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Desidades
versão On-line ISSN 2318-9282
Desidades no.21 Rio de Janeiro out./dez. 2018
TEMAS EM DESTAQUE
Ser criança em movimento: ontologias e alteridade na pesquisa com crianças
Ser niño en movimiento: ontologías y alteridad en la investigación con niños
Gustavo Belisário d'Araújo CoutoI, Antonádia Monteiro BorgesII
I Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Brasil.
II Universidade de Brasília (UnB), Brasil.
RESUMO
Neste artigo, convidamos os leitores a rejeitar classificações apriorísticas do que é ser criança e ser adulto, rural e urbano. Para alguns sujeitos com quem fizemos a pesquisa, ser criança é entendido como uma substância que atravessa não só as crianças, mas também os adultos. Levando a sério essa negação de uma alteridade fundamental entre crianças e adultos, lançamos questões epistêmicas sobre pesquisar com crianças de forma a dar conta de suas múltiplas ontologias. Inspiramo-nos pela proposta epistemológica e teórica do autor sul-africano Archie Mafeje e sua crítica às taxonomizações feitas pela Antropologia.
Palavras-chave: criança; movimento; rural; taxonomia.
RESUMEN
En este artículo, invitamos a los lectores a rechazar clasificaciones apriorísticas de lo que es ser niño y ser adulto, rural y urbano. Para algunos sujetos con quienes hicimos investigación, ser niño es entendido como una sustancia que atraviesa no sólo a los niños, sino también a los adultos. Tomando en serio esa negación de una alteridad fundamental entre niños y adultos, lanzamos cuestiones epistémicas sobre investigar con niños para dar cuenta de sus múltiples ontologías. Nos inspiramos por la propuesta epistemológica y teórica del autor sudafricano Archie Mafeje y en su crítica a las taxonomización realizadas por la Antropología.
Palabras-clave: niño, movimiento, rural, taxonomía.
Chico Bento é um famoso personagem criado pelo cartunista Maurício de Sousa. A personagem foi inspirada no tio-avô do cartunista, que morava em uma zona rural no interior de São Paulo1. Nos quadrinhos, Chico leva uma vida que seria “típica” de uma criança caipira, termo ligeiramente derrogatório para se referir a quem é da roça, da terra: anda de pés descalços, cria galinhas e porcos, tira notas ruins na escola, rouba goiabas do vizinho. As histórias de Chico Bento trazem de maneira lúdica alguns lugares-comuns tematizados pelas Ciências Sociais em se tratando das infâncias experienciadas no campo: o trabalho infantil, a defasagem escolar e outras precariedades da vida rural.
Não é propósito deste artigo fazer uma taxonomia de uma infância típica dos contextos rurais, uma etnografia do Chico Bento. Este artigo se propõe a narrar trânsitos entre o rural e o urbano, entre crianças e adultos, questionando algumas das fronteiras usadas por nós, cientistas sociais. Por um lado, nossa proposta tem por bases reflexões sobre infância nos lugares em que fazemos pesquisa. Por outro, somos fortemente inspirados pelas contribuições epistemológicas do antropólogo sul-africano Archie Mafeje, que aposta no conceito de formação social para romper com o conceito de alteridade e outras distinções taxonômicas que separam diferentes formas de vida com o fim de torná-las cognoscíveis.
Mafeje e a crítica às taxonomias da antropologia
De que forma a Antropologia lida com as diferentes formas de ser criança e de ser adulto? Desde sua constituição, a Antropologia da Criança questiona concepções de criança e infância que são pretensamente universais. Cohn (2005) discute a concepção de infância entre os indígenas Xikrin, onde as crianças se engajam legitimamente nas relações sociais enquanto agentes, afastando-se da ideia de seres incompletos que necessitam passar por uma socialização para se integrarem à sociedade. Tassinari (2009) também defende que existem múltiplas possibilidades de viver e de definir infância, discutindo a relativa autonomia que as crianças possuem ao poderem transitar entre casas, lugares e famílias em sociedades indígenas.
