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Desidades
versão On-line ISSN 2318-9282
Desidades no.24 Rio de Janeiro jul./set. 2019
ESPAÇO ABERTO
Sintomas do mal-estar na universidade brasileira: onde estamos e para onde vamos? - Mesa redonda realizada no “Ciclo de Debates: Subjetividade, Descolonialidade e Universidade”
Symptoms of malaise in brazilian university: where are we and where are we going? - Round-table organized for the “Cycle of Debates: Subjectivity, Decoloniality and University”
Síntomas del malestar en la universidad brasileña: ¿dónde estamos y para dónde vamos? - Mesa redonda del “Ciclo de Debates: Subjetividad, Descolonialidad y Universidad”
Debatedoras Claudia Andréa Mayorga BorgesI e Fernanda Costa-MouraII, Mediadora Sabrina Dal Ongaro SavegnagoIII
I Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil.
II Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil.
III Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil.
RESUMO
O encontro aqui transcrito discute os sintomas do mal-estar na universidade brasileira e aponta pistas em relação a como re-situar o papel da universidade pública na construção de mediações simbólicas necessárias ao debate público dos desafios do tempo presente. Discute-se a condição subjetiva dos alunos incluídos pelos processos de democratização das universidades e o tipo de herança que se constitui com as cotas, sociais e raciais, que demanda que a universidade repense seu modo de operar. Defende-se que a ação universitária deva ser mais participativa na sociedade, através de programas de extensão, por exemplo, bem como se evidencia que está ao seu alcance buscar uma maior integração, no sentido de aproximar disciplinas distintas, mas necessárias à ação em um campo comum.
Palavras-chave: universidade pública; transmissão; extensão universitária.ABSTRACT
The conference transcribed here discusses the symptoms of malaise in brazilian university and points to clues as to how to reposition the role of the public university in the construction of symbolic mediations necessary to the public debate of contemporary social challenges. The discussion also involves the subjective condition of students included in higher learning institutions through the democratization of the accessibility to universities and the heritage of social and racial quotas, which demand a reflection on and a readjustment of the way in which the university functions. It is argued that university practices should be more engaged with society, through community outreach programs, for example. It is also demonstrated that it is within university’s reach to search for greater integration, in the sense of bringing together disciplines which are different, but all necessary for action in common ground.
Keywords: public university; transmission; university extension.
RESUMEN
El encuentro aquí transcrito discute los síntomas del malestar en la universidad brasileña y comparte pistas en relación a cómo resituar el papel de la universidad pública en la construcción de las mediaciones simbólicas necesarias para el debate público sobre los desafíos del tiempo presente. Se abordó la condición subjetiva de los alumnos incluidos como resultado de los procesos de democratización de las universidades, el tipo de herencia que se conforma con las cuotas, sociales y raciales, que demanda que la universidad repiense su modo de operar. Se defiende que la acción universitaria sea más participativa en la sociedad, a través de programas de extensión, por ejemplo, así como se pone en evidencia que está a su alcance buscar una mayor integración, en el sentido de aproximar disciplinas distintas, pero necesarias para el desarrollo de la acción en un campo común.
Palabras clave: universidad pública; transmisión; extensión universitaria.
Sabrina Savegnago – Boa tarde a todos e a todas presentes. Vamos dar início à terceira mesa de nosso Ciclo de Debates “Subjetividade, Descolonialidade e Universidade”. Hoje, temos como tema “Sintomas do mal-estar na universidade brasileira: onde estamos e para onde vamos?”. Participarão como debatedoras desta mesa a professora Claudia Mayorga e a professora Fernanda Costa-Moura. Inicialmente, eu gostaria de agradecer a presença da professora Claudia e da professora Fernanda aqui na nossa mesa. Começaremos nosso diálogo com a fala da professora Claudia Mayorga.
Claudia Mayorga – Boa tarde a todos e a todas. Quero muito agradecer pelo convite de estar aqui com vocês. Fiquei muito feliz quando vi o tema do Ciclo. Eu acho que o momento que a gente está vivendo dentro e fora da universidade, no nosso País, exige que a gente multiplique espaços como esse. Então, eu queria realmente parabenizar. A nossa vida não está nada fácil nas universidades, seja do ponto de vista dos estudantes, seja do ponto de vista dos docentes e dos técnicos. E também quando a gente vai falar das instituições, dos grupos, dos setores da sociedade com os quais a gente dialoga, temos sentido uma urgência, uma vontade e uma necessidade de nos encontrarmos para compreender tudo isso que estamos vivendo.
Quando recebi o convite, fiquei muito feliz. Fiquei pensando sobre qual das minhas inquietações eu iria trazer para cá para a gente refletir. Porque são várias reflexões de diversas ordens. E acabei fazendo a opção de trazer algumas questões que são resultados de atividades de pesquisa e extensão que temos desenvolvido no Núcleo Conexões de Saberes, que eu coordeno lá na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG, Brasil). Eu também fiz a opção de trazer algumas reflexões a partir do lugar da gestão dentro da universidade, como eu estive na gestão passada da Reitoria da UFMG, como pró-reitora adjunta de extensão, e agora como pró-reitora de extensão. Nesse momento tão complexo, estar na gestão da universidade tem nos colocado em exercício reflexivo, de articulação e político muito intenso. Então, eu entendo que estar aqui é uma oportunidade de também ir elaborando um pouco tudo isso que a gente vem vivendo lá na UFMG.
Um dos temas com os quais eu tenho trabalhado nos últimos anos é o debate sobre a democratização da universidade. Inicialmente, em 2006 e 2007, eu assumi a coordenação de um programa de extensão com o nome “Conexões de saberes”, que aconteceu inclusive em várias universidades do País e que tinha como objetivo a democratização muito antes da lei de cotas. Eu acho que a lei de cotas vai ser um marco quando a gente vai pensar sobre esse tema. Mas não só, porque muitas universidades já haviam implementado políticas de ações afirmativas e de democratização do acesso antes disso. Mas certamente a lei de 2012 é um marco muito importante para pensarmos na diversificação do público discente que está na universidade.
