à ideia de aprisionamento e privação da circulação.

Ao dizerem sobre as práticas relacionadas ao lazer, as narrativas apontaram que antes o bairro Santa Cândida tinha mais oportunidades de lazer voltadas para os moradores locais, como aponta L. (13 anos): "A gente tinha muita festa aqui na rua, [...] eu lembro que tinha festa na minha rua, então, tipo, tomava a rua toda, entendeu? Era tipo pula-pula, aquele negócio vendendo algodão doce na rua, e eu ficava tipo... ah que legal".

Atualmente, segundo relatos dos adolescentes e jovens, as festividades do bairro, sofreram diminuição devido à violência, o que acaba indicando outro sentido atrelado à temática "lazer", que é o de privação. Como já citado anteriormente, esse sentido apresenta-se nas sensações relatadas pelos jovens de estarem impedidos, principalmente pela violência, de realizarem alguma atividade ou circularem pelo próprio bairro, como relata L. (13 anos): "Por exemplo, tinha festa na rua que é debaixo da minha, tipo acontece no dia das crianças e tal, mas não pode acontecer muito mais direito por causa dessa violência também, entendeu? Muito ruim".

Em contextos marcados pela violência, seja ela direta ou indireta, as relações sociais tendem a ser afetadas, já que o medo leva as pessoas a confinarem-se em casa, distanciando-se umas das outras. Assim, há uma limitação do uso dos espaços públicos, como praças, quadras, além da própria rua de moradia (Dimenstein, Zamora & Vilhena, 2004; Lanna & Calais, 2020).

A violência aparece, portanto, como um analisador importante para o potencial de circulação e de suas experiências de lazer ou privação. Considerando o contexto abordado, desde 1998, a Unesco divulga periodicamente os chamados Mapas da Violência, cuja finalidade é explanar e acompanhar a realidade da juventude brasileira e a evolução da violência no país. Com a divulgação atualizada desses dados obtidos na construção dos mapas, e com o documento Atlas da Violência, foi possível identificar a camada social mais assolada no que se refere a mortes violentas devido a causas externas, sendo que os homicídios são hoje o motivo principal da morte de milhares de jovens entre 15 e 29 anos no Brasil (Alves et al., 2020; Waiselfisz, 2016).

O medo da violência situa-se como uma constante na relação dos adolescentes e jovens com o bairro, dificultando a ocorrência de eventos na comunidade, levando os jovens a buscarem diversão em localidades mais centrais da cidade, tendo em vista que esses lugares oferecem, supostamente, mais tranquilidade para circulação. Assim, entende-se que o medo da violência relacionada ao bairro de origem, de certa forma, legitima a circulação em outros espaços. M. (14 anos) relata que costuma circular pela cidade com os amigos: "a gente vai para o cinema, shopping, aí fica andando à toa na rua".

Apesar do medo da violência vivenciado pelos moradores da comunidade do bairro Santa Cândida, os estudantes relataram que "o povo do bairro é muito festivo" e, vez ou outra, realizam alguma festividade no bairro. Tal realidade faz com que os moradores da região vivenciem diariamente o medo, mas também revela a resistência mediante as vulnerabilidades às quais estão expostos.

Desse modo, torna-se válido trazer à tona a ideia de território usado, abordada por Santos (2009), segundo a qual o território não se limita a um conjunto de sistemas de elementos superpostos, devendo ser analisado levando-se em consideração o uso que dele é feito, isto é, o território acrescido da identidade. Assim, conforme ressaltam Lanna e Calais (2020), para se sentir pertencente a um espaço, é necessário mais do que apenas nele residir, é necessário utilizá-lo, apropriá-lo, fazendo dessa ocupação uma forma de construção de possibilidades.

Eixo 2: lugar/circulação/território

Em relação ao segundo eixo Lugar/Circulação/Território, os participantes atribuíram os seguintes sentidos: a presença, ou não, de infraestrutura na comunidade no dia a dia dos moradores; a circulação por territórios vizinhos ao bairro; a circulação pela cidade de Juiz de Fora como um todo; o território do bairro Santa Cândida como produtor de identidade dos jovens; e, por fim, a moradia, reconhecida na pesquisa como "casa".

