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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.3 São João del-Rei jul./set. 2021
Da Psicologia como profissão feminina à Psicologia feminista: criando novos modos e novas epistemologias a partir do feminismo negro
From Psychology as a Feminine Profession to Feminist Psychology: Creating New Modes and New Epistemologies from Black Feminism
De la Psicología como profesión femenina a la Psicología feminista: creando nuevos modos y nuevas epistemologías del feminismo negro
Luiza Rodrigues de OliveiraI; Shayla Calil de BarrosII; Abrahão de Oliveira SantosIII; William Pereira PennaIV; Livia Maria Affonso da VeigaV
IProfessora do Departamento de Psicologia e dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia e de Pós-Graduação em Ensino de Ciências da Natureza da Universidade Federal Fluminense (UFF). luizaoliveira@id.uff.br
IIPsicóloga Formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). shaylacalil@id.uff.br
IIIProfessor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). abrahaosantos@hotmail.com
IVPsicólogo. Mestre e Doutorando em Psicologia pelo do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). willpennah@gmail.com
VMestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Doutoranda em Psicologia pelo do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFF. liviaffveiga36@gmail.com
RESUMO
Este artigo versa sobre dados que afirmam a Psicologia como uma profissão feminina. Essa constatação é continuamente negligenciada e produtora de estereotipias que associam "comportamentos femininos" à prática da Psicologia. A fim de fazer uma análise comparativa, trazendo as marcas do tempo, acessamos dados apresentados em sete estudos dos anos 1970 até os dias atuais. Encontramos poucas análises que interpretam o dado de que 89% dos profissionais em Psicologia são mulheres. Alguns trabalhos se propõem interpretar esse dado, mas o fazem pela divisão sexual do trabalho, enfatizando a luta das mulheres pelo direito à igualdade. Este artigo, no entanto, propõe uma leitura da Psicologia como profissão feminina, a partir da luta e da produção de saber feminista negro radical.
Palavras-chave: Psicologia. Feminismo Negro. Epistemologias.
ABSTRACT
This article deals with data that affirm Psychology as a female profession. This finding is continually neglected and produces stereotypes that associate "female behavior" with the practice of psychology. In order to make a comparative analysis bearing the marks of time, we accessed data presented in seven studies from the 1970s to the present day. We found few analyzes that interpret the data that 89% of professionals in psychology are women. Some works propose to interpret this data, but do so by the sexual division of labor, emphasizing women's struggle for the right to equality. This article, however, proposes a reading of psychology as a female profession, based on the struggle and production of radical black feminist knowledge.
Keywords: Psychology. Black Feminism. Epistemologies.
RESUMEN
Este artículo trata sobre datos que afirman que la psicología es una profesión femenina. Este hallazgo se descuida continuamente y produce estereotipos que asocian el "comportamiento femenino" con la práctica de la psicología. Para hacer un análisis comparativo con las marcas del tiempo, accedimos a los datos presentados en siete estudios desde la década de 1970 hasta la actualidad. Encontramos pocos análisis que interpretan los datos de que el 89% de los profesionales en psicología son mujeres. Algunos trabajos proponen interpretar estos datos, pero lo hacen por la división sexual del trabajo, enfatizando la lucha de las mujeres por el derecho a la igualdad. Este artículo, sin embargo, propone una lectura de la psicología como una profesión femenina, basada en la lucha y la producción del conocimiento feminista negro radical.
Palabras clave: Psicología. Feminismo Negro. Epistemologías.
Introdução
Insistentemente ouvimos que a Psicologia é uma profissão feminina. Em uma breve revisão de literatura, conseguimos identificar dados que confirmam essa fala, culminando na informação que 89% dos profissionais em Psicologia são mulheres (Lhullier, Roslindo, & Moreira, 2013). Essa constatação é continuamente negligenciada e produtora de estereótipos que associam "comportamentos femininos" à prática da Psicologia.