Schuch (2005) salienta a forma como a universalização da infância, após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tem impactado na constituição do sistema socioeducativo para adolescentes em conflito com a lei e nas tensões desse ideal universalista em sua discrepância com a experiência concreta dos adolescentes internados no sistema. Essas e muitas outras pesquisas levantam a importância de olharmos para as peculiaridades das diversas formas de ser criança existentes, afirmando que não é aplicável a todos os contextos a ideia de uma infância como fase da vida em que se dá o desenvolvimento, a socialização, a educação, a inocência e não é permitido o trabalho.
No entanto, pouco foi pensado na disciplina sobre o que é ser adulto e as diferentes formas de experienciar ser adulto. A Sociologia da Infância tematizou o par criança-adulto, opondo radicalmente os dois pólos. Um conjunto de sociólogos aposta em uma alteridade entre crianças e adultos para advogar nas “culturas infantis” enquanto um objeto. O sentido dessa agência nem sempre acompanha um rompimento com a naturalização de uma alteridade fundamental entre crianças e adultos. Seria o foco desses estudos “a reprodução interpretativa entre pares” (Corsaro, 2002), ou o “reconhecimento da autonomia das formas culturais, a inventariação dos princípios geradores e das regras das culturas da infância” (Sarmento, 2005, p. 374). Reconhece-se as crianças enquanto atores sociais relevantes, reificando-se a alteridade entre crianças e adultos.
Ariès (1981) argumenta que a infância moderna foi fruto de um processo histórico particular ocorrido na Europa ocidental. Com muita perspicácia, o autor vai mostrando como a concepção de infância foi mudando ao longo dos séculos na França, até chegar a ser uma fase separada do mundo dos adultos. A pesquisa de Ariès fortalece a antropologia da criança, que refuta uma concepção universal de infância. Todavia, um viés pouco explorado na leitura do historiador diz respeito às transformações que a concepção de adulto também sofreu na Europa no mesmo período. Ariès não só diz que a escola foi se tornando o lócus da educação das crianças por excelência, mas também fala que os adultos foram deixando de frequentá-la ao longo desses séculos. Ariès não só diz que as brincadeiras foram cada vez mais consideradas próprias do mundo das crianças. Ele também diz que os jogos dos adultos se diferenciaram das brincadeiras infantis.
Neste artigo, a escolha por não tratar de infâncias rurais não advém de uma recusa em dialogar com meninas e meninos que caibam na gaveta do rural, oriundas das classificações da sociologia rural ou de etnografias sobre campesinato. A intenção é bem mais escapar de um enquadramento do problema sustentado duplamente em uma noção de alteridade – entre crianças e adultos, entre rural e urbano – que reduz a plasticidade das formações sociais a uma taxonomia baseada em um universalismo civilizatório. Se há diferenças entre a roça e a cidade, ou entre uma criança e um adulto, essas devem ser demonstradas analiticamente, a partir de uma interlocução autêntica entre as partes. Não se deve assumir uma diferença a priori que nos impeça de desconfiar de uma artimanha muito comum nas ciências sociais – a de ocuparmos simultaneamente um lugar na relação com o outro e um lugar que lhe é exterior, ou seja, um ponto de vista que garante a nossas limitadas considerações o poder da totalidade. Nossa experiência de pesquisa indica que tratar de “infâncias rurais” como um objeto a priori pode incorrer em um erro de circunscrever nossa atenção a recortes supostos como universais (certa idade, certa localização geográfica não-urbana), deixando intactos problemas desafiantes para a lógica científica eurocêntrica com pretensão universalista.
