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Desidades
versão On-line ISSN 2318-9282
Desidades no.29 Rio de Janeiro jan./abr. 2021
TEMAS EM DESTAQUE TEMAS SOBRESALIENTES
Violência sexual contra crianças e adolescentes: análise das notificações a partir do debate sobre gênero
Sexual abuse against children and adolescents: analysis of notifications based on the gender debate
Violencia sexual contra niños, niñas y adolescentes: análisis de notificaciones basadas en el debate de género
Maira de Maria Pires FerrazI; Milene Maria XavierII; Veloso Isabel Rosa CabralIII
IUniversidade Federal do Pará (UFPA), Brasil. Psicóloga, graduada pela UFPA. Mestranda em Teoria e Pesquisa do Comportamento (PPGTPC-UFPA) e integrante do Laboratório de Ecologia do Desenvolvimento Humano (LED/UFPA). E-mail: mairapferraz@gmail.com
IIUniversidade Federal do Pará (UFPA), Brasil. Doutora em Teoria e Pesquisa do Comportamento e professora associada da UFPA. Atua na investigação de temas relativos à violência contra crianças e adolescentes. E-mail: mxveloso@ufpa.br
IIIUniversidade Federal do Pará (UFPA), Brasil. Doutora em Genética e Biologia Molecular pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Brasil. Professora associada da UFPA, Brasil. Coordenadora do PET-saúde/Saúde da Família (UFPA/Belém). Desenvolve ações de ensino, pesquisa e extensão em Saúde Pública. E-mail: icabral@ufpa.br
RESUMO
O estudo objetivou caracterizar a violência sexual contra crianças e adolescentes entre os anos de 2014 e 2016 no município de Belém-Pará, uma metrópole no norte brasileiro, a partir da análise de categorias da Ficha de Notificação de Agravos Notificados, utilizando a variável sexo da vítima. Dos 3.690 casos identificados, 84,8% acometeram meninas, com média de idade de 10,15 anos (±4,20), e 15,2% meninos de, em média, 8,09 (±3,97) anos. Os principais agressores são homens conhecidos da vítima. Este perfil indica relações de poder de gênero e geração e a necessidade de incentivar práticas sociais que visem romper a violência de gênero.
Palavras-chave: notificação, violência sexual, crianças e adolescentes, gênero.
ABSTRACT
The study's purpose is to characterize sexual violence against children and adolescents between the years 2014 and 2016 in the city of Belém-Pará, a metropolis in northern Brazil, based on the analysis of categories in the Notified Diseases Notification Form, using the victim's gender variable. Of the 3,690 identified cases, 84.80% affected girls, with a mean age of 10.15 years (± 4.20), and 15.20% boys, on average, 8.09 (± 3.97) years old. The main aggressors are men known to the victims. This profile indicates gender and generation power relations and the need to encourage social practices that aim to halt gender violence.
Keywords: notification, sexual violence, children and adolescents, gender.
RESUMEN
El estudio tuvo como objetivo apuntar la violencia sexual contra niños, niñas y jovens entre los años 2014 y 2016 en la ciudad de Belém-Pará, una metrópoli del norte de Brasil, apoyado en análisis de categorías del Formulario de Notificación de Enfermedades Notificadas utilizando la variable de género de víctima. De los 3.690 casos identificados, el 84,80% afectaba a niñas, con una edad media de 10,15 años (± 4,20), y el 15,20% a niños, en promedio 8,09 (± 3,97) años. Este perfil indica las relaciones de poder de género y generación y la necesidad de impulsar prácticas sociales que tengan como objetivo romper la violencia de género.
Palabras clave: notificación, violencia sexual, niñez y adolescencia, género.