Muitas psicólogas ouvem, em relação a sua escolha profissional e a sua prática, falas do tipo: "como você é maternal", "só poderia ser psicóloga... é tão calminha", "logo vi que era psicóloga, pois é tão acolhedora", entre muitas outras. São formas sexistas com que sociedades que têm predomínio do patriarcado se expressam, caso dessa em que vivemos. "Temos sido socializados [...] para aceitar pensamentos e ações sexistas" (hooks, 2018, p. 13).
O estudo citado (Lhullier et al., 2013) foi encomendado pelo Conselho Federal de Psicologia, a fim de "dar conta de uma dimensão subjetiva da profissão perpassando as questões sobre o feminino dentro da categoria" (Brito, 2013, p. 7), tem foco em ações que objetivam a modificação do sistema, pelas instituições, com o objetivo de colaborar para que as mulheres tenham mais direitos. Encontramos entre as várias de suas finalidades, tal como expresso no documento de divulgação, "fomentar políticas públicas que reformulem a divisão sexual do trabalho, visando superar a desigualdade do uso do tempo destinado pelas mulheres às tarefas domésticas" (Brito, 2013, p. 8). Ao ouvir a feminista negra americana bell hooks (2018, p. 21), aprendemos que "o pensamento feminista reformista, focado primordialmente na igualdade em relação aos homens no mercado de trabalho, ofuscou as origens radicais do feminismo contemporâneo que pedia reforma e reestruturação geral da sociedade". Não se trata de negar as ações que garantam mais direitos às mulheres, pois isso é fundamental na luta feminista; no entanto, é preciso apostar em racionalidades e práticas de transformação social do sistema do patriarcado. Para tanto, não é possível, em nosso país, em que a maioria da população - 54,9%, - se autodeclara negra (parda, 46,7%; preta, 8,02%) (Saraiva, 2017), estabelecer as análises sobre pensamentos e comportamentos sexistas apenas na interseção entre gênero e classe. É preciso trazer à cena a questão racial, discutindo os dados que aqui serão apresentados na interseccionalidade entre raça, gênero e classe.
Dados do estudo do Conselho Federal de Psicologia (Lhullier et al., 2013), associados aos dados do IBGE (Saraiva, 2017) sobre a população brasileira, nos ajudarão a afirmar essa interseccionalidade mais adiante. Fazemos, porém, já aqui no início do nosso texto, um alerta: não tomamos interseccionalidade como um somatório de "categorias" ou "recortes", muito menos como uma associação baseada em princípios do humanismo, mas sim como constituição subjetiva (Collins, 2019a), o que nos permite afirmar que, neste país de população negra e da produção do racismo e do embranquecimento como política de estado (Pereira, 2013), as análises começam pela raça (Collins, 2019b).
É com essa perspectiva da luta e da produção de saber feminista negra radical que leremos e discutiremos o dado com o qual iniciamos este artigo: 89% dos profissionais em Psicologia são mulheres (Lhullier et al., 2013). A esse dado, acrescentamos outro, do mesmo estudo: "Na pesquisa atual, 67% das entrevistadas afirmaram ser de raça ou cor branca e 25% se declararam pardas. O percentual das que se declararam "pretas", "amarelas" ou indígenas foi muito pequeno" (Lhullier et al., 2013, p. 6).
Psicologia - profissão feminina: os números
A fim de fazer uma análise comparativa trazendo as marcas do tempo, acessamos dados apresentados em sete estudos entre os anos de 1970 até os dias atuais (Mello, 1975; Rosemberg, 1984; Conselho Federal de Psicologia [CFP], 1988; Bastos & Gomide, 1989; Castro & Yamamoto, 1998; Lhullier et al., 2013; Figueredo & Cruz, 2017). O estudo realizado por Mello (1975) é o primeiro de que se tem notícia, cerca de uma década após a regulamentação da carreira de Psicologia no Brasil, e tratou do estado de São Paulo, que, na época, tinha três cursos de formação na área, e os números já eram representativos, no que tange ao número de mulheres no exercício da profissão, 82,9%.
