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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades vol.7  Rio de Janeiro jun. 2015

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

A curiosidade na adoção: terreno pantanoso ou saúde psíquica?

 

La curiosidad en la adopción: ¿terreno pantanoso o cuestión de salud psíquica?

   

 

Gina Khafif LevinzonI

Universidade Paulista, Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

 

 


RESUMO

Este artigo aborda o tema da curiosidade no universo da adoção. São ressaltados os aspectos que indicam saúde psíquica, assim como aqueles que denotam um bloqueio de recursos pessoais essenciais ligados à busca de conhecimento. As angústias dos pais adotivos, seu medo de perder o filho, suas dificuldades em relação a viver o luto de sua esterilidade ou de reconhecer as diferenças entre eles e a criança, entre outras, podem levá-los a desestimular o adotado a pesquisar sua história. Da mesma forma, este último pode apresentar resistências a fazê-lo em função das dores inerentes a este processo. A possibilidade de sentir e de expressar curiosidade é considerada uma medida de saúde mental, especialmente na criança ou adolescente adotados, que têm diante de si a tarefa de construir um sentimento de identidade sólido apesar das lacunas e traumas vividos. É apresentado um caso clínico, no qual havia por parte dos pais intensa dificuldade em contar à filha que ela era adotada, o que resultava em prejuízos importantes no seu desenvolvimento. O trabalho psicanalítico com a criança e o acompanhamento regular em consultas com os pais permitiram que fosse retomado o caminho para o crescimento.

Palavras-chave: curiosidade adoção, pais adotivos, psicoterapia psicanalítica, dificuldades de aprendizagem.


RESUMEN

Este artículo aborda el tema de la curiosidad en el universo de la adopción. Se resaltan los aspectos que indican salud psíquica, como también los que denotan un bloqueo de recursos personales esenciales ligados a la búsqueda de conocimiento. Las angustias de los padres adoptivos, su miedo a perder al hijo, sus dificultades respecto a vivir el luto de su esterilidad o a reconocer las diferencias entre ellos y el niño, entre otras, pueden levarlos a desestimular al adoptado a investigar su historia. De la misma forma, este puede presentar resistencias a hacerlo en función de los dolores inherentes a este proceso. La posibilidad de sentir y expresar curiosidad es considerada una medida de salud mental, especialmente en el niño o adolescente adoptados, que tienen ante sí la tarea de construir un sentimiento de identidad sólido a pesar de los huecos y traumas vividos. Se presenta un caso clínico, en el que había, de parte de los padres, intensa dificultad en contarle a la hija sobre la adopción, lo que acarreaba importantes perjuicios en su desarrollo. El trabajo psicoanalítico con la niña y el acompañamiento regular en consultas con los padres permitieron que se retomara el camino hacia el crecimiento.

Palabras-clave: curiosidad, adopción, padres adoptivos, psicoterapia psicoanalítica, dificultades de aprendizaje.


 

 

A adoção se caracteriza pela formação de um elo afetivo e jurídico entre uma criança que não pôde ser criada pelos genitores e pais que escolheram criar uma criança com a qual não têm parentesco direto sanguíneo.

Do lado do adotado, há uma história anterior, em que ocorreu uma ruptura no contato com seus pais biológicos. Estes últimos não puderam ou não se dispuseram a participar do processo de desenvolvimento do filho e, muitas vezes, encontramos neles situações de vida verdadeiramente traumáticas. De modo geral, são pessoas com alto grau de desamparo financeiro e afetivo, ou ainda, algumas vezes, com comprometimento psíquico considerável. Na maioria esmagadora das vezes, a genitora se encontra sem o apoio do pai da criança. A separação entre a mãe e a criança pode ter ocorrido em diversas idades, mas acontece comumente quando o filho é pequeno.

A criança sente os efeitos dessa separação, que vão depender do momento e das condições em que aconteceu, assim como de suas características próprias. Podemos dizer que essa situação representa para ela um trauma, que poderá ser sentido como uma leve cicatriz, ou, em casos mais graves, como uma ferida aberta. Se a descontinuidade do contato com a mãe biológica ocorreu logo no início da vida do filho, quando bebê, ele não terá lembrança consciente dela ou do que ocorreu. Por outro lado, a experiência clínica nos mostra que nestes casos há algum tipo de registro afetivo do que é vivido, sem palavras, e que corresponde ao que a psicanalista Melanie Klein (1957/1991) denominou de “lembranças em sentimentos”. Por meio de testes psicológicos projetivos ou pela transferência na situação analítica, surpreendemo-nos com a presença dessas memórias inconscientes.

