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Desidades
versão On-line ISSN 2318-9282
Desidades no.21 Rio de Janeiro out./dez. 2018
ESPAÇO ABERTO
Educação democrática, sem medo e sem mordaça
Educación democrática, sin miedo y sin mordaza
Entrevista de Andréa MartelloI e Jane Santos da SilvaII com Gaudêncio FrigottoIII IV
I Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Brasil.
II Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Brasil.
III Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil.
IV Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil.
RESUMO
Nesta entrevista, o Projeto de Lei “Escola sem Partido” é abordado por diversos aspectos, por exemplo, ao analisar os efeitos da chamada pedagogia do medo. A reflexão vai se desdobrar em discussões sobre a corrosão que a educação, os partidos, a sociedade e o povo brasileiro têm sofrido diante das investidas neoliberais e do avanço do ultraconservadorismo no Brasil contemporâneo. A exploração tão pertinente desse tema não foge à complexidade das encruzilhadas ético-morais e teóricas que ora paralisam ora revitalizam os educadores brasileiros nesse contexto. Assim, a entrevista traz contundentes reflexões sobre a propagação do discurso de ódio entre crianças e adolescentes na escola, a crescente redução da educação aos interesses do mercado privado e o fundamentalismo religioso.
Palavras-chave: escola sem partido, controle ideológico, educação democrática.RESUMEN
En esta entrevista se aborda el Proyecto de Ley “Escuela sin Partido” en cuanto a diversos aspectos, por ejemplo, se analizan los efectos de la llamada pedagogía del miedo. La reflexión se desdobla en discusiones sobre la corrosión que la educación, los partidos, la sociedad y el pueblo brasileño han sufrido ante las embestidas neoliberales y el avance del ultraconservadurismo en el Brasil contemporáneo. La exploración tan pertinente de este tema no huye de la complejidad de las encrucijadas ético-morales y teóricas que en ocasiones paralizan y en otras revitalizan a los educadores en este contexto. Así, la entrevista presenta contundentes reflexiones sobre la propagación del discurso de odio entre niños y adolescentes en la escuela, la creciente reducción de la educación ante los intereses del mercado privado y el fundamentalismo religioso.
Palabras clave: escuela sin partido, control ideológico, educación democrática.
Andréa Martello – Professor Gaudêncio, agradeço sua disponibilidade para esta entrevista e vou pedir para o senhor falar um pouco da sua trajetória e por que se tornou relevante a abordagem desse movimento do Escola sem Partido em suas pesquisas.
Gaudêncio Frigotto – No plano mais remoto, eu acho que a gênese disso está na minha própria formação. Eu sou formado em Filosofia e Pedagogia. Fiz o Mestrado na Fundação Getúlio Vargas (FGV), Brasil, em pleno período de ditadura, 1974. Paradoxalmente, a ditadura se acomodou no Instituto de Estudos Avançados de Educação da FGV, que foi criado para acomodar pessoas não gratas à ditadura, mas que não podiam ser simplesmente presas ou expulsas do país. Cito o ex-ministro da Educação do Governo Castelo Branco, Raimundo Muniz de Aragão, Anísio Teixeira e Durmeval Trigueiro. Ali, eu fiz o meu Mestrado e debatia muito com o professor Claudio de Moura Castro que, desde aquela época (1974) e até atualmente, é um dos profissionais mais consultados nas reformas e contra-reformas de educação, dentro de uma posição conservadora. Ele foi meu orientador de dissertação de mestrado. Fiz a dissertação sobre a pedagogia do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), Brasil, cuja filosofia, desde aquela época, é de uma educação que serve aos industriais. Tive a oportunidade de conhecer os fundamentos desse pensamento liberal conservador e da visão meritocrática da educação. Minha tese de Doutorado foi uma crítica a esse pensamento. Desde aí, a gente vai percebendo o ideário liberal centrado no individualismo, sem analisar as relações sociais e, portanto, imaginar que o indivíduo fora destas relações pode escolher o que quer. Uma visão, ao mesmo tempo, que ignora a nossa especificidade como sociedade de capitalismo dependente e super autoritária. Os colonizadores vieram aqui impondo sua cultura e sua religião. Os deuses dos povos primevos não valiam, tinha que ser o Deus único dos colonizadores. Depois veio a escravidão, onde os escravos eram considerados animais que falavam e não podiam, também, ter seu culto. Soma-se cultura colonizadora e escravocrata ao fundamentalismo religioso autoritário e pensamento liberal conservador desde nossa origem como sociedade colonizada.
O interesse para abordar o Escola sem Partido vem, do ponto de vista imediato, das pesquisas que a gente tem desenvolvido sobre a mercantilização crescente da educação. De um lado, o controle ideológico, com a ideia de que a escola tem que ser neutra e, por outro, cada vez mais se relacionando com dimensões da privataria empresarial do mundo laico, mas que é, também, atualmente das empresas-igrejas. Só que as empresas-igrejas, hoje, unem o fundamentalismo de interesse econômico – portanto, essa questão da neutralidade – acrescido do criacionismo, e isso dá um amálgama complexo.
E o Escola sem Partido une as duas coisas. Ele surge em 2004, tão logo o presidente Lula da Silva tinha assumido a presidência da república e, logo em seguida, em 2005, criou-se o Movimento Todos Pela Educação1. Não são movimentos da mesma natureza, mas se relacionam, se superpõem e se reforçam. E ao fundamentalismo religioso, juntou-se as teses – que também estão presentes no pensamento empresarial – de que a educação é uma instância que pertence aos pais. Confundem o mundo privado da família, que obviamente tem a escolha de seus valores, com o mundo complexo, plural, diverso e laico da sociedade. E, portanto, como indica um dos fundadores da Sociologia da Educação, Émile Durkheim – que é um liberal conservador –, nós temos que arrancar a criança do particularismo da família, para que na escola conviva com todas as religiões, com todas as visões de mundo, porque ela vai ter que viver em sociedade. Senão você vai formar gente autoritária e insuportável.