Introdução
A violência sexual contra crianças e adolescentes é um fenômeno forjado a partir de uma relação de poder autoritária e desigual, tanto em termos de conhecimento, autoridade e experiência, como de recursos e estratégias psíquicas e sociais (Faleiros, 2000). Esta relação de poder ocorre a partir de determinantes fortemente influenciados pela cultura e tempo histórico em que acontecem. Refletem, portanto, concepções construídas pela sociedade acerca da sexualidade humana e a posição delegada à criança em relação ao adulto (Azevedo, 1993). Tal posição é caracterizada por uma lógica cultural que tende a inferiorizar crianças e adolescentes, como seres socialmente inacabados e que precisam, por isso, serem dominados pelos adultos (Marchi, 2011).
No entanto, há de se considerar na dinâmica da violência contra crianças e adolescentes não somente a hierarquia geracional, como também a hierarquia contida na relação entre os sexos, visto que nos encontramos inseridos em uma sociedade cuja transmissão de valores advindos da família, escola, mídia e demais instituições encontra-se fortemente pautada na diferenciação sexual, implicando em formas diferentes de vivenciar situações de violência (Saffioti, 1997).
De acordo com Scott (1995), o termo gênero tem sido empregado, especialmente no âmbito dos Estudos Feministas, para designar o caráter social das distinções baseadas no sexo biológico, caracterizando um elemento de construção das relações sociais entre o masculino e o feminino. Conversando com essa conceituação, Saffioti (2004) define gênero como um marcador histórico e uma categoria analítica, funcionando como um eixo estruturante da sociedade e como mantenedor das relações de poder juntamente à raça e a classe social. Por sua vez, Butler (2003) define o gênero como constituído e constituinte dessa forma primária de significar as relações de poder, onde o sexo inscrito no corpo biológico cria estruturas normativas sobre o mesmo.
Ainda que as definições teóricas do termo gênero sejam diversas, ressalta-se que aquela utilizada neste trabalho inclui as relações entre os sexos e a construção das significações sociais do feminino e do masculino dentro de uma sociedade capitalista, tal como proposto por Scott (1995) e Saffioti (2004). Essas representações sociais organizam a vivência do indivíduo no mundo social, "determinando, ao longo de sua vida, oportunidades, escolhas, trajetórias, vivências, lugares e interesses" (Lavinas, 1997, p. 16). Nesse processo, será incentivado nas meninas o desenvolvimento de comportamentos dóceis e apaziguadores, enquanto meninos serão estimulados às condutas agressivas e perigosas, disparidade que incide na relação existente entre os sexos na infância e na vida adulta (Saffioti, 2004).
O sexismo, como ideologia patriarcal, atinge não somente as mulheres adultas, mas também crianças e adolescentes de ambos os sexos, visto que os mesmos se encontram sobre essa égide da fragilidade e do domínio territorial do homem adulto. Desse modo, a violência praticada contra crianças e adolescentes pode ser pensada no contexto da violência de gênero, pois se pauta em desigualdades biológicas entre adultos e crianças, tanto quanto em desigualdades inscritas entre homens e mulheres, pressuposto confirmado por Saffioti (2004), quando enuncia:
[...] é desde criança que se experimenta a dominação-exploração do patriarca, seja diretamente, seja usando a mulher adulta [...] assim, o gênero, a família e o território domiciliar contêm hierarquias, nas quais homens figuram como dominadores-exploradores e as crianças como elementos mais dominados-explorados (Saffioti, 2004, p. 78).
Nesse sentido, de acordo com Gibim (2019), o movimento iniciado a partir dos Estudos Feministas pretendeu incluir a fala daqueles que tiveram seu protagonismo apagado da historicidade da humanidade, assim como os estudos sociais como a Sociologia da Infância demonstraram a emergência da discussão sobre as desigualdades de poder que perpassam as relações entre crianças e adultos como forma de garantir que crianças não sejam excluídas da condição de infância (Marchi; Sarmento, 2017). Assim, é possível estabelecer um paralelo entre a luta das mulheres e das crianças e adolescentes, uma vez que o mote principal se dá pelo direito ao reconhecimento enquanto sujeitos participantes de sua própria história e da história da humanidade.