No artigo de Fulvia Rosemberg (1984), encontramos, a partir de dados de uma pesquisa realizada pelo Sindicato de Psicólogos do Estado de São Paulo para o Dieese, a informação de que, entre 12.553 psicólogas e psicólogos registrados no Conselho Regional de Psicologia da VI Região, 88% eram mulheres. Esse índice é superior a 80% desde os anos 1970. Rosemberg (1984) diz ainda que o número de homens no ensino superior na década de 1970 era maior que o número de mulheres, o qual correspondia a apenas 36%. Já em 1982, as mulheres alcançavam 52% do público do ensino superior, mas, ao contrário do que se podia esperar, o crescimento desse número não foi uniforme para todas as profissões. Além disso, as mulheres passaram a ocupar as profissões consideradas femininas. Assim, conforme nos mostra o artigo de 1984, a abertura do ensino superior para as mulheres somente mantém a dicotomização. Pesquisa de alcance nacional, desenvolvida e aplicada pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP, 1988), anuncia, tal como a análise de 1975, que a psicologia seguia tendo mulheres como maioria no exercício da profissão, 86,6% como marca.
Em cinco décadas, esses dados permanecem sem grades alterações, o que podemos identificar nos artigos de Castro e Yamamoto (1998), Figueredo e Cruz (2017) e no texto que originou este artigo, o documento do CFP (Lhullier et al., 2013), publicado em 2013, quase 25 anos depois de um estudo que visava a entender, em âmbito nacional, quem era o profissional de Psicologia no Brasil (Bastos & Gomide, 1989, pp. 7-8).
O predomínio absoluto das mulheres, com percentuais que vão de 81,9 (CRP-04) a 90,4% (BA e SE). Esse dado é importante para a compreensão de vários aspectos ligados ao exercício profissional, como por exemplo, o entendimento das mulheres do que seja uma profissão complementar a sua atividade principal - o casamento, com inclusive perda de profissionais graduados, a que nos referimos anteriormente, como vários trabalhos já apontaram anteriormente.
Entretanto, os estudos citados, exceto o de Fulvia Rosemberg (1984), não analisam o porquê do predomínio das mulheres na Psicologia E mesmo o citado (Rosemberg, 1984), que examina o campo pela divisão sexual do trabalho, faz isso a partir da apresentação e da análise de dados que tem foco na igualdade em relação aos homens no mercado de trabalho. Não podemos deixar de afirmar a importância desse tipo de análise, pois trata do direito às mulheres, porém é preciso avançar e apostar na transformação social pelo ataque ao sistema do patriarcado. Isso requer aporte em movimentos feministas mais radicais, como o movimento feminista negro. É esse anúncio que faremos no próximo item deste artigo.
No caso do estudo feito pelo CFP (Lhullier et al., 2013), sendo um dos poucos que se propõem a identificar quem são os profissionais de Psicologia em âmbito nacional, havia números que poderiam ter sido pelo menos interpretados à luz da análise da divisão sexual do trabalho já feita, a partir de dados restritos ao estado de São Paulo, por Fulvia Rosemberg (1984). Isso não aconteceu, a investigação trata de relatar números que levam à conclusão de que não houve alteração significativa na relação entre número de homens e mulheres no exercício da profissão no campo da Psicologia.
Em Castro e Yamamoto (1998), o máximo de análise que se apresenta é a conclusão de que o crescimento do número de cursos nas áreas das humanidades, com o aumento dos centros universitários nos anos de 1990 e sua disponibilidade para cursos considerados menos custosos, caso da Psicologia, fez aumentar as matrículas de mulheres. Porém, a possibilidade de analisar a associação da área das ciências humanas ao feminino sequer é levantada. Os números apresentados no artigo (Castro & Yamamoto, 1998) mostram a estrutura da sociedade patriarcal e o seu vínculo com a ciência, que oprimem e identificam certos padrões (Collins, 2019b).
