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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades vol.6  Rio de Janeiro mar. 2015

 

ESPAÇO ABERTO

 

O Uruguai e a redução da maioridade penal: o fracasso eleitoral do punitivismo

 

Uruguay y la baja de la edad de imputabilidad penal: El fracaso electoral del punitivismo

 

 

 

Entrevista de Adriana MolasI com Luis Eduardo MorásII

IInstituto de Sociologia Jurídica da Faculdade de Direito da Universidade da República, Uruguai

IIFaculdade de Psicologia da Universidade da República e Comitê dos Direitos das Crianças no Uruguai.

 


Palavras-chave: maioridade penal, adolescência, plebiscito, Uruguai.
Palabras-clave: imputabilidad penal, adolescencia, plebiscito, Uruguay.

 


Adriana Molas: Qual é a sua formação e o seu vínculo com os temas da infância e da adolescência?

Luis Eduardo Morás: Em 1999 terminei o doutorado no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) sob a estimulante orientação de Luiz Eduardo Soares. A minha área de especialização está vinculada principalmente aos temas da violência, dos adolescentes em conflito com a lei, e à segurança cidadã. Fui assessor do Ministério do Interior durante o primeiro governo da Frente Ampla, assim como de vários organismos internacionais, como UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) ePNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Atualmente, eu sou diretor do Instituto de Sociologia Jurídica da Faculdade de Direito da Universidade da República (Uruguai). Durante o ano de 2014, fui designado para integrar uma comissão da Universidade da República para promover o pronunciamento público da instituição sobre o plebiscito para reduzir a maioridade penal e também nesse ano colaborei na elaboração do Relatório Alternativo apresentado pelo Comitê dos Direitos da Criança (Uruguai) ante o Comitê dos Direitos da Criança das Nações Unidas.

Adriana Molas: Como você vê a situação atual da adolescência no Uruguai, em relação ao problema da segurança cidadã e do conflito com a lei penal?

Luis Eduardo Morás: No que diz respeito à situação da infância e da adolescência, o nosso país tem um sério problema, que é a histórica dívida social com este setor da sociedade. Apesar do ciclo favorável de crescimento econômico que se mantém há uma década, as crianças, os adolescentes e os jovens são os que apresentam maiores níveis de desigualdade na sociedade. Embora, em termos globais, a pobreza e a indigência tenham sido notoriamente reduzidas, em termos comparativos continua existindo uma relação de sete a oito vezes mais crianças pobres do que adultos; a taxa de desemprego para os menores de 24 anos é três vezes superior ao total existente na nossa sociedade e a informalidade do emprego, ou seja, a ausência de proteções sociais, empregos de baixa qualidade e baixos salários, se duplica se comparamos os jovens com os adultos. Sem dúvida, pode-se dizer que as crianças e os jovens não só são os primeiros afetados nas épocas de crise econômica, como também são os últimos a se beneficiarem dos ciclos de auge, já que não conseguem ser plenamente atingidos pelo crescente bem-estar.

A esta realidade estrutural, soma-se o fato de que a sociedade uruguaia é uma sociedade envelhecida; os adolescentes e os jovens tendem a ser percebidos como um problema e são visualizados como os principais culpados dos males sociais existentes. Particularmente, se são pobres e vivem em determinados bairros que os meios de comunicação e a sociedade percebem como zonas perigosas, passam-se a somar às carências materiais os estigmas da constante suspeita de eles reproduzirem, junto com as suas misérias cotidianas, os comportamentos desviados e a multiplicação da delinquência.