Nos casos de adoções tardias, ou seja, que ocorrem quando a criança tem mais de dois ou três anos de vida, já se pode falar em lembranças mais explícitas do ambiente anterior à adoção. Elas podem incluir o contato com os genitores, ou ainda, o(s) abrigo(s) onde viveu até ser adotada. Ainda assim, quando se conversa com a criança sobre esse período, é comum encontrarmos uma memória seletiva, permeada por suas fantasias e cheia de pontos em branco. Em função da dor presente, muitas vezes as crianças querem esquecer estas vivências que as remetem a sentimentos de abandono, desamparo e anonimato. Ao serem adotadas, elas têm satisfeita sua necessidade primordial de viver em uma família e de serem amadas por pais presentes, especialmente quando o processo de adoção se dá de forma satisfatória.

A história dos pais adotivos também é um elemento importante a ser considerado nesse processo. Na maioria das vezes, adotaram por questões de esterilidade de um ou ambos os cônjuges e passaram por uma série de tratamentos frustrados até que resolveram recorrer a esta forma de parentalidade. A adoção lhes proporciona a experiência valiosa de satisfazer seus instintos maternos e paternos e de construir uma família. Nem sempre, no entanto, a impossibilidade de gerar filhos é bem elaborada e isto pode repercutir de forma negativa no relacionamento com a criança. Nestes casos, os comportamentos do filho destoantes das expectativas dos pais lembram sempre a estes que “ele não veio deles”. São as chamadas ‘fantasias do mau sangue’ (Levinzon, 1999, 2004, 2014a), que estão associadas a sentimentos de rejeição inconscientes.

Há outras motivações possíveis para a adoção, como o conhecimento anterior da criança, alguma forma de parentesco, a escolha de determinado sexo, o medo da gravidez, a tentativa de substituir um filho perdido, o desejo de ter mais um filho quando já se chegou a uma idade avançada em que não é mais possível engravidar, a identificação com a orfandade, a falta de um parceiro, entre outras. Há ainda ‘o desejo de fazer o bem’, que traz complicações importantes no convívio sincero com o filho, visto que se passa a esperar dele ‘gratidão pela benfeitoria’. Podemos dizer que a motivação para adoção representa um pano de fundo que prenuncia saúde ou turbulência emocional, dependendo do quanto foi bem elaborada psiquicamente. Nos dias de hoje, a exigência legal de os pais adotivos passarem por grupos preparatórios para a adoção procura minimizar os efeitos dessas variáveis.

Dentro desse panorama geral, podemos dizer que a questão da curiosidade toca no cerne do mundo adotivo, tanto no que se refere à criança, quanto aos pais adotivos. Do lado da criança, representa a busca por uma parte de sua identidade, de sua história anterior. Do lado dos pais, configura o enfrentamento da situação de não consanguinidade com o filho, com os desdobramentos reais e imaginários dessa condição.

Pretendo, nesse trabalho, examinar de forma mais acurada o tema da curiosidade no mundo adotivo, ressaltando os aspectos que indicam saúde psíquica e aqueles que apontam para bloqueios psicológicos, acompanhados da discussão de material clínico.

 

A curiosidade

Klein (1921/1981, 1928/1981, 1930/1981) associa a curiosidade ao instinto epistemofílico, ou impulso para o conhecimento, extremamente importante ao desenvolvimento emocional e presente em todos os seres humanos. Para a autora, este instinto, ativado pelo surgimento das tendências edípicas, está de início relacionado com o corpo da mãe, com o que há dentro dele, com sua capacidade de gerar bebês. A criança se interessa por estes temas e elabora fantasias e indagações a esse respeito. Os danos ao instinto epistemofílico estão associados a dificuldades no plano emocional. Se a curiosidade natural e o impulso para pesquisa do desconhecido encontram oposição, a possibilidade de entrar em contato consigo mesmo fica extremamente prejudicada.