Outra ideia que vem do criacionismo e não da ciência é a de que nascemos homem e mulher. Não nascemos homem e mulher, apenas nascemos e nos tornamos homem ou mulher. Não existe uma natureza fora da história. Não podemos misturar criacionismo com ciência. E o fato de existir homossexuais ou transexuais e a identidade de gênero é um fato histórico desde os primórdios da humanidade. E, portanto, à ciência não compete julgar moralmente. Ela tem que julgar cientificamente e explicar o que é determinado pela natureza ou biologicamente e/ou pela relação dialética natureza-cultura ou cultura-natureza. Mas não há razão plausível nenhuma de descriminar ou incitar ódio pela diversidade de gênero ou pela escolha sexual. Então, esse movimento Escola sem Partido junta teses muito perigosas e nefastas ao convívio humano. Porque a história já conhece isso, do ponto de vista da Inquisição, que mandou muita gente ao sacrifício e à morte por esses fundamentalismos.
Jane Santos da Silva – Dentro dessas questões que o senhor vem colocando, praticamente já foram apresentados os argumentos do que seja o Escola sem Partido. Mas em relação ao Projeto de Lei que hoje vem se fortalecendo de novo e entrando na discussão, como o senhor vê os argumentos que são colocados em defesa desse projeto? Porque neste caso já não é mais um movimento, se quer torná-lo uma política pública educacional.
Gaudêncio Frigotto – O Projeto de Lei surge, diria, de um cínico oportunismo político. Não por acaso, quem o inicia é exatamente um dos filhos do atual presidente da república. E se a gente olha quem o apresenta nos estados e municípios, são vereadores ou grupos de pouca expressão social e política, mas que se utilizam da exploração da boa fé de uma população grandemente iletrada, – para a qual se negou a possibilidade de ter aquilo que eu denomino a cidadania política, ou aquilo que Paulo Freire tanto insistia: capazes de efetivar uma leitura autônoma e crítica do mundo. Por um lado, isso. Então essas forças – que são ainda bastante obscuras – se juntam com os interesses empresariais, inclusive, desse pensamento conservador.
Se olharmos quem é favorável no parlamento a esse Projeto de Lei, veremos que são os grupos, com mais ou menos membros, dos cinco Bs: bíblia, bala, bola, bula e boi. São esses grupos que pautam esse projeto e, por caminhos diferentes, formam um amálgama de preconceitos mediante os quais revelam profunda ignorância e estupidez humana. Grande parte deles vota pelo poder, não imaginando que isso pode voltar-se contra eles mesmos. Então é um projeto oportunista, que felizmente foi arquivado nesta legislatura por embates na sociedade, no parlamento e no poder judiciário. Mas o efeito na sociedade já é real. Trata-se de acabar com os “petralhas”, os comunistas e barrar os “mortadelas”. Estes são signos: “petralha” é todo o pensamento divergente. E “mortadelas” são aqueles que não tinham direito a ascender à universidade, às cotas etc.
O que está por trás do Projeto de Lei é algo extremamente violento porque autoriza o poder a julgar como crime, ou com a possibilidade de suspender contratos, por exemplo. Isso, que na prática já vem sendo feito, mas não ainda com efeito de lei. Eles próprios sabem e dizem que, mesmo que a lei não seja aprovada, o seu objetivo está sendo atingido. Trata-se de negar a pedagogia da esperança, a pedagogia do diálogo, a pedagogia da autonomia sobre as quais Paulo Freire tanto insistiu. Não por acaso, ele é considerado inimigo a ser banido das escolas. No lugar dele, teremos a pedagogia da desconfiança, do dedo-duro e a pedagogia do medo. Por isso também que a gente ouve até o próprio presidente falando – isso depois de eleito – que Paulo Freire não vai ter vez nas escolas. Então nós não podemos imaginar que esse projeto volte na próxima legislatura e seja aprovado.
Andréa Martello – Na sua trajetória, então, o senhor acha que esse movimento é um movimento que se repete no Brasil? É uma abordagem com uma nova cara?
Gaudêncio Frigotto – Eu acho que ele tem uma reiteração com doses de letalidade diferentes daquilo que referi antes da cultura colonizadora e escravocrata e o fundamentalismo religioso. Utilizo uma categoria do Raymond Williams para entender o que vivemos atualmente no Brasil. Ele sinaliza que a dominação se faz sempre pelo poder se for necessário. Poder da lei, poder das armas. Ele está se referindo a isso. E sempre, necessariamente, para defender a propriedade privada. Mas, também se faz pela cultura do vivido, aquilo que é reiterado de geração a geração2. Nós temos na nossa cultura o DNA escravista e colonizador. Ambos são autoritários, ambos são violentos. Temos uma cultura autoritária e tivemos pouquíssimos momentos de democracia relativa. E, toda vez que existe uma ascensão de interesses amplos da população, vem um golpe ou uma ditadura. Francisco de Oliveira diz que nós estivemos um terço do século XX sob ditaduras. Porque foi de 1937 a 1945, são sete anos. E depois 21 anos da ditadura empresarial militar de 1964. Mas também golpes institucionais seguidos.
Jane Santos da Silva – Se a gente não contar os períodos dentro da Primeira República.
Gaudêncio Frigotto – Sem dúvida. E o caráter autoritário também se expressa de outra forma, pelo campo jurídico. O jurista Fábio Konder Comparato diz que, desde o Império, nós tivemos sempre duas constituições. Uma que incorpora na letra da lei sempre aspectos progressistas, aspectos das demandas populares. Mas, em seguida, existe uma constituição subliminar, que é manipulada pelas oligarquias e é essa que vale. Ele dá exemplos que estão na Constituição de 88: 1) o Marco Regulatório da Mídia; 2) o imposto de grandes fortunas; e 3) o uso do plebiscito e do referendo. Os parlamentares e mesmo setores do poder judiciário nunca moveram nada para que a mídia empresarial fosse regulada e nem sobre o imposto das grandes fortunas, reforma tributária, jurídica, política. Não é do interesse porque direta ou indiretamente eles estão implicados nisto que deveria ser regulado. Então, essa marca – você tem razão: há uma reiteração.