Cabe localizar que a discussão sobre circulação remete também à compreensão de materialidades que (in)viabilizam o acesso à cidade, assim como as configurações de infraestrutura dos bairros. Tal pontuação se relaciona, portanto, às condições históricas de pobreza produzidas em território brasileiro, que nos leva a compreender a pobreza como um fenômeno complexo e multidimensional. Na literatura, não há consenso entre autores acerca da definição de pobreza, assim como das medidas necessárias para enfrentá-la. O que temos disponíveis são tentativas de aproximação ao tema e à problemática, que estão sendo constantemente reinterpretadas. A pobreza não é um fenômeno natural e imutável; ao contrário disso, a população pobre sempre ocupou um lugar na história, que varia de acordo com os jogos de poder e interesses vigentes (Accorssi, Scarparo & Guareschi, 2012).

Assim, sobre a presença ou não de infraestrutura no bairro, foi possível observar nos relatos que os estudantes têm o desejo de melhoria das condições. Questionados sobre o que mudariam em seu bairro, os participantes citaram a infraestrutura. De acordo com a fala de E. (14 anos), pode-se constatar a afirmativa supracitada: "ah, a estrutura. Arrumar os buracos, né? Deixar o bairro bonitinho, já que é para arrumar". Em conformidade com a fala anterior, P. (15 anos), relata que, se pudesse, arrumaria a praça do bairro: "[...] uma praça que não tivesse destruída e não tivesse violência".

No que se refere ao segundo sentido, foi possível observar que a circulação dos estudantes participantes da pesquisa, por territórios vizinhos ao bairro Santa Cândida, é marcada pela violência e pelo medo, já que esses territórios são considerados rivais ao Santa Cândida, como relata E. (14 anos), "se a gente falar 'sou do Santa Cândida', eles já vão pensar 'vamos eliminar todo mundo'". Dando sequência à fala anterior, L. (13 anos) completa: "[...] é, você não vai sair gritando 'sou do Santa Cândida' no meio da rua".

Os elementos do mapa da violência do ano de 2014, intitulado Os Jovens do Brasil, em concordância com a afirmativa anterior, apresentam uma identidade para esse jovem em risco: negro, do sexo masculino, morador da periferia e/ou áreas metropolitanas dos centros das cidades. Assim, os altos índices de mortalidade preocupam, pois já configuram um problema de saúde pública (Waiselfisz, 2014).

Na fala a seguir, é possível observar que a rivalidade entre os bairros interfere também no acesso dos moradores aos serviços prestados por pessoas de bairros ditos rivais. Como diz L (13 anos), "isso já aconteceu comigo, eu fui pedir um lanche pelo celular, e eu acho que era ali do Vitorino, minha mãe falou 'é aqui no Santa Cândida', de repente a mulher começou a gaguejar [...]". O bairro citado (Vitorino Braga) é considerado rival do bairro Santa Cândida.

Ainda sobre o presente eixo, o conceito de circulação ganha um novo sentido. Se, por um lado, na circulação pelos bairros vizinhos (rivais), o medo se faz presente, por outro, existe a possibilidade de essa circulação ocorrer nos territórios centrais da cidade de Juiz de Fora, ou seja, o bairro central se apresenta como um local onde não é necessário andar com medo de ser identificado como morador do Santa Cândida. Esse sentimento de liberdade e tranquilidade pode ser identificado na fala de E. (14 anos): "por isso eu acho que todo mundo prefere ir para o centro, no centro é um monte de gente de diferentes lugares [...]. O Centro é tipo centro, não é bairro, é Centro. Não é um lugar seu, é de todo mundo. Centro é lugar público, é de todo mundo. Pronto, acabou!". Nesse ponto, ao bairro "centro" é designada certa neutralidade, ou seja, onde as identidades territoriais estariam supostamente neutralizadas.

Apesar da identificação de neutralidade relacionada ao centro da cidade na narrativa acima, Lanna e Calais (2020) apontam uma relação dialética de apropriação sobre o centro da cidade em estudo anteriormente realizado. As autoras salientam que os jovens vivenciam distintas experiencias de circulação, compondo uma díade de sentido "centro-cidade", com uma demarcada divisão entre os bairros situados na periferia e aquele bairro nomeado como Centro, mas também identificado como "a cidade". Vale destacar, que no que se refere à cidade de Juiz de Fora (MG), o bairro central é demarcado por atravessamentos territoriais e de classe que compõem divisões sensíveis e desiguais de circulação de diferentes públicos.