Essa é a nossa opção: pensar a relação entre a desconfiança de que as humanidades não constituem formas válidas de produção de conhecimento diante das chamadas ciências da natureza e dos seus pressupostos de neutralidade e o maior número de mulheres nos cursos de graduação nas humanidades. É uma das máximas da sociedade patriarcal e machista: ciências da natureza, entendidas como ciências de verdade, não pertencem às mulheres.
Retomando o estudo de Lhullier et al. (2013), que, ao apresentar os dados de que 67% das psicólogas afirmam ser brancas e 25% se declararam pardas, com a fala de que "o percentual das que se declararam 'pretas', 'amarelas' ou indígenas foi muito pequeno" (Lhullier et al., 2013, p. 6), ainda podemos ler que:
Essa diferença não surpreende, pois a predominância de brancos sobre negros e pardos no ensino superior é amplamente reconhecida, tendo dado origem, inclusive, a políticas governamentais de acesso às universidades públicas que visam facilitar o acesso de estudantes negros ao ensino universitário [...]. O fato de não nos surpreendermos com a distribuição das psicólogas por raça/cor não significa uma naturalização ou uma aceitação. Ao contrário, entendemos que a baixa representatividade de mulheres negras e pardas na profissão constitui mais uma evidência da desigualdade de oportunidades e um obstáculo à abertura para a diversidade, um desafio que a Psicologia precisa enfrentar. (Lhullier et al., 2013, p. 7).
Entendemos que, tal como afirmamos na introdução deste artigo, não problematizar esses dados é não se perguntar a quem serve a Psicologia no Brasil, haja vista ser este um país de maioria de população negra, entre pretos e pardos. Em uma sociedade racista, machista e sexista, de que lado a Psicologia está? É desse questionamento que trataremos a partir da fala das feministas negras, pois, como nos diz Patricia Hill Collins (2019a, p. 405): "Ninguém que se dedica à produção acadêmica passa ao largo de ideias culturais e de sua localização nas opressões interseccionais de raça, gênero, classe, sexualidade e nação".
Novas epistemologias na Psicologia: interpelações do feminismo negro
Na contramão da maioria dos estudos até agora apresentados, temos o artigo de Figueredo e Cruz (2017), pois analisa a noção de profissão "feminina" presente na Psicologia, não apenas pelo acesso aos direitos, com base em uma crítica ao patriarcado.
No que concerne à visão da Psicologia como uma profissão '"feminina", sabemos que, na sociedade brasileira, determinadas profissões foram construídas culturalmente ligadas ao cuidado, a exemplo da enfermagem, serviço social e psicologia, como se tal procedimento e assistência fossem atribuição e função típica e exclusiva das mulheres. Guacira Louro (2003) destaca que, no campo da educação, também se faz presente essa associação, pois a entrada das mulheres no mundo do trabalho formal ocorreu no exercício do magistério, profissão que foi relacionada ao cuidado e à maternagem de crianças com o trabalho feminino 'autorizado', com uma concessão patriarcal, já que era visto como uma extensão da vida privada do lar. (Figueredo & Cruz, 2017, p. 804).
No entanto, é preciso escutar essa fala de Figueredo e Cruz, em que afirmam, como há pouco dissemos, a opção dos pesquisadores (Collins, 2019b), e no nosso caso, isso significa a interseccionalidade entre raça, gênero e classe, que fazemos entrar em cena pela voz de uma psicóloga negra brasileira: Edna Maria Santos Roland, que, em 1984, ao ser entrevistada para um editorial da Revista Ciência & Profissão, resolveu ouvir psicólogos negros para discutir a questão racial no contexto da vida profissional e afirmou:
Acho que o problema da discriminação do negro não seria resolvido se eliminássemos somente as questões econômica e social. A engrenagem da sociedade está montada para manter determinados grupos em certos lugares subalternos. Para pensarmos na possibilidade de mudança da posição social da população negra no Brasil, é preciso pensarmos em termos de mexer com tudo, de uma verdadeira revolução. Então, o racismo é uma prática ativa, não é apenas uma questão de preconceito, da questão subjetiva das atitudes, e sim práticas concretas que fazem com que determinados grupos permaneçam nos lugares subalternos. (Roland, 1984, pp. 13-14).