Entretanto, como afirmou o sociólogo Roberto Dutra3, tão logo houve a eleição: pela primeira vez, nós temos forças de extrema direita legalizadas pelo voto. E eu diria o seguinte: o fundamentalismo religioso cresce com aquilo que o próprio Raymond Williams fala num outro livro4: ele analisa que toda vez que existe um momento de pouca visibilidade, de insegurança em relação ao futuro, surgem os mais diferentes novos profetas, novas seitas etc. E, se você perceber, as igrejas neo-pentecostais, essas que não têm corpo teológico, são vendilhões do templo, são – como dizia o ex-governador Leonel de Moura Brizola – adoradores de bezerros de ouro que querem uma rádio ou uma televisão para poder ganhar dinheiro. Então, isso – lembrando os teólogos da morte de Deus, os protestantes da morte de Deus dos anos 70, 80 – são seitas contra o cristianismo, contra exatamente quem tem uma fé de fato. Manipulam sobre as categorias de exorcismo, prosperidade e milagre a boa fé do povo. A chamada teologia da prosperidade, que não tem nada de teologia, é “mercado da prosperidade”. Isto nós não conhecíamos e está relacionado às próprias crises, cada vez mais agudas, às crises do próprio sistema capitalista, as quais se resolvem hoje pela violência: violência simbólica, violência de guerras, violência de genocídios, como nós vivemos aqui no Brasil, especialmente contra os jovens pobres e negros.
Jane Santos da Silva – Professor, do ponto de vista internacional – para a gente pensar o fora do Brasil –, nesse tempo histórico que a gente está, estamos vendo também situações iguais ou semelhantes? E como elas estão se dando?
Gaudêncio Frigotto – Sim, do ponto de vista daquilo que Boaventura de Sousa Santos denomina de um clima de fascismo societal. Trata-se de um fenômeno que se alastra no mundo com o crescimento de forças sociais e partidos de extrema direita. A hipótese que desenvolvo dentro das leituras que faço é a de que isso está relacionado a formas cada vez menos viáveis, dentro da democracia real, de resolver a crise do capitalismo. Isso é abordado na minha própria tese de doutorado, que trabalha a ideia do capital humano. Os economistas, que começaram a pensar a educação como capital, como uma galinha dos ovos de ouro, para resolver o problema dos países subdesenvolvidos e da pobreza pela mobilidade social, não eram maquiavélicos, eles acreditavam que, pela educação, você incluía a todos. Como eles não analisam as relações sociais, entendem que os escravos, dias depois da abolição da escravidão, tinham igualdade de condições em relação aos seus senhores. Evidentemente que a educação não vai funcionar, não porque ela não seja importante, mas porque as pessoas não conseguem uma boa educação.
Jane Santos da Silva – O acesso.
Gaudêncio Frigotto – É, também, mas não apenas o acesso. Há determinações mais profundas. A partir do fim do socialismo real e com a apropriação privada de um salto tecnológico que muda a forma de se relacionar com a matéria, enfim, o capitalismo já não acredita que seja possível integrar a todos. Então, existem partes do mundo que o capitalismo já abandonou: parte da África, por exemplo. Mas também abandonou à própria sorte milhões de refugiados e os que vivem abaixo do nível de pobreza absoluta. Por isso, o vocabulário pedagógico mudou. A gente queria uma educação de qualidade, agora, quer qualidade total. A gente queria gente qualificada, agora, quer um indivíduo competente. A gente discutia emprego, agora, falamos em empregabilidade. Nesse contexto, com a crise dos povos imigrantes, da pobreza – não só da África, mas do Oriente Médio etc. –, há um oportunismo de forças de extrema direita dizendo que o problema são os pobres. E, portanto, na Alemanha, agora, há poucos dias, teve uma grande manifestação antinazista. Mas a questão do criacionismo não está posta nesses países, embora a Igreja Universal, que é marca brasileira, esteja em vários países do mundo, exatamente junto aos pobres, ou dominantemente junto aos pobres. Entendo que o fenômeno é mundial e que a forma de enfrentar a crise do capital e do capitalismo é cada vez mais violenta e cada vez mais excludente e, portanto, as teses de extrema direita ganham força. No Brasil, estas teses se manifestaram de forma crescente a partir de 2013.
Jane Santos da Silva – E essa força atinge também a educação?
Gaudêncio Frigotto – Absolutamente. E essa questão do capital humano foi aplicada, sobretudo, nos países pobres, mas não só. Ela nasceu nos países centrais, Estados Unidos, Inglaterra etc., mas com vistas aos países da periferia. Com a própria crise do capitalismo, elas ressurgem. Há um grupo de pesquisadores de uma universidade alemã que elege a cada ano uma não-palavra para dizer algo que degrada o ser humano. É a criação de uma palavra que tenha as características de degradar a vida humana. Em 2004, se eu não me engano, foi eleita a palavra capital humano. Existe então um componente de mercantilização da educação. Aqui no Brasil, agora com as contrarreformas do golpe de estado de 2016, a mercantilização é total.
Na Constituição [brasileira] de 1988, o ideário iluminista de escola pública, universal, gratuita e laica foi incorporado. Isso vale dizer que a educação básica se constitui num direito social e subjetivo. Isto significa que povos originários (indígenas, quilombolas) têm direito não apenas de serem incluídos, mas de reconhecer o seu idioma, seus deuses, sua cultura. Do mesmo modo, para os portadores de necessidades especiais, que têm o direito à escola pública de igual qualidade. Portanto, ali ainda há uma perspectiva de direito universal a uma escola de qualidade para todos, mesmo que estejamos numa sociedade de classes. As oligarquias puseram em prática, e de forma crescente, seus interesses privatistas. Agora, não há lugar para todos para uma educação de qualidade. Aquilo que na década de 40 se dizia da formação para o SENAI, depois do Sistema S5, que tinha que ser uma educação que serve ao industrial, portanto ao mundo privado, hoje as contrarreformas na educação generalizam para o que serve ao mercado. Os maiores grupos empresariais do mundo estão aqui. E é também um controle privado, portanto ideológico, do conteúdo e da forma de educar. Aí que entra a junção do Escola sem Partido com a privataria na educação. O controle ideológico da escola é um movimento que tem suas raízes nas relações sociais. Na disputa, portanto, do projeto de sociedade e de educação.
