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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades vol.5  Rio de Janeiro  2014

 

INFORMAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

 

“Você me abala, mas não me anula!”1: Juventude latino-americana, violência e produção artístico-cultural 

“’Porque así soy yo’. Identidad, violencias y alternativas sociales entre jóvenes pertenecientes a ’barrios’ o ’pandillas’ en colonias conflictivas de Zapopan”, de Rogelio Marcial Vázquez e Miguel Vizcarra Dávila.

 

Jaileila de Araújo MenezesI

IUniversidade Federal de Pernambuco, Brasil.

 
Palavras-chave: culturas juvenis, contextos de violência, produção artístico-cultural.
Palabras-clave: culturas juveniles, contextos de violencia, producción artístico-cultural.

 

 

Em uma das tomadas do documentário “O Rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas”2, podemos observar Recife do alto, repleta de prédios em bairros nobres e centrais, contrastando com moradias empilhadas em morros que circunscrevem a grande periferia da cidade. O documentário data do ano 2000 e dá voz a dois jovens moradores de um dos municípios, à época, mais pobres e violentos da Região Metropolitana do Recife, esquecido pelo Estado e em destaque nos meios de comunicação de massa pelos altos índices de homicídio. Sim, é um documentário sobre violência urbana, comprometido com uma abordagem social das condições que a promovem e de seus impactos na trajetória de vida de milhares de jovens moradores dos bolsões de pobreza que se formam em torno dos grandes centros urbanos. Os dois personagens principais são Helinho, 21 anos, preso e acusado por aproximadamente 70 assassinatos, e Garnizé, 27 anos, líder da banda de Rap “Faces do Subúrbio”, com projeção e reconhecimento nacional e internacional. Mais que marcar a diferença das trajetórias, trata-se de dizer o quanto elas são possibilidades postas em um mesmo território onde há uma tênue fronteira entre vida e morte, e a ação de criar laços entre diferentes atores, instituições sociais e Estado faz-se fundamental para uma potencialização da vida ética-estética e politicamente orientada.

É desse lugar de fala que traço algumas considerações sobre o brilhante livro “’Porque así soy yo’: Identidad, violencias y alternativas sociales entre jóvenes pertenecientes a ‘barrios’ o ‘pandillas’3 em colônias conflictivas de Zapopan”, de Rogelio Marcial Vázquez e Miguel Vizcarra Dávila (Guadalajara: Editora Grafisma, 2014, 209 páginas). Na capa, a imagem de um jovem que bem representa a letra do Rap de Neggro Azteka, “Porque así soy yo”, título da publicação. O livro é composto por prólogo de Carles Feixa – importante pesquisador das culturas juvenis –, introdução, quatro capítulos e conclusão. O projeto de ilustração torna a obra bem diferenciada, com fotografias, gráficos e mapas produzidos pela equipe de pesquisa e que colaboram para aproximar o/a leitor/a dos cenários e cenas políticas da vida cotidiana dos jovens e de suas comunidades. Aliás, os registros fotográficos constituem um capítulo à parte, pois contam a história do processo de pesquisa-intervenção através dos planos de captação de imagem que se sucedem, por vezes se encontram, sobrepõem-se e se complementam, compondo uma rica narrativa textual e visual sobre a juventude ‘pandillera’ da região metropolitana de Guadalajara.

Parte-se de um plano geral, dedicado à apresentação de todo o cenário (capítulo 1 – “Análisis Y Contextualización De La Realidad De Las Juventudes En Pandillas”); ajusta-se a lente para um plano próximo, onde a ênfase recai nos discursos ‘sobre’ o personagem principal (capítulo 2 – “Discursos Sobre El ‘Pandillerismo’: La Mirada Social Sobre El Fenómeno Juvenil”); focaliza-se a expressão do personagem (capítulo III – “El Trabajo Com Los ’Barrios’ Zapopanos”), onde ganha relevo o gênero textual testemunho, através da categoria teórico-analítica experiência, que visibiliza os referentes semióticos dos jovens e colabora para o entendimento dos seus posicionamentos.