Nossa preocupação remonta à produção teórica de Archie Mafeje, em especial à sua discussão sobre a ideologia do tribalismo (Mafeje, 1971). Mafeje desenvolve uma crítica profunda às buscas por traços e formas universais, a partir de sistemas classificatórios exógenos às realidades africanas. Para o autor, a tentativa da sociologia rural de enquadrar os modos de vida africanos a partir de conceitos forjados no continente europeu pressupunha uma divisão taxonômica das sociedades africanas a partir da chave da alteridade produzida a partir de um vetor único – o colonial, capitalista. Sem propor abandonar o debate com as teorias clássicas, Mafeje nos desafia a enxergar a produção de diferenças das formações sociais sem cair nos dualismos.
Distinções entre urbano e rural, moderno e tradicional, por exemplo, podem ser assim relacionadas ao que Mafeje chamou de ideologia do tribalismo, ou seja, um modo de produção de conhecimento que impõe a concatenação de partes que comporiam a sociedade, em vez de um olhar voltado ao que ele chama de formação social, para sua imbricação dinâmica e, portanto, plástica, móvel, nada afeita a modelos analíticos estanques e a abordagens condicionadas a priori (Borges et al, 2015).
Essa proposta teórica de Mafeje inspira a escrita deste artigo por dois vieses. Primeiro, o argumento que pretendemos aqui desenvolver é o de que a experiência de ser criança aqui descrita não se restringe ao limite do rural, em oposição ao urbano. A partir da pesquisa em um contexto denominado rural, pretendemos traçar reflexões sobre diferentes maneiras de se conceber ser criança sem fazer desta um tipo ideal rural. O conceito de formação social de Mafeje também contribui para pensar ser criança como uma produção de diferenças que convivem, sem necessariamente criar distinções de classes etárias ou uma contraposição necessária entre adultos e crianças.
Guerra de pipoca: a infância como substância
Parte importante de uma de nossas pesquisas se deu na escola da localidade conhecida como Rodeador e no trajeto do acampamento sem-terra Canaã até ela. Diariamente, as crianças das chácaras, acampamentos e assentamentos próximos ao Rodeador faziam o trajeto de ônibus. Os ônibus que as transportavam eram diferentes, de acordo com classificações etárias. O ônibus dos menores – para crianças de 4 a 7 anos – passava mais cedo. O ônibus dos maiores – mais de oito anos – passava em seguida. E os adultos pegavam o ônibus de linha para irem para suas aulas, à noite.
Abrindo uma exceção ao pesquisador, o ônibus dos menores transportou o antropólogo junto com as crianças em seu trajeto à escola. Depois de entrar, o ônibus passava em outros acampamentos, assentamentos e chácaras, buscando outras crianças. Em uma das idas à escola, acompanhei e fui acompanhado por Caetano, 5 anos, filho de Dona Rita, que me abrigou em sua casa por três semanas durante a pesquisa. Caetano estava sentado ao meu lado e pediu para eu colocar o cinto de segurança. Expliquei para ele que o cinto era muito pequeno para mim. Foi então que uma menina da turma dele, Bianca, me questionou:
Bianca: Você vai estudar? Você tá nos ônibus dos menores por quê?
Gustavo: É. Eu sou criança – disse em tom de brincadeira, curioso para ver aonde ela levaria.
Bianca: Criança? Cadê sua mochila de ir para a escola?
Gustavo: Olha aqui meu caderno – apontando para o diário de campo.
O menino da frente entrou na conversa também.
Menino: Nunca vi criança de bigode!
Bianca: Você tem carteira – disse ela apontando para meu bolso. Você não é criança.
Ao chegar à escola, na saída do ônibus, Bianca voltou a levar a sério o que eu tinha dito. “Você fica na fila dos meninos!”, indicando-me que, para ser criança, teria que agir como uma: desfazer-me da carteira, do bigode, usar mochila e entrar na fila. No ônibus dos menores, eu deveria usar o cinto.
Mais do que uma classificação que permite identificar crianças e adultos baseada em uma concepção cultural, Bianca sugeriu que ser criança dependia de um fluxo que a relacionava a um conjunto de objetos, de características. A mochila, o cinto e o ônibus carregavam consigo uma substância infantil. A carteira e o bigode continham o ser adulto em sua composição. Os atributos de adultos e de crianças não implicavam para Bianca uma consequente classificação estanque, em uma taxonomia. Eu poderia ser adulto e estar no ônibus dos menores e, possivelmente, uma criança que tivesse uma carteira não seria menos criança. O fluxo entre coisas de criança e de adultos transpunha a barreira do que era concebido como ser criança e ser adulto.