Andréa Martello – Eu estou pensando aqui nesse movimento de mercantilização do saber, que é algo da nossa era tecnológica. O senhor está falando de uma forma como se a educação tivesse antes um propósito emancipador, de criar sujeitos de direito, cidadãos e a educação passa a ser algo de um saber reduzido, um saber que vai ser somente operacional.
Gaudêncio Frigotto – Sim, é um saber pragmático, um saber trabalhado de forma diversa de acordo com os grupos sociais. Ou seja, nós voltamos a uma espécie de visão malthusiana da sociedade. Malthus6 dizia que era necessário controlar a natalidade dos pobres ou então estimular as pragas para facilitar o aumento de sua mortalidade, e assim os filhos da classe dele poderiam casar cedo e ter filhos e, mesmo assim, poucos morreriam de fome. Ou como dizia Desttut de Tracy7, no final do século XVIII, que todo sistema educacional bem administrado deveria ter dois sistemas: um restrito, prático e rápido, para aqueles que deveriam aprender logo o duro ofício do trabalho e que estavam destinados à dureza do trabalho. E outro amplo e demorado, para quem tinha tempo de estudar e que estava destinado a ser dirigente.
Vemos, então, que a estrutura dual da educação é inerente à sociedade de classes, sob o capitalismo. Mesmo a França, que foi a mais republicana da modernidade, foi lá que começaram os estudos da dualidade, com Jean-Claude Passeron, Pierre Bourdieu etc. Mas, hoje, nós temos uma diferenciação dentro da dualidade. No fundo, os organismos internacionais sugerem que os sistemas educacionais devem oferecer modalidades tão diferentes quanto são os diferentes grupos sociais. Há muitos anos pesquiso o ensino médio. Mas a pergunta pertinente é: que ensino médio? O Ensino Médio das escolas particulares, mas dentro das escolas particulares, as escolas que de fato estão no top; o Ensino Médio da Escola Alemã ou Americana, o Ensino Médio dos Institutos Federais, do Colégio Pedro II, o Ensino Médio, enfim, estadual, Programa de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio (Proeja), concomitante, subsequente, enfim, é uma infinidade. A mensagem que os organismos que representam o capital e o mercado passam é: não há lugar para todos. No fundo, essa também é uma estratégia política. Que é dizer: “bom, você teve chance, agora o problema é seu”. No fundo, é uma coisa realmente cínica.
Jane Santos da Silva – E como que o senhor vê os impactos dessa situação, desse modelo, não só do projeto? O senhor já afirmou que mesmo que o projeto não seja considerado válido como lei, ele já está causando alguns impactos. Quais seriam estes impactos na vida da comunidade escolar e, principalmente, na figura do docente, do professor?
Gaudêncio Frigotto – Esse impacto, assim como colocava na questão anterior, vem crescendo sob diferentes aspectos. Até a década de 1950, como Florestan Fernandes nos mostrava, mesmo os professores que vinham da classe popular eram considerados funcionários da burguesia. Ou seja, você tinha uma escola pública para poucos, mas era uma escola de qualidade para esses grupos. Na medida em que a escola se universalizou ou tendeu a se universalizar – especialmente o ensino das primeiras quatro séries, depois o Ensino Fundamental –, também mudou o perfil do professor. O professor é cada vez mais oriundo de classe média baixa e de classe popular. Nós que trabalhamos nas licenciaturas sabemos disso. Então, do ponto de vista da sociedade, este é um trabalhador menor. Tanto que se você olhar a curva de salários até os anos 40, 50, um professor ganhava o mesmo que um economista, um contador, um profissional liberal. Hoje, o salário está lá embaixo. E a justificativa é que são muitos. Mas isto gerou um problema. Na medida em que esses professores provenientes das classes populares foram se formando, fazendo especialização, fazendo Mestrado e Doutorado, eles foram tendo outra leitura da realidade política, social e econômica de nosso país. Isto se reflete na emergência de sindicatos docentes, de associações científicas e culturais onde se disputa a visão de mundo dominante.
A década de 80 foi fecunda tanto do ponto de vista de visões críticas, quanto de organização do magistério da escola pública. Foram retomadas as idéias de Paulo Freire e, nos cursos de pós-graduação, especialmente as contribuições de Antônio Gramsci, Karl Marx e pedagogos russos como Pistrak. Já na década de 90, quando entra o ideário do neoliberalismo, qual é a reclamação? Que a formação dos professores tinha teoria demais, coisas inúteis, sociologia demais, filosofia demais, história demais. O que o pensamento neoliberal postulava é que professor tem que aprender a ensinar e, portanto, o que importa são as técnicas do bem ensinar. Não era isso que se dizia? Pois bem. Mas não conseguiram retirar as disciplinas de sociologia, filosofia, geografia, arte etc. A supressão ou diluição destas disciplinas não foi possível porque existia uma pressão na sociedade. Então, quando foi possível isso? A partir do Golpe de Estado de 2016, com a contrarreforma do Ensino Médio, que liquidou com a sociologia, educação física, história, filosofia e arte.
O que temos que tomar consciência é que a burguesia brasileira ou classe dominante nunca se importou de fato em construir uma nação autônoma, o que exigiria forte investimento em ciência, tecnologia e universalização da educação básica de qualidade. Nossa burguesia é antinação, antipovo, anticiência e por isso nega sistematicamente o direito à educação pública. Isso fica evidente quando o poderoso Ministro da Educação do Governo Fernando Henrique Cardoso, Paulo Renato de Souza, afirmava que não precisávamos ter muitas universidades, pois poderíamos comprar. Nós podemos comprar lá fora a ciência e a técnica. E isso, dizia ele, fica mais barato.
Agora, o que postula o movimento Escola sem Partido é controle ideológico e moral: “cala a boca, professor! Você não tem o direito de ter autonomia de falar”. O que dá alguma esperança é que, quando se avança ao nível irracional, há reação na sociedade. Um exemplo disso é a reação feita pelo poder judiciário e pela grande mídia à atitude de grupos favoráveis a Bolsonaro, na véspera do segundo turno da eleição presidencial, que diziam que se não ganhassem era porque seria fraude. E, como manifestação de força irracional e orquestrada, entraram em vinte ou trinta instituições universitárias ameaçando dirigentes e professores para criar na opinião pública que aí estava o antro da conspiração. Nós nunca aparecemos como universidades públicas assim defendidos pela grande mídia empresarial. A TV Globo fez extensas matérias nos principais noticiários nacionais em defesa da livre expressão e da universidade. Pensadores e jornalistas ultraconservadores defendendo a liberdade de expressão – até porque futuramente poderia pesar para eles também. Então, aí houve um recuo. Isso nos dá um alento pelo menos. Isso mostra o teor do que se quer: é tornar o professor um robô e isso corresponde ao que é a fábrica.