Sua fala nos faz dialogar com Beatriz Nascimento, importantíssima historiadora e intelectual negra brasileira, que afirma que a opressão da população negra não pode ser reduzida apenas à questão econômica, pois ela está estritamente relacionada com a perda da nossa humanidade: "o grande drama da gente, a grande tragédia, é justamente a perda da compreensão do nosso passado, a perda do contato com o outro, isso é fundamental" (M. B. Nascimento, 2018, p. 146). O lugar da exceção e o isolamento imposto levam a que tenhamos apenas algumas poucas pessoas negras em espaços majoritariamente brancos, o que pode ser extremamente perniciosos para a saúde dessas pessoas. Edna Roland (1984, pp. 13-14) segue colocando em análise essa dinâmica:
Muitas vezes as pessoas se espantam quando encontram negros em funções elevadas ou de chefia. Esse espanto reflete uma situação real, da ausência dos negros de funções que não sejam subalternos. O que deve ser questionado, fundamentalmente, é o porquê desta ausência. Tenho vivenciado essa situação. No meu primeiro dia de trabalho estávamos eu (33 anos) e uma assistente social (22 anos). Fomos apresentadas a uma médica do Centro de Saúde, e na seqüência da conversa a médica perguntou à jovem "você é a psicóloga?" Então na cabeça da médica, já houve a inversão, a outra deveria ser a psicóloga e eu, a assistente social, porque na rede de saúde, primeiro vem o médico, segundo o psicólogo e terceiro, o assistente social. Esta expectativa corresponde à hierarquia das profissões existentes na sociedade, tanto em termos das pessoas, como em termos de grupos étnicos e raciais. Acho que não se pode dizer que esta expectativa seja descabida, mas ela já expressa, de certa maneira, como as coisas estão organizadas na cabeça das pessoas, essa realidade externa-se.
A destituição do exercício da Psicologia que Edna Roland sofre em seu primeiro dia de trabalho aponta como é cruel a dinâmica racista. A hierarquia das profissões se cruza com a hierarquia racial e racista, de modo a aplacar a possibilidade de uma mulher negra estar em uma posição tida como superior à de uma mulher branca. Acessa desse aspecto, Lélia Gonzalez afirma que o racismo se constitui nessa neurose cultural brasileira, na qual o negro tem lugar de subserviência e a mulher negra, quando não está na ocupação de doméstica, mulata ou prostituta, ainda causa espanto (Gonzales, 2019, p. 76). Sabiamente, Roland (1984, pp. 13-14) discute essa dinâmica complexa:
Acho que não podemos resolver os preconceitos e a discriminação somando todas as diferenças e batendo tudo no liquidificador. Temos que lutar pelo direito de ser diferente, de ter outra forma de ser, outros modelos, outros padrões culturais e estéticos, outro corpo. Não é o fato de eu ser negra, que essa característica deva ser sempre mencionada como algo que se desvia do normal. É como se a condição humana - o ser humano universal - fosse dada pela característica da pessoa branca. A questão racial no Brasil, se comparada com a dos Estados Unidos, é uma coisa extremamente séria. A sociedade brasileira é considerada multiracial e a americana bi-racial; enquanto lá existe o critério de raça, aqui o critério é de classificação pela cor, e aí encontram-se dez mil tipos. Isto tornou-se um mecanismo de pulverização da população negra, do indivíduo não se identificar como tal, na medida que se tem uma sociedade com uma ideologia de branqueamento. O individuo coloca como ideal, como objetivo social, o objetivo do branqueamento, inclusive como instrumento e canal para ascensão social.
Edna Maria Santos Roland, psicóloga, negra e militante, já em 1984, levava-nos a pensar e discutir sobre o que é ser mulher, negra e psicóloga em nosso país. Em sua reflexão, a autora deu sentido ao que é racismo no Brasil, configurando-o como prática ativa e pensando como ele produz uma hierarquia das profissões existentes.