Essa ideia de que um conjunto de coisas possui propriedades “de criança” também apareceu em uma das visitas que fiz a Laura, uma das moradoras do Canaã. Na ocasião, sua mãe, que mora no interior do Piauí, estava visitando a filha e os netos no acampamento e aproveitando a estadia na capital para fazer consultas no hospital. A mãe de Laura tinha por volta de 60 anos. Laura a apresentou para mim:
Laura: Ela está doente. Veio ver um médico.
Mãe de Laura: É. Daqui a pouco estou que nem criança… Você sabia, meu filho, que gente velha vira criança? Eu não virei criança ainda, não. Falta uns anos ainda. Mas gente muito velha tem que usar fralda, tem que comer na mão dos outros. Fica dependendo dos outros, sabe? Precisa dos outros pra banhar, pra trocar de roupa…
Como para Bianca, para a mãe de Laura, ser criança é uma propriedade que emerge na relação que se tem com objetos, com necessidades, em suma, com outras coisas além de si mesmo. As fraldas comportam algo de criança. A necessidade específica de cuidados também é característica de crianças. No entanto, nem a fralda nem a ajuda dos outros para tomar banho ou trocar de roupa são exclusivos das crianças. Velhos também desfrutam desse fluxo de cuidados similar aos que se destinam para crianças. “Ser criança”, portanto, não seria uma característica exclusiva de crianças.
A noção fluida de ser criança, como substância, transformadora de quem a compartilha, fez-se notar vividamente em um dos fins de semana em que fui passar filmes no acampamento. Naquela ocasião, duas moradoras do Canaã – Rosa e Eliana – mostraram que as fronteiras entre crianças e adultos não eram pensadas ou vividas de forma rígida. Naquele domingo, com o projetor do Departamento de Antropologia da UnB, com o DVD do filme, com três refrigerantes e alguns sacos com milho de pipoca, retornei ao Canaã. Passei na casa de Dona Rita e falei para Caetano e sua irmãzinha Verônica irem para a igreja, onde eu passaria o filme. Chamei também as crianças da casa de Eliana. Quando fui para a casa de Rosa para avisar André, Kethlen e Felipe acerca do evento, ela me perguntou:
Rosa: E é só para criança, é? Eu posso ir também?
Gustavo: Pode!
Rosa: Eu sou criança também, sabia?
A afirmação de Rosa me deixou um pouco desconcertado. Não estava preparado para ouvir “Eu sou criança também” de uma mulher com três filhos e mais de trinta anos. Falei para Rosa que ela poderia assistir ao filme também. Ela se animou e disse que chamaria Eliana para ver junto. No caminho para a igreja, sem entender o ponto de Rosa, fiquei imaginando se a mãe gostaria apenas de assistir ao filme. Será que ela achou que eu negaria a ela a possibilidade de ver o filme? “Passar-se por” criança seria uma “estratégia” para conseguir comer pipoca e ver um desenho animado?
Quando chegamos à igreja, estavam todos sentados. Rosa e Eliana estavam lá. Enquanto fui montar o projetor, Eliana disse que ia estourar a pipoca. Alguns minutos depois, Eliana voltou com duas bacias de pipoca e as colocou no chão, entre as cadeiras e a imagem projetada do filme. Assim que ela regressou, coloquei o filme para começar. A animação do dia era O Menino e o Mundo, uma produção brasileira de 2014. O filme conta a história de um menino que deixa a aldeia onde vive para encontrar seu pai, que foi tentar ganhar a vida na cidade. Algumas crianças acompanharam atentamente o filme, reagindo às ações do menino e rindo. Victor, a todo o momento, levantava para pegar a pipoca da bacia no meio e parecia pouco se interessar pela animação. Leonardo e Caetano ficaram vidrados no filme.