Uma ilustração do que poderá vir no desmanche da escola pública e da função docente se a contrarreforma do ensino médio vigorar foi por mim testemunhada recentemente. Fui convidado para uma conferência na Central Única dos Trabalhadores (CUT) - Sul, antes da eleição, já com a contrarreforma do ensino médio aprovada. Na parte da manhã, tinha uma oficina com sindicalistas e, de tarde, uma conferência aberta. Aí, vieram muitos professores do estado e um professor disse o seguinte: “olha, eu saí de uma reunião de manhã da primeira escola que aplica a contrarreforma do ensino médio em Florianópolis. Quem é que vai dirigir o projeto pedagógico, conteúdo, forma e método, com isso tudo que vem acontecendo?”. A diretora vai ser a síndica e o professor vai ser um robô. Agora, qual é o impacto? O impacto é essa pedagogia do medo. Eu tenho andado muito, de 2016 para cá, em pelo menos 20 estados, debatendo com sindicalistas e com professores, do ensino básico, sobretudo. Eles estão, apavorados, com medo de perder o emprego e muitos estão absolutamente por fora do que está acontecendo. Isso é dramático!
Andréa Martello – Eu ia perguntar isso, professor. Até que ponto esses professores se veem, não digo seduzidos, mas compactuando com essa visão que vem da mercantilização do saber? Isso às vezes me preocupa mais do que o professor que sabe o que está acontecendo e está acuado, mas vai procurar formas de resistir, de se defender. Mas têm aqueles que às vezes agem de outra forma, como se estivessem defendendo outro lado, defendendo posturas da eliminação da filosofia e da sociologia, por exemplo.
Gaudêncio Frigotto – É, acho que isso diferencia muito de região para região e eu diria que tem a ver com uma sociedade ultraconservadora. A questão da religião pesa muito. Determinada forma de religião, não a religião em si. Religião é uma escolha privada e legítima, assim como o fato de ser agnóstico ou ateu. Mas percebo, por um lado, o conservadorismo e, de outro, pouca cultura política. Não no sentido de partido, mas no sentido sociológico. Como diz Rancière, política é a luta, é a consciência de que você está sendo lesado em um direito e, portanto, você se organiza para pôr na agenda a conquista desse direito. Creio que nós deveríamos fazer uma profunda revisão, nas universidades, na forma como estamos formando esse professor. Talvez a gente tenha dado pouca base, seja ainda uma formação em que falta aquilo que o Florestan Fernandes diz, sobre dar os instrumentos para que esse professor analise a realidade onde ele está. Talvez, o nosso discurso seja progressista, mas os instrumentos para ler a realidade ainda não. A questão coletiva que talvez tenhamos que ter presente é: o que o professor tem que dominar do ponto de vista de sua formação, para ter uma leitura crítica da realidade? Entendo que os sindicatos também devem ter um papel importante em relação ao professor. Por exemplo, não por acaso, o Paraná é um dos estados que mais avançou e onde também as ocupações das escolas foram extensivas. Por quê? Porque lá o sindicato tem um importante papel político por todo o estado, eles têm amplo material de formação política.
O professor está desprotegido das ferramentas de análise e sob um forte peso conservador, exatamente por falta dessa análise política. Tenho uma percepção a partir de uma pesquisa nos Institutos Federais de Educação Ciência e Tecnologia. São mais de seiscentos campi e, destes, a maioria no interior. Uma política de interiorização do ensino público de nível médio e superior sem precedentes. Os professores são jovens preparados nas universidades em todas as áreas de conhecimento e a maior parte com mestrado ou doutorado, ganhando um salário digno. A visão de sociedade e a cultura política são sofríveis. Irão pagar um preço alto no futuro próximo por esta alienação política. O mesmo se pode falar de grande parte dos professores universitários. Nossa frágil democracia e cultura autoritária sabotam a cultura política não só das massas, mas dos grupos sociais cultos. A visão política e social mais medíocre é da classe média, sobretudo em seus segmentos mais ricos. Papagaios de telejornal.
Andréa Martello – Mesmo tendo todos os recursos disponíveis.
Gaudêncio Frigotto – Recentemente, fui ao Mato Grosso dar uma conferência pós-eleição. O tema era sobre ensino médio integrado, mas, de imediato, mostrei que as contrarreformas na educação e o que sinalizam as forças sociais eleitas para governar o país a partir de 2019 têm dois focos fundamentais: acabar com o integrado e acabar com essa brincadeira de muita gente pesquisando nas universidades e nos Institutos Federais. A tese conservadora em voga é: os institutos vão ter que fazer a formação profissional e ponto! Vai atingi-los na medula! E muitos apoiaram abertamente essas forças sociais.
Acabo de divulgar a publicação do livro por mim organizado a partir de uma pesquisa ao longo de cinco anos – Os institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, relação com o ensino médio integrado e o projeto societário de desenvolvimento. O livro mostra, como assinalei acima, que se tratar da mais ampla política pública que houve no Brasil de interiorização do ensino médio para cima. O que significa acabar com isso, do ponto de vista do direito de milhares de pessoas? Lá em Roraima, existem 20 comunidades de povos originários dentro do Instituto Federal, falando dialetos diferentes. Você vai acabar com isso? Querem acabar, e vão acabar se deixarmos! Então, o estrago está feito, porque é a pedagogia da exclusão e do medo que querem impor. Mas não será sem embate, sem luta, sem resistência.