Contudo, retomando a dimensão da violência relatada pelos jovens entrevistados, compreende-se que esta representa uma situação que impõe limites à vivência da cidade. A violência vai funcionar, portanto, como prática de exclusão e segregação, a partir do momento em que ocasiona a negação do uso da cidade e limita o exercício da cidadania por parte de uma parcela da população. No entanto, vale a reflexão de que talvez existam outros conflitos para essa vivência do espaço urbano para além do fator "violência", por exemplo, o entendimento desses jovens sobre suas possibilidades de apropriação do espaço. Como ressaltam Lanna e Calais (2020, p. 157), "A cidade não é apresentada a esses jovens como um território de possibilidades, como um espaço que também é deles. Esses jovens parecem não compreender a cidade como um espaço onde eles podem se colocar e afirmar sua presença".

Assim, essa circulação é marcada por diferenças, as quais são percebidas e identificadas pelos próprios participantes da pesquisa, principalmente no que se refere ao cuidado e preservação existentes com os bairros das regiões mais centrais. Nesse sentido, E. (14 anos) destaca uma diferença estética que nos remete a uma divisão do território marcada pela separação de classes: "O que mais muda geralmente é o cuidado, tipo de preservar as coisas. Por exemplo, a pracinha do Independência é toda cuidadinha [...], é coisa de gente que tem mais condição financeira que foi aglomerando ali". Cabe ressaltar que a praça citada na entrevista é considerada uma "área nobre" situada na cidade de Juiz de Fora.

Nesse sentido, a exclusão vai muito além da questão da renda, incluindo elementos estéticos na constituição de territorialidades. Segundo Santos (2011), no Brasil, o acesso aos bens e serviços essenciais, públicos e até mesmo privados, é tão diferencial e contrastante que uma grande maioria de brasileiros, no campo e na cidade, acaba por ser privada desses bens e serviços. Portanto, há desigualdades sociais que são, em primeiro lugar, desigualdades territoriais, porque derivam do lugar onde o indivíduo encontra-se localizado. O cidadão é o indivíduo num lugar e, portanto, seu tratamento não pode ser alheio às realidades territoriais. Entretanto, vale salientar que compreender a pobreza como um fenômeno amplo, não o reduzindo ao nível de acesso a bens e serviços e às questões de renda, não exclui o entendimento de que o não acesso a tais bens e serviços complexifica ainda mais a situação de pobreza.

Eixo 3: violência

Um dos eixos levantados pela análise e que tem relevância significativa é o de violência, visto que o tema aparece de forma frequente, preocupante e apresentando uma realidade já naturalizada pela juventude que mora na periferia. Foram encontrados seis sentidos no atual eixo, sendo eles: Armas de fogo; Gangues e Território; Violência e Tráfico/Drogas; Segurança e Policiamento; Medo; e Tipos de violência (física, verbal, contra a mulher).

O primeiro sentido que aparece é "Armas de fogo". Podemos constatar a partir dele que a violência muitas vezes vem atrelada ao uso de armas de fogo ou armas brancas; situação que gera condições de vulnerabilidade e perigo para os jovens participantes da pesquisa, que em algum momento tiveram suas vidas marcadas pela violência. O/a jovem participante E. (14 anos) diz: "Já teve dia da gente não poder sair da escola porque eles prenderam a gente dentro da escola porque tava dando tiro aqui, [...] eles não olham isso. Se tem criança. Você pode tá no lugar errado, na hora errada". O/a participante completa dizendo: "Agora deu uma acalmada. Mas já teve tanta coisa ali no nosso ponto final, já teve esfaqueamento, gente que foi abordado ali. A troca de tiro aqui é do nada, aí você fala: foguete ou tiro?".

A última edição do mapa da violência analisou os homicídios causados por armas de fogo, colocando em pauta os debates intensos formados pela promulgação do Estatuto do Desarmamento. Compreende-se que as políticas de desarmamento "frearam" o significativo aumento dos índices de mortalidade por armas de fogo, projetados para os próximos anos (Waiselfisz, 2016). Entretanto, sob a égide de um sólido discurso ideológico de armamento da população, que se intensifica depois das eleições presidenciais de 2018, o Estatuto do Desarmamento começou a sofrer investidas, ainda mais ferrenhas, com o propósito de flexibilizar o acesso à posse de arma de fogo pelos civis de modo geral. Nas ideias de Ricarte et al. (2020), essa flexibilização fomentaria o aumento dos índices de violência e criminalidade em todo o país, principalmente se norteando pela possibilidade do uso da arma em diversos contextos, banalizando as justificativas e até mesmo o próprio conceito de legítima defesa daqueles que fizessem o uso.