Dessa forma, se o processo de desvalorização, silenciamento e exclusão da mulher e da criança/adolescente atua sobre a mesma lógica cultural da subordinação e dependência do masculino (Marchi, 2011), e se tal lógica cultural está pautada em uma sociedade adultocêntrica e patriarcal, que privilegia atitudes de desigualdade e opressão, então as condições para o estabelecimento e a continuidade das relações violentas na família e na sociedade como um todo estão satisfeitas, tendendo a sua conseguinte reprodução.
É possível observar as implicações desse enunciado ao analisar os dados sobre a violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil e no mundo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (2014), 25% dos adultos de todo o mundo sofreram abuso sexual na infância. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2019, um estupro ocorreu a cada 8 minutos no Brasil, sendo que 57,9% dessas vítimas tinham no máximo 13 anos de idade e 85,7% eram do sexo feminino. Entre os 4 estados brasileiros onde a taxa desta violência por 100 mil habitantes é mais alta que a média nacional, o estado do Pará obteve a terceira colocação (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020).
Estudos de Costa et al. (2017), Vieira, De Oliveira e Sókora (2017) e Rocha e Ferreira (2019) também denunciam o agravamento das situações de abuso sexual na região norte, sendo a violência estrutural um importante fator para o surgimento da violência sexual nesse contexto, especialmente entre familiares e conhecidos, o que alerta para a implicação das relações de gênero na configuração da violência que se tece no seu ambiente relacional.
Há mais de duas décadas, Saffioti (1997) afirmava que, a despeito das evidentes diferenças entre as formas de violência que atingem meninos e meninas, a perspectiva de gênero era secundarizada nas análises sobre infância e adolescência no Brasil. Mais recentemente, pesquisas que articulam os conceitos de infância, gênero e violência têm sido produzidas em território nacional (Junior; Toneli; Beiras, 2020; Bonfanti; Gomes, 2019). Entretanto, parte das investigações que utilizam como base de dados as notificações de violência registradas pelos diversos dispositivos de proteção (Paungartner et al., 2020; Oliveira et al., 2016) continuam a filtrar as principais variáveis relacionadas à violência apenas pela faixa etária, tendo como consequência a diluição das importantes diferenças e similaridades entre as violências que atingem meninos e meninas.
Portanto, este trabalho considera a utilização da categoria de gênero como essencial para compreender as imbricadas relações entre conflitos intergeracionais e papéis sexuais, podendo apontar mecanismos de ruptura das hierarquias de gênero e, por conseguinte, da violência cometida com base nessa desigualdade histórica. Assim, o objetivo deste trabalho foi caracterizar a violência sexual cometida contra crianças e adolescentes, notificada pelo setor de saúde no município de Belém-Pará, Brasil, entre os anos de 2014 a 2016, tendo como foco principal a variável sexo da vítima.
Método
Trata-se de um estudo epidemiológico descritivo, transversal, de cunho quantitativo, realizado a partir da base de dados obtida no banco de registros do Sistema de Informação de Agravos e Notificação (SINAN), acessada por meio do Departamento de Vigilância em Saúde, Secretaria Municipal de Saúde de Belém. O SINAN abriga informações das Fichas de Notificação de Violência Interpessoal e Autoprovocada, que inclui dados da pessoa atendida, da violência, do provável autor, evolução e encaminhamentos.
A amostra analisada é constituída de informações sobre crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, a partir de notificações registradas no município de Belém-Pará, e que pertencem à faixa etária de 0 a 19 anos, utilizando como referência o recorte de faixa etária do DATASUS.
Inicialmente, foram incluídos todos os registros de violência contra a crianças e adolescentes, notificados entre os anos de 2014 a 2016, sendo excluídos os casos de violência autoprovocada e aqueles sem identificação positiva para a violência sexual. Também foram excluídos os casos que não dispunham de informação sobre sexo e idade da vítima. Posteriormente, foi realizada uma análise das informações adicionais contidas na ficha de notificação, a fim de esclarecer casos que continham informações incongruentes.