O Noam Chomsky, numa conferência em Havana, em 2006, disse que o mundo hoje é governado pela violência e o medo. E o Antônio Cândido tem um texto, de 19728, “O caráter da repressão”, que foi reeditado agora no contexto do golpe, onde ele cita ao final o pensador Alfred de Vigny que, na prisão, dizia: “Não tenha medo da pobreza, nem do exílio, nem da prisão, nem da morte. Mas tenha medo do medo”. É interessante que o Mia Couto escreve um pequeno texto, “Murar o medo”, onde cita Eduardo Galeano ao final, que diz: “os civis têm medo dos militares, os militares dos civis, os militares têm medo que faltem armas, as armas têm medo da falta de guerras, quem tem emprego tem medo de perder o emprego. E se calhar, em bom português, há aqueles que têm medo que o medo acabe”9. Em minhas conferências, sempre lembro que individualmente a gente tem medo e, por isso, nós temos que reforçar o coletivo, as instituições. Isso que a filósofa Marilena Chauí disse na USP recentemente: “nós não podemos cair na cilada de agora ir para rua gritar. Não é a hora! É hora de nos recolhermos e de nos protegermos na institucionalidade”10. Sindicatos têm que ter força jurídica, as instituições têm que ter força jurídica.
Andréa Martello – Professor, eu fico sempre me perguntando: que efeitos isso vai ter para a infância e para a juventude? Dado que virá esse novo governo, haverá um apoio político mais forte a essas ideias. Como o senhor vê essa cultura do medo? É uma cultura do medo que vai se propagar? Que efeitos em termos psíquicos ou subjetivos isso tem para infância e para juventude?
Gaudêncio Frigotto – Esse é um tema que temos que levar a sério. Vejo duas, em especial para a juventude, mas que já atingem a infância. A cultura da prepotência tem surgido mais do que o medo entre os jovens, na minha visão. E isso é um crime! Tenho alguns relatos sobre isso. Uma professora de um CAP (Colégio de Aplicação Pedagógica) me contou sobre um grupo de seis ou sete alunos, do quinto ano do ensino fundamental, que, no dia seguinte (às eleições presidenciais), apareceram com bottons e uma agressividade com os outros alunos. Até uma aluna dizer: “gente, nós somos colegas! O que é isso?!” Então, essa professora fantástica disse para esses meninos o seguinte: “o que vocês sabem sobre comunismo? O que é a suástica?”. E foi explicando. Esses meninos ficaram em silêncio e se deram conta de algo que errado estava acontecendo com eles. Ou então, no caso em que um jovem entra num Instituto Federal, no dia seguinte, com a bandeira do Brasil, com as medalhas. E, no final da aula, ele pergunta para o professor de história: “professor, mas por que o senhor não falou do presidente eleito? O senhor é marxista, é comunista...”. E o professor perguntou: “vem cá: o que é comunismo para você? E porque eu deveria falar do presidente se a matéria é outra?” Mas ele não sabia nada! Então, é uma mutilação de juventude e de infância naquilo que é mais fundamental. Cria-se um sentimento de ódio, um sentimento de eliminar, de não debater, não aceitar a pluralidade, que é sadia. Criou-se o ódio ao outro, ao diferente. E começa-se a eliminar pessoas pelo fato de serem diferentes.
Nas vésperas da eleição presidencial de 2018, o clima de rua estava complicadíssimo. Ao ponto de um cara chegar para um gay e dizer: “os seus dias estão contados!”. Ou o caso de uma menina que num dia estava aqui na universidade tremendo, pois havia sido ameaçada na rua pelo tipo de cabelo e pela cor da pele. É impressionante, pois isso não acabou. Não acabou inclusive por autoridades recém eleitas. Valeria à pena ver as falas que estão no YouTube do evento organizado por psicólogos e artistas: “Precisamos falar sobre o fascismo!”. Neste debate, fiz uma pequena análise sobre este tema. O perverso é que se está formando atitudes neofascistas na infância e juventude.
Jane Santos da Silva – Isso lembra muito o modelo do Hitler!
Gaudêncio Frigotto – Isso são ovos de serpente. Mark Bray11, historiador americano, escreveu cinco lições para os antifascistas. Acho até que ele pesquisa na área de educação. Ele disse que é preciso ver, nos sinais menos evidentes, o fascismo. O racismo nosso que está presente já é um elemento estrutural! Mas também o desprezo e ódio aos grupos LGBT, aos pobres e às opções políticas de comunistas, socialistas ou ao pensamento crítico em geral.
Jane Santos da Silva – Nós teríamos três elementos que são muito fortes no fascismo: primeiro o racismo, o segundo é a questão do machismo e da perseguição à mulher, e o terceiro é a homofobia. Esses três parecem que viraram três pilares para o fascismo.
Gaudêncio Frigotto – Um elemento, que também estava em Hitler, era o ódio ao imigrante. Começou por ali. Podemos pensar, no caso do Brasil, que isso se apresenta em relação ao nordestino, em relação aos venezuelanos e aos cubanos. A “expulsão” ou retirada forçada dos médicos cubanos e agora o não convite aos governos da Venezuela e de Cuba para a posse presidencial são signos preocupantes.
Andréa Martello – Sim, nós estamos criando pilares para o fascismo. Professor, e se o Projeto de Lei for aprovado, qual seria o papel do Supremo Tribunal Federal, considerando suas recentes decisões sobre a autonomia universitária? A gente pode entrar em um processo de judicialização da vida educacional e de grandes discussões no tribunal sobre essa forma de ver a educação?
Gaudêncio Frigotto – Sem dúvida! Não acredito que o Supremo vá cometer essa indecência e essa insensatez caso um dia este projeto seja aprovado. Agora foi barrado. Até pela prerrogativa, pelo parecer do Luís Roberto Barroso, não acredito. Mas, como nós ouvimos o Eduardo Villas Boas falar ao jornal o Estado de São Paulo que houve uma interferência militar para que o Supremo Tribunal Federal não concedesse liberdade a Lula da Silva, pois seria o caos, tudo é possível. E o presidente do Supremo “colocou” lá um militar general como assessor! Este general será, pelo que se informou, ministro da defesa. Mas foi substituído por outro para estar junto ao presidente do Supremo. Também uma tutela perigosa para a sociedade e para a instituição militar. Há, nisto, uma inversão do Estado democrático de direito.