Este capítulo cresce aos olhos do leitor pela riqueza de detalhes da vida dos ‘pandilleros’, pelo trabalho de (re)conhecimento de suas matrizes culturais, pela relação arte-política, que ganha densidade no formato da pesquisa-intervenção via produção e qualificação artístico-cultural dos jovens. As práticas e trocas educativas ocorridas nas oficinas colaboraram para a vocalização das demandas políticas dos ‘pandilleiros’ e de suas comunidades, os eventos culturais organizados pela equipe de pesquisa em parceria com a prefeitura local e a comunidade mostraram-se fundamentais para a experimentação por parte dos jovens de outras formas de estarem juntos, para além dos ‘rolés’ cotidianos com seus pares ou das brigas entre grupos rivais.  

O diferencial do trabalho ora apresentado é o jogo entre primeiro plano e plano geral em meio à tensão produtiva da micro e macroanálise. O capítulo 4 (“Identidad Y Violencias Sociales”) aborda aspectos relativos a uma ordem internacional global que divide o mundo, as riquezas, estrutura sistemas de opressão que desqualificam povos, nações, estabelecendo uma linha bem visível entre aqueles que devem viver e os outros que o Estado ou a máquina imperial (Hardt; Negri, 2001) vai deixar morrer.

Em um estilo politicamente engajado de pesquisas sobre e com jovens, Rogelio Marcial e Miguel Vizcarra saem do lugar comum da tematização de dar voz a esses atores sociais e buscam estabelecer as relações entre os discursos institucionais e sociais sobre culturas juvenis de gangue e seus efeitos de poder na forma-sujeito jovem ‘pandillero’, problematizando os ecos dessa condição na ordem global. Quais as possibilidades de escuta/mudança na condição de vida (im)posta aos jovens latino-americanos que buscam na imigração ilegal para os Estados Unidos ou na adesão ao narcomundo oportunidades de sobrevivência?

Os autores trabalham de modo apurado a noção de tecido social esgarçado, produto e processo da articulação entre diferentes modalidades de violência (estrutural, latente e colateral) e com danos significativos para as relações interpessoais e para a cidadania. O diferencial da pesquisa-intervenção consistiu em proporcionar a participação de jovens pertencentes a gangues em atividades que promovessem a resolução pacífica de conflitos entre grupos rivais e potencializassem suas capacidades organizativas e de liderança para torná-los agentes de mudança social em suas comunidades.

Em um cenário marcado pela ausência de políticas públicas, de medidas institucionais para combate à violência e insegurança pública, falta de espaços para lazer, fácil acesso a grupos que realizam atividades ilícitas, carência de infraestrutura urbana, violência intrafamiliar, pobreza e marginalidade, o desafio foi efetuar a pesquisa a partir de uma outra política de vida, ativando a relação entre pensamento, ação e sensibilidade e convocando diferentes atores sociais à corresponsabilidade frente aos efeitos produzidos sobre as vidas individuais e coletivas.  

A pesquisa utilizou uma perspectiva interinstitucional, articulando governo federal, local, academia, setores da sociedade civil organizada e população das comunidades, com o objetivo de elaborar ações a partir dos territórios existenciais em uma perspectiva de conhecimento situado. Aspectos geográficos, históricos, sociais, culturais e econômicos são cuidadosamente abordados para um entendimento do tipo de dificuldade a ser enfrentada, bem como as possibilidades de mobilização em cada comunidade.

Prevalece também uma prerrogativa de trabalho em redes, considerando a participação dos jovens em um circuito integrado (Haraway, 2009), que informa sobre a permeabilidade das fronteiras público-privado, corpo pessoal e corpo político e a necessidade de compreender os elementos do circuito simultaneamente, de sorte a acessarmos a complexidade dos sistemas de significação que circunscrevem as práticas sociais em torno da juventude ‘pandillera’. Dentre estes elementos se destacam: a casa, a rua, a vizinhança, o local de trabalho, o Estado, a escola, referentes religiosos, os meios de comunicação de massa.