Então, eu tenho me debruçado nessa temática das ações afirmativas. E, inclusive, muito do trabalho que a gente tem feito na Pró-Reitoria de Extensão também dialoga um pouco com essas reflexões e com esse percurso. Temos nos deparado hoje, na universidade, com uma série de situações e sentimentos que passam desde situações de relatos de compartilhamento de experiências relacionadas à solidão, a uma certa pressão com relação à questão do produtivismo, até o adoecimento no âmbito da graduação, da pós-graduação e também no âmbito das relações de trabalho. Os docentes e os técnicos também estão adoecendo. Nos últimos anos, estamos vivendo as questões do suicídio. Isso tem estado muito presente nas universidades. Na UFMG, nos três últimos anos, aconteceram vários casos com situações bem complexas. Mas, junto com isso, temos vivido certa efervescência dentro da universidade pública, muito protagonizada pelos próprios estudantes. Na UFMG, hoje vivemos um momento no qual o movimento sindical dos professores e técnicos, junto com o estudantil, está mais unificado. Então, estamos passando por um momento que está possibilitando esse encontro que nem sempre foi assim. A gente sabe que historicamente esses setores até se separavam por uma agenda de luta específica de cada um, mas também por outras tantas questões. Eu diria que as ocupações que aconteceram em 2016 e 2017 foram muito importantes também para marcar ou para apontar um pouco para a construção do que eu estou chamando dessa efervescência que vivemos hoje.
O momento é adverso, a universidade pública está sob ataque, há uma desconfiança sobre o que a gente produz, que tem sido publicizada e a gente tem sido interpelado o tempo todo em relação à importância e a relevância da universidade pública. Isso tem exigido, como eu disse no início, que nos voltemos um pouco para nós mesmos, não numa perspectiva de autocentramento, porque eu acho que, historicamente, isso a gente sabe de cor. Muitas vezes, um dos problemas na universidade é que ficamos muito autocentrados e no alto da chamada torre de marfim. Mas esse é o momento de fazermos um exercício de reflexividade, de identificar também no que podemos contribuir, tanto na compreensão do momento que estamos vivendo, quanto também na superação. Eu acho que nós não temos respostas mágicas, não temos um caminho pré-definido, mas precisamos nos debruçar no exercício de construir essas respostas.
O primeiro aspecto que eu separei para trazer para vocês foi um trabalho que nós desenvolvemos no âmbito do Núcleo Conexões de Saberes, que durou de 2007 até 2014. Ele teve como um dos seus frutos o livro1 intitulado “Universidade cindida, universidade em conexão: ensaios sobre a democratização da universidade”. Naquela ocasião, a gente trabalhava com um grupo de estudantes de graduação de diversas áreas do conhecimento, com perfil de serem estudantes com trajetórias populares e também que se autodeclaravam pretos e pardos. Então, como eu disse, antes ainda da lei de cotas, e isso já se apresentava como um grande desafio. Porque era um programa bem grande com muita possibilidade de bolsas – eram mais ou menos cem bolsas –, e a gente não conseguia ter cem estudantes. Você poderia falar assim: foi a divulgação que não foi suficiente? Mas eu acho que isso dizia respeito a um perfil que a universidade tinha até o momento e certamente, em 2012, isso vai se transformar. Um dos aspectos que nós desenvolvemos nesse programa foi o mapa da inclusão e da exclusão social na UFMG. Nós fizemos esse mapa com algumas perguntas que nos orientavam: onde estão e como estão os/as estudantes negros e negras, aqueles de trajetórias populares? Onde estão os discentes também na sua diversidade? Em que área do conhecimento? Em que turno? Nós sabemos que a universidade acaba reproduzindo na sua forma de organização uma desigualdade entre as áreas do conhecimento, entre os acessos de quem está no noturno e quem está no diurno. Nesse mapa da inclusão e exclusão, já aparecia muito algo que depois vai se intensificar com o processo de democratização da universidade, que são tensões muito intensas e violências em relação a esses estudantes de perfis diversos. Nos números, a grande parte dos estudantes de trajetórias populares, de negros e negras, estava localizada nos cursos noturnos, em áreas historicamente não tão valorizadas, como as áreas das humanidades. E o que chamou muito a atenção nessas pesquisas que nós desenvolvemos foi identificar como a violência vivida por esses estudantes era cotidiana. Desde piadas de colegas que colocavam banana na cadeira da estudante, até a criação de um blog para falar mal da estudante negra, porque ela tinha uma trajetória em que a família dela era de empregadas domésticas. Tudo isso e até posições mais institucionais.
Eu acho que esse é um ponto importante para a gente se debruçar. De práticas institucionais que se associam teoricamente com as reflexões sobre racismo institucional, machismo e sexismo institucional, que se reproduzem a partir da própria forma como a gente se organiza em termos das nossas normativas, dos nossos procedimentos internos da universidade. Isso acontece com a burocracia, que parece que não tem cor, sexo, classe etc..., mas o que foi identificado nesse trabalho é que tem, sim. A universidade também se forma em torno dessa marca da burocracia, que revela todo um conjunto de processos de exclusão ou de impedimento de determinados sujeitos de estarem na universidade numa situação de igualdade.
Neste trabalho, nós tínhamos outras duas frentes de trabalho. Uma delas estabelecia diálogos com os movimentos sociais, com o objetivo de identificar pontos de intersecção entre as lutas. Esses movimentos sociais foram: o movimento dos trabalhadores rurais; o movimento negro; os vários movimentos feministas com os quais dialogamos; o movimento LGBT e o movimento dos sindicatos. E nós como universidade percebemos que estávamos e estivemos muitos distantes dessas lutas ou dessas pautas dos movimentos sociais. E o próprio movimento da gente se aproximar e dialogar com os movimentos traz uma série de dificuldades, porque no início eles estavam nos olhando com desconfiança: “o que vocês vão fazer a partir dessa relação que têm estabelecido conosco, desse diálogo a partir dessas pesquisas, ou dos trabalhos de extensão?”. Isso revelou que a relação da universidade com a sociedade ou com os setores da sociedade – e aqui o foco nos movimentos sociais confirmou – é bastante hierarquizada. Por isso, precisamos entender como se dá e se reproduz essa hierarquização no cotidiano. Desde as formas com que nos aproximamos dos grupos ou dos sujeitos com os quais nós vamos dialogar nas nossas pesquisas, nos nossos projetos de extensão, até os nossos pressupostos epistemológicos e teóricos em relação a esses outros saberes que são produzidos dentro da sociedade. Existem também as questões relacionadas a uma posição ética, sobre o que se faz, o uso que se faz a partir desse encontro que se dá com a universidade nas suas diversas facetas. Porque a universidade tampouco é uma unidade homogênea. Quando as pessoas falam sobre a comunidade universitária ou acadêmica, eu acho que são comunidades ou grupos muito distintos, inclusive com possibilidades de fala, de participação e de reconhecimento muito desiguais. É muito importante que a gente identifique isso, inclusive para tentar construir e articular o que poderia ser uma posição da universidade no enfrentamento desse momento que a gente tem vivido.