Esta realidade se reflete no funcionamento da justiça penal adolescente: a maior parte dos casos que chegam é de delitos contra a propriedade, provém dos setores sociais mais pobres e a medida judicial mais aplicada é a privação de liberdade, panorama geral que não variou substancialmente nas últimas décadas. Apesar da aprovação do Código da Criança e do Adolescente em 2004, que promove a proteção integral como paradigma e reúne os fundamentos da Convenção dos Direitos da Criança, continua dominando, na maioria dos operadores do sistema e nas práticas cotidianas, a velha doutrina da situação irregular. Isso levou a uma crise do sistema de privação de liberdade, que reitera a paisagem cíclica de permanente crise das instituições de reforma que não cumprem a sua função básica e essencial: devolver à sociedade um adolescente em melhores condições que aquelas que o levaram a entrar na instituição. A violência estrutural imperante e a contínua violação de mínimos direitos não parece ser parte de uma patologia conjuntural e sim da própria anatomia de um sistema de privação de liberdade, que assiste a um contínuo crescimento que supera as possibilidades destas instituições. Também contribuiu para esta situação o fato de que, durante o governo atual, foram endurecidas as penas e tipificadas novas infrações para adolescentes, o que gerou sérias carências de base, mas, fundamentalmente, a impossibilidade de sustentar o crescimento da população privada de liberdade com um quadro de técnicos e de educadores capacitados para a tarefa. Por sua vez, estas modificações legais que determinaram maior severidade nas normas penais, são claramente contrárias ao espírito da normativa internacional e inclusive do próprio Código da Criança e do Adolescente, que estabeleceu a privação de liberdade como uma medida de último recurso.

Adriana Molas: Houve mudanças importantes no perfil dos adolescentes em conflito com a lei que chegam à Justiça?

Luis Eduardo Morás: Uma análise rápida das estatísticas judiciais disponíveis desmente com sólida evidência uma série de mitos existentes na opinião pública. Em particular, aqueles de que os jovens são os principais culpados pela situação de insegurança e que existe uma mudança radical no tipo de violência desenvolvida ou nas motivações dos adolescentes infratores.

Ao contrário do que a população acredita, a participação dos jovens na prática de delitos é baixa em relação à dos adultos e nos últimos 20 anos nunca superou 10% do total de delitos denunciados. Eles também não são os principais protagonistas dos delitos de mais impacto contra a pessoa, como o homicídio e a violação; a esmagadora maioria dos casos que chegam à Justiça juvenil é de delitos contra a propriedade (furtos e roubos).

Outro mito que os meios de comunicação reproduzem e a sociedade assume acriticamente tem a ver com o perfil dos adolescentes privados de liberdade e a sua relação com o consumo de drogas e o mundo do trabalho. De acordo com um recente diagnóstico realizado na Faculdade de Direito, baseado em um censo do total de adolescentes privados de liberdade no ano de 2013, aqueles que apresentavam um consumo problemático de drogas eram uma minoria. Por outro lado, a maior parte deles tinha antecedentes de trabalho, claro que em trabalhos precários sem proteções formais. A partir daí, é possível discutir, com a evidência que os dados fornecem, as habituais ideias hegemônicas de que estes jovens rechaçam profundamente o mundo dos estudos ou do trabalho, assim como a existência de subculturas delitivas consolidadas, que promovem uma inevitável escala de valores diferenciada do resto da sociedade, tornando praticamente inevitável assumir outra vida que não seja a da delinquência. O diagnóstico sobre a infração adolescente que realizamos nos aproximou mais das tentativas de explicação que dão ênfase à falta de oportunidades educativas ou de trabalho, em uma linha próxima ao que David Matza chamou "deriva" e que Gabriel Kessler desenvolve nos seus trabalhos com o caso argentino e que aborda como passagens intermitentes entre o mundo do trabalho precário e as ocasionais atividades delitivas.

Adriana Molas: A sociedade tende a ver esses adolescentes como os principais protagonistas de todos os males. Por que acontece isso?