Mesmo assim, os resultados mostram um preocupante número de óbitos no Brasil, que entre os anos de 1980 até 2014 foram de 967.851 vítimas por armas de fogo, sendo que 830.420 dessas mortes foram com intenção de matar, ou seja, são caracterizadas como homicídios. De acordo com o perfil dos óbitos por homicídios, 94,4% das vítimas são do sexo masculino; entre eles, os jovens entre 15 e 29 anos representam 60% dos mortos, sendo que há também uma seletividade racial, considerando que a taxa de homicídios de brancos diminuiu entre 2003 e 2014, enquanto a da população negra mais que duplicou, ou seja, morrem 2,6 vezes mais negros que brancos vítimas de armas de fogo (Waiselfisz, 2016).

O segundo sentido, Gangues e Território, vem demonstrar a afirmação sobre a noção de rivalidade existente entre o bairro Santa Cândida com outros bairros, como sugere o relato a seguir de L. (13 anos): "tinha uns meninos que eram daqui, só que não fechava com os meninos daqui, fechava com os meninos lá do Vitorino e tals, aí tipo, eles ficavam nessa rixa com os meninos [...]". O mesmo participante relata uma experiência de uma amiga do bairro: "Eu tenho uma amiga também que ela não pode ir no São Benedito (bairro vizinho). São bairros rivais, você não pode falar de qual bairro você é". Dessa forma, fica evidenciado como as marcas e identidades construídas no território delimitam até onde os moradores, em especial a juventude, podem circular.

O terceiro sentido analisado pelo estudo foi "Violência e Tráfico/Drogas", o qual aponta para a forma como a droga e o tráfico circulam pelo bairro entre e por meio da juventude, compondo o cotidiano desses jovens desde muito cedo. Insta salientar que, pelas narrativas, evidenciou-se também a insegurança dos participantes em relação a tal problemática, como apontado por E. (14 anos): "a praça daqui do bairro fica uns meninos vendendo drogas. Às vezes a gente prefere se reunir em casa ou na cidade (centro), porque pelo menos lá é mais seguro". Logo, diante do exposto, é importante tecer algumas articulações entre juventudes e a "questão das drogas", principalmente o tráfico de drogas, que, devido à precarização do mundo do trabalho, se apresenta como uma opção, entre escolhas escassas, em alternativa ao trabalho dito legal. Se por um lado o "trabalho legal" exclui e é cada vez mais competitivo, o "trabalho ilegal" surge como um caminho possível rumo ao "sucesso financeiro" e ao consumismo, pois dribla as exigências do mercado formal e insere todas e todos na lógica do trabalho, ainda que de forma precária e marginal (Faria & Barros, 2011).

Outro sentido que surgiu durante as conversas com os estudantes, relaciona-se à Segurança e ao policiamento no Bairro Santa Cândida. Tal policiamento, no entanto, nem sempre está atrelado ao sentimento de segurança, como observa P. (15 anos): "Pra mim policial aqui no bairro não resolve nada. [...] Eu não me sinto seguro, não". Já para M. (14 anos), os policiais são omissos em seus compromissos, deixando que algumas atividades ilegais ocorram no bairro: "eles meio que param, olham, sabem onde que tá as coisas. Eles meio que não tomam atitude pra acabar com aquilo".

Pelo discurso dos jovens, foi possível notar que o policiamento no bairro, na maioria das vezes, está atrelado mais à violência do que à segurança. G. (14 anos) diz: "Nossa uma vez tava eu na rua. Tava eu, o R., J. e Y. A gente tava andando assim e aí passou a viatura e a gente olhou. A gente tava de boa, tava voltando da escola. De repente o policial saiu e apontou uma arma na cabeça do R.". Fica marcada, portanto, a intervenção não só de forma física, por meio das investidas policiais e conflitos por territórios rivais, mas também de forma simbólica, com a produção/manutenção de discursos e práticas violentas.