Quando acabou a projeção, perguntei “O que vocês acharam?”, com o propósito de saber as impressões sobre a animação. Minha postura, naturalizada pelos vícios acadêmicos e pedagógicos, revelava uma ansiedade para promover um inquérito com tons dialógicos, a fim de avaliar se a atividade tinha sido produtiva ou não. A resposta à minha crença desenvolvimentista veio com o grito de Lucas, de doze anos: “Guerra de pipoca!”. Lucas encheu a mão com a pipoca da bacia e jogou em Cleonice, de 11 anos. A menina respondeu com o mesmo gesto. As outras crianças entraram rapidamente na brincadeira. As pipocas eram lançadas para todos os cantos. As crianças riam. Em meio às nuvens de pipoca que entrecruzavam a igreja, olhei para Eliana e Rosa com a expectativa de que elas interrompessem a brincadeira. Ainda não me dera por vencido, em meu afã de educador popular de fim de semana. As duas mães, sem titubear, encheram a mão com pipoca da bacia e participaram da guerra como as outras crianças. A pipoca da bacia espalhou-se toda pelo chão da igreja. Eliana, Rosa, Verônica (16 anos) e eu varremos o chão depois da guerra, enquanto as demais crianças foram jogar futebol no campinho lá fora.
A conversa com Rosa e sua participação na guerra de pipoca continuaram me desestabilizando após aquele domingo. As ações de Rosa não faziam parte daquilo que eu – e qualquer um como eu – esperaria de um adulto. Na minha expectativa, o adulto, naquela ocasião, seria sério, interromperia a guerra de pipoca por fazer sujeira, por dar muito trabalho. Um adulto chamaria a atenção das crianças para participar do debate, para externar suas opiniões sobre o filme. Rosa e Eliana tomaram outro caminho. Elas não imitaram uma criança. Elas entraram na brincadeira da mesma forma que as crianças. Isso de forma alguma era entendido como algo de que deveriam sentir vergonha, algo que as diminuísse. Em outra ocasião, ela voltou a afirmar ser criança. “Você estuda crianças, né? Então vai ter que me estudar também.”
Assim como Bianca e a mãe de Laura, para Rosa, ser criança não tem a ver com uma classificação estanque que parte de um conceito ao qual a experiência deve reverência. Em parte, porque passa longe de ser mensurável – não é uma diferença etária e nem de tamanho. Ademais, a brincadeira da criança pode impregnar o adulto. Mexe com a criança que nele pode vir a ser. Tem a ver com um fluxo que conecta pessoas, coisas, brincadeiras e desenhos animados. Ser criança vem acompanhado dos movimentos da guerra de pipoca, da queimada, do pique-cola. Deixar se afetar por músicas e desenhos animados também faz parte do fluxo. Tornam-se crianças por pegarem o ônibus dos menores e por usarem mochila, como Bianca. Eliana se faz criança cantando as músicas do MST e jogando pipoca em outras crianças. Rosa é criança também. Esse fluxo criança – ou devir, na acepção de Deleuze e Guatari (1997/1980) – não exclui adultas ou idosas no seu movimento.
O fluxo-criança, no entanto, não apaga as diferenças que se estabelecem entre ser adulto e ser criança, pois assim como o ser criança, o ser adulto tampouco corresponderia a uma categoria taxonômica rígida. Ser adulto também é um fluxo. Em vez de conectar as pessoas com desenhos animados e brincadeiras, o adulto é feito com carteira, com bigode, com bebida alcoólica2, talvez com trabalho. Existe um movimento em sentido diverso do ser criança, que é o movimento de ser adulto. E este movimento de tornar-se adulto tampouco é exclusivo das pessoas adultas, uma vez que crianças também trabalham, também bebem bebidas alcoólicas, também podem ter carteira. Em suma, existe um devir-adulto que também pode atravessar as crianças. Entre as concepções estanques do que é criança e do que é adulto cabem muitas figuras: a criança trabalhadora; o adulto analfabeto; a criança mãe; a adolescente em conflito com a lei; a liderança sem-terrinha; a mãe na guerra de pipoca ou o vizinho adulto no jogo de queimada, divertindo-se com as crianças pequenas, como veremos na próxima seção.