Luis Eduardo Morás: Em certa medida, trata-se de um fenômeno recorrente. Em momentos de mudança social acelerada, os adolescentes e os jovens sintetizam o mal-estar difuso existente na sociedade. Atribuem a eles a responsabilidade por uma série de disfunções que não são responsabilidade deles, pelo contrário, frequentemente eles são os principais prejudicados. Se observarmos o funcionamento das principais instituições que modelaram os comportamentos e atitudes das sociedades durante o século XX, como a família, o trabalho, a educação e, inclusive, a religião, percebemos que estão imersas em grandes transformações e afundadas em um cenário de crise. É uma situação que não tem a ver somente com a eventual má gestão pontual e cotidiana dessas instituições e sim, com aspectos muito mais amplos e profundos relacionados a uma crise civilizatória do mundo contemporâneo. E, claro, como o sentido da própria palavra "crise" indica, estas mudanças, apesar de terem importantes custos, também apresentam múltiplos aspectos positivos. Por exemplo, a possibilidade de as mulheres terem uma autonomia que era desconhecida para a geração das nossas mães, possibilidade que para se concretizar demanda notáveis esforços e implica múltiplos custos de todo tipo.

Ao mesmo tempo, esta paisagem de mudanças civilizatórias, plena de complexidades e ambivalências, é frequentemente ressignificada pelos meios de comunicação e alguns setores políticos conservadores como uma inédita situação "catastrófica" contemporânea. Esta é uma tradução assimilada por boa parte dos cidadãos, que veem as mudanças como sinônimo de uma desordem incontrolável das instituições e associadas a um estado de generalizada decadência, anomia e imoralidade, que é promovida ou atuada principalmente pelos mais pobres e jovens.

Adriana Molas: Este seria um dos aspectos da crise das instituições da qual você falava, a crise da organização familiar?

Luis Eduardo Morás: A família é uma das instituições que experimentou as maiores mudanças em um curto espaço de tempo e se diz que ela atravessa uma importante deterioração das funções que cumpriu durante a modernidade. Mas aqui cabe a pergunta acerca de que família estamos falando, quais são as razões do mal-estar e como enfrentar os problemas que ela atravessa. De acordo com o último censo geral da população, a quantidade de lares chefiados por mulheres chega a mais de 40% do total. Se somarmos o resto dos lares com uma configuração unipessoal, coletiva etc., teremos o fato de que a distribuição normal é um lar "não tradicional" e o que é, estatisticamente, "desvio" passou a ser os lares tradicionais compostos por pai, mãe e filhos comuns. Pode-se dizer o mesmo sobre o divórcio – a sua quantidade supera amplamente o número anual de casamentos, motivo pelo qual já não se pode sustentar aquelas imagens do passado que mostravam a ruptura matrimonial como um desvio em relação ao normativamente previsto. Claro, estas mudanças têm consequências de diversas índoles. Tomemos como exemplo a massiva inserção da mulher no mercado de trabalho. Há uma infinidade de aspectos positivos em termos de independência econômica e autonomia vital, mas também é verdade que, se analisarmos o mercado de trabalho por gênero, existem importantes disparidades no nível de inserção. Para uma tarefa igual e de mesma responsabilidade que a dos homens, as mulheres recebem salários consideravelmente inferiores. Por isso, as estatísticas mostram que as mulheres chefes de família apresentam maiores níveis de pobreza e, se são mulheres sem cônjuge e com filhos, algo que representa mais de 10% dos lares do país, o nível de pobreza se aprofunda ainda mais. Pode-se dizer o mesmo do divórcio, em muitos casos, uma verdadeira benção do presente praticamente desconhecida por nossas avós. O martírio começa quando se tenta fazer com que os homens cumpram os direitos e as obrigações compartilhadas, reconhecidas pelas normas, e quando se tenta conseguir um regime de visitas e pensões aceitáveis para as partes envolvidas.

Adriana Molas: De que modo estas mudanças na organização da família estão afetando a situação da adolescência como causadora do mal-estar social?

