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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades  no.28 Rio de Janeiro set./dez. 2020

 

TEMAS EM DESTAQUE TEMAS SOBRESALIENTES

 

Epistemologías do Sul e cotidiano escolar: desaprendizagem, desobediência e emancipação social

 

Epistemologies of the South and everyday school life: dislearning, disobedience and social emancipation

 

Epistemologías del Sur y cotidiano escolar: desaprendizaje, desobediencia y emancipación social

 

 

Inés Barbosa de Oliveira

Mestre em Administração de Sistemas Educacionais pelo Instituto de Altos Estudos em Educação da Fundação Cetúlio Vargas, Brasil, e doutora em "Sciences et Théories de L'éducation" pela Université de Sciences Humaines de Strasbourg, França. Pós-doutora pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal. Professora Adjunta do Programa de Pós-graduação em Educação (PPCE) da Universidade Estácio de Sá (UNESA), Rio de Janeiro, Brasil, e Professora titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil. Atua na área de Educação, no campo de estudos do Currículo e do Cotidiano Escolar. E-mail: inesbo2108@gmail.com

 

 


RESUMO

Este texto argumenta que a possível contribuição da escola aos processos de emancipação social requer que ela produza aprendizagens e desaprendizagens, viabilizando a desobediência ao aprendido, entendida como o próprio do humano, e a obediência a si próprio. A desaprendizagem funcionaria como meio para nos deslocar do ideário hegemônico, que concebe a escola como espaço apenas de aprendizagem, permitindo-nos entrar no debate sobre o problema representado por “conhecimentos” socialmente aprendidos que prejudicam a aprendizagem democrática, emancipatória e favorável à justiça, social e cognitiva. Regras e padrões aprendidos são desafiados pela humanidade, desde os seus primordios, produzindo desaprendizagens que, posteriormente, possibilitam formular novas regras e compreensões de mundo. Atualmente, isso significa conceber os processos de emancipação social como processos que exigem desafiar, questionar e superar preconceitos, hierarquias e valores competitivos próprios das sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais nas quais vivemos. É isso que pretendemos mostrar aos leitores, relacionando cotidiano escolar, desobediências e desaprendizagens, aprendizagens e emancipação social.

Palavras-chave: cotidiano escolar, epistemologías do Sul, desobediência e desaprendizagem, emancipação social.


ABSTRACT

This text argues that the possible contribution of the school to the processes of social emancipation requires that it produces learnings and dislearnings, enabling disobedience to what is learned, understood as a human specificity, and the obedience to ourselves. Dislearning would function as a means to displace us from the hegemonic ideology, which conceives the school as just a space for learning, allowing us to enter into the debate about the problem represented by socially learned “knowledge” that hinders the learning that is democratic, emancipatory and favorable to social and cognitive justice. Rules and learned standards are challenged by humanity, since its inception, producing dislearnings that, later, make it possible to formulate new rules and understandings of the world. Nowadays, this means conceiving the processes of social emancipation as processes that demand us to challenge, question and overcome prejudices, hierarchies and competitive values typical of the capitalist, colonialist and patriarchal societies in which we live. This is what we intend to show readers by relating everyday school life, disobediences and dislearnings, learnings and social emancipation.

Keywords:  everyday school life, epistemologies of the South, disobedience and dislearning, social emancipation.


RESUMEN

Ese texto argumenta que la posible contribución de la escuela a los procesos de emancipación social requiere que ésta produzca aprendizaje y desaprendizaje, posibilitando la desobediencia a lo aprendido, compreendido como el propio de lo humano, y la obediência a si propio. El desaprendizaje funcionaría como un medio para desplazarnos de la ideología hegemônica, que concibe a la escuela como un espacio de aprendizaje, lo que permitenos debatir sobre el problema de los “conocimientos” socialmente aprendidos que obstaculizan el aprendizaje democrático, emancipatorio y favorable, a la justicia, social y cognitiva. Las reglas y los estándares aprendidos son desafiados por la humanidad, desde su origen, produciendo un desaprendizaje que, posteriormente, permite formular nuevas reglas y entendimientos del mundo. Hoy, esto significa concebir los procesos de emancipación social como los que demandan desafiar, cuestionar y superar prejuicios, jerarquías y valores competitivos propios de las sociedades capitalistas, colonialistas y patriarcales en que vivimos. Es lo que pretendemos mostrara los lectores al relacionarei cotidiano escolar, las desobediencias y los desaprendizajes, los aprendizajes y la emancipación social.

Palabras clave: cotidiano escolar, epistemologías del Sur, desobediencia y desaprendizaje, emancipación social.


 

 

Pode soar estranho que, ao evocarmos o cotidiano escolar, tenhamos como subtítulo o termo desaprendizagem, já que o esperado nesses cotidianos é que ocorram processos de ensino-aprendizagem, ou, como vimos preferindo, aprendizagemensino (Oliveira, 2013)1. A noção de (des)aprendizagem é aqui utilizada como um meio para deslocarmo-nos do ideário hegemônico, que concebe a escola como espaço somente de aprendizagem, e por vezes apenas como espaço de aprendizagens formais, permitindo-nos entrar no debate sobre o problema representado por um conjunto de conhecimentos socialmente aprendidos e que funcionam como empecilhos à aprendizagem democrática, emancipatóriae favorável à justiça social e cognitiva. Ninguém nasce racista, machista ou competitivo. São esses conhecimentos que, sem nos terem sido ensinados, fazem parte das nossas redes e precisam ser desaprendidos para que "nos lembremos deles de modo diferente" (Santos, 2018), integrando às nossas redes de conhecimentos e subjetividades novas compreensões sobre igualdade e diferença - superando os preconceitos -, sobre a relação entre diferentes conhecimentos e culturas, democratizando-a, e sobre os modos de interação social, privilegiando a solidariedade e superando a naturalização dos valores competitivos em seu benefício.

No caso desses últimos, o trabalho de Maturana (1999) criticando a idéia de que faz parte de nossa humanidade competir é emblemático. Diz ele: "A competição sadia não existe. A competição é um fenômeno cultural e humano, e não constitutivo do biológico. Como fenômeno humano, a competição se constitui na negação do outro" (ibidem, p. 13). No prosseguimento de sua argumentação, o autor é ainda mais enfático e claro, afirmando que é "a cooperação na convivência (...) que constitui o social" (ibidem, p. 14). Portanto, podemos dizer que a sociedade saudável, na compreensão do autor, é aquela que funda suas relações sociais na solidariedade.

Sobre o problema da relação diferença e igualdade, também em destaque nesses processos, temos que enfrentar preconceitos e hierarquias aprendidos e naturalizados, tanto em si mesmos como nas relações entre diferentes sujeitos sociais. Nessa discussão, a nova equação entre diferença e igualdade formulada por Boaventura (Santos, 2006, p. 316) é a base para nosso debate. Diz o autor: "Temos o direito a ser iguais sempre que a diferença nos interioriza,• temos o direito a ser diferentes sempre que a igualdade nos descaracteriza". Para o que nos interessa neste texto, a formulação permite perceber em que medida os preconceitos sociais transformam diferenças em desigualdades, dando origem a processos de exclusão e a hierarquias entre sujeitos com base nos mais diferentes critérios étnico-raciais, de gênero, em relação à sexualidade, contra pessoas com deficiência ou mesmo contra pessoas apenas destoantes de padrões estéticos e de inteligência considerados "normais".

Com relação aos conhecimentos e culturas, foi também Boaventura (Santos, 1995) quem formulou, há tempos, a idéia de que não existem nem ignorância geral nem saber geral, mas sim uma articulação entre saberes e ignorâncias. Também aprendemos com o autor que essa questão aponta para a pluralidade de conhecimentos (e de ignorâncias) que estão no mundo, e que as relações entre eles precisam ser balizadas por uma concorrência leal (ibidem), e não por hierarquias apriorísticas. Além disso, precisamos ter como avaliá-los com base em um critério de validação que emerja da realidade, das possibilidades de cada conhecimento de contribuir à resolução de problemas enfrentados pela sociedade. 1

Com isso, poder-se-á construir, ao mesmo tempo, uma ecologia de saberes - na qual cada saber é percebido numa relação de interdependência com os demais - e mais justiça cognitiva, entre os diferentes conhecimentos e seus detentores, identificada por Boaventura (2007) como condição da justiça social e, portanto, da emancipação social.

Finalmente, e sempre em defesa da nossa argumentação sobre a necessidade de desaprender, acompanhamos Boaventura quando ele defende que, nessa perspectiva de multiplicidade de conhecimentos e ignorâncias, não necessariamente a ignorância é o ponto de partida, podendo ser considerada ponto de chegada quando novos conhecimentos nos levam a esquecer ou a desaprender os anteriores (Santos, 2016).

Podemos, portanto, dizer que, ao chegarmos à escola, trazemos conosco aquilo que já sabemos, que aprendemos nos diferentes cotidianos dos quais participamos e passamos a dialogar com os conhecimentos que estão na escola, de professores, colegas e nos currículos oficiais, além daquilo que se aprende nas interações cotidianas. São, portanto, processos plurais de aprendizagens/desaprendizagens que devem ser reconhecidos como presentes em nossas vidas, associados à articulação e à interdependência entre elas e os saberes que as influenciam, tendo-nos sido ensinados ou não, o que pode levar à superação de dicotomías e hierarquias entre esses saberes diversos, reconhecidas e produzidas na e pela modernidade.

Trataremos, portanto, neste texto, de argumentar, de modo ensaístico2 e com a contribuição de diferentes autores e reflexões, que a possível contribuição da escola aos processos de emancipação social (Santos, 1995; 2000; 2007; 2018) requer não apenas que ela produza aprendizagens, mas também que ela ajude a desaprender. Alertamos o leitor para o fato de que o que nos interessa não é criar, em teoria, um novo modelo de escola, que funcionaria como uma nova prescrição a respeito de como a escola deveria ser, mas reconhecer, na perspectiva das epistemologías do Sul (Santos, 2007; 2018; Santos; Meneses, 2010) e dos estudos do cotidiano escolar (Alves, 2008; Ferraço; Carvalho, 2011; Sussekind, 2007; Garcia, 2010; Oliveira; Peixoto; Süssekind, 2019) o quanto o trabalho nas/das escolas já realiza em seus cotidianos ações de combate aos preconceitos, de ruptura com hierarquias epistemológicas, políticas e sociais e incentivam a solidariedade. Nosso entendimento é o de que muito já se vem fazendo nas escolas em benefício dessas causas (Oliveira, 2003, 2013, 2016).

Nesse momento, o objetivo deste texto é o de argumentar sobre as desaprendizagens do já sabido, afirmando que elas fazem parte de um processo humano de formação, sendo, também, atos de desobediência do aprendido. O ato de desobedecer, nesta concepção, é, senão a principal, uma das principais características do humano: somos seres humanos porque desobedecemos. Regras e padrões aprendidos são desafiados constantemente pela humanidade, desde os seus primordios, porque as desaprendemos para, posteriormente, formularmos novas regras e compreensões de mundo. Desobedecera regras impostas é fazer escolhas, é usara consciência e capacidade de escolher para questioná-las quando delas se duvida, é obedecer a si próprio (Gros, 2018). Para o autor, o si que faz desobedecer:

[...] é a paixão de se descobrir insubstituível quando nos colocamos a serviço dos outros para, não digo 'representar' a humanidade, mas defendê-la, defendera ideia de humanidade por meio de protestos, recusas claras, indignações, desobediências formalizadas (ibidem).

Na atualidade, é preciso conceber os processos de emancipação social como processos que exigem essa desobediência, que desafia, questiona e supera as aprendizagens dos preconceitos, das hierarquias e dos valores competitivos próprios das sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais (Santos, 2016,2018) nas quais vivemos. Eé isso que pretendemos mostrar aos leitores em nossa defesa das relações entre cotidiano escolar, desobediências e desaprendizagens, aprendizagens e emancipação social.

 

A Desobediência como próprio do humano e a desaprendizagem como processo de formação

A formulação desta idéia vem de um longo processo de reflexão, a partir de nossa inserção no campo de estudos do cotidiano, quando começamos a compreender, com a ajuda de Certeau (1994), que, mais do que consumir regras e produtos, obedecendo-as na suposta interminável repetição dos cotidianos, os praticantes da vida cotidiana usam a seu modo as regras e produtos que lhes são oferecidos para consumo. Já em 2001, abordávamos o tema, reconhecendo a rebeldia do cotidiano em relação às normas reguladoras. E em 2016, afirmávamos:

[...] em suas vidas cotidianas, os supostos consumidores instituem usos diferenciados desses produtos e regras, num processo de desenvolvimento de 'táticas desviacionistas' inscritas nas possibilidades oferecidas pelas circunstâncias, utilizando, manipulando e alterando as operações produzidas e impostas pelas estratégias do poder instituído. Essas maneiras de fazer, estilos de ação dos praticantespensantes3 4 da vida cotidiana, obedecem a outras regras diferentes daquelas da produção e do consumo oficiais. Eles criam um jogo mediante a estratificação de 'funcionamentos diferentes e interferentes', dando origem a novas 'maneiras de utilizar a ordem imposta' (ibidem, p. 92-93)4. Para além do consumo puro e simples, os praticantespensantes desenvolvem ações, fabricam formas alternativas de uso, tornando-se produtores/autores, disseminando alternativas, manipulando, a seu modo, os produtos e as regras, mesmo que de modo invisível e marginal (Oliveira, 2016, p. 85).

Recorrendo a Michel de Certeau, vamos entender que aquilo que acontece na vida cotidiana, as práticas sociais que desenvolvemos e as desobediências nelas presentes são um modo de apropriação dos produtos e regras impostos para consumo. O autor defende que:

[...] diante de uma produção racionalizada, expansionista, centralizada, espetacular e barulhenta, posta-se uma produção de tipo totalmente diverso, qualificada como 'consumo', que tem como característica suas astúcias, seu esfacelamento em conformidade com as ocasiões, suas 'piratarias', sua clandestinidade, seu murmúrio incansável, em suma, uma quase-invisibilidade, pois ela quase não se faz notar por produtos próprios (onde teria o seu lugar?) mas por uma arte de utilizar aqueles que lhe são impostos (Certeau, 1994, p. 94).

Certeau (ibidem) propõe, portanto, uma compreensão das relações entre as estratégias organizadoras da vida social, expressas nas normas sociais que supostamente balizam compreensões de mundo e comportamentos, entendendo que, apesar de sua força, elas não são capazes de controlar as ações dos praticantes, que são influenciadas por diferentes fatores, desde as possibilidades concretas inscritas nas situações cotidianas até fatores individuais, relacionados às crenças, convicções e possibilidades de cada um, bem como os comportamentos que delas derivam. A conclusão a que chegamos é a de que "Os praticantes da vida cotidiana, embora estejam inscritos em um mundo cujas regras não são estabelecidas por eles, usam essas regras de modo próprio" (Oliveira, 2016, p. 66). E, ao fazê-lo, recriam-nas e inventam possibilidades, produzindo, em momentos e circunstâncias específicos, novas normas.

Quando falamos em desobediência como o próprio do humano e como elemento constitutivo de nossas vidas cotidianas, estamos querendo afirmar que nenhum poder normativo ou controlador pode se exercer sem que ações rebeldes, desobedientes, sejam produzidas por aqueles que a ele estão submetidos. E isso desde o início dos tempos e das primeiras comunidades, que avançaram sempre desafiando o que lhes antecedeu. Mesmo na Bíblia, encontramos no mito de Lilith e na narrativa em torno de Adão e Eva, do pecado original e da queda do paraíso, a desobediência como foco central da humanização.

 

Pinóquio, Lilith e Eva: a desobediência, o livre-arbítrio e a humanização

O livro original Pinóquio (Collodi, 2011) traz uma contribuição importante sobre a questão da desobediência em si e do cenário em que ela se inscreve. O autor se serve de máximas sobre a obediência e o bom comportamento para criticar, ironicamente, a moral vigente na Itália da segunda metade do século XIX e o valor da obediência às suas regras.

A idéia de que Pinóquio pôde se tornar um menino de verdade porque desobedecia ganha múltiplos outros sentidos quando examinada de perto. Mais do que desobediente - o que também é -, Pinóquio é um pedaço de madeira que sente, nos dois sentidos do termo (tem sentimentos e sensações), e faz escolhas, logo, é dotado de livre arbítrio. E esse livre arbítrio é exercido, durante quase toda a obra, para a busca do prazer, o que de certa forma permitiría aproximá-lo do mito de Lilith, cuja revolta contra Adão está, também, ligada ao fato de que ele lhe negava o prazer de estar por cima dele no ato sexual, conforme a maior parte das narrativas encontradas sobre a origem do mito (Noguera, 2018; Robles, 2019; Sicuteri, 1985). Lilith teria sido a primeira mulher de Adão, feita do mesmo barro que ele e, portanto, igual a ele e não inferior. Sua não aceitação da submissão levou-a a rejeitar a vida no paraíso. Por isso, foi banida e enviada a viver com os demônios, tendo talvez se transformado em um, conforme a narrativa. Seu banimento da Bíblia em benefício de Eva, supostamente inferior, contribuiu muito para a consolidação do machismo nas sociedades contemporâneas e sua opção pela liberdade, pela autonomia e pelo que considerava certo soa bastante desconfortável em cenários de valorização da obediência.

Assim sendo, quando buscamos na desobediência de Lilith, Pinóquio e Eva o próprio do humano, encontramos a idéia do livre arbítrio, da capacidade de escolher como fundante do ato de desobedecer, o que o vincula de modo inequívoco à natureza humana. Seja nas narrativas bíblicas e nas afirmações que trazem sobre a criação do ser humano como dotado de livre arbítrio, seja em estudos científicos de diferentes matizes, que afirmam o homo sapiens como a única especie animal com capacidade de reflexão, encontramos a desobediência como uma faculdade humana, derivada da capacidade de fazer escolhas, obedecendo, então, a si próprio (Gros, 2018).

Associar as noções de desobediência e desaprendizagem implica, ainda, considerar que somos educados para a obediência e, mais do que isso, aprendemos - ao contrário do que nos mostram os argumentos acima - que nos humanizamos na obediência (ibidem). Em casa ou nas escolas, o "bom menino" e a "boa menina" são aqueles que aprendem cedo a obedecer, e mesmo a narrativa de Pinóquio, segundo a Disney, mostra isso. Os que desobedecem são mal vistos como rebeldes, pouco educados, incorrigíveis (Foucault apud. Gros, 2018). E tanto Pinóquio, como Lilith e Evaforam exemplarmente punidos.

Nessas histórias, encontramos sempre o exercício do livre arbítrio, essa capacidade de desobedecer a normas de validade duvidosa, na busca de algo melhor do que aquilo que o status quo oferece - que os valores morais hegemônicos aceitam como certo, como razoável e como "civilizado". Assim, o livre arbítrio é quem nos dá a capacidade de desobedecer, mas ele não é só guiado pela racionalidade, o é também pelos desejos e pela curiosidade. Pinóquio, Lilith e Eva usam essa capacidade de escolher para dizer não ao que seria "normal" que fizessem, insurgindo-se contra a realidade e suas normas. Sejam as regras impostas a Lilith e Eva pelo Criador e por Adão, sejam aquelas da moral italiana do final do século XIX, todos escolhem arriscar os castigos que lhes são/serão impostos, aparentemente de modo "irracional", considerando, sobretudo, o peso das punições. Lilith foi transformada em demônio e banida, entre outras penas, que aparecem de modo contraditório nas diferentes narrativas sobre o mito (Noguera, 2018; Robles, 2019; Sicuteri, 1985); no caso de Eva, foi a queda do paraíso e a culpa pelo pecado original do ser humano, a busca do conhecimento, como percebemos, também, no mito de Prometeu, condenado por ter entregado aos humanos a capacidade de conhecer e, sobretudo, a liberdade.

Já em Pinóquio (Collodi, 2011), a obra se inicia narrando como, ainda apenas um pedaço de madeira, ele mostra que sente e pensa e, por isso, deixa de ser talhado como um pé de mesa para ser esculpido como marionete. Ou seja, a princípio, o pedaço de madeira que sente e pensa só ganha direito a se tornar uma marionete e não um humano. Mas Pinóquio é uma marionete incontrolável, diferente, portanto, das comuns. Desde o início, é uma marionete com humor, com idéias próprias e que toma decisões, sempre com mais paixão do que razão, outro ponto importante para as reflexões deste texto. E, contrariamente ao que uma leitura aligeirada da história possa fazer supor, o direito a se tornar humano advém não dessa capacidade de escolher, nem dos conflitos razão/paixão que habitam a personagem. Ele emerge quando Pinóquio se mostra capaz, no final da história, de ser generoso e solidário.

Associamos essa idéia ao que afirma a antropóloga Margareth Mead (s.d.), confirmando, mais uma vez, a validade da argumentação que tecemos neste texto sobre a solidariedade e a necessidade de desaprendizagem dos valores competitivos. Questionada sobre qual seria, para ela, o primeiro sinal de uma civilização, ela responde que é o cuidado com o outro, a solidariedade, em vez de associá-lo a algum tipo de domínio de tecnologias ou modo específico de vida. Diz a narrativa capturada das redes sociais:

Há muitos anos, um aluno perguntou à antropóloga Margaret Mead o que ela considerava ser o primeiro sinal de civilização numa cultura. [...], Mead disse que o primeiro sinal de civilização numa cultura antiga era um fêmur (osso da coxa) quebrado e cicatrizado. Mead explicou que no reino animal, se você quebrar a perna, morre. Você não pode correr do perigo, ir até o rio para beber água ou caçar comida. Você é carne fresca para os predadores. Nenhum animal sobrevive a uma perna quebrada por tempo suficiente para o osso sarar.

Um fêmur quebrado que cicatrizou é evidência de que alguém teve tempo para ficar com aquele que caiu, tratou da ferida, levou a pessoa à segurança e cuidou dela até que se recuperasse. 'Ajudar alguém durante a dificuldade é onde a civilização começa' disse Mead (Daz, 2020).

Ao longo dos estudos e reflexões que vimos fazendo, vimos avançando nessa convicção social, epistemológica, política e educacional de que está na desobediência, na desaprendizagem da obediência às normas da sociedade capitalista atual, um conjunto de possibilidades emancipatórias junto ao investimento da humanização efetiva, e o quanto essas abrem possibilidades, tanto ou mais que a racionalidade, características fundantes do humano.

 

A questão da desaprendizagem como desobediência e a tessitura da emancipação social

Esclarecendo, com Santos (2018, p. 261), que "desaprender não significa esquecer. Significa lembrar de modo diferente", vimos sendo levadas a percorrer uma nova rota de abordagem da questão da formação para a emancipação social. Isso nos levou paralelamente a buscar argumentos em defesa da nossa idéia em outros campos de estudo. Na psicologia, encontramos a idéia de que processos terapêuticos buscam nos levar a repensar vivências negativizadas para nos renovarmos e tecermos novas formas de convivência com elas, renovando a compreensão que delas temos, desaprendendo e "lembrando-as de outro modo" (ibidem). A renovação identitária promovida por esses processos terapêuticos pode ser entendida, portanto, como processo de desaprendizagem, pelo desfazimento de construções anteriores e de novas construções. Uma maneira de, em linguagem mais coloquial, livrarmo-nos do que nos ocupa negativamente, abrindo espaço para o novo.

Por outro lado, e complementarmente, encontramos em ditados populares, em filosofias minimalistas e em algumas correntes da filosofia oriental, idéia semelhante, formulada em outra perspectiva, mas resultando também na necessidade do esvaziamento, interno e externo, que permite a abertura de espaços para que novas possibilidades emerjam. Podemos, assim, considerar a desaprendizagem como forma de nos abrirmos mentalmente, ampliando "espaços" para a entrada de novas perspectivas de vida e de compreensão do mundo, que poderíam levar à superação daquilo que já sabemos ou já vivemos, como os preconceitos, a competição como valor e as hierarquias sociais, culturais e epistemológicas.

Pensar nessas perspectivas filosóficas e psicológicas é importante na defesa e na reflexão a respeito da desobediência, voltada agora para conceber o processo de escolarização numa perspectiva emancipatória e democrática como um processo fundamentado em desaprendizagens, entendidas como condição para que haja aprendizagens.

E é aqui que a questão da possível contribuição de processos de aprendizagemensino à emancipação social, se investidos na tentativa de fazer desaprender preconceitos, hierarquias e valores de competitividade, ganha destaque, já que sabemos, também a partir de Santos (2003), que a emancipação social depende da democratização de nossas próprias subjetividades (Oliveira, 2009), do investimento em mais justiça cognitiva - condição da justiça social - e do desenvolvimento de práticas de cidadania horizontal, nas quais a solidariedade coletiva se mostra. Nesse sentido, o autor propõe, em suas epistemologías do Sul, o reconhecimento daquilo que já existe socialmente - no nosso caso, chegaremos ao que já existe nas escolas - e que foi invisibilizado, negligenciado, desconsiderado pela modernidade e seu sistema de dominação capitalista, patriarcal e colonialista, buscando, a partir desse processo, desinvisibilizar existências negadas, reconhecendo sua presença no mundo e sua legitimidade. Por meio, portanto, da sociologia das ausências, ampliamos o presente, percebendo-o em sua pluralidade, e abrimos as portas para novos possíveis, ainda-não concretizados, mas presentes potencialmente nas realidades ampliadas pela desinvisibilização promovida anteriormente, praticando o que o autor vai chamarde sociologia das emergências (Santos, 2000).

 

A emancipação social e as epistemologias do Sul

[...] a emancipação não é mais que um conjunto de lutas processuais, sem fim definido. O que a distingue de outros conjuntos de lutas é o sentido político da processualidade das lutas. Esse sentido é, para o campo social da emancipação, a ampliação e o aprofundamento das lutas democráticas em todos os espaços estruturais da prática social conforme estabelecido na nova teoria democrática acima abordada (Santos, 1995, p. 277).

Com essa definição de emancipação social, Boaventura apresentava, em 1995, suas novas teorias da democracia e da emancipação, em um primeiro esboço de um pensamento que desemboca na formulação das epistemologías do Sul e de seus instrumentos principais, que são: "a linha abissal e os vários tipos de exclusão social que cria; a sociologia das ausências e a sociologia das emergências; a ecologia de saberes e a tradução intercultural; a artesanía das práticas" (Santos, 2018, p. 47).

Em seu trabalho, o autor vai considerar o pensamento moderno como um pensamento abissal, que é um modelo fundamentado em distinções visíveis e distinções invisíveis, sendo que as primeiras seriam compreendidas pelas últimas ao mesmo tempo em que as invisibilizam. As distinções invisíveis se estabelecem através de uma linha que divide a realidade social em dois universos: aquilo que existe e o que é produzido como não existência (Santos, 2007), e delas deriva a exclusão abissal - daquilo que está do outro lado da linha - mascarada pela exclusão não abissal, daquilo que, estando deste lado da linha, é subalternizado. Ou seja, o pensamento moderno, em sua abissalidade, desconsidera a possibilidade de coexistência e copresença, assumindo determinados conhecimentos e culturas como verdadeiros e válidos e considerando todos os outros modos de estar no mundo e de compreendê-lo como falsos, inexistentes ou inferiores. Contra o pensamento abissal moderno, Boaventura formula o chamado pensamento pós-abissal:

O pensamento pós-abissal parte do reconhecimento de que a exclusão social no seu sentido mais amplo toma diferentes formas conforme é determinada por uma linha abissal ou não-abissal, e que, enquanto a exclusão abissalmente definida persistir, não será possível qualquer alternativa pós-capitalista progressista. Durante um período de transição possivelmente longo, defrontar a exclusão abissal será um pré-requisito para abordar de forma eficiente as muitas formas de exclusão não-abissal que têm dividido o mundo moderno deste lado da linha (ibidem, p. 23).

Definido como ecologia dos saberes, este pensamento assume como premissa o reconhecimento da diversidade epistemológica do mundo, da existência de formas plurais de conhecer o mundo além do conhecimento científico (ibidem). Condição para a justiça cognitiva, já que esta depende da possibilidade de validação de outras formas de conhecer o mundo e de nele estar, a ecologia de saberes se define assim:

Ao contrário das epistemologías modernas, a ecologia dos saberes não só admite a existência de muitas formas de conhecimento, como parte da dignidade e validade epistemológica de todos eles e propõe que as desigualdades e hierarquias entre eles resultem dos resultados que se pretendem atingir com uma dada prática de saber. É a partir da valoração de uma dada intervenção no real em confronto com outras intervenções alternativas que devem emergir hierarquias concretas e situadas entre os saberes (ibidem, p.159).

O reconhecimento dessa pluralidade epistemológica do mundo e da relação não hierárquica entre os diferentes conhecimentos se inscreve nos procedimentos da sociologia das ausências, que visa a desinvisibilizar conhecimentos e práticas sociais tornados inexistentes, no sentido do reconhecimento e da valorização da inesgotável experiência social que está em curso no mundo de hoje (Santos, 2004). Essa sociologia é, para o autor, um método que permite (des)cobrir existências invisibilizadas pelo cientificismo moderno, que se autorizou a considerar inexistente ou negligenciável tudo aquilo que não se encaixava no seu modelo de racionalidade.

Ao mesmo tempo em que o pensamento pós-abissal promove a ampliação do presente, assumindo a copresença radical de diferentes conhecimentos, produzidos em diferentes contextos sociais e culturais, Santos (2004) considera ser necessário, paralelamente, promover a contração do futuro, operada pela sociologia das emergências. A ideia do autor é a de redução das expectativas radiosas - consideradas possíveis no cenário da modernidade e seu pensamento abissal, mesmo quando incompatíveis com as experiências do presente - fundadas na ideia da planificação da história e da concepção linear do tempo. Situada, portanto, no campo das expectativas sociais, a sociologia das emergências legitima aquelas produzidas em contextos específicos e que, no âmbito das "(...) possibilidades e capacidades, reivindicam uma realização forte e apontam para os novos caminhos da emancipação social, ou melhor, das emancipações sociais" (ibidem, p. 798).

Esta, então, é uma sociologia que se propõe a analisar as possibilidades de futuro inscritas em práticas, experiências ou formas de saber, "agindo sobre capacidades e possibilidades, identificando sinais, pistas e traços de possibilidades futuros em tudo que existe" (ibidem), tornando-se capaz de efetivar uma amplificação simbólica através do excesso de atenção a essas pistas.

A importância dessas sociologías para o que nos interessa neste texto está na viabilização que seus procedimentos trazem de recuperação da pluralidade de saberes e práticas sociais negados pelo pensamento abissal e pela identificação credível de saberes emergentes, ou práticas sociais emergentes (ibidem), que se constituem como desobediência aos ditames das epistemologías do Norte e suas formas de compreender o mundo e de validar seu próprio ideário:

Buscando legitimar modos contra-hegemônicos de produção de práticas educativas no sentido de credibilizar o saber-fazer que habita os espaços educativos como potencial contribuição às possibilidades de emancipação social, tanto no sentido do processo educativo em si, quanto no sentido mais amplo de uma possível contribuição da escola à transformação social democratizante, a adoção metodológica dos procedimentos inerentes à sociologia das ausências [e das emergências] parece, mais do que relevante, fundamental (Oliveira, 2016, p. 24).

É o que faremos a seguir, evocando para tal o último dos instrumentos das epistemologías do Sul, a artesanía das práticas, que Santos (2018, p. 71) afirma consistir "no desenho e validação de práticas de luta e de resistência levadas a cabo de acordo com as epistemologías do Sul". Para o autor, "quando enformado pelas epistemologías do Sul, o trabalho político subjacente às articulações entre lutas, tem muitas semelhanças com o trabalho do artesão" (ibidem, p. 71), bem como o trabalho cognitivo, que:

Não obedece a regras sem lhes imprimir sua liberdade no modo como obedece, se decide obedecer; não concebe conflitos, compromissos ou resoluções como parte de grandes planos ou opções transcendentes de transformação social com privilégio legislativo; reconhece determinações mas não o determinismo, e sente-se frequentemente a ter que operar em contexto de caos [...]. Trata-se de um trabalho muito específico que mantém a universalidade à distância [...] (ibidem, p. 72-73).

 

Currículos praticadospensados, epistemologías do Sul e a contribuição da escola à emancipação social

Nas criações cotidianas nas/das escolas, percebemos o quanto essas artesanías estão presentes, em diferentes situações e circunstâncias nas quais, contrariamente ao que o instituído espera que seja feito, educadores e educandos criam currículos de caráter emancipatório, ecológico e solidário, desaprendendo a obedecer ao imposto, por meio da desobediência a normas e expectativas que sobre eles recaem, inventando soluções provisórias em contextos de caos e improvisações, sem capitalizar suas criações no sentido de qualquer universalização.

Compreendendo, com Certeau (1994), os currículos como artes de fazer cotidianas dos praticantes das escolas e assumindo a sociologia das ausências como procedimento reflexivo sobre aquilo que existe de conhecimento no Sul do pensamento educacional (as escolas) e a artesanía das práticas como elemento constitutivo desses cotidianos, nosso trabalho vem consistindo em "buscar compreender as formas cotidianas de criação de alternativas curriculares, nas quais se evidenciam as 'artes de fazer' daqueles a quem foi reservado o lugar da reprodução, o lugar do não-conhecimento" (Oliveira, 2016, p. 61). As operações de uso (Certeau, 1994) produzidas por esses praticantes estão, necessariamente, inscritas nas redes de relações de força existentes na sociedade, mas nem por isso são por elas determinadas.

Isso significa dizer que, ao mesmo tempo em que, por vezes, as criações cotidianas seguem ou parecem seguir, obedientemente, as normas impostas, elas também se insurgem contra tais normas, criando, astuciosamente, currículos plenos de desobediências, nos quais estão presentes outros conhecimentos que não os formais escolares, outras culturas que não a europeia, branca e burguesa, outros valores, desafiadores, e por vezes incompatíveis com a imposição capitalista da competição a qualquer custo, viabilizando que igualdade e diferença se articulem na perspectiva da solidariedade inclusiva e não da exclusão.

Reconhecendo essas existências, temos buscado, em nossas pesquisas, criar conhecimentos a respeito da escola e das práticas cotidianas efetivadas em seu interior, traçando caminhos de pesquisa debruçados nas práticas microbianas, singulares e plurais [...], que permitem:

[...] seguir o pulular desses procedimentos que, muito longe de ser controlados ou eliminados pela administração panóptica, se reforçaram em uma proliferação ilegitimada, desenvolvidos e insinuados nas redes de vigilância, combinados segundo táticas ilegíveis mas estáveis a tal ponto que constituem regulações cotidianas e criatividades sub-reptícias que se ocultam somente graças aos dispositivos e aos discursos, hoje atravancados, da organização observadora (ibidem, p. 175).

A partir das convicções epistemológicas e políticas que embasam nossas pesquisas, os currículos são percebidos como criação cotidiana dos praticantes das escolas e, mais do que isso, como contribuições da escola à tessitura da emancipação social democratizante tal como defendida por Boaventura e suas epistemologías do Sul. Isso porque trabalhamos de modo consciente com os conhecimentos do Sul metafórico, de educadores e estudantes, presentes ñas escolas - reconhecendo a existência do Sul. Operamos a partir deles - pensando a partir do Sul - e de sua validade intrínseca possível para além das hierarquias e invisibilizações de que são vítimas, tecendo nossas reflexões com base naquilo que aprendemos com eles - pensando com o Sul - e buscando, finalmente, entrar, nós e nossos leitores, em suas perspectivas - pensando como Sul.

Nesse processo de aprendizagem com os cotidianos - e de desaprendizagem das máximas modernas de que só o conhecimento científico tem validade e que a vida cotidiana é espaço de reprodução e repetição acrítica de valores e normas sociais -, adotamos dois elementos como critério de reconhecimento do potencial emancipatório de criações curriculares e de usos das normas presentes nas escolas: a busca de valorização de conhecimentos não formais de educadores e estudantes, que anuncia a possibilidade de ecologização das relações entre uns e outros; e as práticas de solidariedade, tanto porque significam ampliação do exercício da cidadania horizontal, quanto porque desafiam a naturalização da competição como valor.

Para finalizar nossa argumentação, entendemos ser importante dar concretude a ela por meio de alguns resultados de pesquisas já finalizadas. Assim, trazemos abaixo três narrativas de professores sobre o trabalho cotidiano, cada uma representando um desafio diferente na criação de ações emancipatórias. Todas foram anteriormente publicadas, mas como seguem válidas e relevantes, as trazemos para este texto.

As duas primeiras narrativas emergem de uma dissertação de mestrado (Lacerda, 2016) e são narradas pela mestranda, já que advêm de sua pesquisa. A primeira traz a experiência da "Professora Roseli" (nome fictício) e sua busca de promover aprendizagens com base em conhecimentos distintos, ausentes, a maioria, das normas curriculares oficiais:

A professora Roseli mostrou-nos o trabalho que vinha realizando com os jogos de leitura, ciranda de livros, adivinhas, receitas, histórias em quadrinhos, fichas de leitura, entre outras atividades. Alguns alunos apresentavam muita dificuldade no que refere à leitura e escrita e por esta razão suas ações pedagógicas estavam voltadas, prioritariamente, para o desenvolvimento da aquisição das habilidades linguísticas.

Em uma de nossas conversas, Roseli relata:

Eu não gosto de seguir esses padrões chatos das escolas, crianças robotizadas, enfileiradas, salas e cadernos muito arrumados, mas com alunos calados. A escola não atrai os alunos com essas práticas. Eu trabalho com livro didático, mas de forma diferenciada. Procuro explorar as imagens, as atividades mais interessantes. Eu pulo os exercícios que considero chatos e inadequados para a turma. Tento criar outras atividades a partir do livro e sempre percebo se os alunos estão correspondendo bem. Quando isso não acontece, faço um jogo, mesmo que não esteja necessariamente no planejamento da aula. Pra mim, eles irão aprender outras coisas, de outras maneiras (ibidem, p. 47).

A justificativa da docente é, certamente, representativa de práticas de ecologização entre conhecimentos desenvolvidos em escolas, jaque "adivinhas, receitas [e] histórias em quadrinhos" não costumam habitar o rol de conhecimentos valorizados pela escola. Observamos inúmeros desses casos em escolas e em narrativas docentes com quem conversamos ao longo desses anos (Oliveira, 2003; 2010; 2013; 2016).

Em outra narrativa da dissertação, envolvendo a mesma professora, ouve-se um importante desafio às hierarquias de poder nas escolas e à naturalização da aceitação acrítica e irrefletida de absurdos, num evidente questionamento das normas de gestão institucional ilegítimas:

Quando Carla, em uma reunião, apresentou suas propostas pedindo aos funcionários presentes que expusessem seus anseios e críticas, a professora Roseli prontamente se manifestou:

Eu gostaria que o horário da direção fosse informado a todos, pois todo funcionário precisa dar satisfação de seu horário de trabalho para a comunidade escolar. Por que aqui nós não somos comunicados do horário de trabalho da diretora? Outra coisa que eu gostaria é que passasse a haver prestação de contas da verba destinada à escola. Sugiro que seja feito um mural para acesso de todos: pais, alunos, funcionários e professores (Lacerda, 2016, p. 59).

Recorrendo a Gros (2018), vamos reconhecer nesse questionamento, além da evidente ousadia da professora, um tipo de desobediência explícita e voluntária, necessária diante dos absurdos da nossa sociedade atual. E aqui, a tentativa de tornar pública uma gestão financeira que, por natureza, é pública e vem sendo privatizada pela direção questionada é, mais do que um direito, uma obrigação, como esclarece o autor, com base em Martin Luther King e Gandhi.

Uma última narrativa volta-se à questão da solidariedade e da possibilidade inscrita nas criações cotidianas nas escolas de trabalho de combate aos preconceitos e às exclusões que produzem:

Contou a professora que Evanildo chegou à sua turma com fama de brigão, de criança que bate nas outras, mas que foi muito bem recebido pela sua turma.

As crianças foram muito receptivas e violência a gente não teve nenhum problema com o Evanildo. Mas eu não sei se foi por causa do discurso que fui tendo ao longo do ano de 'cuidado com o Evanildo', 'vamos tomar conta', 'vamos ajudar', tudo que ele faz as crianças aplaudem, bate palmas... (Professora 1).

O episódio do aniversário do Evanildo permite entrever como um trabalho com intenção solidária, anunciada acima, pode levar alunos, ainda crianças, a praticá-la.

E aí na semana passada, a gente descobriu que o Evanildo tinha feito aniversário, num dia que foi de reunião pedagógica. Como todo dia de aniversário eu desenho um bolo no quadro para as crianças, a gente canta parabéns e tal, ele pediu pra desenhar um bolo pra ele, porque nunca ninguém tinha desenhado um bolo pra ele. [...] Ai eu falei para as crianças: 'Gente, o aniversário do Evanildo passou e ninguém ficou sabendo'. Aí eles mesmos se organizaram, sem falar pra mim que iam fazer, sem me pedir autorização, vieram no recreio dizendo que iam fazer uma festa pro Evanildo. Aí eu falei 'Eu dou o bolo e vocês preparam o restante'. Trouxeram bola, enfeitaram a sala, levaram ele pra fora de sala pra enganá-lo e ele nem percebeu que ia ter festa pra ele mesmo. Quando ele entrou, ele se escondeu... Aí eu: 'Assopra a vela Evanildo!' [...] Ele assoprou a vela, mas não queria dar o primeiro pedaço de bolo. Ele não sabia pra quem dar, porque ele não sabia pra quem ele tinha que dar. 'Você tem que dar pra quem você mais gosta aqui da sala'. Ai ele deu pra uma menina. Foi uma coisa!!! Vi um cuidado especial da turma com essa criança, [...] eu sinto sim que as crianças, por elas mesmo cuidam um pouquinho dele apesar de ser terrível às vezes (Professora 1).

A inclusão de Evanildo, apesar de seu perfil 'diferente' do considerado normal e aceitável representa profundo respeito da professora aos direitos dele. E é partindo daí que ela incentiva a turma a ser solidária com ele, a cuidar dele, respeitando-o e apoiando-o.

Ou seja, a presença de Evanildo surge não só como algo a aguentar, mas como uma possibilidade de provocar, no restante da turma, a prática da solidariedade, permite à professora trabalhar a necessidade de respeito à diferença, de reconhecimento dos direitos que Evanildo tem, independentemente de sua condição 'especial'. Essa prática de solidariedade, de reconhecimento do outro [...] perm ite-nos desenvolver outras reflexões sobre esta questão tão importante (Oliveira, 2013, p. 194-195).

Entendemos como potencialmente importante não só a solidariedade imediata do grupo com Evanildo, mas a possibilidade desse convívio contribuir para a desaprendizagem de preconceitos, não só contra pessoas com deficiência, mas também contra outros excluídos por motivos de preconceito, seja ele étnico-racial, de gênero, de sexualidade ou outros. Permite-nos, então, pensar o:

[...] quanto o convívio com esses 'diferentes' pode contribuir para a superação dos preconceitos que os cercam, contribuindo para o reconhecimento deles como sujeitos de direitos, como parceiros corresponsáveis pela tessitura de uma sociedade mais igualitária (ibidem, p. 195).

Uma sociedade na qual o reconhecimento mútuo exigido pela perspectiva de ampliação do presente proposta pela sociologia das ausências ganhe espaço, levando-nos a desaprender as hierarquias excludentes, os preconceitos sobre os quais elas se fundam, aprendendo a solidariedade, o reconhecimento do "outro como legítimo outro" (Maturana, 1999), e a pluralidade epistemológica, social, cultural e individual do mundo.

 

Considerações finais

Um ensaio, como o próprio nome anuncia, nunca pode chegar a conclusões com ares de definitivas. Assim, finalizamos este texto com alguns alertas sobre o que entendemos ser preciso desaprender para aprendermos a ser mais democráticos, solidários e inclusivos. Talvez possamos, sem muita convicção, defender a idéia de que aprender a desobedecer é uma condição para a desaprendizagem daquilo que precisamos mudar, em relação a conhecimentos, relações entre eles e valores nos quais e com os quais fomos formados. Desaprender normas e preconceitos, desobedecendo às expectativas de práticas sociais que criam, parece ser um caminho promissor. Investir na tessitura de novas subjetividades, mais democráticas, em nós mesmos e naqueles com os quais convivemos, pode representar importante contribuição para a emergência de valores como a solidariedade e a ecologia de saberes em todos os espaçostempos de prática social nos quais atuamos. Isso exige desaprender o que nos formou, desobedecer a seus ditames e assumir a responsabilidade que a liberdade de escolha traz (Gros, 2018).

Entendemos ser necessário nos orientarmos pela compreensão como aprendizagem social de tudo aquilo que habita as redes de sujeitos que somos e as redes de conhecimentos que tecemos, que englobam tudo o que aprendemos, em diferentes espaçostempos de prática social. Para que essas redes se modifiquem, elas precisam romper-se e descartar ou realocar alguns de seus fios, abrindo espaços para novos fios, mais compatíveis com o reconhecimento do outro, com a solidariedade e com a justiça, cognitiva e social, condições da emancipação social que, por ser processual, não é um ponto de chegada, mas uma forma de caminhar em direção à utopia possível de um mundo melhor, jamais acabado, como aprendemos com Galeano (1999).

Com relação aos três grandes temas que identificamos como valores nocivos às aprendizagens necessárias à luta pela emancipação social, mais uma vez a partir do pensamento de Boaventura de Sousa Santos, percebemos a necessidade de pensar o processo de educação escolar como, inicialmente, um processo de desaprendizagem dos preconceitos étnico-raciais, de gênero e sexualidade, e relacionados à condição social e de acesso a conhecimentos formais dos estudantes ou suas culturas de origem, bem como o valor e a validade da competição e os danos que causa ao incentivo da solidariedade. Há muito a desaprender! Muitos valores e regras sociais a desobedecer para que as aprendizagens da ecologia de saberes, do reconhecimento mútuo baseado na equação renovada das relações de igualdade na diferença e da cooperação solidária sejam possíveis e possa se consolidar.

 

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Data de recebimento/Fecha de recepción: 12/05/2020
Data de aprovação/Fecha de aprobación: 27/09/2020

 

 

1 Temos produzido muitos neologismos, juntando palavras que a modernidade dissociou e mesmo tornou opostas, acreditando que se faz necessário considerá-las como unidade indissociável. Muitos termos aparecerão assim grafados, incitando o leitor a romper com as falsas dicotomías, compreendendo as articulações com as quais trabalhamos. No caso acima, o neologismo assinala que os processos de aprendizagem precedem os processos de ensino.
2 Embora muito do que aqui se dirá seja calcado em resultados de pesquisa dos últimos quatro ou cinco anos, alertamos o leitor que as noções aqui trabalhadas estão em processo de estudo e consolidação, não devendo, portanto, serem percebidas como conceitos definitivos. O amadurecimento das reflexões produzirá, certamente, ampliações e mudanças de rumo. Estamos aqui compartilhando possibilidades e perspectivas ainda-não (Bloch apud. Santos, 2000) prontas ou definitivas de compreensão das questões que nos interrogam.
3 O neologismo, grafado em itálico por norma da editora, faz alusão ao fato de que esses praticantes, que são as pessoas comuns, sempre, de algum modo, pensam no que fazem, mesmo que de modo assistemático. A noção pretende ser uma espécie de resposta aos críticos do termo praticantes, que é percebido como uma ameaça à reflexão teórica e, com isso, acusam os autores de nossa corrente de pesquisa de contribuírem para "o recuo da teoria".
4 As aspas indicam os trechos retirados do livro. Os itálicos são do autor.

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