A guerra de pipoca da qual Rosa e Eliana participaram não deveria ser reduzida a uma lembrança da criança que elas foram3. Não é uma regressão a um estágio anterior de sua vida. Rosa e Eliana se fizeram criança no presente, simultaneamente ao movimento da guerra de pipoca. Assim como a criança que trabalha na roça não necessariamente preconiza ou antecipa seu futuro como adulto. Ela se faz adulta no presente, no movimento de seu trabalho. Criança e adulto convivem e se sucedem em um tempo que não é linear, independentemente de seu tamanho ou idade. O que normalmente chamamos passado, presente e futuro, conformam tempos coexistentes, ou melhor, um amálgama indivisível, tornando impossível separar a infância da fase adulta em uma linha ascendente e sem volta.
Considerações finais
A experiência no Canaã ensina não só sobre a importância de incorporar os adultos nas pesquisas com crianças, mas a importância de pesquisar as diferentes concepções e formas de ser adulto. Adultos e crianças são produzidos um a partir do outro, como demonstram as pesquisas que incorporaram os adultos em suas investigações com crianças. Pires (2007), por exemplo, relata o atrito que teve com uma vizinha durante sua pesquisa em Catingueira. Quando as crianças a visitavam, a pesquisadora lhes permitiu fazer coisas que, em geral, um adulto não deveria assentir. Em sua casa, as crianças podiam pular no sofá, fazer barulho e brincar de uma forma em que, nas suas próprias casas, não seria permitido. A “irresponsabilidade” da pesquisadora por não colocar limites nas crianças chegou ao ponto de uma vizinha fazer reclamações (Pires, 2007).
Ao colocar que comportar-se demasiadamente como criança a inseria em uma situação de desconfiança frente aos outros por não corresponder às expectativas do comportamento adulto, Pires (2007) apresenta que existiam, em Catingueira, noções de adulto relacionadas às noções de crianças, e que refletir sobre as concepções de infância têm relação com o que é esperado dos adultos. É bem verdade que a postura dos adultos encontrada por Pires em Catingueira foi bem diferente da que encontrei no Canaã. Não é comum que compartilhem as mesmas conversas ou debatam opiniões. Em sua experiência de pesquisa, crianças e adultos formavam ontologias completamente distintas, o que lançava desafios para Pires, que não se encaixava na perspectiva corrente de ser adulta (Pires, 2007). A autora, falando somente de Catingueira, é muito cautelosa e não universaliza a forte distinção entre crianças e adultos. O fato de adultos e crianças serem concebidos de maneira distinta em Catingueira é um aspecto importante para a pesquisa com crianças naquela região. Assim como Pires, muitos adultos no Canaã não caberiam no que se espera de um adulto em Catingueira. O que é ser adulto em determinado lugar não deveria também ser uma questão? O que é igualmente obliterado nas pesquisas que tomam essa concepção de adulto como universal?
A investigação das concepções de adulto pode afetar outras pesquisas para além da antropologia da criança. Não separar os fenômenos tidos como parte do “mundo das crianças” de fenômenos do “mundo das adultas” implica não separar as pesquisas com crianças das pesquisas sobre o Estado, Religião, Economia ou com os movimentos sociais. Sem abandonar a atenção para as vozes das crianças nas pesquisas, a discussão sobre as influências de diferentes concepções de adulto e de criança podem ser relevantes para muitos outros contextos de pesquisa.