Luis Eduardo Morás: Talvez os exemplos anteriores sejam adequados para ilustrar como as crianças e os adolescentes são provavelmente os mais afetados por uma importante transformação para a qual não identificamos respostas institucionais apropriadas. Se eles compartilham o lar exclusivamente com a mãe, têm maiores probabilidades de cair na pobreza. Se não existem responsabilidades compartilhadas entre o casal, é provável que sejam reduzidas as possibilidades de apoio em situações de crise, de compartilhar momentos de lazer, de acompanhar o processo educativo institucional. E neste plano, a nova configuração da família vem impondo novos desafios ao sistema educativo, outra das instituições pilares durante a modernidade e que hoje enfrenta grandes questionamentos. São impressionantes as mensagens, em todos os níveis, sobre a suposta decadência e o fracasso generalizado do sistema educativo em nível escolar e secundário e, inclusive, das instituições universitárias. Em boa parte, é uma acusação injusta, não existe a tão mencionada catástrofe, pelo menos em termos quantitativos, já que a cobertura do sistema educativo em todos os níveis não parou de crescer nos últimos anos. Com relação ao passado, há uma maior proporção de crianças e de adolescentes incluídos no sistema educativo. Não tem nenhuma catástrofe aí, ainda que seja verdade que existe, sim, uma importante crise na medida em que a educação enfrenta novos desafios nas sociedades atuais para os quais não foi preparada. Nas palavras de Ignacio Lewkowicz, esta encontra dificuldades tanto para formar um cidadão que já não existe nos mesmos termos do século XIX como também encontra obstáculos para a inserção no mercado de trabalho, dadas as vertiginosas mudanças tecnológicas e produtivas. Por um lado, ela continua sendo uma instituição fundamental, por outro, se esvaziou de conteúdo, e esta realidade é muito mais pronunciada entre os adolescentes mais pobres, que mostram 'déficit' familiar, de redes de apoio comunitária e programas sociais de qualidade.

Adriana Molas: Existe uma relação importante entre as possibilidades de entrada no sistema educativo e no mercado de trabalho e as redes sociais-familiares?

Luis Eduardo Morás: Creio que dois dos principais problemas atuais da educação têm a ver com a inadequação que apresentam em relação ao mercado de trabalho. Até algum tempo atrás, aqueles que estudavam uma determinada quantidade de anos quase que automaticamente entravam no mercado de trabalho, com uma série de direitos associados à condição salarial e, previsivelmente, com uma grande estabilidade no tempo de emprego. A educação era a chave que permitia abrir essa porta, mas hoje não é linear nem evidente que alguém obtenha uma formação definitiva depois da passagem por uma instituição educativa, nem que esse emprego seja estável ou conte com as proteções sociais correspondentes. Em outras palavras, o emprego se torna precário, instável, desprotegido para todos, mas ainda mais para os mais pobres. Por outra parte, o vínculo com o mercado de trabalho responde cada vez menos à meritocracia educativa e às conquistas obtidas, pelo menos nos setores menos qualificados. De acordo com uma pesquisa do Instituto Nacional da Juventude (INJU), oito de cada dez primeiras experiências de trabalho entre os jovens são por redes de contato. Ou seja, o que define a conquista de um emprego não é a quantidade de anos de estudo ou a escolaridade, e sim os vínculos, relações e recomendações. A pergunta que surge, então, é como motivar a permanecer no sistema educativo os adolescentes pobres que, ao mesmo tempo que têm maiores urgências vitais, carecem de redes de apoio que os vinculem a um emprego digno. Vêm daí, definitivamente, as preocupações midiáticas e os zelos cidadãos que os jovens "nem-nem" (nem estudam nem trabalham) despertam ao serem percebidos como potenciais perigos sociais. Eles deveriam ser tratados, na realidade, como jovens "sem-sem" (sem educação apropriada, sem acesso a emprego digno), onde as principais responsabilidades se encontram no mundo adulto. Esta realidade se torna mais evidente quando analisamos mais detalhadamente as características dos temíveis "nem-nem" e observamos que a maioria é composta por jovens desempregados do sexo masculino que procuram emprego pela primeira vez e por mães jovens, com os filhos sob sua responsabilidade, que abandonaram os estudos. Evidentemente, a falha não está nos jovens, e sim na ausência de uma nova geração de políticas sociais, que implemente um moderno sistema de cuidados que atenda a estas dificuldades de acesso ao mercado de trabalho, que promova incentivos para continuarem os estudos e que ofereça cobertura para as tarefas não remuneradas do lar que as jovens mães realizam, impedindo-as de continuar com os estudos ou terem acesso ao mercado de trabalho.