Conforme destaca Piscitelli (2008), o uso da categoria "interseccionalidades" deposita um sentido qualitativo a essa realidade, pela qual categorias como a pobreza, a negritude, a juventude e a localização geográfica e, uma série de outras combinações, articulam-se ganhando novos contornos e relevâncias em contextos específicos, históricos e políticos. Nesse cruzamento dos marcadores sociais da diferença, podem ser reproduzidas distintas formas de opressão, mas também podem surgir diferentes formas de resistência de pessoas ou grupos, considerando igualmente a possibilidade de resistência e agência que as práticas interseccionais podem produzir.

Como apontado, existem elementos que irão compor as vivências diárias de cada indivíduo: classe, território, raça, geração e escolaridade, são alguns dos exemplos dos chamados "marcadores sociais da diferença", os quais, compreendidos como construção histórica e social, irão se articular, produzindo maior ou menor inclusão/exclusão. Como afirma Ferreira (2014), um indivíduo localizado em relações sociais desiguais deve ser pensado em sua totalidade social, ou seja, por meio das diferentes formas de opressão que ele pode vir a experimentar e que irão se cruzar, levantando o conceito de interseccionalidade. De modo geral, pode-se dizer que a interseccionalidade refere-se às especificidades resultantes do cruzamento dos marcadores da diferença, apontando a interdependência e a complexidade das contingências que abrangem os marcadores sociais.

As situações anteriormente identificadas pelos jovens levam ao entendimento de outro sentido atrelado às falas desses(as) jovens: o medo. Sobre isso, P. (15 anos) ressalta o receio existente em transitar pela rua até tarde da noite, relembrando uma situação em que o ônibus em que estava foi apedrejado por moradores de um bairro próximo ao seu. Segundo o jovem: "Igual esse negócio de horário que tem que estar em casa certa hora, a gente fica com medo, igual quando eu tava vindo da praça CEU e estava passando ali pelo Santos Anjos, do nada começaram a tacar pedra no ônibus".

As narrativas levam ao entendimento de que essa juventude é marcada pela violência em diversos âmbitos. Somado a isso, existe também a violência cotidiana que esses jovens experienciam, direta ou indiretamente. Durante as conversas, os jovens discutiram acerca da temática da violência, apontando para a existência de "tipos" de violência, a qual foi associada a agressões físicas ou verbais, chegando assim no último sentido deste eixo, conforme relata G. (14 anos) caracterizando o que é agressão: "Agressão pode ser tipo eu te dar um soco ou eu te ofender". Nesse momento, os jovens começaram a discutir sobre o que caracteriza a violência verbal. Assim, E. (14 anos) questiona: "Destratar alguém também entra como violência verbal, né?". G. (14 anos) ainda aponta as consequências que a violência verbal poderia causar em quem a vivencia, dizendo: "se alguém te ofende de alguma forma, isso interfere na forma que você se vê e na quantidade de confiança que você tem em si mesmo, dependendo da ofensa". Além da violência física e da violência verbal, os jovens ainda destacaram a violência contra a mulher, que, de acordo com eles, ocorre pelo fato de a mulher ser mais fraca fisicamente e ser subjugada pelos homens, como afirma E. (14 anos): "Não é só por conta de tipo da sexualidade também, sofre muito em casa também porque o homem acha que é melhor e tal".

Eixo 4: escola

Com relação ao Eixo Escola, o sentido que surge está ligado aos projetos desenvolvidos, que sinalizam a escola como uma instituição de referência, que está sempre trazendo novos projetos para os alunos, como relata E. (14 anos): "ah, ela [se referindo à escola] faz muitos projetos com a gente. Sempre tem alguma coisa nova. Não sei. Eles dão uma liberdade diferente pra gente poder se relacionar e tal. Tipo, eu não conheço nenhuma escola que tenha rádio no recreio". Outro participante nomeia um dos projetos existentes, M. (14 anos): "Coisas tipo o vozes da rua [...]. Agora começou o show de talentos". Complementando a frase, E. (14 anos) sinaliza outro projeto de bastante importância: "tem o Slam Poético".