Em vez de conceber crianças e adultos somente em termos anatômicos ou etários, a distinção entre crianças e adultos poderia ser considerada a partir de uma atenção aos seus movimentos, ou seja, para o fato de que o ser criança seria um fluxo que se coloca e coloca em movimento a todos, não somente as crianças. Decorre disso uma convivência entre crianças e adultos no trabalho, em casa, nas atividades políticas e na vida. A criança não é o passado do adulto, aqui. Essa cinestesia não é pensada como a sinestesia na psicanálise – uma lembrança individual da criança interior de cada um. O devir criança é pulsante nas crianças e adultas do presente, como foi nas crianças e nas adultas anteriormente. Crianças e adultos são o passado. Ser criança atravessa as gerações, mantendo as brincadeiras vivas. O passado e a criança não são interiores, privados. Ambos são compartilhados. Adultos e crianças são inseparáveis em qualquer linha do tempo.
Boa parte das ciências sociais – e da antropologia, em particular – também sustenta a separação entre crianças e adultos no desenvolvimento de suas pesquisas. As crianças são simplesmente ignoradas em parte considerável das etnografias, artigos e projetos de pesquisa, sugerindo que somente adultos habitam as formações sociais estudadas. As vozes das crianças são quase restritas aos campos da antropologia da criança e sociologia da infância.
Calcada na ideia de alteridade, a organização da antropologia ocorreu a partir da concepção de que crianças constituiriam um objeto à parte. Essa separação entre objetos de pesquisa – crianças e adultos – contribuiu muito pouco para refletir sobre a diversidade de maneiras de ser adulto nas etnografias. As ênfases nas vozes dos adultos nas pesquisas não renderam maiores reflexões sobre essa categoria. Nessa divisão, coube às pesquisas com crianças fazer esse tipo de reflexão, uma vez que pesquisar crianças prescinde de uma negociação com as expectativas que envolvem ser adulto (Pires, 2007). Essas investigações abrem caminho para o rompimento epistemológico com a divisão ontológica entre crianças e adultos, questionando a própria maneira como essas divisões científicas – e antropológicas – são constituídas. Se, como Rosa, adultas podem ser crianças também, temos em mãos reflexões que podem afetar pesquisas em múltiplos lugares e contextos que vão muito além das pesquisas com crianças, pois colocam em xeque a recorrente equiparação entre ontologia e alteridade.
A rejeição a uma classificação estanque nas categorias de criança e adulto coloca um desafio para a antropologia. Torna-se incompatível levar a sério essa rejeição e, ao mesmo tempo, partir de uma pré-noção de infância no desenho da pesquisa. A própria separação de uma antropologia da criança das demais áreas perderia seu sentido. Chico Bento, na tirinha que abriu este artigo, rejeitou a proposta de Geninho de delimitar em quais terras ele teria ou não o direito de transitar e usufruir. No lugar de tentar encontrar a infância típica do campo, talvez nosso desafio seja abraçar essas rejeições classificatórias e observar concretamente por onde os fluxos e trânsitos passam.
Referências Bibliográficas
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Data de recebimento: 02/02/2018
Data de aceite: 25/07/2018
1 https://super.abril.com.br/cultura/turma-do-mauricio/
2 Dona Rita disse uma vez a Caetano que cachaça não era bebida para criança.
3 Sobre a distinção entre devir-criança e a criança como memória, ver Deleuze e Guatari, 1997, p. 81.
I Gustavo Belisário d'Araújo Couto: Doutorando em Antropologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Brasil. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação de Antropologia Social da Universidade de Brasília (PPGAS/UnB), Brasil. Graduado em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB), Brasil, em 2013. Tem experiência de pesquisa com crianças, educação, movimentos sociais, política e teoria antropológica. E-mail: pp.belisario@gmail.com
II Antonádia Monteiro Borges: Doutora em Antropologia pela Universidade de Brasília (UnB), Brasil (2003). Atualmente, é Professora no Departamento de Antropologia da UnB. Dedica-se à pesquisa em teoria antropológica, com trabalho de campo no Brasil e África do Sul. E-mail: antonadia@gmail.com