Claro que esta não é a leitura predominante que realizam os meios de comunicação massivos e os setores conservadores. Todas as tensões e novos desafios terminam sendo catalogados como uma catástrofe sem precedentes e, aplicando um olhar reducionista às complexidades, depositam as principais responsabilidades da suposta situação de caos sobre os mais vulneráveis e exigem políticas punitivas mais firmes para recuperar a ordem perdida.

Adriana Molas: No passado mês de outubro foi realizado no Uruguai um plebiscito que promovia um projeto de lei de reforma constitucional para reduzir a maioridade penal adolescente. Você acha que este reducionismo no modo de compreender os problemas sociais, que você mencionou, pode ter incidido na realização do plebiscito?

Luis Eduardo Morás: É certo que para chegar a se fazer um plebiscito sobre uma reforma constitucional intervieram múltiplos fatores políticos. Mas, sem dúvida, esta configuração de ideias, nas quais se apresenta o país vivendo uma situação de violência e desordem social com características desconhecidas no passado e cujos exclusivos protagonistas são os adolescentes pobres, que devem ser penalizados como adultos, teve um papel fundamental. De fato, desde 2009 todas as pesquisam revelam que a segurança pública é a principal preocupação dos cidadãos.

Adriana Molas: Que considerações devemos tecer sobre a realização do plebiscito?

Luis Eduardo Morás: Em primeiro lugar, deve-se destacar que fazer um plebiscito sobre uma reforma constitucional depois de se obter a quantidade de assinaturas necessárias para habilitar a consulta era uma iniciativa inédita no país. E também representa uma questão original dentro da ampla gama de propostas do populismo penal que proliferam na região. Há muitos projetos de mudanças, em nível legislativo, para o endurecimento das normas penais, tanto no Brasil quanto em praticamente todo o continente. Mas convocar diretamente a população para se pronunciar sobre o assunto que gera maior preocupação, como a insegurança, e que promove medidas repressivas sobre aqueles que são responsabilizados por todos os males contemporâneos, representava um nível qualitativamente diferente. As consequências da reforma seriam muito graves no plano legal, mas também, e fundamentalmente, no campo simbólico, uma vez que se ela tivesse sido aprovada teria modificado a Constituição da República, que supostamente deve representar os valores mais gerais e superiores que unem a nação.

Em segundo lugar, a iniciativa surgiu dos grupos políticos mais conservadores, mas, de forma inteligente, transcendeu este grupo ao se configurar uma "Comissão para Viver em Paz", cuja face mais visível e midiática são as próprias vítimas dos delitos. Em suma, era uma proposta na qual confluíam a principal preocupação dos cidadãos – a insegurança – e a natural sensibilidade coletiva que a dor das vítimas dos delitos desperta e que propunha a solução mais evidente imposta pelo senso comum criminológico diante do problema da violência: culpabilizar e penalizar os adolescentes mais pobres. Não era fácil enfrentar uma inciativa com essas características, que, além disso, contava com uma amplíssima recepção nos meios de comunicação.

Adriana Molas: Que forças ou interesses incidiram nesta discussão?