Por fim, teve outra frente de trabalho em que nós estabelecemos diálogos com a educação básica, com o ensino médio, principalmente. Foram trabalhos desenvolvidos em parceria com cerca de 18 a 20 escolas da região metropolitana de Belo Horizonte – Minas Gerais, Brasil. E também, nesse encontro, o que se revelou e se confirmou é o abismo histórico entre a universidade e a educação pública e básica e uma série de dificuldades, inclusive para estabelecer esse diálogo.
Eu estou destacando talvez o que foi mais problemático, tanto no movimento de olhar para dentro da universidade quanto na relação com os movimentos sociais ou com outras lutas democráticas, e também com a escola pública. Quando a gente vai contar a história da universidade no Brasil, precisamos retomar a questão de como ela foi se construindo de uma forma distante ou se separando da sociedade, inclusive, querendo propositalmente não se “misturar”. A universidade queria ser uma instituição distinta e até com muitas compreensões superiores em relação a outras instituições presentes na sociedade. Com essa crítica, não estamos dizendo que a universidade não tenha as suas especificidades e as suas contribuições. Mas esse processo na história do Brasil, na história da América Latina – e quando a gente pensa que o Brasil foi o último país da América Latina a ter universidade – revela uma lógica das elites do nosso País: uma lógica colonial que também orientou em grande medida como essa instituição foi se constituindo no nosso País.
A gente não pode deixar de compreender como esse processo se dá ou se deu. O que eu identifico é que, muitas vezes, quando vamos contar a história da universidade, voltamos lá na Universidade de Bologna – Itália, na primeira universidade, nas universidades alemãs... Eu acho que a gente acaba contando e olhando para a nossa própria história com lentes muito eurocêntricas e olhamos para nós mesmos sem analisar que a universidade foi uma instituição implementada no país por e para formar uma elite. E todo esse processo de democratização e de tentativa de democratização que nós temos vivido ao longo desses últimos tempos não se dá sem tensões e é importante que a gente explicite essas tensões quando nos propomos a fazer uma análise mais crítica.
Essa experiência do mapa da inclusão e da exclusão, o diálogo com os movimentos sociais e o diálogo com a educação básica também nos deu, pela presença dos estudantes que estavam conosco nessa grande empreitada, o acesso a algumas dimensões da universidade que nem sempre são tão conhecidas. Nós acabamos tendo acesso a uma certa “periferia” dentro da universidade. Desde entender, por exemplo, como se dá a relação com as políticas de assistência estudantil, como é a moradia estudantil, quais são as relações que os estudantes estabelecem.
Mas esse trânsito da periferia para dentro da universidade também nos deu uma dimensão de como essa periferia também vai construindo formas de trabalho em rede, de articulação e de resistência a toda essa lógica que desqualifica e desautoriza e, em grande medida, impede a permanência desses sujeitos dentro da universidade. Estamos falando de redes incríveis, desde o grupo Boca Livre – que, quando acontece algum evento, os alunos avisam uns aos outros onde tem a comida do evento para poder usufruir, – até redes sobre movimentos, organizações e ações para interpelar a instituição naquilo que é mais central de interesse desses estudantes. Tudo isso que a gente viu foi em uma escala mais reduzida, porque afinal de contas o número de estudantes com esse perfil era muito menor, no momento em que nós fizemos essa pesquisa. Em 2012, com a lei de cotas, esse cenário se transforma completamente e tudo isso que a gente identificou também aumentou muito: as tensões nos espaços de sala de aula; as dificuldades de permanecer dentro da universidade; uma desqualificação das histórias e das distintas culturas que os estudantes trazem para o espaço da universidade.
Eu quero trazer também a experiência dos estudantes indígenas. Eles relatam uma dificuldade de serem ouvidos para além do estereótipo. Existe sempre uma expectativa em relação à participação e à expressão dos estudantes indígenas a partir de algo que nós imaginamos, daquilo que foi construído como um certo imaginário sobre os indígenas, que são inclusive muito diversos. Então, estamos falando de um impedimento da conversa. Por exemplo, no caso do estudante indígena lá dentro do curso de medicina, a pergunta que sempre aparecia era: “você usa celular? Você não vem de cocar para a aula?”. Tudo isso vem de uma impossibilidade de escuta de uns com os outros, muito marcada a partir de lugares de desigualdade de fala e de reconhecimento de fala. Mas também a partir de estereótipos que vão fixando esses sujeitos como sujeitos das carências, ou como sujeitos da incapacidade, sujeitos de um lugar muito definido e delimitado a partir de onde eles podem falar.
Essas tensões têm se multiplicado no contexto da universidade e, ao mesmo tempo, as pesquisas mostram que, em termos de rendimento acadêmico e de contribuição para o conhecimento, essa diversidade tem contribuído dentro da universidade. Mas também essa presença diversa, em grande medida, tem ameaçado, ou tem incomodado sujeitos que historicamente já estavam ali porque a universidade foi supostamente feita para eles. Isso já tem sido debatido, de como que, para as elites brasileiras, essa diversificação incomoda. Isso significa que estava existindo alguma distribuição de poder. Não basta ser filho de alguém para estar ali.
Então, eu vou passar para o segundo ponto e depois vou amarrar os três que eu trouxe. Outra reflexão que eu quero compartilhar com vocês foi um trabalho que nós fizemos na Pró-Reitoria de Extensão. Em 2017, a UFMG completou 90 anos e, no âmbito da Pró-Reitoria de Extensão, nós fizemos uma opção de retomar um pouco a história e a memória da extensão na UFMG. A gente quis de fato fazer uma pesquisa para identificar como a extensão foi se constituindo. Esse é o setor mais novo nas universidades públicas, de uma forma geral. As normativas sobre extensão universitária são muito recentes, datando do final do ano passado. E, ao mesmo tempo, está indicado lá na Constituição que as universidades precisam ter ensino, pesquisa e extensão. Ao retomar a história e a memória da extensão na UFMG, identificamos as distintas formas, os distintos discursos e as distintas posições com que as pessoas compreendiam a relação da universidade com a sociedade, já que a extensão é um setor que explicitamente se preocupa com a relação da universidade com a sociedade. Como se deu ao longo da história essa relação?
A gente vai identificar aí algumas perspectivas. A perspectiva de levar para a sociedade algum conhecimento, disso que até tem sido nomeado mais recentemente de divulgação científica, ou de popularização da ciência, numa perspectiva de compartilhar aquilo que é produzido dentro da universidade com a sociedade, com os diversos setores da sociedade. Uma perspectiva de construir, em conjunto com a sociedade, enfrentamentos a determinados problemas, a partir do encontro e do diálogo. E uma perspectiva que se associa com essas duas, no caso, a ideia dos eventos, de compartilhar o que é produzido, mas muito a partir do desenho dos eventos. Ao mesmo tempo, outra boa surpresa que a gente identifica na pesquisa é que a extensão também se propõe a fazer um movimento de democratização da universidade em diversos aspectos. Primeiro, na medida em que ela tenta reconhecer e recolocar em evidência a importância de reconhecer outros saberes como saberes importantes na produção do conhecimento. Vários programas, projetos e cursos partem dessa perspectiva de que o saber acadêmico é importante, mas que existem outros saberes na sociedade que precisam dialogar, que é importante que eles se discutam. Muitas vezes, eles vão criar tensões ao serem confrontados. Mas é importante marcar essa perspectiva. A outra é de reconhecer também que os sujeitos que produzem conhecimento podem ser diversos. Então, no mapa da inclusão e exclusão na UFMG, eu me lembro de que os estudantes traziam uma pergunta assim: a gente quer saber se um estudante negro e pobre está no laboratório só limpando o tubo de ensaio e a pipeta ou se ele está de fato participando mais centralmente da produção do conhecimento que aquele laboratório está realizando ou que aquele grupo de pesquisa está pesquisando.
A extensão, na sua história, convida para deslocar e mexer um pouco com essas hierarquias. Por exemplo, ao insistir que os estudantes são importantes e protagonistas da produção do conhecimento, ela busca deslocar a ideia de que somente o professor tem esse protagonismo, não que o professor não tenha o seu valor e a sua importância. E nós fomos fazendo esse exercício, dialogando também com o contexto mais amplo da história do Brasil. A extensão universitária nasce um pouquinho antes da metade do século 20, com o movimento estudantil interpelando a universidade e dizendo que ela precisa ser democratizada, que nós estávamos muito longe dos problemas da sociedade, que a universidade estava muito elitizada. E logo também vem todo o contexto da ditadura militar em que a extensão vai se estruturar muito a partir da resistência. Por um lado, numa perspectiva de levar para a sociedade a obediência, mas também de levar para a sociedade a resistência.
Agora, eu trago um pouco da experiência que eu tenho tido na gestão da extensão. Quero destacar uma iniciativa que a gente tem realizado desde a gestão passada, que foi tentar constituir dentro da universidade uma formação de redes interdisciplinares. A gente fala tanto de rede, de interdisciplinaridade, de transdisciplinaridade, mas a prática disso não é nada fácil! Por que fazer redes? Inclusive dentro da própria gestão da reitoria, as pessoas nem sempre compreendem o que é isso. Primeiro, a gente foi identificando projetos e programas de extensão que muitas vezes atuam no mesmo território, com os mesmos parceiros, com as mesmas comunidades, mas eles não se conhecem. São ações muito pulverizadas e muito ampliadas, que acabam tendo um alcance muito menor e não conseguem muitas vezes dialogar e se encontrar.
Segundo, a lógica individualista de cada um com seu laboratório, cada um com seu paper, cada um com a sua produtividade. Embora seja apresentada como uma situação de glamour, é uma situação que a gente identifica que é de muita solidão e sofrimento. Inclusive, eu tenderia a achar que esse isolamento, esse distanciamento que nós temos da realidade e da sociedade é quase patológico. Eu acho que a gente sofre de desenraizamento. Temos sofrido e não temos comunidades de base, grupos aos quais a gente possa recorrer e se identificar. Eu entendo que esse individualismo exacerbado tem promovido muitos problemas.
A outra fragmentação é a disciplinar. É muito aterrorizante como nós não conseguimos conversar entre nós e entre as diversas disciplinas. Da mesma maneira, nós criamos uma série de estereótipos uns sobre os outros. Essas construções não se deram do nada e elas são muito importantes na construção disso que eu estou chamando de uma incapacidade de escutar e de construir coletivamente. A gente está organizado nessa dinâmica disciplinar e os problemas da sociedade – veja o que a gente está vivendo hoje no País – não são problemas disciplinares. Não é uma disciplina que vai dar conta de pensar e entender o que está acontecendo no nosso País. Isso exige que a gente articule esses saberes, que a gente lance mão dos saberes do campo do Direito, dos saberes da Psicologia, das humanidades e das artes, os saberes mais técnicos e tecnicistas. Não estou dizendo que é tudo lindo e maravilhoso, que não há disputas até de modelos de ciência e de modelos de universidade. Mas o que temos diante de nós tem de nos colocar para trabalhar em conjunto. E o que temos identificado é a incapacidade desse trabalho em conjunto.
Lá na Pró-Reitoria de Extensão, nós estamos trabalhando com programa “Participa UFMG – Mariana, Rio Doce e Brumadinho”. Isso tem a ver com um programa que a gente criou para lidar com os desastres de rompimento de barragem. Mas muito do que a gente não consegue avançar é porque está lá o antropólogo de um lado e o engenheiro do outro, e os dois não conseguem pensar juntos. Para mim, isso é um retrato de muito do que a gente tem vivido hoje no País, que é uma dificuldade de dialogar e de conversar com a diversidade. Há uma pulverização de pequenas ações, mas e se a gente se juntasse? Estou apostando no coletivo como uma forma de enfrentamento muito potente e muito necessária. Mas isso não quer dizer homogeneização.
Desses trabalhos interdisciplinares, são cinco ou seis redes: a de juventude; a rede direitos humanos; a rede saúde mental; o “Participa UFMG”. Cada uma tem uma agenda de trabalho distinta. São pessoas de áreas do conhecimento diversas, que se reúnem em torno de um tema chamado tema emergencial para lidar com questões da sociedade contemporânea. Muita gente vem para a primeira reunião, vê que não tem recurso e vai embora. Mas tem muita gente que tem ficado nesse espaço e temos conseguido construir muitas coisas interessantes nesse diálogo interdisciplinar. Os estudantes estão cada vez mais inseridos nesse espaço. Aí, eu quero dar esse exemplo do “Participa UFMG”, que é sobre a situação de Brumadinho. Nós temos cerca de 70 grupos relacionados e esse programa que se encontram com certa periodicidade e com uma frente de trabalho, criando ações de pesquisa, de extensão e também disciplinas no âmbito da graduação e da pós-graduação, para lidar com a questão dos desastres. Isso tem sido um exercício muito interessante, porque a engenharia agora está pensando nas questões humanas, sociais e da saúde. Eles estão pensando como estão formando os engenheiros, não desconsiderando as questões humanas e sociais no processo de implementação de um empreendimento minerário. Em Minas Gerais, isso é muito presente lá naquela localidade, naquela comunidade.
A outra rede é a rede de saúde mental. A gente está vivendo um momento em que uma política de saúde mental da e para a UFMG foi criada a partir desse conjunto de encontros. Foram feitos conversatórios de estudantes, professores e técnicos. Ninguém botava fé que isso iria acontecer. Incrivelmente, foram três grandes conversatórios, onde as pessoas vieram e trouxeram as suas experiências. E isso levou à produção de um conjunto de diretrizes para orientar uma política de saúde mental dentro da UFMG, que não diz só sobre atender o caso agudo de crise ou de tentativa de suicídio, mas que mostra também o que a gente tem de pensar sobre uma universidade que seja diversa, solidária e acolhedora. Inclusive, transformando normativas que são muito restritivas para o ir e vir e estar na universidade.
Então, eu demarquei esses três pontos na minha fala para dizer algumas coisas. Primeiro, a situação é complexa na universidade há bem mais tempo. Talvez seja algo constitutivo da forma como as universidades no Brasil foram se constituindo. Mas que o momento hoje acirra algumas questões, porque também não podemos dizer que a universidade de hoje é a mesma de vinte anos atrás. Temos uma mudança de uma escala e uma rapidez muito grande. Temos tido clareza da nossa ausência de cultura de participação. Temos dificuldades para construir espaços de coletivos, mas ao mesmo tempo estamos construindo. Eu acho que é importante identificar o problema e os abismos, mas também mostrar que existem porosidades onde as pessoas estão fazendo movimentos e tentando perfurar isso. E eu continuo achando que esses três movimentos podem nos ajudar a pensar sobre a superação desse momento em que vivemos. Primeiro, o movimento contínuo de reflexividade. Se historicamente nós não pensamos sobre a universidade como um objeto de reflexão, por exemplo, nas nossas pesquisas, numa posição de autocentramento, acho que precisamos tomar a universidade como uma instituição social, e isso nos aproximará de outros setores da sociedade. Porque nós somos uma instituição que está na mesma sociedade que pretende transformar. Segundo, o diálogo com os movimentos sociais e com outros grupos sociais, identificando pautas comuns e formas de articulação. Este é um exercício muito difícil, mas importante de se realizar. O fato de uma certa proteção de certa elite que sempre esteve na universidade, e essa diversificação no momento em que vivemos nos coloca esse imperativo. E o diálogo com a educação básica, que eu acho que a gente faz isso mais pontualmente nas nossas pesquisas. Como instituição, promover esse encontro, não só porque está agora nas diretrizes da avaliação da graduação e da pós-graduação que a gente tem de desenvolver parceria com a educação básica. Mas como, enquanto instituição, nós podemos enfrentar esse abismo histórico que foi sendo construído entre universidade e escola pública? São alguns pensamentos que eu trouxe aqui para compartilhar com vocês.
Gostaria de dizer que, apesar do momento muito duro, eu pessoalmente tenho marcado muito esse lugar da esperança. Justamente porque, nesse percurso que eu compartilhei com vocês, as pessoas não estão totalmente alheias. Muitas vezes, nomeamos como apatia, como se as pessoas não estivessem se movimentando, mas às vezes não conseguimos ver as diversas formas como as pessoas têm buscado se encontrar e perfurar tudo isso. Eu não estou dizendo que é simples. A gente vai ter que multiplicar esses movimentos e esses encontros e, sobretudo, esse olhar para o que esteve por tanto tempo invisibilizado. As pessoas estavam gritando e pedindo socorro nas periferias da universidade há muito tempo e agora isso chegou mais no centro da universidade. Obrigada!
Sabrina Savegnago – Muito obrigada, professora Claudia! Vamos agora passar a palavra para a professora Fernanda.
Fernanda Costa-Moura – Eu gostaria de começar agradecendo você, Sabrina, pelo contato e pelas boas vindas, e agradecer muito à Lucia e a todo o grupo do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas (NIPIAC) e da Rede Jubra. Quero saudar essa iniciativa tão importante que é discutir um pouco sobre como vamos fazer nosso trabalho na universidade daqui para frente, sobre o que estaremos enfrentando e de que modo podemos tomar pé no futuro da universidade, que depende da gente também, e não apenas das políticas governamentais. Justamente pela adversidade do momento, temos, mais ainda, a necessidade e o imperativo de nos responsabilizarmos pelo que temos a fazer, pelo que queremos da universidade e pelos rumos que queremos dar a ela.
Comecei pensando a partir da proposição da mesa que menciona o “mal-estar”. O que é o mal-estar? E o que é o mal-estar na universidade, do ponto de vista do que estamos vivendo hoje? Com a psicanálise, eu penso o mal-estar como um resíduo, como um efeito necessário do fato de que a gente vive em civilização. A civilização impõe essa tensão inevitável entre as questões que têm de se equacionar no campo do sujeito e o laço social; que é de alguma maneira constitutivo das questões do sujeito, mas que não se reduz às questões do sujeito. Na universidade, me parece que vivemos um tensionamento que fica bem evidente, com as estruturas antigas, podemos até dizer que são estruturas pétreas, já que a universidade, na conjuntura mundial, esteve sempre ligada a uma cultura hegemônica, europeia, que, de alguma maneira, constitui e reproduz o que se convencionou chamar de status quo. Mesmo que ficasse reservada à universidade, desde sempre, a ambição de produzir conhecimento que pudesse colocar também problematizações, e colocar em xeque esse próprio status quo. Então, essas estruturas estão em tensão com o real, e se trata de uma tensão que existe desde sempre, porque as estruturas simbólicas tentam organizar o real que, afinal, não está na mão de ninguém. Não está na mão de um grupo e também não está na mão da deliberação governamental, ou da deliberação de uma comunidade, inteiramente, assim como não está no domínio de um sujeito que antes, pelo contrário, não consegue dominar sequer a si mesmo. É ele próprio dividido, estranho a ele mesmo. Então, o sujeito precisa estar o tempo todo lidando com o que escapa. Com alguma coisa que ele intenciona, ou que ele quer produzir, ou que ele acredita que deva tomar como caminho, e alguma coisa que escapa disso. Mas essa tensão é também o que pode abrir a chance de um questionamento das estruturas e dos lugares que essas estruturas constituem.
Mas é importante sublinhar que essa possibilidade de colocar a universidade e o modo como o saber é produzido dentro dela em questão é uma possibilidade que o próprio saber central, hegemônico, europeu, tradicional, formal, produziu. Foi o próprio avanço desse saber que produziu um impasse que veio a colocar a hegemonia desse saber em questão. E é de dentro do avanço de um saber hegemônico, como a ciência, por exemplo, com a possibilidade que a ciência tem de perpassar todo nosso tecido social, é de dentro disso que temos que depurar as mediações necessárias para pensar sobre os nossos problemas, as nossas questões, as questões da contemporaneidade que não se incluem no poder central e, dentro disso, as questões do Brasil e do Rio de Janeiro.
Por outro lado, no ponto em que a universidade como lugar de produção do conhecimento é colocada em xeque, justamente, começa a se abrir a universidade para a circulação, dentro dela, de outros discursos que não a frequentavam, fazendo com que hoje a gente não tenha mais uma universidade (ou um universo) de discurso. A partir daí os discursos que se apresentam na universidade são, muitas vezes, antagônicos. Não fazem um todo, não são harmônicos e, pelo contrário, como a pororoca, eles se chocam. E é desse choque que temos que apostar que venha algum tipo de encaminhamento para as nossas tensões. Isso não vai acontecer sem essa pororoca.
Consideremos o que vem trazendo para o País, em sua realidade social, mas também para o campo do debate, da reflexão, para o campo do discurso e da civilização, em geral, a efetivação ampla e real (se conseguirmos sustentar isso) das políticas afirmativas, como a lei de cotas e da acessibilidade, por exemplo, – tudo isso que é muito recente, e cujos efeitos de reestruturação a gente testemunha, mas sobre os quais ainda temos muito que refletir. Ao lado de toda a importância e necessidade premente que temos de mecanismos efetivos que intervenham para moderar minimamente e pelo menos restringir a violentíssima desigualdade social que historicamente nos assola, precisamos mais do que mecanismos. Precisamos colocar em marcha todo um processo histórico que exige a renovação de nossas ideias, de nossa linguagem, de nossas relações e, enfim, – para dizê-lo em uma palavra – de nossas práticas pessoais e sociais. Trata-se, portanto, de um processo complexo, que envolve todos e cada um em nível local e estrutural. Nossa tarefa como nação, a meu ver, tarefa de todos e de cada um, repito, é fazer este processo avançar, onde quer que possamos intervir. Mas para que este processo se ponha em marcha não basta implementar as leis. É preciso a decisão e a disposição de sustentar o trabalho necessário à penetração dessas leis no tecido social. Seguir e refletir sobre o que estes mecanismos trazem de possibilidades, e também ter a coragem de enfrentar o que eles trazem de novas exigências, de questionamento.
De alguma maneira, a nossa tendência, brasileira, é achar que podemos resolver as coisas através do legislativo, que trabalha muitas vezes à distância das situações reais que acontecem no país, promulgando leis que podem ser avançadíssimas e favoráveis à inclusão social sem, no entanto, atentar para todo o trabalho de base, de sustentação real, que é preciso implementar e fomentar no sentido de poder produzir modificações que signifiquem de fato uma penetração dessas leis para os setores da sociedade. Se quisermos tomar nosso destino em mãos, encontramos aí o nosso desafio máximo. Um desafio que, repito, não vai poder se resolver apenas na esfera das políticas governamentais, e que depende também de nós. Depende de que todos tomem aí suas responsabilidades específicas.
As políticas afirmativas trouxeram para dentro da universidade situações e expressões que ficaram literalmente apagadas, reprimidas, censuradas durante séculos de segregação, da qual, ao que parece, não se queria saber. É uma coisa impressionante para mim o fato do quanto é relativamente recente que a gente tenha começado a se perguntar mais séria e amplamente sobre o escravismo em nossa formação social, por exemplo. O escravismo não só como fator histórico de formação, mas como elemento pernicioso, ainda presente e com efeitos em toda a constituição do tecido social brasileiro. Elemento que durante séculos se fez invisível ou se tentou naturalizar e que somente mais recentemente pode ser amplamente demarcado, interrogado e repudiado. É impressionante como a questão da segregação demorou para adquirir essa relevância, essa centralidade, entre nós. Justamente, a luz maior que a crítica descolonial vem adquirindo finalmente, é o que vem permitindo este debate ganhar corpo, ao abrir a possibilidade de pensarmos o que existe de problema específico nosso, em nossa tessitura própria, e com que recursos podemos enfrentar o que está colocado como problema para a nossa formação social.
Pois bem, na universidade e em várias esferas, esses novos questionamentos, tão necessários, juntamente com todo avanço que trazem, têm produzido também esse mal-estar de que falávamos no início. Um mal estar que não podemos nunca erradicar de todo, pois ele é efeito do próprio avanço civilizatório. Um efeito algo angustiante, é verdade, mas que indica (e que encontramos) quando estamos diante de um real que nos escapa – do real enquanto o que ninguém detém, nem domina –, com tudo o que isso exige de reposicionamento de cada um e das estruturas. Em certas circunstâncias subjetivas e/ou sociais esse mal-estar pode se intensificar se manifestando de uma maneira clínica. No momento que atravessamos, constatamos que todas as tensões sociais, os choques entre diferentes interesses e necessidades em diversas sociedades, tudo isso está tendo uma expressão clínica importante. Pensemos nas situações dificílimas do ponto de vista de patologias de ideações ou tentativas de suicídio, e de automutilações cada vez mais presentes entre jovens no mundo todo. Estamos encontrando nestas irrupções algo que registra um ponto em que as coisas chegaram para nossa civilização. Uma vez que a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) considera como uma epidemia mundial o número de suicídios entre jovens, isso nos convida a tomar uma posição de reflexão diferente do que se costumava ter quanto a esse tipo de expressão. E situações dessa ordem, que têm acontecido dentro da universidade, e que são, de muitos modos, dirigidas à universidade, aos colegas, aos lugares... Os atos que têm acontecido no interior ou nas imediações dos Campi, inúmeras crises que emergem sem muito aviso, e a princípio sem explicação, tudo isso requer que pensemos o sujeito que emerge, ou talvez, justamente, o sujeito para quem fica dificultado emergir e se tornar responsável, como efeito dessa condição de desigualdade e segregação que a gente vive no Brasil. O levantamento desse véu sob o qual se manteve durante tanto séculos essas práticas de segregação cobra um preço, surge a urgência de tomar um lugar. Não para reconstituir o recalque, que permitia a violência operar sua selvageria à toda, até porque, felizmente, isso não se sustentará mais hoje, seja qual for a tentativa de força para fazê-lo de novo imperar, mas para poder encaminhar algumas das questões que essa nova consciência coloca para a gente, antes que seja tarde. “O gigante acordou”, como diziam os manifestantes de 2013, e não será possível ignorar que isso coloca a necessidade de continuarmos avançando.
Hoje temos, pois, um problema importante que será necessário enfrentar para podermos lidar com esse tipo de situação, e que é poder operar a transmissão que precisa ser feita na universidade. De um lado, essa transmissão não dispensa a singularidade do sujeito, não dispensa que cada um tome lugar, e faça o trabalho de adquirir e tomar para si a produção do saber e da pesquisa, e da extensão. E, de outro, tradicionalmente, a universidade tem a responsabilidade de passar para o público a cultura, o campo do discurso, o saber acumulado que se produziu. Não podemos esquecer que é preciso criar as condições para que possa aparecer, do lado do discente, um sujeito tomando lugar e reconfigurando, portanto, toda a tessitura de saberes.
Estas são questões em que temos que pensar a cada vez. A cada momento em que entramos numa sala de aula, isso tudo exige posicionamento. O nosso lugar de responsabilidade, a necessidade de transmissão e a possibilidade de fazer essa transmissão sem impedir que surja no processo um sujeito que, de seu lugar, do lugar que vier a tomar, nos dirá outra coisa do que lhe ensinamos. Transmitir o saber acumulado, sem objetalizá-lo nessa transmissão (sem pretender fazer dele um saber neutro, universal, isento, inocente) e sem objetalizar tampouco aqueles a quem esta transmissão é dirigida. Isso nos leva ao problema de como sustentar uma transmissão que não dispensa a singularidade do sujeito que deve tomar lugar para que essa transmissão se complete.
O que acontece quando essa transmissão concerne a pessoas que se veem diante do desafio de ter que tomar lugar dentro desse campo dos saberes constituídos que a universidade representa, sem uma referência que as prepare e as situe neste mundo mais amplo que está se abrindo para todos? Por exemplo, penso numa jovem que dizia: “Eu sou a primeira pessoa da minha família que está na universidade. No meu bairro, na minha comunidade, na minha igreja, na minha família, eu não chego mais a compartilhar plenamente dos valores deles”. Ela estava na universidade e passou pela experiência de acessar discursos outros do que os que ela conhecia na adolescência passada em família, no bairro onde nascera, e que, de algum modo, se tornaram para ela alguma coisa vital. O que ela enfrentava diz respeito ao fato de que não poderia mais recuar do que já estava nela, e, ao mesmo tempo, ela não conseguia mais compartilhar isso plenamente com a sua comunidade de origem. Por outro lado, não tinha ainda desenvolvido todos os recursos que lhe facultarão colocar seu problema dentro de uma nova comunidade, a comunidade acadêmica, com as exigências a que ela tem que responder. Então, essa situação pode provocar uma crise, à qual temos que responder, e que é bastante preocupante. Porque a verdade é que temos poucos recursos para lidar com isso. E alguns recursos que tínhamos caíram em desuso.
Para que o discente possa estar numa cadeia de transmissão como responsável, é preciso que se possa transmitir o saber acumulado e, ao mesmo tempo, abrir um lugar para que, de lá, venha uma palavra, uma interrogação, não apenas uma repetição ou uma imitação. Isso é indispensável, porque quem não interroga não pode aprender, não pode vir a tomar lugar. Como vamos abrir a chance para que nossos alunos possam se exercer como protagonistas da produção de conhecimento e não apenas como aprendizes? Como podemos estar com eles ajudando-os a tomar lugar sem condescendência e sem que isso configure uma licença para eles fazerem as coisas fora de um laço de assentimento que inclui a passagem pelo saber formal, estabelecido? E por outro lado, como vamos poder, de alguma forma, abrir um campo de trabalho que não imponha a eles uma maneira tradicional viciada, atributiva do que é “bom” e do que “não é bom”, segundo critérios que são sempre datados e locais, mas que se colocam como universais? Dito assim, parece ser uma coisa simples, mas eu acredito que seja uma das questões mais candentes que temos hoje.
Quando consideramos esses casos da clínica que estão aparecendo, esses casos limites de desespero, em que o mal-estar se transforma em uma impossibilidade de estar na universidade, e se manifesta em violência ou em crises de vários tipos, desde a irrupção de surtos até o desaparecimento; como podemos enfrentar esses casos sem cair num psicologismo, e sem desconhecer que esses alunos manifestam o que ocorre quando da entrada na universidade, na esfera do discurso formal, de uma população que estava à parte? Nossa população em grande parte se constituiu como segregada histórica e culturalmente, inclusive com o apoio das instituições públicas em nosso campo social onde, desde a escola básica, até a saúde, a assistência social (ou a falta de), a mínima relação que temos com a rua, com o transporte público, com a calçada onde andamos, tudo é fator de segregação.
Como vamos fazer para não deixar de considerar que cada sujeito que está em crise manifesta, encarna uma crise que é muito maior do que a narrativa singular que ele tem para fornecer sobre sua crise? Embora tenha toda a importância do mundo a vivência familiar de cada um, o ponto onde cada um está e aquilo que deflagrou a crise. E justamente, porque, em larga medida, nossa intervenção precisa incidir em nível local. Estamos lidando, portanto, com todo tipo de situação nova. Estamos lidando com o desafio de dar acesso à universidade a pessoas que vivenciam a desigualdade e a segregação, e também necessidades especiais – em um país que historicamente não investiu, não se preocupou e não se aparelhou para isso. Temos necessidade de democratizar a universidade, e precisamos continuar a lutar para obtermos os meios para isso, os meios financeiros e os outros, como o estudo, a experiência, a escuta e a reflexão que são necessários. Para avançar nesse processo vamos encontrar o choque, a pororoca. Porque, de um lado, não temos os recursos e temos de inventar um modo de formar todos os alunos, na sua pluralidade, e acolher as condições em que eles se afirmam. O sujeito com uma deficiência visual, por exemplo, tem dificuldade de acesso à bibliografia, ao saber formal. Se ele tem uma dificuldade física, vai encontrar dificuldades de se locomover na cidade. Precisamos nos dirigir a esses jovens, pagando o devido tributo de respeito à sua dignidade e confiando que venha deles uma posição de responsabilidade. E vemos hoje a importância que a universidade tem nisso. Não apenas para acolher e formar as pessoas que vão conquistar novos territórios ou retornar para suas comunidades, multiplicando o efeito civilizatório que a democratização da universidade pode ter, mas também para produzir os meios discursivos, a reflexão, a pesquisa, uma compilação da experiência que nos ajude de fato a promover essa inclusão.
De repente, vimos eclodir na universidade as questões de raça, de cor, de gênero, vimos a diversificação das referências simbólicas através das quais as pessoas se identificam e tentam nos fazer passar para um discurso novo. Vamos tomar isso como uma coisa que está pronta e que importamos, por exemplo, do discurso americano, ou do discurso europeu? Ou vamos nos responsabilizar por acolher o problema que se está colocando, em nossos próprios termos e limites? Porque essa nossa cultura central, branca e europeia, de alguma maneira, aglutinou para si, capturou e tirou do sujeito as balizas simbólicas a partir das quais ele pode ter um lugar de fala. Então como achar que o campo do discurso está pronto? Como estar junto, inventando meios por onde se possa retomar a cultura que a universidade veicula, a cultura acadêmica, tradicional formal, para que a gente possa fazer desse formal alguma outra coisa? Para que possamos olhar para esse discurso hegemônico de uma maneira tal que, a partir dele mesmo, possamos ler outra coisa?
Então me parece que essa é também a nossa questão com os sujeitos, com a gente mesmo como sujeito, com os nossos alunos: tomar lugar na nossa história, na história que nos precede, mas que se reproduz em nós, e que nós reproduzimos. Cada um parte dessa história para, de algum modo, conseguir se separar também um bocadinho dela. E inventar alguma coisa para frente.
Há um último ponto que eu queria mencionar. Não podemos desconhecer com que forças estamos tendo de lidar e como essas forças atuam dentro de cada um. Não é só porque o sujeito pode buscar uma referência nova, que essa referência está pronta para ele. Se importarmos os discursos, reproduzimos os preconceitos e os problemas. Então, me parece que o momento, hoje, é uma possibilidade, como dizia Claudia, que falava da esperança, um momento de crise, e de crise do nosso discurso, mas também um momento de nos responsabilizarmos por criar e produzir aos poucos um novo arranjo disso que está desmoronando, que são as relações discursivas, os lugares, as diferenças, as possibilidades de frequentação dos lugares.
Hoje, não temos mais possibilidade de sustentar uma transmissão que era feita de forma hierárquica, do professor como dono da cátedra, para o aluno que simplesmente ouvia, obedecia ou se submetia. Por outro lado, temos a possibilidade de inventar uma outra relação que não seja simplesmente nos demitirmos do nosso lugar, de ensinar, de formar, de pensar como vamos formar, de como vamos trabalhar juntos. Como dizia Claudia também, para poder potencializar esses outros discursos que não são o discurso formal, a tomar lugar dentro dos problemas formais. O que está em questão é essa chance que temos de tomar um lugar diferente no campo do discurso das relações sociais. Mas isso tem como condição que a gente não se exima da responsabilidade que é a nossa, de ensinar. Acho que certamente precisamos aprender muito com os alunos, mas a condição, a meu ver, para que isso aconteça é que se possa também sustentar e não abrir mão do nosso encargo de formar. É certo que não temos mais os caminhos para isso, estamos ignorantes hoje. Temos de nos reinventar nessa possibilidade de formar. Mas, se pudermos não abrir mão disso, vamos poder aprender alguma coisa com os alunos, porque nesse laço, os alunos também vão aprender alguma coisa com eles mesmos.
Sabrina Savegnago – Muito obrigada, professora Fernanda e professora Claudia! Foram falas muito instigantes e necessárias e me pareceu que, de certa forma, elas se complementam. A professora Claudia falou a partir de uma perspectiva da Psicologia Social, trazendo experiências institucionais extremamente diversas e ricas para falar desse desafio de se pensar a relação entre a universidade, a sociedade e os movimentos sociais, e destacou a importância de se pensar a democratização da universidade e a questão da extensão. E a professora Fernanda também traz essa questão, a partir do campo do sujeito, numa perspectiva psicanalítica, destacando os desafios da transmissão na universidade, que são muito importantes para estarmos pensando, principalmente nesse momento em que estamos vivendo.
Data de recebimento: 17/04/2019
Data de aceite: 28/06/2019
1 MAYORGA, C. (Org.). Universidade cindida, universidade em conexão: ensaios sobre a democratização da universidade. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010.
I Claudia Andréa Mayorga Borges: Doutora em Psicologia Social pela Universidade Complutense de Madrid – Espanha, professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil. Coordena o Núcleo de Ensino Pesquisa e Extensão “Conexões de Saberes”, na UFMG. Atualmente, é Pró-reitora de Extensão da UFMG (2018-2022). E-mail: mayorga.claudia@gmail.com
II Fernanda Costa-Moura: Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Brasil. Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Psicanalista membro do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica. E-mail: costamouraf@gmail.com
III Sabrina Dal Ongaro Savegnago: Pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Editora Associada da Revista Desidades. E-mail: sabrinadsavegnago@gmail.com