A função socializadora e de promoção de uma educação para a cidadania é destacada pelos jovens estudantes, demarcando uma função protetiva relevante no cenário territorial em questão. Apesar de não ser o foco central do presente artigo, cabe ressaltar que na realidade investigada a gestão da escola exercia papel fundamental para a construção de práticas de conscientização e fortalecimento das estratégias de enfrentamento à violência. Durante os momentos de pesquisa de campo, foi possível observar e ouvir relatos de eventos e projetos que mantinham a proposta de problematização das questões sociais e investimento no potencial da juventude para possíveis mudanças em seus contextos. Portanto, de acordo com as análises, a escola aparece como um estratégico lugar na vida dos jovens do bairro Santa Cândida, pois é por intermédio dela que projetos que buscam viabilizar oportunidades surgem e se fortalecem; por exemplo, o cursinho popular, que funciona como reforço para os estudantes interessados em ingressar em Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (Ifet), assim como outras articulações que promovem autonomia para os estudantes.

Eixo 5: sentido de união

Neste eixo, foram nomeados dois sentidos, o de união entre os estudantes e união entre os moradores do bairro Santa Cândida. No primeiro sentido, os jovens explicam que a escola e os estudantes são muito unidos e têm vínculos afetivos poderosos, como se constata nas palavras de E. (14 anos): "acho que mais a escola. Ela faz todo mundo se sentir da mesma família. Tipo... eu cheguei aqui o ano passado e já me sinto da família".

Já no segundo sentido, os jovens relatam como a comunidade é unida e tem esperança de que o bairro possa melhorar e se tornar um lugar melhor para se morar, como aponta o participante E. (14 anos): "Acho ponto positivo, é que tem lugares que eu vou e não vejo essa união da comunidade e a esperança de que o bairro pode ser melhor, sabe". P. (15 anos) finaliza dizendo sobre a força de vontade dos moradores em transformar a comunidade: "[...] Eu conheço gente que luta para ter um bairro melhor".

Os jovens dizem que na comunidade todo mundo conhece todo mundo, e independentemente de quem seja, as pessoas são muito receptivas. Na visão de L. (13 anos): "[...] eu passo com minha vó, com meu vô, minha bisavó e tals, e tipo, tem pessoas que eu realmente não conheço, aí do nada fala, 'oi fulano'. Eu tipo, quem que é esse povo? Aí realmente todo mundo conhece todo mundo, entendeu?". Outro/outra participante relata uma situação parecida com a anterior, E. (14 anos): "[...] então não conhecia muita gente do Santa Cândida, porque eu estudava no Centro, aí tipo você passa e fica todo mundo: 'Oi, bom dia!', e você nunca viu aquela pessoa na vida, um bom-dia muda o seu dia todo".

O sentido de comunidade é expresso, portanto, no modo como são relatadas as relações entre moradores do bairro, sendo um elemento significativo para práticas de fortalecimento da unidade comunitária, diante das violências estruturais a que são expostos. Essa noção comunitária é valiosa, pois, de acordo com Svartman e Galeão (2016), indicam formas de operação de resistências a processos de opressão, assim como da possibilidade de organização para lutar pela garantia de direitos, entre eles, o direito à cidade.

Para Castro e Bicalho (2013, p. 116), "a construção e o estabelecimento de um território espacial é também a construção contínua de uma rede de vetores informacionais, tecnológicos, históricos e sociais". Nesse sentido, entrelaça-se essa construção de territorialidades à produção de subjetividades, compostas e marcadas pelas articulações "que emergem no processo social de território e de rede".

Assim sendo, partir das análises realizadas, constata-se que o território exerce grande impacto na construção de subjetividades, principalmente no que tange às juventudes. Demarca-se, portanto, a argumentação de que para se analisar a formação da subjetividade é necessário pensar os enredamentos sociais, históricos e políticos que essa formação envolve e os diversos conflitos que constituem essa construção.

 

Considerações finais

A pesquisa indicou que o território funciona como produtor de identidades, pois é também a partir dele que os indivíduos identificam seus pares, rivais - como foi utilizado na linguagem dos próprios jovens da pesquisa - e a si mesmos. Logo, é a partir dessa identidade que se dará a circulação pelos espaços da cidade, revelando suas possibilidades e os seus limites. Em diversos momentos das entrevistas, os jovens denunciam que o simples ato de anunciar o nome do bairro ao qual pertencem pode lhes configurar um tratamento diferenciado dos demais em determinados espaços. Em casos mais extremos, custando-lhes até mesmo a própria vida. Exemplo disso são as rixas entre bairros considerados rivais, muito comuns na cidade em que a pesquisa foi realizada. Situações como essas forjam itinerários para os jovens envolvidos, que acabam por não ocuparem todo o território da cidade.