Luis Eduardo Morás: Desde o primeiro momento, nós, das organizações sociais que trabalham em contato direto com crianças, adolescentes e universitários, entendemos que o projeto transcendia a mera "questão penal adolescente". Desde a volta da democracia, em 1985, essa questão tinha gerado umas 20 propostas de reforma em nível legislativo, que não contavam com a maioria parlamentar para serem aprovadas. Sem dúvida, a dimensão das forças políticas, que conseguiram rapidamente obter 10% de assinaturas dos eleitores para convocar a consulta popular, os apoios midiáticos e financeiros da campanha, transcendia o assunto mais imediato e se transformava em um plebiscito sobre uma agenda mais ampla de direitos trabalhosamente conquistados nos últimos anos. Em última instância, o plebiscito traduzia uma cosmovisão conservadora sobre a origem dos males contemporâneos. Apesar de, no plano mais imediato, os principais culpados serem os adolescentes pobres, as mudanças legais recentemente realizadas, como as leis sobre casamento igualitário, comercialização da cannabis, interrupção da gravidez etc., não estavam desvinculadas do estado de desordem generalizada e crescente violência.

A partir disso, pode-se dizer que o plebiscito configurava uma batalha cultural, ao promover uma visão sobre a origem dos problemas da violência e dos diversos mal-estares existentes, atribuindo responsabilidades específicas e se alimentando da extensão do medo para promover como única resposta possível o aprofundamento da punitividade.

Adriana Molas: Tudo parece indicar que a tarefa de enfrentar esta proposta constituiu um esforço importante de múltiplos atores e que o mais previsível era o triunfo da postura de reduzir a maioridade penal.

Luis Eduardo Morás: Realmente, por volta do ano de 2011, as pesquisas de opinião pública mostravam que 70% da população concordava com a redução da idade de imputabilidade penal, aprovando a reforma constitucional. Nesse momento, não era fácil nem previsível ter sucesso em reverter o que parecia ser a culminação histórica de uma jogada de mestre dos setores políticos mais conservadores, principalmente se consideramos que o plebiscito era simultâneo às eleições presidenciais de novembro de 2014. Isso colocava o tema da insegurança como uma poderosa bandeira de confronto eleitoral e deixava a esquerda ante a incômoda perspectiva de ter que se opor ao projeto, abraçando uma causa previsivelmente perdida.

A primeira reação frente ao horizonte escuro veio das organizações que trabalham em contato direto com crianças e adolescentes e conhecem as múltiplas vulnerabilidades que os afetam e as contínuas violações aos seus direitos mais elementares. Estas organizações e militantes que, depois de anos, já estavam calejados diante das habituais críticas midiáticas e de setores políticos de serem "cúmplices dos delinquentes", junto com os universitários, conseguiram dar forma a uma Comissão pelo "Não à redução", que obteve a rápida adesão de militantes de associações, sindicatos, artistas e juventudes de partidos políticos. A heterogeneidade dos setores que a compunham e a forte representação de jovens começaram a reverter o pessimismo original, contrapondo ao discurso político hegemônico da demagogia "mão de ferro" as evidências do conhecimento especialista das mais variadas disciplinas. Também conseguiram mostrar a realidade dos adolescentes e algumas experiências de trabalho concreto de sucesso que as organizações comunitárias realizavam. As múltiplas jornadas e debates que se organizaram em nível local e dos bairros, com a presença de educadores, especialistas e técnicos, foram extremamente efetivas para expor a ausência de sustentação técnica de uma reforma que promovia uma estigmatização dos mais vulneráveis e a expansão do encarceramento como suposta solução para o problema da insegurança.

Adriana Molas: No Brasil, nos últimos anos, também foram apresentados vários projetos para reduzir a idade de imputabilidade penal. A experiência uruguaia pode contribuir com alguma reflexão para o debate local?