Os dados foram sistematizados e analisados pelo programa Microsoft Excell® e a associação de variáveis foi realizada a partir da aplicação de testes não-paramétricos no BioEstat 5.0® (Ayres et al., 2007). Esta pesquisa foi devidamente autorizada pelos órgãos responsáveis e é parte de um projeto de pesquisa maior desenvolvido na universidade de origem.
Resultados
No período de 1º de janeiro de 2014 a 31 de dezembro de 2016, em Belém-PA, foram notificados 4.870 casos de violência contra crianças e adolescentes. A violência sexual concentra o maior número de notificações em todos os anos analisados, estando presente em 75,77% dos casos. Os casos foram notificados majoritariamente pelo Serviço de Atendimento Especializado a Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência Sexual - PROPAZ Santa Casa, atualmente PARAPAZ (97,5%), o que pode explicar a prevalência de notificações de violência sexual neste recorte.
A análise dos dados da violência sexual segundo sexo e faixa etária da vítima revelou um perfil semelhante nos três anos analisados (χ2= 2.841; p= 0.2416). Do total de 3.690 casos de violência sexual identificados, 84,8% foram praticados contra meninas, com média de idade de 10,15 anos (±4,20), e 15,2% atingiu meninos com média de 8,09 anos (±3,97), diferença estatisticamente confirmada segundo o teste de Mann-Whitney (p<0,0001).
Em todos os anos, foi observado que a faixa etária mais vulnerável à violência sexual para o sexo feminino é de 11 a 14 anos, representando 44,07% do total de violências notificadas para esse grupo. Já no caso do sexo masculino, a faixa etária mais atingida pela violência sexual é de 6 a 10 anos, totalizando 44,21% das notificações de violência sexual contra meninos. A prevalência de casos de violência no sexo feminino pode ser melhor percebida quando se observa que, na amostra, há cerca de 4 vezes mais vítimas do sexo feminino que do masculino, enquanto que na população geral, para essa mesma faixa etária no município de Belém, a razão entre os sexos é de aproximadamente 1:1, segundo dados do censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A análise segundo o sexo da vítima também revelou diferença no perfil do agressor. Em relação ao sexo feminino, 90,6% dos agressores de meninas são homens e, em 5,75% dos casos, o agressor encontrava-se alcoolizado. Já no sexo masculino 91,44% dos agressores de meninos são homens e, em 3,39% das notificações, o agressor encontrava-se alcoolizado, embora em 58,48% dos casos essa informação tenha sido ignorada. Os maiores perpetradores de violência sexual contra meninas, em todas as faixas etárias, são homens conhecidos da família, respondendo pela agressão a 43,34% das vítimas. O padrasto aparece como segundo maior agressor para o sexo feminino, sendo responsável por 14,83% dos casos.
Considerando-se somente os agressores sem vínculo familiar, os desconhecidos são a segunda categoria mais frequente de agressores sexuais de meninas, apontados em 9,68% das notificações. No entanto, na faixa etária de 11 a 14 anos, namorados e cônjuges tomam esta posição, respondendo por 19,07% das agressões para essa faixa etária.
Em relação à violência sexual praticada contra meninos, em 59% dos casos, os agressores são pessoas conhecidas da vítima, sendo a maioria em todas as faixas etárias. Considerando somente o âmbito intrafamiliar, familiares sem vínculo parental apresentam-se como principais agressores, aparecendo em 13,19% do total de casos, incluindo-se aqui avôs, irmãos, primos, tios, tios-avôs e parentes por afinidade.
A partir da análise das informações adicionais contidas nas notificações, em que as mães são registradas como perpetradoras da violência sexual, identificou-se um provável equívoco em seu preenchimento, uma vez que o agressor seria representado por alguém que possui algum tipo de vínculo com a família materna. Em outras situações, o profissional de saúde responsável pelo preenchimento da ficha pode ter interpretado que a mãe teria cometido negligência por não perceber a violência ou por não tomar providências legais, após a revelação do ocorrido.