Os autores investem em uma rica análise dos discursos sociais produzidos pelos meios de comunicação locais, com destaque para a forma como a juventude ‘pandillera’ é abordada em jornais, rádios e programas de televisão. O entendimento veiculado por esses meios de que os jovens aderem às ‘pandillas’ pela identificação com práticas de delinquência alinha-se ao posicionamento de criminalização da juventude pobre, destacando as práticas violentas como um referente direto das atividades destes grupos. O discurso de criminalização da juventude também se estende às famílias, que são caracterizadas como desestruturadas.

A desestruturação familiar é um forte referente para a explicação dada pelas pessoas das comunidades acerca do envolvimento dos jovens em ‘pandillas’, embora também considerem que, em um contexto marcado pela absoluta falta de segurança pública, a inserção nesses grupos é naturalizada; desde cedo jovens, homens e mulheres, precisam aprender a se defender. Aqui dois aspectos chamam atenção: o aprendizado da autodefesa e a feminilização da violência. Com relação ao primeiro, retomo a referência a Helinho, o príncipe justiceiro de Camaragibe. Na condição de jovem de uma das periferias mais violentas do Brasil, ele toma para si a tarefa de proteger os seus ’chegados’ das ’almas sebosas’. No contexto da pesquisa na periferia de Guadalajara, Helinho se multiplica em tantos outros jovens que fazem justiça com as próprias mãos, seja entre ‘pandillas’ rivais da mesma ou de outra comunidade, seja no enfrentamento direto com os policiais, representantes do Estado nesses lugares onde a cidadania não se afirma: “(...) Quiero el terreno, ya lo he marcado, y en las noches me convierto en enemigo del Estado. Y así yo ando, con mucho honor (...)”4.

A honra ou dignidade afirmada pelos jovens homens na relação com outros homens ganha conotação distinta na relação com as mulheres, que têm participado cada vez mais da dinâmica das violências locais. A feminilização das ‘pandillas’ aponta uma tentativa delas de também desenvolver autodefesa; ocorre, no entanto, que comumente não são aceitas nos grupos por questões que marcam as dinâmicas das relações de gênero, a clara cisão casa e rua que continua a operar e estabelecer para elas as tarefas domésticas. Por outro lado, o aumento da violência de gênero contra as mulheres tem funcionado, nesse cenário, como recurso de afirmação, às avessas, de uma outra honra dos jovens homens, associada à afirmação de masculinidade, o que coloca em pauta a urgência de se refletir sobre processos diferenciados de subalternização. O ajuste dessa lente faz-se fundamental para o estudo das culturas juvenis na contemporaneidade.

Do ajuste da lente à apuração da audição, retornemos ao Brasil de 1997, onde as estatísticas sobre altas taxas de homicídio e desemprego entre jovens pobres ganharam uma vocalização diferenciada. Ao invés de especialistas, acadêmicos, foi pela rima do grupo de Rap Racionais MC´s que a razão governamental da exclusão e marginalidade adquiriu importante visibilidade social na narrativa crua sobre o cotidiano dos/das moradores de periferia. A faixa 8 do disco “Sobrevivendo no inferno” tem como título a afirmação “Periferia é periferia (em qualquer lugar)”. O título tornou-se bandeira ético-politico entre manos e minas, que se (re)conhecem nos detalhes de cada palavra e verso de um estilo musical que não pretende agradar a ouvidos ditos sensíveis. Certa vez, escutei de um dos jovens hip hoppers que a beleza do Rap é que ele age como uma bala e corta o pensamento. Corta o pensamento porque produz uma diferença e depois da palavra posta não há mais como olhar aquela realidade da mesma maneira. A poesia em rima parece operar uma incisão no processo de dominação, interrompe, mesmo que parcialmente, seu fluxo e produz prazer na possibilidade de dizer da própria dor e revolta daqueles/daquelas que se consideram filhos e filhas de uma mesma periferia.