Luis Eduardo Morás: Se olharmos os fundamentos expostos para reduzir a maioridade penal e considerarmos a aliança de forças que impulsionam a mudança, chegaremos à conclusão de que não existem praticamente diferenças e que esta é uma onda de pensamento que percorre o continente. Sempre acompanho com muita atenção os debates sobre as políticas de segurança no Brasil, porque têm uma grande influência no Uruguai e até por motivos familiares realmente chama a atenção a coincidência de argumentos entre países que, em muitos aspectos, são tão diferentes.

Uma breve revisão da mitologia comum sobre o assunto e que não tem nenhuma evidência empírica: se afirma que os adolescentes são os culpados da maior parte dos delitos; que se vive uma situação de alarmante crescimento da violência como nunca existiu antes; que as leis são inadequadas ou obsoletas, dadas as mudanças existentes nos delitos ou nos próprios adolescentes; que os jovens de hoje já não são como os de antes; que a vertigem da tecnologia e as possibilidades que os meios de comunicação oferecem favorecem um amadurecimento precoce e como consequência eles devem ser responsabilizados como adultos desde os 16 anos; que reduzir a maioridade penal é o caminho que estão fazendo todos os países; entre outras falácias que, reitero, não se sustentam em nenhuma evidência.

Mais sutilmente e em um plano simbólico e cultural mais relevante, as forças conservadoras que impulsionam estas reformas se apoiam em algumas ideias que também são comuns em ambas as realidades. Algumas delas podem ser sintetizadas na frase "os problemas de segurança não são de direita nem de esquerda, afetam a todos os cidadãos por igual". Esta ideia constrói uma hegemonia em torno da repressão como única e inevitável suposta solução dos problemas; ideia que geralmente é reforçada pela afirmação de que esta perspectiva é compartilhada por "todos os cidadãos honestos". Por esta via, a demanda por mais polícia, leis mais duras e maior quantidade de presos cada dia mais jovens deixa de ser patrimônio de uma visão conservadora do mundo e se transforma em um senso comum coletivo, que é difícil de rebater. Embora o aumento da punitividade, pelo menos no Uruguai, venha sendo apresentado há uns 20 anos sem resultados positivos, as mensagens conseguem consolidar uma hegemonia que coloca os que tentam opor-se a ela em posição de serem "cúmplices dos bandidos". Assim, defender as garantias do estado de direito ou denunciar a constante violação de direitos humanos elementares dos presos passam a ser atos de extrema ingenuidade ou antiquado romantismo e, inclusive, representam uma ofensa à dor que experimentam as vítimas de delitos. Em última instância, não é difícil deduzir que as reformas legais propostas para penalizar os adolescentes promovem também um modelo de sociedade e traduzem um projeto político definido. Frente a esta realidade e à dimensão do desafio que supõem, talvez o melhor legado que se pode extrair da experiência uruguaia seja o fato de que a derrota e o consequente retrocesso no campo dos direitos das crianças e dos adolescentes mais vulneráveis não são inevitáveis.

Adriana Molas: Agradecemos a sua disposição em compartilhar, de forma profunda e franca, uma análise complexa do problema da adolescência em conflito com a lei penal. Esta análise nos permite compreender que a construção do adolescente infrator é resultante de uma multiplicidade de forças sociais, políticas, econômicas, que devem ser levadas em consideração na concepção, implementação e avaliação de políticas públicas específicas e dispositivos de intervenção.

 

 

I Doutor em Ciência Política (IUPERJ),   sociólogo e atual diretor do Instituto de Sociologia Jurídica da Faculdade de Direito da Universidade da República, Uruguai. Especialista na área de violência e segurança pública. E-mail: lemoras@hotmail.com
II Doutoranda no Instituto da Psicologia da UFRJ, mestra em Políticas Públicas e Direitos das Crianças na Universidade da República - Uruguai. Professora Adjunta da Faculdade de Psicologia da Universidade da República. Assessora do Comitê dos Direitos das Crianças no Uruguai. E-mail: adrimolas@gmail.com

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