O psicanalista Bion (1962/1966) denomina ‘Vínculo K’ a relação que existe entre um sujeito que busca conhecer um objeto e um objeto que busca ser conhecido. Este último pode ser algo ou alguém externo, assim como o próprio sujeito, que busca a verdade a respeito de si mesmo. Para este autor, a busca do conhecimento depende tanto da disposição hereditária do sujeito, quanto da relação com a mãe. Se for adequada, a ‘rêverie’ da mãe, ou seja, sua capacidade de sonhar e se conectar com o bebê, permitirá que ele desenvolva uma ‘função K’ – a capacidade de buscar conhecimento. A criança projeta na mãe suas angústias e sentimentos, e esta exerce um papel de “filtro”, contendo-os, discriminando-os, e devolvendo-os à criança de forma que possa utilizá-los saudavelmente. O conhecer baseia-se então no aprender com a experiência, com as frustrações e privações transformadas em pensamentos. Quando isso não ocorre de forma suficiente, a angústia projetada na mãe pode ser novamente introjetada pela criança como um “terror sem nome”, o que dificulta a abertura de um espaço de pesquisa do mundo.

Vemos que a curiosidade é compreendida, segundo o vértice psicanalítico, como uma função de saúde psíquica. Está associada ao impulso natural para o crescimento, mas depende de condições ambientais para que possa manifestar-se na sua plenitude. Identificamos já no bebê pequeno a exploração contínua de um mundo a descobrir e consideramos que nas crianças de todas as idades é natural haver perguntas sobre os assuntos mais diversos.

Quando falamos em crianças adotivas, encontramos esse mesmo movimento no sentido de desbravar o desconhecido, acrescido de indagações sobre a história de sua família de origem genética. À pergunta: “de onde vim?”, somam-se várias outras: “por que minha mãe não ficou comigo?”; “fui amado?”; “sou o causador da separação?”; “matei minha mãe com meu nascimento?”; “quem são meus pais?”; ”o que aconteceu?”...  Explorar esse universo da origem expõe a criança a situações de dor, por vezes de mágoa, e de contato com um campo cheio de lacunas incompreensíveis. Por outro lado, essa investigação permite que o adotado construa de forma sólida um sentimento de identidade, baseado na realidade. De modo geral, quando tudo corre bem, a dor é contrabalançada pela estabilidade e harmonia do lar adotivo. Ao explorar sua história e seus sentimentos, a criança fica livre para explorar o mundo.

 

A “revelação”

Uma das dúvidas e angústias mais frequentes dos pais adotivos refere-se a quando e como contar à criança que ela é adotada. Há hoje um consenso geral de que a criança precisa saber de sua condição de adoção. Embora alguns autores coloquem restrições quanto a isso (Schechter, 1964; Wieder, 1977, 1978), há quase uma unanimidade dos profissionais que lidam com adoção a favor de que se informe ao filho, da forma mais natural possível, que ele é adotado (Abadi, Lema, 1989; Diniz, 1993; Garma et al, 1985; Giberti, 1992; Hamad, 2002; Lifton, 1994; Mattei, 1997; Triseliotis, 1973, entre muitos outros autores). Em geral, isso ocorre a partir das próprias indagações da criança sobre sexualidade, por volta dos três ou quatro anos de idade, quando ela quer saber de onde vêm os bebês. Essa pergunta a remete, assim como aos pais, diretamente à questão de sua origem. Costumamos dizer que o melhor para a criança é ter a ideia de que “sempre soube que era adotada”, que não houve o “dia da revelação”.

Os pais podem introduzir esse assunto ao filho por meio de histórias em que há um personagem adotado. Ocorre muitas vezes que a própria criança pergunte, depois de certo tempo de maturação: “Pai, mãe, essa é a minha história?”. Em muitas famílias, a informação sobre adoção acontece de modo mais direto ou, às vezes, com conotações místicas e religiosas, dependendo de suas crenças. O “filho do coração” se diferencia do “filho da barriga”, mas o que fica ressaltado é o amor que existe entre pais e filhos, independentemente da ligação biológica. Com o tempo, se tudo correr bem, a criança irá fazer perguntas no sentido de compreender melhor e com mais detalhes a história inicial de sua vida.

Em entrevistas de orientação a pais adotivos, ressaltamos que eles não irão falar com seu filho sobre a adoção apenas uma vez. Pelo contrário, devem se preparar para falar sobre isso pelo resto da vida, o que não significa o tempo todo (Levinzon, 2014a).  A cada fase da vida, a questão da origem é revista, segundo o nível de desenvolvimento cognitivo e afetivo da criança.

 

As angústias dos pais adotivos

A experiência clínica mostra que as perguntas do filho sobre adoção são feitas quando há espaço psíquico para essa investigação. Pais muito angustiados com relação à sua parentalidade podem reprimir, de forma consciente ou inconsciente, a busca de uma história anterior ou de um sentido para a separação da criança ou do adolescente em relação à sua herança biológica.

Quando a esterilidade do casal adotivo não está bem elaborada, conversar com a criança sobre sua origem biológica significa assumir sua impossibilidade de gerar filhos. Nestes casos, há uma ‘ferida narcísica’ difícil de ser superada, acompanhada pelo sentimento de castração da fantasia de continuidade biológica e da imortalidade dos pais (Levinzon, 2014b). Pode haver sentimentos de inferioridade, associados a uma vergonhosa incapacidade de gerar filhos (Triseliotis, 1973).

Segundo Freud (1914/1980), os pais atribuem aos filhos o prolongamento idealizado de si mesmos. No campo da adoção não há o elo genético, o que pode dificultar essa identificação. Nestes casos, criar uma criança “que não veio deles” pode ser ainda mais penoso para os pais quando ela apresenta diferenças físicas, de raça, de personalidade. Eles gostariam, consciente ou inconscientemente, que seu filho tivesse nascido “de sua barriga”. A aquisição e o fortalecimento do sentimento de filiação devem ocorrer apesar da descontinuidade biológica. O desafio é lidar com as diferenças, sem olhá-las de modo pejorativo ou associá-las à “herança maldita” deixada pelos seus genitores (Levinzon, 2014c).

Outro ponto importante que pode estar presente no psiquismo dos pais são as ‘fantasias de roubo’, que podemos identificar com frequência na clínica e que foram descritas por vários autores (Wieder, 1978; MacDonell, 1981; Garma et al, 1985; Grinberg, 1982). Os pais podem sentir como se “tivessem roubado” a criança e ficam temerosos de perdê-la ou de alguma retaliação. Essa fantasia corresponde a desejos edípicos inconscientes infantis1, e pode manifestar-se ao tomar como filho uma criança nascida biologicamente de outra pessoa. Além disso, a falta do elo de sangue é frequentemente sentida como se não garantisse a adoção. O medo de perder o filho adotivo é um dos fantasmas mais temidos pelos pais.

Para alguns, há uma espécie de pensamento mágico: “se não vejo, então não existe”. Disso pode resultar: “se não falamos sobre o passado de nosso filho, ele não está lá para nos atormentar...”. Este tipo de atitude resulta em sérias dificuldades para a criança, que sente que há algo no ar não falado e pode interpretar essa lacuna de formas variadas. Ela intui algo que não lhe é confirmado e isso prejudica a confiança na sua percepção e na relação com os pais. Fantasias como “se eles não falam a respeito eu devo ter feito algo muito errado” ou “meu passado é vergonhoso, tenho que fugir dele de qualquer forma” podem predominar. A criança passa a bloquear sua curiosidade, já que a investigação é sentida como perigosa e destruidora. Em conversas com crianças e, principalmente, com adolescentes adotados, ouve-se: “não pergunto para não magoar meus pais; vão ficar chateados comigo; vão pensar que não gosto mais deles; não vão mais gostar de mim...”.

Estudos, como o realizado por Woiler (1987), mostram os prejuízos causados na aprendizagem pela dificuldade em lidar com a investigação sobre a adoção. Como estar aberto para aprender se há portas e janelas importantes fechadas no caminho do conhecimento? 

Anita

Os pais de Anita2 me procuraram quando ela tinha 9 anos, com a queixa de dificuldades de aprendizagem importantes, assim como de um comportamento bastante retraído socialmente. Demorava em se ambientar, especialmente nas situações novas, que procurava evitar ao máximo. Logo me contaram que ela era adotada, mas não tinham lhe falado nada a respeito, por achar que “ainda era muito nova para sabê-lo” e também “porque ela sofreria muito”. Tinha sido adotada bebê e seu início de vida foi difícil, pois chorava muito.

Anita era loira com olhos azuis, assim como os pais. A aparência física semelhante facilitava a atitude de não contar sobre a adoção, visto que era difícil pensar que não tinha vínculo biológico com os pais.

Segundo a mãe, a filha mexia em tudo, ‘de maneira devastadora’. Chegavam a colocar limites para isso: ela abria todas as gavetas, os armários, “podia fazer um inventário do que havia na casa”. Deixava os rastros de sua investigação desenfreada à mostra, mas negava que era ela quem tinha feito isso. Recentemente havia sabido que uma criança conhecida sua era adotada e perguntou “se os pais da colega haviam lhe contado sobre a adoção”.

Ficava claro que Anita intuía sua condição de adoção e que havia nela um ímpeto para a investigação de algo que ficava nas entrelinhas e não podia ser falado. Não era um entendimento consciente, mas um sentimento que buscava espaço para se expressar e só podia fazê-lo de forma velada.

Ela nunca havia feito perguntas sobre como nascem os bebês, sobre sexualidade. Os pais também nunca tomaram a iniciativa de fazê-lo. Acabou tornando-se mais um assunto tabu, fechado para exploração. Falar de concepção, gravidez, remeteria toda a família à questão da adoção, que era o assunto proibido. Anita tinha muito medo do escuro, das situações novas, o que combinava com o temor de encontrar algo proibido e perigoso a cada passo. Se não havia, da parte dos pais, permissão para explorar, então o desconhecido deveria ser algo muito assustador. Essa configuração psíquica combinava com as dificuldades escolares. Anita não podia pesquisar e com isso não podia aprender, e isso acabava estendido a todas as áreas de sua vida.

Combinamos o início do tratamento: psicoterapia para Anita e entrevistas com os pais. Coloquei como condição para o atendimento que contassem à filha que era adotada. Eu os ajudaria, por meio de nossas consultas regulares3. Os pais mostraram-se solícitos, e o trabalho começou. Conversamos muito sobre suas fantasias e temores em relação à adoção. Tinham muito medo de perder a filha e imaginavam que ela poderia se rebelar e “preferir a mãe biológica”. No fundo, sentiam a adoção como um processo ilegítimo, em função da falta da consanguinidade. A mãe revelou que “sempre achou que não poderia gerar filhos”, o que mostrava questões emocionais primitivas importantes em relação à sua feminilidade. Havia sentimentos inconscientes de rivalidade com a própria mãe, que “eram resolvidos” com a renúncia à sua possibilidade de ser mãe. Por isso temia tanto perder a filha. A maternidade era sentida inconscientemente como uma transgressão. O pai se colocava num papel mais coadjuvante. Sucumbia diante das dúvidas da esposa, com quem também se identificava de algum modo.

Quando se sentiu mais segura, a mãe tomou a iniciativa: por meio de um livro sobre sexualidade para crianças introduziu o assunto de “como nascem os bebês” e contou à filha que “ela tinha vindo da barriga de outra pessoa” (ainda era difícil falar “outra mãe”). Anita ouviu tudo atentamente, e fez uma única pergunta, emocionada: “mas, eu ainda sou sua filha?”. As duas choraram e se abraçaram, e puderam reforçar o sentimento de amor que as unia. A pergunta de Anita tocava fundo naquilo que era o maior fantasma: a possibilidade de dissolução do laço familiar.   

Na psicoterapia, foi interessante acompanhar o desenvolvimento da paciente. De início, Anita passava sessões e sessões arrumando um cenário com os bonecos e os móveis da casinha deles, mas ficavam todos estáticos, sem história ou movimento. Não ousava sonhar, fantasiar. Reproduzia no espaço analítico a impossibilidade de transitar pelos meandros do conhecimento de suas emoções. Aos poucos, esse quadro foi amainando, e Anita pôde ousar fazer experiências. Os bonecos se transformaram em personagens que tinham vida, história, conflitos, agressividade, curiosidade. As portas se abriam e com elas o caminho para o desenvolvimento psíquico.

No início, quando falávamos sobre adoção, Anita me olhava como se estivéssemos nos referindo a algo de outro planeta. Ela não sabia o que pensava a respeito. Era algo distante dela. Era mais fácil conversar sobre isso por meio da brincadeira, dos personagens. Como a análise se estendeu por anos, com o tempo foi possível falarmos mais diretamente sobre este tema.

No contato com os pais, no entanto, o assunto da adoção pouco aparecia. Por muitas vezes toquei nesse assunto com eles, e consideramos o quanto era importante que mantivessem um diálogo aberto com a filha a esse respeito. Certo dia, Anita tomou a iniciativa: perguntou à mãe porque precisava fazer terapia, se havia outra menina na sua classe que era adotada e não fazia. A mãe, indignada, respondeu à filha: “Você é uma menina como todas as outras. Não faz diferença se é adotada ou não. E nunca mais vamos falar sobre isso. Esse assunto está encerrado!”.

Podemos ver que havia ainda muita resistência da mãe em encarar seus sentimentos ambivalentes em relação à adoção. Quando Anita se aventurou a trazer o assunto da adoção à baila, a mãe novamente o soterrou, proibindo-a de falar a respeito. Obviamente sua resistência era desconhecida para ela, pois quando me contou esse episódio, a mãe estava orgulhosa de sua reação: achava que tinha reassegurado à filha de que não era diferente dos outros. Na verdade, como mostra Freud (1925/1980), sua negativa era o indício de que, inconscientemente, as diferenças relacionadas à adoção ainda a perturbavam de modo importante. Para este autor, a negativa pode representar um meio de deixar vir à consciência o que está reprimido, mas não é aceito, desde que esteja precedido por um “não”.

Felizmente, o trabalho analítico com a paciente e a família se estendeu por tempo suficiente para que estas questões pudessem ser tratadas e melhoradas. Ao final da análise, Anita se mostrava mais centrada, sem medo de mostrar o que sentia e o que queria saber. Transitava com mais liberdade pelas diversas áreas de sua vida. A mãe concordou em fazer um processo de psicoterapia pessoal com outro profissional, o que facilitou muito seu desenvolvimento e o da filha. As mudanças ocorridas também afetaram o pai, que se tornou uma figura mais atuante no grupo familiar.

 

Considerações

Segundo Winnicott (1955/1997), mais do que informações, as crianças precisam de pais confiáveis, que estejam do seu lado na busca da verdade, e que compreendam sua necessidade de viver as emoções apropriadas às situações reais. Elas têm uma capacidade incrível de descobrir os fatos, que são simplesmente aceitos como fatos. O ‘mistério’ pode gerar um problema muito maior, e permite a criação de fantasias perturbadoras.

Quando há uma dificuldade muito grande nos pais com relação à adoção, a curiosidade é sentida como um perigo em potencial, mas seu bloqueio produz um estado de estagnação psíquica com efeitos adversos para toda a família. No caso clínico citado, isso fica claro, por exemplo, na forma com que a paciente montava cenários nos quais não havia ação. Não havia caminho possível para o desenvolvimento. Sua capacidade de aprendizagem e o convívio social ficavam mutilados. Da parte dos pais, havia o temor contínuo de que a história de adoção encoberta viesse à tona com efeitos incontroláveis. Nos bastidores da comunicação havia sempre um segredo pesado a ser sustentado.

O medo de perder o filho inclui muitas vezes a ideia de que, sabendo de sua história, ele irá procurar os genitores. Afinal, quem são ‘os pais verdadeiros’? A insegurança dos pais adotivos não se sustenta na realidade. Os ‘pais verdadeiros’ são aqueles que criam a criança por toda uma vida, que lhe dão seu nome, suas horas de sono, seus valores, seu amor, seus limites e seus cuidados. Em condições normais, o filho não irá questionar sua importância. Sua investigação servirá para que tenha uma noção mais inteira de si mesmo.

Em minha experiência clínica tenho encontrado também grande resistência em alguns adotados em abrir as portas de sua curiosidade, apesar dos movimentos de abertura dos pais. Para estes jovens, tocar em sua história é abrir uma ferida assustadora. Na análise, a curiosidade pode aparecer em relação à figura do analista, sentido inconscientemente na transferência como representante das figuras parentais. Nestes casos, respeitar o ritmo de cada um é essencial, para que o impulso à pesquisa ocorra de forma saudável e com uma tensão que possa ser suportada.

A psicanálise tem como pilar principal a busca da verdade de cada um no caminho de um desenvolvimento harmônico. A curiosidade assume um papel fundamental nessa busca. Ela representa uma medida de saúde. No campo da adoção, pode ser perturbadora para todos os membros da família, mas é essencial na constituição de bases verdadeiras. Nosso trabalho, como analistas, é auxiliar a todos neste trajeto precioso que é a apropriação de si mesmo.


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Data de submissão: 16/02/2015
Data de aceite: 23/03/2015

 

1 Numa idade tenra, a criança tem fantasias de tomar o pai ou a mãe para si, e de rivalizar com o progenitor do sexo oposto. É o chamado Complexo de Édipo, normal no desenvolvimento humano. Podem fazer parte dessa fase desejos inconscientes de "roubar" os bebês que os pais têm a capacidade de gerar. Com o crescimento, essas fantasias são conferidas com a realidade e dão lugar a uma relação mais realista consigo mesmo e com o outro.

2 Nome fictício para preservar a identidade da paciente.

3 "Penso que a condição para que os pais contem ao filho que é adotado é imprescindível para que se estabeleça a psicoterapia. O analista não pode trabalhar com o paciente baseado numa inverdade ou com a supressão de uma informação tão importante.

I Psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Doutora em Psicologia Clínica-USP, professora do Curso de Especialização em Psicoterapia Psicanalítica CEPSI-UNIP, São Paulo, Brasil. E-mail: ginalevinzon@gmail.com

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