Para a análise da violência sexual segundo a faixa etária do agressor, foram considerados apenas os dados referentes ao período de junho de 2015 a dezembro de 2016, visto que antes disso a variável que contém esta informação não existia na ficha de notificação. Identificou-se que agressores adultos na faixa de 25 a 59 anos representam 41,49% dos agressores sexuais de meninas, apresentando percentual mais expressivo em todas as faixas etárias, enquanto 13,95% dos agressores eram adolescentes, estando na faixa etária de 10 a 19 anos.
Para vítimas do sexo masculino, 29,82% dos agressores estavam na faixa etária de 25 a 59 anos, enquanto que em 26,67% dos casos, os agressores tinham entre 10 a 19 anos, aparecendo como a segunda maior faixa etária para meninos, com percentual mais significativo que para as meninas, especialmente quando a vítima possuía entre 6 a 10 anos, onde o número de agressores adolescentes ultrapassa o número de agressores que se encontram na idade adulta.
O principal local de ocorrência da violência sexual foi a casa, aparecendo em igual proporção para meninas e meninos, inclusive nas faixas etárias mais altas (79,9%). No entanto, na ficha de notificação, a opção "residência" pode se referir tanto à residência da vítima quanto à residência do agressor, provocando ambivalência neste campo.
Discussão
A caracterização do perfil da violência sexual aponta que meninas são suas maiores vítimas, com vulnerabilidade expressiva na faixa etária em que se evidencia o processo de puberdade, visto ocorrerem modificações corporais que externam a transição da infância para a adolescência. Segundo Halim e Lindner (2013), nesta faixa etária, meninas possuem uma noção mais ou menos definida sobre seu próprio gênero, visto que seu comportamento já se orienta pelas diferenças biológicas e culturais endossadas por uma socialização pautada na feminilidade e aprendida por modelos parentais encontrados na família e demais espaços de convivência.
Para adequar-se aos padrões de feminilidade, meninas nessa faixa etária encontram como normas características de docilidade e passividade, visto que estão em processo de preparação para se tornarem esposas e mães (Saffioti, 2001). Este processo fica evidente em atividades lúdicas realizadas com crianças, onde costumam relacionar com mais frequência as funções de cuidado e devoção familiar unicamente a figuras femininas, como mães e avós (Gibim, 2019; Pimenta, 2016). A concepção de amadurecimento precoce de meninas tem raízes na normatização de suas condutas, servindo para reforçar valores sociais e políticos que toleram a objetificação do corpo feminino e normalizam comportamentos masculinos abusivos (Libório; Castro, 2010).
Por outro lado, ainda que em menor número, meninos também aparecem como vítimas de violência sexual, apresentando, no entanto, maior vulnerabilidade em uma faixa etária inferior às meninas, corroborando com a porcentagem de vitimização para meninos encontrada no estudo de Pelisoli et al. (2010), que identificou como faixas etárias mais vulneráveis de 5 a 8 e 9 a 12 anos de idade. Outros estudos (Martins; Jorge, 2010; Hohendorff; Habigzang; Koller, 2012) referem que meninos estão mais vulneráveis à violência sexual até os 12 anos de idade, quando seus caracteres físicos e cognitivos se encontram em desenvolvimento, visto que ainda não possuem domínio completo sobre as tarefas culturalmente experimentadas como masculinas e apresentam a fragilidade corporal de uma criança, sendo a força física adquirida posteriormente um possível fator de intimidação dos agressores sexuais de meninos.
Assim, é possível sugerir que, embora o fator de gênero também incida sobre a configuração da violência sexual contra meninos, o fator geracional desempenha aqui um importante papel, uma vez que a escolha da vítima se dá de maneira geral por sua condição de vulnerabilidade corporal enquanto ser infantil, enfatizando a relação de dominação de adultos sobre crianças, que atua como fator de subordinação da infância (Gibim, 2019).