No estudo em tela é significativa a adesão de jovens de diferentes idades (dos 10 aos 36 anos) ao Rap que, por sua vez, foi utilizado na pesquisa-intervenção como produto cultural fundamental ao processo de mediação das práticas de violência entre ‘pandilleros’, sendo estes convocados a elaborar propostas e autocríticas à violência generalizada em suas comunidades.

Algumas apostas da equipe foram fundamentais aos méritos alcançados pelo trabalho de pesquisa-intervenção empreendido: compreender a participação dos jovens na dinâmica da violência a partir de seus referentes artísticos e culturais, entendendo assim que práticas criminosas e atividades ilegais não esgotam a multiplicidade e complexidade de expressões da violência; identificar atividades que, a partir de suas próprias práticas culturais, possam representar possibilidades de ganho financeiro fundamentais à sua sobrevivência. Fazer do veneno o antídoto através da utilização dos meios de comunicação de massa como importante aliado para a reconstrução da imagem dos jovens de um ponto de vista das suas possibilidades e não das suas faltas, falhas e carências.  

Retornando ao nosso personagem Garnizé, o outro complementar a Helinho, ao invés de crimes, ele carrega nas costas tatuagens de Malcolm X, Martin Luther King e Che Guevara5, importantes referentes na luta contra as desigualdades sociais. O investimento do projeto de pesquisa no campo das relações interpessoais entre jovens e no seu potencial para construção de leituras críticas sobre suas realidades intentou também que os jovens artistas de ‘barrios’ ou ‘pandillas’ se tornassem exemplo a seguir, a partir de uma outra relação com suas comunidades, com o Estado, com a academia.

O livro de Rogelio Marcial e Miguel Vizcarra é uma importante referência de pesquisa-intervenção decolonial pelo seu compromisso com a ressignificação ético-estética e política da vida de jovens subalternizados. Com certeza, uma obra inspiradora para o campo-tema juventude.

Referências

Hardt, Michael; Negri, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001.         [ Links ]

Haraway, Donna. Manifesto Ciborgue: Ciência, Tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. Em: Tadeu, T. (org). Antropologia do Ciborgue – as vertigens do pós-humano. 2ª edição. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. 

Vázques, Rogelio Marcial; Dávila, Miguel Vizcarra. “Porque así soy yo”, Identidad, violencias y alternativas sociales entre jóvenes pertenecientes a “barrios” o “pandillas” en colonias conflictivas de Zapopan. Zapopan: H. Ayuntamiento de Zapopan y El Colegio de Jalisco, 208 páginas.

 

Data de recebimento: 31/10/2014
Data de aceitação: 10/11/2014

 

1 Trecho da música “Último Adeus”, de Paulinho Moska.

2 Documentário de Marcelo Luna e Paulo Caldas (Brasil, 2000). Alma sebosa – regionalismo, expressão utilizada no Nordeste do Brasil para dizer de alguém que não presta, que faz mal à comunidade e, portanto, merece ser eliminado. A expressão remete a códigos próprios de resolução de conflitos em lugares onde a violência não encontra mediação.

3 Ao longo do texto, manteremos a referência aos termos êmicos ‘barrios’ ou ‘pandillas’, que caracterizam um tipo de associação entre jovens pautada na constituição de identidade de grupo em torno de práticas culturais de demarcação de território, uso da violência para resolução de conflitos entre grupos rivais, envolvimento em práticas criminosas e atividades consideradas ilegais. Remete aos estudos sobre gangues de jovens.

4 Trecho do Rap “Porque así soy yo”, de Neggro Azteka, apresentado na íntegra na abertura do livro.

5 Ver em http://www.almirdefreitas.com/almir/Rap_do_Pequeno_Principe_contra_as_Almas_Sebosas___Paulo_Caldas_e_Marcelo_Luna.html. Acesso em 31 de outubro de 2014.



 
Psicóloga, Mestre e Doutora em Psicologia, Professora do Departamento de Psicologia e Orientações Educacionais do Centro de Educação e do Programa de Pós-graduação em Psicologia (Universidade Federal de Pernambuco, Brasil). Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Poder, Cultura e Práticas Coletivas (GEPCOL) desta universidade.

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