Mas como me referi acima, também há uma reação forte da sociedade. O editorial do Globo de domingo, por exemplo, é surpreendente nesse sentido, defendendo pluralismo. Por isso, não acredito que isso prospere indefinidamente. O Supremo vai se pronunciar em breve, do ponto de vista de interpretação da Constituição. Evidentemente, neste caso, teria que mudar a Constituição e dizer que não existe liberdade de expressão no Brasil.
De todo modo, acho também que está se criando uma conscientização. Existe um movimento da escola democrática com um site organizado pelo professor da Universidade Federal Fluminense Fernando Penna. Este professor, Felipe Queiroz e eu organizamos o livro: Educação democrática: antídoto ao Escola sem Partido. A violência do lado de lá despertou e acendeu um sinal do lado de cá. A não aprovação do Projeto de Lei que legalizava o Escola sem Partido na atual legislatura prova o vigor dessa resistência. Nós temos que continuar e ampliar o trabalho com os alunos e os pais e a sociedade. Aqui na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil, temos feito isso. Mostrar o quanto isso é perigoso para a sociedade.
Andréa Martello – Professor, estamos nos encaminhando para o fim da entrevista, mas gostaria de apresentar mais algumas perguntas. Como estamos no curso de Pedagogia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, a UNIRIO, Brasil, o tempo todo estamos debatendo certas questões. Como fica para o senhor a questão da formação do professor? Ou ainda, qual o papel dos movimentos sociais nesse processo? Por fim, quais trabalhos e pesquisas o senhor indica que auxiliem e possam contribuir para entender esse fenômeno?
Jane Santos da Silva – Inclusive, quando Andrea coloca aqui a questão dentro dos cursos, principalmente de formação de professores, uma coisa que me incomoda muito é que parece que a questão das subjetividades ganhou mais evidência.
Gaudêncio Frigotto – Isso está ligado àquilo que a gente falava em relação a como essa massa de professores que formamos – hoje, grande parte à distância – percebe sua formação e como esta os prepara para uma leitura crítica da realidade. Os movimentos sociais sempre tiveram grande papel nas lutas prodireitos, mas no momento, parece-me que há uma espécie de paralisia que revela que ainda não nos damos conta da gravidade do momento que vivemos em relação ao retrocesso em todas as áreas que dizem respeito a direitos e, portanto, à vida digna. Entendo que o grande desafio é o de buscar uma agenda de tarefas, lutas e formas como pauta permanente. Uma dessas é exatamente de como está sendo liquidado o espaço público, o trabalhador público e o espaço público, de tal sorte que tudo aquilo que é direito universal some. O historiador Eric Hobsbawm sublinha que nem a igreja, nem as empresas ou nenhuma organização não-governamental pode garantir direitos universais. Só o Estado pode fazer isso, ainda que não esse Estado, pois nós temos que democratizá-lo mais para que efetivamente garanta esses direitos. Então, essa é uma agenda dos movimentos sociais, das organizações docentes, das instituições científicas e culturais pelo resgate do espaço público, dos direitos universais e a garantia de satisfazer as necessidades básicas.
Outro ponto incide exatamente sobre aquilo que é fundamental na sociedade: a liberdade de pensamentos, contra qualquer forma de doutrinação, seja religiosa ou outra. Então, nós teríamos que discutir o que está acontecendo na mídia empresarial, na manipulação psicossocial, política e cultural. Enfim, temos que criar mecanismos, barreiras e resistência ativa. A educação, a saúde, a cultura não podem ser mercadoria, pois são direitos universais. Para isso, entendo, também, que no plano político há um grande papel do campo de esquerda brasileiro. O campo de esquerda hoje tem que fazer uma profunda reflexão na sua diversidade. Não vamos querer unidade forçada, mas uma unidade sob pontos que convergem e que são a maior parte. Ou seja, qual é a pauta que une as forças democráticas, mesmo que alguns grupos não pertençam à esquerda? Que não sejam socialistas, que não sejam, enfim, marxistas. O ponto em que nós estamos tem que partir dessa unidade. Porque o campo conservador e de direita construiu essa unidade nacional na sua diversidade. O Movimento Todos Pela Educação e o Escola sem Partido são expressões não só de educação, mas da educação na sociedade. Porque aí é fundamental o controle das cabeças. Perguntaram ao professor Leandro Konder (in memoriam), quando voltou do exílio, como ele via a direita brasileira. Ele dizia que a direita brasileira tem uma unidade profunda, substancial e inabalável, seja ela cientificista ou não, seja ela agnóstica ou religiosa. Ela tem uma unidade substancial, profunda e inabalável para que o povo não se organize e construa uma democracia. Sempre recorro a isso nas minhas falas: qual é a nossa unidade, profunda e substancial e inabalável?
Em relação a essa agenda, vejo hoje alguns caminhos. No campo mais amplo, acho que a Frente Brasil Popular tem essa característica, pois congrega, aproximadamente, 60 organizações políticas, sindicais, movimentos sociais, movimentos populares, sindicatos etc. Os campos específicos têm que confluir para uma força que seria um arco democrático, seria um arco em defesa da democracia, da esfera pública e dos direitos básicos, sociais e subjetivos. Percebo que esse é o desafio e nosso papel fundamental. E por quê? Porque se o eleito fosse, digamos o Fernando Haddad, nós teríamos outra agenda, que seria revogar as contrarreformas. Essas que liquidam com a esfera pública e o trabalhador público. Nesse momento, temos que pensar que o estrago seja menor. Não vejo, em curto prazo, a não ser que os erros brutais que estão sendo cometidos se ampliem e mostrem à sociedade que foi uma eleição ganha com notícias falsas, calúnias e a negação ao debate público. Mas eles verão que o céu não é de brigadeiro, porque as contradições são profundas, externas e internas e já estão sendo vistas. Com a força do Estado, violência das leis e das armas, você pode conter essas contradições, mas não indefinidamente.