Além disso, com a frase "Não podemos resolver os preconceitos e a discriminação somando todas as diferenças e batendo tudo no liquidificador" (Roland, 1984, p. 14), anuncia uma crítica ao que hoje podemos chamar de multiculturalismo e, no Brasil mais especificamente, de miscigenação. A psicóloga maranhense afirma a diferença "de ter outra forma de ser, outros modelos, outros padrões culturais e estéticos, outro corpo" (Roland, 1984, p. 14). Negar essa diferença seria, em suas palavras, promover o apagamento da população negra, que é um projeto de nação - ideologia de branqueamento. E diz ainda que, "para pensarmos na possibilidade de mudança da posição social da população negra no Brasil, é preciso pensarmos em termos de mexer com tudo, de uma verdadeira revolução" (Roland, 1984, p. 14). Para começar, é preciso mostrar desde a escola básica até a universidade que o negro fez parte da História do Brasil não somente na condição de escravizado, como nos ensina Beatriz Nascimento (M. B. Nascimento, 2018, p. 127).
Ao escutarmos a voz dessa psicóloga negra, entendemos que não é possível, em um país, que o racismo se anuncie como apagamento da população negra e como política de nação, a partir das ações de embranquecimento. Vemos também que não podemos lidar com a associação entre Psicologia, cuidado e maternagem com princípios do feminismo que não o feminismo negro, haja vista que "ironicamente, quando pensadoras feministas trabalharam para criar uma imagem mais balanceada de uma cultura de maternagem, a cultural patriarcal dominante lançou uma perversa crítica à maternagem solo e aos lares comandados por mulheres" (hooks, 2018, p. 115). Vamos, então, ao encontro de feministas negras, como bell hooks (2019) e Patricia Hill Colins (2019a), para quem o ofício não se trata do cuidado da maternagem "universal", com as marcas do pensamento branco e europeu, mas da ética do cuidar (Collins, 2019a), que nos dá a dica para uma epistemologia alternativa, que "sugere que a expressividade pessoal, as emoções e a empatia são centrais para o processo de validação do conhecimento" (Collins, 2019a, p. 419).
É preciso, então, que as psicologias dialoguem e se fundamentem em outras epistemologias (Collins, 2019a; hooks, 2018), já que é o pensamento branco europeu que domina as estruturas de produção e de validação do conhecimento. Pensando especificamente a Psicologia, os temas, as epistemologias e as práticas são constituídas pelo modelo eurocêntrico, em que as questões de gênero e de raça, quando se apresentam, são logo acusadas de estudos identitários que aproximariam a Psicologia daquilo do qual ela há muito lutou para se desvencilhar. Não se trata disso, mas sim de não aceitar o modo como o pensamento eurocêntrico interpreta o mundo europeu como único, pois negligencia outros modos, outras populações, como homens negros e mulheres negras.
Nesse contexto, as feministas negras vêm nos ajudando a interrogar o pensamento eurocêntrico no campo acadêmico, discutindo que perguntas merecem ser investigadas e com quais referenciais interpretativos.
Podemos nos perguntar ainda por onde iniciar essa interpelação - por dentro das próprias epistemologias da Psicologia ou por fora, a partir das populações negligenciadas e dos movimentos sociais? hooks (2019) anuncia que é preciso fornecer uma estrutura de análise, a qual, como sabemos, o campo não possui. Mesmo quando se pretende crítica, a Psicologia não traz à cena a questão racial para dialogar com a população brasileira, em sua maioria negra. Porém, isso não significa um teoricisismo em que a teoria prescinda da vida, é preciso apostar na práxis libertadora, no sentido freiriano.
A produção acadêmica não pode prescindir da produção escrita (livros, artigos), não para promover um elitismo acadêmico, como diz hooks (2019), mas para romper com estruturas tradicionais de dominação opressiva na produção de conhecimento. É preciso, portanto, trazer à cena outra lógica, é preciso produzir outro conhecimento e, assim, outros modos e outra ética de cuidar (Collins, 2019a).