Quanto ao suposto agressor, foi identificado que correspondem majoritariamente a homens adultos, tanto para meninas quanto para meninos, e que estes mesmos homens estavam alcoolizados em uma pequena porcentagem dos casos, também para ambos os sexos, embora o número de notificações em que este campo foi ignorado tenha sido significativo. No entanto, o número insuficiente de casos em que o agressor se encontrava alcoolizado contradiz a crença de que a violência sexual se constituiria sempre enquanto um ato impensado, motivado unicamente por efeito de drogas ou por razões externas ao autor da violência sexual (Machado, 1998).
Somado a isso, o raciocínio que patologiza o agressor não pode ser aplicado a toda e qualquer circunstância, uma vez que, de acordo com Holmes e Holmes (2002), apenas 2% a 10% dos perpetradores de abuso sexual de menores correspondem à categoria diagnóstica de Pedofilia, respondendo mais a circunstâncias situacionais e de oportunidade. Segundo Serafim et al. (2009), os agressores situacionais seriam caracterizados por, entre outros aspectos, expressarem um desejo sexual não exclusivamente direcionados a crianças e adolescentes no decorrer de sua trajetória de vida.
Os indicadores de violência sexual contra crianças e adolescentes analisados nos trabalhos de Costa et al. (2017), Reis e Cavalcante (2018) e Verônico (2015) sugerem que seus perpetradores possuem principalmente um perfil situacional em detrimento de um perfil patológico. Assim, é possível inferir que o cometimento da violência sexual contra este grupo não está estritamente relacionado a uma personalidade desviante ou ao abuso de substâncias, mas também à construção social de uma masculinidade ou virilidade definida como sinônimo de imposição de um tipo de poder que se expressa por meio da violência e é endossada pela cultura.
Nesse sentido, ressaltam-se pesquisas teóricas que utilizam o termo Cultura do Estupro, que é definida pela legitimação social da ideia de que a relação sexual envolve um comportamento agressivo e instintivo dos homens (Campos et al., 2017; Johnson; Johnson, 2017). Estudos associados relacionam esta cultura ao consumo de pornografia, em especial quando as características desse conteúdo se referem a imagens, atividades e vestiários próprios da infância e da adolescência (Pinto, 2016; Libório; Castro, 2010).
Esse imaginário sobre a sexualidade funciona como reafirmação de uma masculinidade que coloca o homem enquanto portador de uma disponibilidade tida como natural para iniciativa sexual, aqui entendida como forma de apoderar-se do corpo daquele que apresenta maior fragilidade, seja uma mulher adulta, seja uma criança do sexo feminino ou masculino (Machado, 1998). Em decorrência disso, borram-se as fronteiras entre uma relação sexual consensual e uma relação forçada, podendo influenciar na percepção de condutas sexualmente abusivas como aceitáveis e justificáveis por parte de homens comuns (Engel, 2017).
Em relação ao vínculo com o agressor, conhecidos da vítima ou de sua família são os principais agressores, independentemente do sexo e da faixa etária, revelando que mesmo em âmbito extrafamiliar pessoas com livre acesso ao ambiente relacional da vítima figuram como maiores agressores, o que confirma estudos semelhantes realizados em Maceió - AL, Brasil, e Curitiba - PR, Brasil, em que pessoas que possuem com a vítima e/ou sua família algum tipo de laço afetivo são as principais perpetradoras da violência sexual contra crianças e adolescentes (Guimarães; Villela, 2011; Pelisoli et al., 2010).