A violência associada ao tráfico de drogas foi outra dimensão discutida pelos participantes, que apontaram esse fator como dificultador da vida dos moradores do bairro Santa Cândida, que, em alguns momentos, se sentem aprisionados e intimidados para circularem pelo próprio território. A situação fica ainda mais complexa com as ações policiais no bairro. De acordo com os relatos obtidos, a presença dos policiais traz ainda mais medo e intensifica o sentimento de insegurança. Com ações truculentas e seletivas, o policiamento acaba por cumprir um papel inverso ao de oferecer segurança para a população.

No que tange à violência, de acordo com as narrativas, notou-se que as situações violentas são vivenciadas no cotidiano desses jovens, diminuindo a sensação de estranhamento e desdobrando-se em certa naturalização destas. Esse cenário torna-se preocupante, pois, a partir do momento em que a violência se torna familiar/natural, as chances de se posicionarem criticamente em relação à problemática diminuem. Contudo, eles compreendem as dificuldades históricas instaladas a partir de dinâmicas racistas, de criminalização da pobreza, das hierarquias de classes, entre outras. Cabe reafirmar também que esta pesquisa não é conivente com ideais deterministas, ou seja, que o território irá engessar a forma como os indivíduos que nele habitam irão se desenvolver e relacionar com os demais, mas sim comunga dos pensamentos que tais realidades, sejam elas quais forem, marcarão significativamente esses desdobramentos e irão gerar afetações nos modos de existência.

A pesquisa destaca, sobretudo, a necessidade de investimento público em infraestrutura e opções de lazer nos bairros de periferia. Como já levantado pelos estudantes que fizeram parte do estudo, percebe-se notória diferença entre as áreas de lazer dos bairros centrais para as áreas destinadas a eles no próprio bairro. Tal demarcação de diferença evidente, reifica as desigualdades nas ofertas de serviços e bens públicos.

Reforça-se, por fim, que as relações de classe social, território, raça, gênero, geração, entre outros marcadores, irão se intercruzar e perpassar as vivências diárias das juventudes. Tal relação desdobra-se em sistemas distintos que se articulam gerando práticas e discursos de poder e violência específicos que vão afetar e produzir diferentes modos de existência.

A partir do recorte apresentado, cabe apontar que muitos dos aspectos levantados fazem parte de uma realidade compartilhada por muitos jovens em todo o território brasileiro, que vivenciam em seus cotidianos situações de violência e negligência do Estado na oferta de políticas públicas que transformem tais situações, mas que, ainda assim, se articulam como forma de resistência/sobrevivência.

 

Referências

Abramo, H. W., Venturi, G., & Branco, P. P. M. (2005). Retratos da juventude brasileira: análises de uma pesquisa nacional. Instituto Cidadania.

Accorssi, A., Scarparo, H., & Guareschi, P. (2012). A naturalização da pobreza: reflexões sobre a formação do pensamento social. Psicologia & Sociedade, 24(3), 536-546. doi: 10.1590/S0102-71822012000300007.         [ Links ]

Alves, P. P. et al. (2020). Atlas da violência 2020. Retirado em 10 dezembro, 2020, em http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/10214.

Alvarez, I. P. (2018). A produção e reprodução da cidade como negócio e segregação. In A. F. Carlos; D. Volochko & I. O. Alvarez. (Eds.). A cidade como negócio (pp. 65-80). São Paulo: Contexto.         [ Links ]

Brandão, Z. (2000). Entre questionários e entrevistas. In M. A. Nogueira, G. Romanelli & N. Zago (Orgs.). Família & escola (pp. 171-183). Rio de Janeiro: Vozes.         [ Links ]

Cassab, C. (2009). Construir utopias: jovem, cidade e política. Tese de doutorado em Geografia, Universidade federal Fluminense, Rio de Janeiro, Niterói.         [ Links ]

Castro, A. C. D., & Bicalho, P. P. G. D. (2013). Juventude, território, Psicologia e política: intervenções e práticas possíveis. Psicologia: Ciência e Profissão, 33(n. spe), 112-123. Recuperado em 10 dezembro, 2020, de https://www.scielo.br/pdf/pcp/v33nspe/v33speca12.pdf.         [ Links ]

Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, 10(1), 171-188. doi: 10.1590/S0104-026X2002000100011.         [ Links ]

Dimenstein, M., Zamora, M. H., & Vilhena, J. D. (2004). Da vida dos jovens nas favelas cariocas: drogas, violência e confinamento. Revista do Departamento de Psicologia/UFF, 16(1), 23-40. Recuperado em 10 dezembro, 2020, de https://www.researchgate.net/publication/268924221.         [ Links ]

Faria, A. A. C., & Barros, V. D. A. (2011). Tráfico de drogas: uma opção entre escolhas escassas. Psicologia & sociedade, 23(3), 536-544. doi: 10.1590/S0102-71822011000300011.         [ Links ]

Ferreira, G. G. (2014). Violência, intersecionalidades e seletividade penal na experiência de travestis presas. Temporalis, 14(27), 99-117. Recuperado em 10 dezembro, 2020, de https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=5017154        [ Links ]

Harvey, D. (2014). Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Johan, E. R., & Felippi, Â. C. T. (2018). Identidade territorial e juventude: a percepção dos jovens do Vale do Rio Pardo/RS sobre o território, por meio da fotografia. Colóquio, 15(1), 53-69. doi: 10.26767/coloquio.v15i1.767.         [ Links ]

Lanna, P. A. A. L., & Calais, L. B. (2020). Cidades, territórios e juventudes: práticas e sentidos sobre pertencimento, juventude e periferia. Revista Psicologia Política, 20(48), 402-416. Recuperado em 10 dezembro, 2020, de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rpp/v20n48/v20n48a11.pdf.         [ Links ]

Lefebvre, H. (2006). A produção do espaço (D. B. Pereira & S. Martins, Trad.). Do original: La production de l'espace (4a ed.). Paris: Éditions Anthropos.         [ Links ]

Piscitelli, A. (2008). Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e cultura, 11(2), 263-274. doi: 10.5216/sec.v11i2.5247.         [ Links ]

Ricarte, J. P. P., Meneses, H. R. F., Almeida, J. C., Belchior, S. M. S., Belchior Pires, M. J. S., & Lavor, L. H. (2020). A proposta de reformulação do estatuto do desarmamento e a atuação de alguns atores coletivos. Informativo Técnico do Semiárido, 14(1), 33-35. Recuperado em 10 dezembro, 2020, de https://editoraverde.org/gvaa.com.br/revista/index.php/INTESA/article/view/8096.         [ Links ]

Santos, M. (2009). Pobreza urbana. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo.         [ Links ]

Santos, M. (2011). O espaço da cidadania e outras reflexões. In E. Silva, G. R. Neves & L. B. Martins (Eds.). Porto Alegre: Fundação Ulysses Guimarães.

Souza, M. J. L. (1995). O território: sobre o espaço e poder, autonomia e desenvolvimento. In I. E. Castro (Ed.). Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.         [ Links ]

Spink, M. J. (2010). Linguagem e produção de sentidos no cotidiano. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais. doi: 10.7476/9788579820465.         [ Links ]

Spink, M. J. (2013). Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais.         [ Links ]

Sposito, M. E. B. (1988). Capitalismo e urbanização. São Paulo: Contexto.         [ Links ]

Svartman, B. P., & Galeão-Silva, L. G. (2016). Comunidade e resistência à humilhação social: desafios para a Psicologia Social Comunitária. Revista Colombiana de Psicología, 25(2), 331-349. doi: 10.15446/rcp.v25n2.51980.         [ Links ]

Verás, M. P. (2006). Sociedade urbana: desigualdade e exclusão sociais. Caderno CRH, 16(38). doi: 10.9771/ccrh.v16i38.18616.         [ Links ]

Waiselfisz, J. J. (2014). Os jovens do Brasil: mapa da violência 2014. Brasília, DF: Seppir. Recuperado em 10 dezembro, 2020, de https://bibliotecadigital.mdh.gov.br/jspui/handle/192/80.         [ Links ]

Waiselfisz, J. J. (2016). Mapa da violência 2016: homicídios por armas de fogo. Secretaria Nacional de Juventude. Recuperado em 10 dezembro, 2020, de http://flacso.org.br/files/2016/08/Mapa2016_armas_web-1.pdf.

 

 

Recebido em: 25/1/2019
Aprovado em: 12/12/2020

 

 

1 Parecer n. 1.908.098.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons