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Desidades
versão On-line ISSN 2318-9282
Desidades vol.10 Rio de Janeiro abr. 2016
ESPAÇO ABERTO
Desastres socioambientais em comunidades ocupadas por mineradoras: qual o impacto dos conflitos na vida dos jovens?
Desastres socio-ambientales en comunidades ocupadas por empresas mineras: ¿cuál es el impacto de los conflictos en la vida de los jóvenes?
Entrevista de Célia DiasI com Rafael ProsdocimiII
IUniversidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, Brasil.
IICentro Universitário UNA e Faculdade Pitágoras, Minas Gerais, Brasil.
Palavras-chave: conflitos ambientais, juventude, mineração, participação política.
Palabras-clave: conflictos ambientales, juventud, minería, participación política.
Célia Dias: Me fale um pouco sobre a sua formação e de como chegou ao tema de investigação dos jovens em ambientes de conflito socioambiental.
Rafael Prosdocimi: Desde a graduação eu me interessei pela Psicologia Social com ênfase nas questões políticas contemporâneas, na participação social na saúde pública, sobre o debate racial, de gênero e sexualidade. No mestrado e no doutorado que fiz no Instituto de Psicologia da UFRJ, trabalhei diretamente com temáticas envolvendo jovens, particularmente a participação política com foco nas questões ambientais. Inicialmente a questão do meio ambiente me tocou em 2008, quando vivemos “uma crise econômica global” e daí me interessei pela questão ambiental, pois entendia que a crise poderia ser um momento de repensar os padrões de consumo e produção, mas não foi o que aconteceu. Então me interessei por entender por qual razão, com quais objetivos e a partir de quais discursos os jovens se mobilizavam pela luta ambiental. Para responder a essas perguntas, entrevistei jovens ambientalistas do Rio de Janeiro. No doutorado, eu continuei na temática ambiental, mas partindo de outra perspectiva: de uma visão da luta ambiental singular, entendida como uma disputa por recursos materiais e também simbólicos. Assim, fiz um estudo de caso envolvendo um grande projeto de extração de minério de ferro, o Projeto Minas-Rio, articulando de que forma os efeitos sociais, econômicos e culturais afetam a experiência e a vida dos jovens dessa região, no interior de Minas Gerais. Os jovens são objeto de preocupação das autoridades públicas, mas o que nós observamos é que pouco se sabe como eles vivem, refletem e se posicionam frente a tudo o que envolve um processo tão dramático de exploração mineral.
Célia Dias: Resumidamente, o que é o Projeto Minas-Rio? Qual seu impacto sobre a juventude?
Rafael Prosdocimi: Como eu disse, o interesse por entender as questões dos conflitos ambientais e de como a juventude é afetada por esses conflitos me levou ao caso do Minas-Rio, um projeto que chama a atenção porque Conceição de Mato Dentro, a região onde o projeto está localizado, sempre foi famosa por suas belezas naturais, históricas e culturais, pelas cachoeiras, pela história ligada à Estrada Real, e que ao final de 2006 passou a ser objeto de interesse de grandes mineradoras. O projeto se tornou operacional no final de 2014 e é o maior projeto de mineração da Anglo American. Além da mina a céu aberto, o projeto conta com um mineroduto de 530 km que utiliza as águas puras da região, do Rio do Peixe, para bombear o minério até o Porto do Açú em São João da Barra, norte Fluminense. Quando estive fazendo o trabalho de campo, o projeto estava em processo e a cidade se preparando para o receber empreendimento. E como o jovem ainda é visto muito mais como um sujeito em preparação do que como ator pleno, achamos interessante pensar esses sujeitos diante dos desafios e problemas relativos ao projeto na vida presente desses jovens, como eles estavam de fato vivendo esse momento. Os jovens são alvo de inúmeros discursos na região, por um lado, há os que afirmam que o jovem é quem mais irá se beneficiar do desenvolvimento trazido pelo empreendimento, as possibilidades de formação educacional e profissional. Por outro lado, há os que se preocupam com os efeitos nefastos do empreendimento no ambiente, na qualidade da água, do ar, e também dos seus efeitos sobre questões de violência em geral, entende-se que os mais jovens são mais sensíveis a esses problemas. Eu então busquei entender como os próprios jovens se posicionam nesse cenário de conflitos socioambientais e também de disputa em torno do sentido desse empreendimento.
Célia Dias: E o impacto sobre os outros atores, além da juventude? Há diferenças, considerando a questão geracional?
Rafael Prosdocimi: O jovem acaba sendo um ator muito relevante porque boa parte da população local entende que o projeto iria trazer emprego, renda e perspectivas futuras. Então há todo um envolvimento voltado para a preparação dos jovens. Os diretores de escola propondo cursos técnicos instalados de acordo com as necessidades do empreendimento e todo um discurso de que os jovens podiam se preparar melhor para ocupar lugares importantes na empresa. Por outro lado, o empreendimento também já apresentava outros aspectos não positivos, por exemplo, a violência, o problema das águas, drogas. O impacto sobre as pessoas idosas era ainda mais visível, pois sentiam muito o chamado preço do progresso: fim da vida pacata, das portas e janelas abertas, da tranquilidade, da segurança.
Célia Dias: A velha ideia de que o progresso é bom mas tem um preço.
Rafael Prosdocimi: Sim, e neste caso a diferença geracional sobressai, os mais jovens e os mais idosos são colocados em campos opostos no entendimento e na aceitação do progresso; a população enfatiza que os jovens querem o “progresso” e que os idosos o refutam, ainda que, é claro, nada seja assim tão simples. Um aspecto fundamental na região de Conceição do Mato Dentro é que há uma prática estabelecida, comum em regiões interioranas, dos jovens migrarem para cidades maiores em busca de educação e trabalho. A chegada do projeto foi vista como uma possibilidade de permanência dos jovens na região. Além da diferença geracional, há muitas diferenças entre aqueles que moram nas sedes urbanas e aqueles que moram no entorno da mina, na área rural e que sofrem de forma mais direta com a presença da mineradora, sem contar tanto com as instituições públicas para regular, minimamente, o funcionamento da empresa.
Célia Dias: Um aspecto que pode ser gerado pela maior cobertura da mídia, pois quem vive nas cidades de modo geral tem mais visibilidade social. Outra questão interessante que você enfatizou na sua tese de doutoramento diz respeito às dificuldades para a realização do trabalho de campo em um cenário de conflito e desconfiança, onde todo “forasteiro” era identificado como agente da empresa de mineração. Isto diz respeito a um conflito permanente, latente, entre a comunidade e a mineradora?
Rafael Prosdocimi: Quando a gente vai fazer um trabalho como este é muito importante entrar na cotidianidade da comunidade, e lá na região eu acabei frequentando as comunidades do entorno de Conceição do Mato Dentro, as escolas, os locais frequentados pelos jovens, e muitas vezes eu me surpreendia com o fato de que mesmo eles sabendo que eu estava lá para realizar uma pesquisa, vez por outra eu era tratado como alguém da mineradora. A desconfiança das pessoas, principalmente das mais velhas, era muito forte, talvez pela forma como o projeto foi levado pra região, pela empresa MMX - Mineração e Metálicos, do Eike Batista, que chegou na região adquirindo propriedades sem dizer que era para um empreendimento de mineração, pois isto aumentaria o valor das terras. Chegaram a usar um nome simbólico de fachada, Borba Gato, que foi um bandeirante famoso, como uma estratégia para negociar separadamente com as famílias em uma região de uso tradicional da terra, de comunidades quilombolas. A Anglo American entrou posteriormente e manteve os procedimentos na aquisição das propriedades que geraram angústia, tensionaram as relações entre famílias, criaram expectativas, e de certo modo, fragmentaram as comunidades, algo que está documentado pelo Ministério Público Estadual de Minas Gerais e pelo Ministério Público Federal. Então, o lugar de onde eu falava, que era a universidade, a pesquisa, isto era muito distante do que eles viviam na região e acabavam me identificando, em alguns momentos, com os “forasteiros”, que chegavam de fora para trabalhar na região.
Célia Dias: Milton Santos disse uma vez que enquanto pesquisadores, nós devemos deixar falar o território. No seu trabalho o território - o ambiente - está articulado à voz das comunidades? Quando a comunidade fala, na verdade quem fala é a floresta, o rio, a natureza é quem fala.
Rafael Prosdocimi: Eu cheguei na região com poucas informações, achando que era um lugar simples, de população homogênea, e logo me surpreendi com a diversidade populacional e uma riqueza cultural e histórica impressionantes. Há passagens de vários naturalistas que descrevem as belezas e as práticas culturais da região, como por exemplo, Saint-Hilaire1, que viajou pela região no início do século XIX. Para entender o território, o que estava acontecendo na região, foi fundamental ouvir as diferentes falas, as diferentes vozes que se faziam presentes. Por exemplo, eu conheci a comunidade Água Quente, que é atravessada por dois rios muito importantes, e então quando fui conversar com os jovens que moravam na região, eles me falaram que não podiam mais tomar banho no rio porque ficavam com problemas na pele, que a água estava “estragada”. Então, quando a empresa se instala com a mineração, ela interfere nas falas da comunidade, e tudo passa a ser o empreendimento da empresa neste lugar. Escutei diversas vezes questões sobre as águas, as pessoas falando “sem água nada vive” e os jovens falavam muito disso, lembrando-se dos momentos de lazer, da importância das águas nas relações afetivas, de amizade.
Célia Dias: Há uma reconfiguração da história desse território.
Rafael Prosdocimi: Exatamente, as comunidades vão perdendo a força e a relação com o lugar.
Célia Dias: Para trabalhar a percepção dos jovens em relação ao projeto da mineradora e as transformações no território vivido, você utilizou o conceito de experiência e narrativa na compreensão dessas falas, desses sentimentos dos jovens. Nesta perspectiva, você diz que preferiu estudar sujeitos e sentimentos, ao invés de discutir lógicas e estruturas. Como você justifica esta posição, considerando que os cenários de conflitos socioambientais tem se multiplicado tanto no Brasil? Quer dizer que você diz que vai falar do jovens a partir de sentimentos, mas o que parece é que o tempo todo você está deixando falar o território.
Rafael Prosdocimi: De modo geral, a perspectiva macro é a que predomina nos estudos ambientais, ecológicos, então, no caso do projeto Minas-Rio, a gente poderia focar no cenário da época de grande valorização econômica do minério de ferro em 2010, 2011. Mas eu trouxe o conflito da perspectiva dos sentimentos, das expectativas, tentando entender como os sujeitos se apropriam da realidade. Existem afetos, relações, apreensões da realidade que não são captados pelo recorte macroestrutural. E de fato, por mais que a minha leitura fosse crítica ao projeto, por exemplo, eu não podia deixar de mostrar que muitos moradores daquelas comunidades tinham uma perspectiva positiva quanto ao desenvolvimento, ao progresso. Então foi importante aliar as questões econômicas e sociais a essas experiências e narrativas, e assim pensar como as coisas nos tocam, e que nem sempre isto é claro, mas que mesmo assim a gente pode falar sobre isto. Eu encontrei muitos jovens que desejavam o emprego, que me falavam do desenvolvimento, dizendo que o sonho deles era ser motorista. Então de onde veio essa experiência, esse imaginário? A partir dessas narrativas singulares foi possível compreender as histórias coletivas.
Célia Dias: O sentimento dos jovens, que você percebeu em relação aos conflitos ambientais que estavam acontecendo por causa da empresa, era de falta de perspectiva ou de uma esperança de que tudo aquilo poderia melhorar a vida?
Rafael Prosdocimi: Quando eu estive lá, grande parte dos jovens acreditava na perspectiva de desenvolvimento propagandeada pela empresa. Então a perspectiva de um curso técnico de mineração era grande, pois antes, um rapaz numa roda de conversa me disse que ele “ou trabalhava na funerária ou na escola”, e com a empresa os jovens podiam pensar em viver e ter outros trabalhos naquela localidade. Eu acredito que a Anglo American conseguiu o apoio da população local não apenas pelo emprego direto ou pela renda que aumentou com a ocupação do território - supermercados, hotel, pousada -, mas porque ela conseguiu impregnar no imaginário a esperança de que iria melhorar a vida na região para os jovens. O que se mostrou, afinal, é que os jovens eram muito importantes na região, eles não estavam “marginais” à proposta da empresa, eles foram absolutamente centrais na promessa da mineradora. Por exemplo, a empresa em associação ao Senai (Serviço Nacional da Aprendizagem Industrial) fez um processo seletivo aos cursos técnicos, e o que a população diz é que o processo foi fraudado, viciado, pois quem tinha contatos políticos, parentes na empresa, conseguiu as vagas. Este processo foi o que mais gerou reclamações dos moradores no “disque-denúncia” da companhia, como me confidenciou uma entrevistada. Isso em parte ilustra a importância do jovem nesse cenário.
Célia Dias: O caso da recente tragédia socioambiental ocorrida em Mariana, de responsabilidade da mineradora Samarco, há muita relação com os temas que você abordou na tese. Você poderia comentar sobre isto, principalmente a questão do emprego e do desemprego juvenil, e das expectativas e frustações dos jovens com esse tipo de desenvolvimento trazido pela mineração.
Rafael Prosdocimi: O que mais chamou a atenção em Mariana, e que tem muita relação com o que eu encontrei no projeto Minas-Rio, é a dependência econômica das comunidades em relação ao empreendimento da mineração. Logo após o crime de rompimento da barragem, o prefeito apareceu preocupado com a paralisação das atividades, pedindo que fossem retomadas o mais rápido possível. Então, na verdade o que se verifica é que, para se consolidar, a mineradora precisa se impor e acabar com outras fontes de trabalho e de renda, ela precisa se colocar como a única alternativa para o desenvolvimento da região. Mas, com a crise do preço do minério, as empresas passaram a diminuir os investimentos em segurança, o que não é muito diferente das outras mineradoras, apesar da centralidade da empresa na vida das comunidades. A estratégia de cooptação também é vital, pois a empresa chega em uma comunidade e contrata 40, 50 pessoas, e claro, cada um dos contratados conhece outros que também desejam um emprego. No período de “ventos favoráveis” ao mercado do minério, as coisas parecem boas, mas aí quando começam a aparecer problemas é que a sociedade percebe que a empresa, o empreendimento, não se equivale à comunidade, às cidades e distritos. Os jovens, portanto, que fiavam seus projetos de vida aos projetos do empreendimento passam a sofrer com isso, pois tem que rever, mais uma vez, suas escolhas de vida.
Célia Dias: Isso acaba gerando um impacto de renda familiar importante, então as pessoas acabam tendo dificuldade para se colocar contra a empresa.
Rafael Prosdocimi: A situação de Mariana me lembrou muito a situação dos habitantes de Conceição do Mato Dentro que vivem à jusante da barragem. Então, para além da ocorrência concreta de rompimento, tem uma violência cotidiana, porque as pessoas dormem com medo, vão para a escola com medo. As comunidades vivem angustiadas, com medo, porque estão no caminho dessas águas, e agora a tragédia em Mariana deixou essa marca para as comunidades que convivem com as mineradoras.
Célia Dias: Agora aquela esperança que existia, principalmente entre os jovens, agora ela desaparece. Se existia alguma possibilidade de desenvolvimento agora está claro que isso não vai mais acontecer. Eu vi reportagens com famílias de Mariana dizendo que não queriam saber de reconstrução da cidade, pois sabiam que não haveria reconstrução histórica da cidade, então o melhor seria ir para outro lugar. O trauma nos jovens certamente é imenso, há uma destruição de toda a identidade coletiva de infância, tudo isso desaparece.
Rafael Prosdocimi: É uma tentativa de mudança coletiva, de continuar em outro lugar. Retomando o projeto Rio-Minas em Conceição de Mato Dentro, lá foi possível perceber como o processo de construção do empreendimento em andamento era subjetivado, havia claramente uma expectativa de desenvolvimento, de progresso, de bom emprego. Havia jovens dizendo que não queriam ficar nas máquinas, queriam sim ser engenheiros, então é um tipo de expectativa de vida, as pessoas não querem mais sair pra trabalhar em outro lugar, querem ficar e construir a vida lá mesmo. Em Mariana, o que se vê hoje é que os jovens estão diante da realidade de que as promessas da empresa não fazem muito sentido, estão submetidas a uma outra lógica. Em Conceição de Mato Dentro, a Anglo American, que é a quarta maior mineradora do mundo, anunciou que vai vender o projeto, que não vai dar continuidade, então os jovens novamente estão submetidos a um impasse, a uma situação de angústia, sem saber o que vai acontecer; as demissões já começaram, o clima nas comunidades mudou completamente, estão agora vivendo uma situação em que ninguém se responsabiliza por nada.
Célia Dias: Como uma perspectiva crítica baseada na noção de justiça ambiental pode ajudar a compreender a situação dos jovens nestes cenários de conflito ambiental?
Rafael Prosdocimi: A questão seria pensar: quem se responsabiliza por processos dessa natureza? Se a comunidade consegue se envolver no processo, se participa ativamente e não fica submetida a uma estrutura baseada em promessas vazias, talvez conseguisse lidar com a tensão de outra forma. Por exemplo, o sofrimento, o trauma associado ao rompimento da barragem em Mariana ou mesmo a situação de crise em Conceição de Mato Dentro, decorrem em grande parte porque as pessoas não estão participando dos processos, pois tudo vem “de cima”, - a ideia de progresso, as decisões, as ações sociais, a lama - tudo vem de um lugar no qual a comunidade não tem direito a falar e de se posicionar.
Célia Dias: E ainda tem a questão presente nos fóruns coletivos em que pessoas talvez gabaritadas para participar e ajudar acabam sendo cerceadas pelas próprias comunidades, que tem medo de que todo sujeito de fora seja um aliado da empresa.
Rafael Prosdocimi: Eu vivenciei diversos fóruns envolvendo empresa, comunidades, Ministério Público, universidade. E mesmo com a riqueza dos debates, a tensão era permanente, pois a atitude da empresa era sempre a de fragmentar as comunidades, de utilizar expedientes para esvaziar espaços reais de debate em nome de um marketing vazio, para difundir imagens favoráveis aos interesses da empresa.
Célia Dias: Na sua tese de doutoramento, você disse que as crianças e os jovens, apesar de presentes no mundo público, são sempre desconsiderados como sujeitos capazes de compreensão e ação. Como você relaciona esta posição a que estão submetidos os jovens e a questão ambiental hoje no Brasil, e especificamente em Conceição do Mato Dentro?
Rafael Prosdocimi: A preocupação com a gravidez das adolescentes, com o uso de drogas e com a violência urbana são aspectos presentes na fala dos moradores da região, muito mais do que a questão ambiental. E os jovens, as crianças, fala-se muito deles, mas eles não são ouvidos. Por um lado, eles vão aproveitar, vão ter melhores chances de vida; por outro, eles vão sofrer muito, é um jogo, mas de fato eles falam pouco, são muito pouco acionados. Nas reuniões públicas, eles ficam por ali, mas os jovens que falam são apenas aqueles que já têm uma inserção política, candidatos a vereador, lideranças comunitárias estabelecidas. Essa ideia de que eles não são sujeitos é porque de fato eles não são escutados como desejam. E na questão ambiental, um exemplo que me tocou muito foi uma jovem que eu entrevistei e ela sempre me pareceu estar apoiando a empresa. Ela fazia o curso do Senai e parecia muito feliz com aquela situação. Mas em determinado ponto da entrevista, ela começou a falar que tinha medo que a comunidade fosse prejudicada, ela tinha medo que a comunidade acabasse, demonstrando preocupação com as gerações seguintes, com seus filhos, netos, que eles não tivessem conhecimento da história da comunidade. Ela falava das águas do lugar com grande preocupação, pois antes da Anglo American chegar havia muita água, mas que ela estava acabando, e assim ela questionava o que estava acontecendo na região de forma global. Então, uma pessoa que eu imaginava que não tivesse nenhum senso crítico, que demonstrava estar focada em conseguir um trabalho bem remunerado, de ter uma vida melhor, essa pessoa mostrou que não queria abrir mão da sua comunidade, da sua história, da sua tradição. Isso demonstra que a gente não pode abrir mão da fala dos jovens, pois eles são de fato sujeitos que participam, que tem um entendimento do processo, que vivem a cotidianidade, então eles têm a sua fala, e precisam ser ouvidos, pois isto poderia enriquecer as decisões da comunidade.
Célia Dias: Mas atualmente muito se fala na formação crítica das crianças sobre a questão ambiental, inclusive com a inserção do tema na formação escolar. E no caso dos jovens há todo um debate sobre o deslocamento dos partidos políticos para os chamados coletivos. E o tema do meio ambiente sempre aparece como um dos motivadores dessa mudança, e também como epicentro da preocupação entre os jovens, algo que seria capaz de impulsioná-los para um novo tipo de militância, uma nova forma de engajamento. Como você tem visto essa questão? Em Mariana ou em Mato Dentro, por exemplo, há relatos sobre essa militância jovem pró meio-ambiente?
Rafael Prosdocimi: A educação ambiental e ecológica lá na região é muito incipiente. Em Conceição do Mato Dentro tem um grupo famoso, a Sociedade dos Amigos do Tabuleiro, que é muito importante, mas sem uma inserção forte entre os jovens. Essa militância ambiental tem uma ideia muito metropolitana, pois os jovens de Conceição do Mato Dentro estão imersos em outra lógica, pois eles fazem sim agroecologia, mas eles não dizem que fazem agroecologia. Na região tem muitas comunidades quilombolas, e isto significa a adoção de métodos de cultivo tradicionais, sistemas de trocas, e jovens que cultivam estas relações. Há jovens lideranças comunitárias que mobilizam, organizam suas comunidades, mas que não se apresentam como “jovens”. Assim como não se apresentam como ativistas ambientais no sentido tradicional, mas que lutam pelas águas, pelo ambiente, por um modo de vida que não degrade as relações sociais e a natureza. Por outro lado, a região de Conceição do Mato Dentro passou por um ‘boom’ de defesa do meio ambiente, se autodenominando capital mineira do ecoturismo, e a questão do meio ambiente passou a ser mais divulgada. Mas não existe isto que nós entendemos como jovens ambientalistas.
Célia Dias: As lutas indígenas no Brasil que incluem o direito ao território e à sua preservação têm tido um papel importante para se repensar o meio ambiente e o direito das futuras gerações de usufrui-lo?
Rafael Prosdocimi: Existe uma contraposição lógica na forma como essas comunidades tradicionais, sejam indígenas ou quilombolas, se apropriam do espaço, que é bem diferente do que fazem as populações urbanas, industriais. Tem uma heterogeneidade constitutiva do país que não vai ser eliminada, a não ser à força, na base de empreendimentos que entram com violência alterando a lógica das comunidades, como é o caso de Belo Monte, que leva uma perspectiva de desenvolvimento maior para a região, e já temos projetos de mineração pensados em territórios indígenas. A gente entende que são projetos que têm por objetivo mais do que explorar os recursos naturais, ou do que produzir minério, querem produzir sujeitos que aceitem se inserir na lógica de mercado, de desenvolvimento no sentido da exploração mercantil do território.
Célia Dias: As comunidades temem as tragédias, mas acabam se rendendo ou sendo obrigadas a se render à pressão das grandes empresas e também do Estado. Podemos esperar mudanças na maneira de as comunidades reagirem aos crimes ambientais no Brasil?
Rafael Prosdocimi: O que aconteceu em Mariana, a repercussão global, a devastação decorrente que a gente nem consegue medir, talvez isto possa resultar em outra forma de regular esses processos, desde que, é claro, exista participação política em torno disso. A posição geral das empresas e do Estado é muito clara, de acelerar os empreendimentos, assumindo riscos pelos quais eles não se responsabilizam.
Célia Dias: Mariana pode ser considerada a maior tragédia socioambiental do Brasil, e a gente pode dizer que é uma tragédia que prossegue, não foi nem resolvida, nem minimizada.
Rafael Prosdocimi: E infelizmente as respostas do governo federal e do governo estadual mostram que não houve nenhuma ação efetiva do Estado. A primeira entrevista concedida pelo governador de Minas Gerais foi realizada dentro do escritório da empresa. Por outro lado, as pessoas já estão se organizando, em outras localidades o Movimento dos Atingidos pela Mineração (MAM) cresceu muito nos últimos anos seguindo o modelo do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), e está discutindo e questionando o modelo de extração mineral. As empresas utilizam diversos artifícios disponíveis para cooptar, para seduzir as pessoas em relação ao que elas precisam. Então, o mais interessante seria ouvir o que as pessoas dessas comunidades querem, e os jovens que eu entrevistei me falaram que o que eles querem é emprego, uma vida melhor. Por isto que eu penso que não podemos cair na retórica de só falar da pobreza econômica da região, veja o exemplo do Vale do Jequitinhonha, que tem uma riqueza histórica, cultural e até ambiental tão significante, mas tudo fica solapado pelo discurso econômico, e os problemas materiais sobrepõem a tudo mais que a comunidade detém. Neste sentido, conectar experiências seria algo muito interessante, comunidades em lugares diferentes poderiam trocar e enfrentar a ideia de um progresso linear que chega para tornar as comunidades iguais, retirando o que elas têm de singular no sentido forte do termo. O título de minha tese de doutoramento, “Nem só de mineração vive o Mato Dentro”, vem da fala de um jovem líder da comunidade de São Sebastião do Bom Sucesso, que enfatizava as riquezas da região para além do valor mercantil da tonelada do minério de ferro.
Célia Dias: Então a gente poderia retomar a questão da justiça ambiental, que diz que todos tem direito a um ambiente saudável e digno de se viver. Até que ponto essas empresas não chegam para tirar esse direito, para destituir essas comunidades do direito de usufruir desses lugares? E eu me lembrei que você fez uma interessante jornada de estudos na Índia, que é uma realidade tão interessante. O que você trouxe para o seu objeto de estudo no Brasil?
Rafael Prosdocimi: Eu queria entender alguns determinantes históricos do Brasil e da Índia, que apesar das diferenças marcantes do ponto de vista cultural, religioso, político, têm dimensões similares, por exemplo, como os recursos naturais abundantes são usados como moeda de troca, como recurso econômico. E me chamou a atenção os processos de luta, pois eu encontrei na Índia uma comunidade indígena que recebeu uma proposta de projeto de mineração, tal como no Brasil, mas que conseguiu manter o ponto de vista da comunidade, que se reuniu e decidiu não receber o projeto, e isto foi acatado pelo governo. Então, se a comunidade consegue ter esse tipo de mobilização, é possível que ela consiga ter outras formas de resistência, e assim a cultura local consiga se impor com mais força. Minha visão, um tanto simplista, pois o problema é mais complexo, é que no Brasil a gente se apega mais à ideia de modernidade, de desenvolvimento.
Célia Dias: E também tem a questão religiosa, e de como na Índia a religião está impregnada na percepção que se tem da natureza, dos animais, dos rios, e no Brasil isto teve alguma importância com as religiões afrodescendentes, mas isto perdeu importância. Então a gente poderia falar de uma especificidade da formação social deles, que é bem diferente da nossa, sem comparar a história que é específica.
Rafael Prosdocimi: É muito difícil fazer comparações entre culturas tão diferentes. Tem um caso de uma comunidade indígena lá que recebeu a proposta de um projeto de exploração de bauxita nas montanhas do estado de Orissa, no leste da Índia, local que é o lar da tribo dos Dongria Kond, e eles recusaram o projeto. Quando foram questionados, eles perguntaram para os representantes da empresa por quanto eles venderiam Jesus Cristo, Alá. O que eles queriam dizer é que aquela montanha pra eles era sagrada, e que o sagrado era inegociável.
Célia Dias: A gente poderia retomar a noção de justiça ambiental, pois nem tudo pode ser vendido ou comprado em uma comunidade.
Rafael Prosdocimi: Certamente, por exemplo, na própria questão da educação ambiental, vale lembrar que todas as empresas que estão tocando projetos de exploração de recursos naturais fazem o que eles chamam de educação ambiental, de campanhas falando de sustentabilidade, de defesa do meio ambiente. E fazem isto de modo a cooptar crianças e jovens, com lanches, filmes, fotos, de associar proteção ambiental à permanência desses grandes empreendimentos, sem se deter nas contradições e paradoxos do processo.
Célia Dias: Essas empresas fazem todo um discurso de sustentabilidade, mas o que elas fazem é buscar alternativas para sustentar a força do capital. Então, como palavras finais, o que você teria a nos dizer sobre as contradições do modelo atual de exploração ambiental do capitalismo; e se há esperanças de uma “boa vida” para as novas gerações?
Rafael Prosdocimi: Eu acredito que é importante deixar aparecer as contradições, e que as pessoas possam enfrentar tais contradições em um processo democrático contínuo. As situações nunca vão ser consensuais, então o mais importante seria criar espaços para a participação popular. Eu acompanhei muitas audiências públicas entre a empresa de mineração e a comunidade, e muitas vezes vinham pessoas que falavam e ficavam satisfeitas por estar ali e dizer que era a primeira vez que estavam tendo a oportunidade de falar. E isto fortalece a comunidade, independente se aquela fala vai ou não ser transformada em uma medida administrativa, em política pública, ou em uma ação da empresa. É por isto que eu acho que há esperança para as novas gerações, os jovens tem uma força discursiva significativa, então é fundamental que eles tenham direito a falar o que pensam, o que desejam. A gente tem que enfrentar a ideia de que o povo é ignorante e que alguém mais capacitado poderia falar em nome de todos, que é o que aparece inúmeras vezes nas audiências públicas. As autoridades políticas, sociais, científicas se valem de estratégias de poder para excluir grande parte do povo do processo de decisão: os mais pobres, menos instruídos formalmente, as mulheres e, certamente, as crianças e os jovens. O que observei na pesquisa com os jovens é que eles estão muito atentos ao que acontece e a participação deles, como dos outros atores excluídos, poderia fomentar modos de responsabilização mais coletiva e autônoma, minando as promessas vazias, a fantasia de desenvolvimento propalada pelos empreendedores.
Célia Dias: Quero te agradecer pela gentileza da nossa conversa e por nos trazer questões tão importantes sobre a juventude que vive nessas regiões de mineração.
Rafael Prosdocimi: Eu que agradeço a DESidades pela oportunidade.
1 Auguste de Saint-Hilaire, famoso botânico e naturalista francês que viajou pelo Brasil entre 1816-22, estudando e colhendo amostras da flora brasileira.
I Doutora em Geografia pela Universidade Federal Fluminense. Professora na Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, Brasil. Desenvolve trabalhos e pesquisas sobre Geografia agrária, planejamento ambiental, recursos naturais, política florestal e história florestal comparada. E-mail: celiarsdias@gmail.com
II Doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor no Centro Universitário UNA e na Faculdade Pitágoras, Minas Gerais, Brasil. Desenvolve trabalhos e pesquisas sobre saúde coletiva, movimentos sociais, ação política, juventude e conflitos socioambientais. E-mail: rafaelpros@gmail.com