E nas nossas instituições, na linha que eu coloquei antes, nós temos que organizar um currículo que viabilize a formação de gerações de professores que tenham o domínio para entender, na expressão de Antônio Gramsci, como funciona a sociedade das coisas (mundo físico, biológico, etc.), mas também como funciona a sociedade dos seres humanos. Neste particular, o estudo da sociologia, economia, psicologia, filosofia, literatura, arte etc., são imprescindíveis. O capitalismo está destruindo as duas bases da vida: a natureza e o trabalho. Sim, é um diálogo muitas vezes difícil, porque a academia também formou igrejas que quase não se falam. Então é essa questão de isolar a subjetividade da objetividade. Tem um texto que eu gosto muito, do Karel Kosik12, em que ele diz: como se constitui o ser social? O ser social se constitui primeiro, necessariamente produzindo a sua existência para o trabalho. É pelo trabalho que o ser humano produz os bens e produz as instituições. E nessas relações sociais de produzir a sua subsistência e as instituições, dependendo das relações sociais que você está posto aí, se são escravistas, se são capitalistas etc., você vai construindo a subjetividade. Então, ele vai dizer que não tem sentido os sujeitos sem as coisas, mas não tem sentido também as coisas sem o sujeito. Então o que é a realidade humana? É a unidade do objetivo e o subjetivo! Percebo que esse é o grande problema de determinadas posturas chamadas pós-modernas, ou do pós-modernismo. Para mim, o fio para aprofundar isso é dado por Fredric Jameson, quando ele indica que o problema não é condenar ou celebrar o pós-modernismo, mas de entender o porquê de seu surgimento e o que significa política, social, econômica e culturalmente.
Entendo que o que se apresenta hoje na sociedade brasileira tem que nos colocar não em nocaute, paralisados, mas numa profunda reflexão no campo acadêmico, no campo político, no campo das nossas crenças, etc. E não abrirmos mão do horizonte daquilo que é fundamental: lutar para que se construam relações sociais onde haja efetivamente oportunidades para que as pessoas desenvolvam as suas capacidades e dar a elas o direito ao conhecimento historicamente produzido, à cultura, à arte, ao lazer. Hoje, a ciência poderia liberar o ser humano para trabalhar cinco ou seis horas no máximo, por dia, para termos tempo de cultivar o humano. E é essa a grande luta hoje, entre a forma que o capitalismo assume destruindo, ou dar um salto além do capitalismo, chame de “sociedade do bem comum”, “sociedade do sol”, ou “sociedade do bem viver”, como outros dizem. É que o capitalismo não tem nada mais a oferecer. Ele só está destruindo direitos e a natureza. E as forças que vocês estavam chamando atenção, que estão avançando no mundo e no Brasil, atualmente, são as que aprofundam o caráter destrutivo do capitalismo. Os seres humanos não foram criados para isso, como lembra o historiador Erick Hobsbawm. Eles não podem ser sacrificados. Essa é a consciência que temos que criar. Tudo ao contrário ao ideário do ódio, da eliminação dos que assim pensam, protagonizado pelos defensores do movimento Escola sem Partido. Nossa luta é outra, não é do ódio nem da eliminação do outro, mas da luta pela justiça.
Andréa Martello – Professor, muito obrigada!
Jane Santos da Silva – Ficaríamos aqui conversando por muitas horas.
Gaudêncio Frigotto – De nada!
Data de recebimento: 21/11/2018
Data de aceite: 22/12/2018
1 Organização não-governamental criada em 2005 por um grupo de líderes empresariais e composta por diversos setores da sociedade brasileira, cujo objetivo declarado é de assegurar o direito à Educação Básica de qualidade para todos os cidadãos até o ano de 2022.
2 WILLIAMS, Raymon. Palavras-chave – um vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo: Boitempo, 2007.
3 Disponível em <http://www.ihu.unisinos.br/584206-a-maior-vitoria-da-direita-na-historia-politica-brasileira-entrevista-especial-com-roberto-dutra>. Acesso em: 30 out. 2018.
4 WILLIAMS, Raymond. Towards 2000. London: Chatto & Windus, 1983.
5 Conjunto de nove instituições de ensino profissionalizante, ou seja, de interesse de categorias profissionais, estabelecidas pela Constituição brasileira: Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR); Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC); Serviço Social do Comércio (SESC); Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (SESCOOP); Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI); Serviço Social da Indústria (SESI); Serviço Social do Transporte (SEST); Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte (SENAT); e Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE).
6 MALTHUS, Thomas Robert. Essay on the Principle of Population. Vol. 2. Nova York, 1961, p. 179-80. In: HUNT & SHERMAN. História do pensamento econômico. Rio de Janeiro: Vozes, 1987.
7 DESTUTT de TRACY, Antoine. Èlementes d’ideologie. Paris: Coutecier Imprimeurs Librarie.
8 CÂNDIDO, Antônio. O caráter da repressão. Disponível em <http://www.outraspalavras.net/Brasil>. Acesso em: 13 abr. 2017. Texto originariamente publicado em 1972, no Jornal Opinião.
9 Disponível em <https://papodehomem.com.br>. Acesso em: 07 fev. 2017.
10 Disponível em <https://www.fflch.usp.br/1034>. Acesso em: 20 out. 2018.
11 BRAY, Mark. Cinco lições para antifascistas. Disponível em <https://revistaserrote.com.br/2018/03/cinco-licoes-de-historia-para-antifascistas-por-mark-bray>. Acesso em: 20 out. 2018.
12 KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
I Andréa Martello: Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Professora Adjunta do Departamento de Fundamentos da Educação, na Escola de Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Brasil. Realiza pesquisa e extensão na área da infância, juventude e formação de professores. E-mail: deamartello@gmail.com
II Jane Santos da Silva: Bacharel e licenciada em História e em Ciências Sociais. Mestre em Política Social e Trabalho e doutora em Serviço Social. Atualmente é docente da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Brasil, no Departamento de Fundamentos da Educação da Escola de Educação. Sua pesquisa concentra-se na área de história das políticas educacionais. E-mail: jane64santos@gmail.com
III Gaudêncio Frigotto: Graduado e Bacharel em Filosofia e graduado em Pedagogia pela UNIJUI, Brasil, mestre em Administração de Sistemas Educacionais pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, Brasil, e doutor em Educação: História, Política, Sociedade, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Professor associado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil, e professor Titular (aposentado) em Economia Política da Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Brasil. E-mail: gfrigotto@globo.com