Este artigo trata do exercício de pesquisadoras negras para interpelar as práticas e os saberes instituídos. Constitui-se uma aposta em uma abordagem de cuidado em que a subjetividade afro-brasileira ganhe e dê sentido às práticas e saberes. Essa aposta não é a manutenção da lógica opressora pela imposição de um modelo-substância na afirmação da subjetividade, ou de uma afirmação identitária, mas a possibilidade de os afro-brasileiros se constituírem como agentes conscientes no processo de produção de conhecimento, tal como afirma E. L. Nascimento (2009). É o ato de entender, criar e afirmar modos específicos de investigação, de análise e de intervenção, de afirmar uma ciência no campo da Psicologia, a partir do reconhecimento da subjetividade afro-brasileira. É uma busca por um modo que afirme a agência da população negra diante da invisibilidade e do silenciamento impostos pelo sentido do que é humano fundado pela epistemologia eurocentrada e perpetuado em nosso país pelo projeto de nação que aposta no branqueamento da população, sendo a Psicologia um dos campos de saber que auxiliou nesse objetivo.
Assim, a Psicologia feminista que aqui anunciamos diz da interseccionalidade raça, gênero e classe na interpelação das práticas e saberes racistas, sexistas, machistas da Psicologia: a psicologia feminista é um convite, uma forma de compreender a Psicologia pelo viés uma metodologia plural, em que o método deve estar a serviço da questão correspondendo como uma contribuição para reflexão com o objetivo de pensar a atuação enquanto profissionais da Psicologia. Mais que intervir para além da questão de gênero, consideram-se também questões de classe e raça, cujas subordinações marcam corpos e subjetividades (Farias & Castro, 2016, p. 8).
Considerações finais
Terminamos este artigo, em que interpelamos a Psicologia como ciência e um de seus grandes estereótipos: "é uma profissão feminina", refletindo acerca de que a ciência deve incorporar questões relativas aos aspectos econômicos e políticos em busca da justiça social, em uma abordagem nomeada de Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS). No entanto, é preciso, no Brasil, em que a maioria da população é negra, garantir a participação dos povos negligenciados, discutindo as relações entre a ciência, as relações raciais, de gênero e as questões sociais. Nessa empreitada, é importante ouvir a mulher negra, a mulher não branca, aquela que, na produção do conhecimento nessa sociedade racista e machista, não tem lugar. Terminamos ouvindo Gloria Anzaldúa (2000, pp. 230-231):
Nos convencem que devemos cultivar a arte pela arte. Reverenciarmos o touro sagrado, a forma. Colocarmos molduras e metamolduras ao redor dos escritos. Nos mantermos distantes para ganhar o cobiçado título de "escritora literária" ou "escritora profissional". Acima de tudo, não sermos simples, diretas ou rápidas. Por que eles nos combatem? Por que pensam que somos monstros perigosos? Por que somos monstros perigosos? Porque desequilibramos e muitas vezes rompemos as confortáveis imagens estereotipadas que os brancos têm de nós: A negra doméstica, a pesada ama de leite com uma dúzia de crianças sugando seus seios, a chinesa de olhos puxados e mão hábil - "Elas sabem como tratar um homem na cama" -, a chicana ou a índia de cara achatada, passivamente deitada de costas, sendo comida pelo homem a la La Chingada. A mulher do terceiro mundo se revolta: Nós anulamos, nós apagamos suas impressões de homem branco. Quando você vier bater em nossas portas e carimbar nossas faces com ESTÚPIDA, HISTÉRICA, PUTA PASSIVA, PERVERTIDA, quando você chegar com seus ferretes e marcar PROPRIEDADE PRIVADA em nossas nádegas, nós vomitaremos de volta na sua boca a culpa, a auto-recusa e o ódio racial que você nos fez engolir à força. Não seremos mais suporte para seus medos projetados. Estamos cansadas do papel de cordeiros sacrificiais e bodes expiatórios.
Referências
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Recebido em: 30/10/2019
Aceito em: 1º/3/2021