O estudo de Baía et al. (2015) comparou o abuso sexual em dois estados brasileiros, identificando uma maior prevalência de casos intrafamiliares no estado do Rio Grande do Sul, ao passo que abusos em âmbito extrafamiliar foram mais notificados no estado do Pará, assim como no estudo de Costa, Reis e Cavalcante (2018), que analisou 206 processos de uma vara especializada em crimes contra crianças e adolescentes no município de Belém entre 2012 e 2014. De acordo com Taylor, Lauro e Segundo (2015), é possível que a maior proporção de abusos extrafamiliares, como a encontrada no presente estudo, constitua uma possível característica da região norte do Brasil, onde o envolvimento sexual entre adolescentes e homens mais velhos, em especial na zona rural, costuma ser mais naturalizada.
O impacto da normalização das relações entre meninas adolescentes e homens adultos na região norte pode ser percebido a partir do estudo de Araújo, Nascimento e Cunha (2020), que analisaram dados de violência contra crianças e adolescentes registrados pelo SINAN entre os anos de 2007 e 2017 na Região dos Carajás, que abriga municípios do interior do Pará. Este estudo encontrou 451 notificações, sendo a residência da vítima o principal local de ocorrência. Esses dados demonstram que a configuração da relação estabelecida e como ela é percebida pela vítima pode ser tão relevante quanto o vínculo em si, uma vez que os agressores, quando não pertencem à família, são conhecidos e frequentam seus locais de convivência (Loinaz; Bigas; Sousa, 2019).
Somada a essas vulnerabilidades, parece existir uma tendência ao descrédito de adolescentes ao relatarem o abuso sexual cometido por agressores conhecidos, visto que, socialmente, o desconhecido se enquadra melhor no estereótipo de estuprador (Machado, 1998; Engel, 2017). Isso ocorre de tal forma que emergem questionamentos relativos ao consentimento da vítima, a roupa que estava usando no momento do abuso, possíveis atitudes de provocação, entre outros fatores que atribuem a responsabilidade da violência para as vítimas, abrindo espaço para um imaginário social em que meninas que se encontrem fora do espaço de sociabilidade considerado "honrado" não sejam consideradas dignas de proteção (Campos et al., 2017).
Embora haja semelhança entre os principais agressores sexuais de meninos e meninas, ao se analisar o âmbito intrafamiliar, padrastos aparecem como maiores agressores de meninas, confirmando o estudo de Martins e Jorge (2010), onde o principal perfil dos agressores são homens adultos entre 30 a 40 anos e que estão constituindo uma nova família. Os dados analisados por Soares et al. (2016), retirados de 700 prontuários registrados no Serviço de Atendimento à Mulher Vítima de Violência Sexual (SAMVVIS), no período de 2004 a 2014, também revelaram que 86% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes tiveram como autor da agressão alguém da família da vítima, com expressiva predominância de pais e padrastos, assim como o estudo de Silva e Gonçalves (2019), que analisaram 173 casos de violência registrados em um conselho tutelar da Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil.
O número significativo de padrastos em casos de violência sexual contra meninas denuncia a visão do corpo feminino entendido como privado, enquanto propriedade do homem que acaba de adentrar a família, ao mesmo tempo em que expõe a dualidade que compõe o imaginário do feminino como aquele que se esquiva para provocar. O corpo feminino passa a ser entendido de forma tão contundente como propriedade privada, que se confunde com a mulher pública, da qual todos têm o direito de abusar. De acordo com Machado (1998), a ambivalência e a transicionalidade desses dois lugares é o que constitui o imaginário da sexualidade feminina.
Por outro lado, meninos são mais agredidos em âmbito intrafamiliar por familiares sem vínculo parental, como primos, em todas as faixas etárias. Estudos recentes apontam que adolescentes da família da vítima ou conhecidos são responsáveis por uma parcela significativa dos casos de agressão sexual contra outras crianças e adolescentes (Borges; Zingler, 2013; Van Den Berg; Bijleveld; Hendriks, 2017). Além disso, Plummer e Cossins (2016) sugerem que o abuso sexual e suas consequências sociais e psicológicas são experimentadas de maneira diferente para meninas e meninos, uma vez que se mesclam ao desenvolvimento da sexualidade questões relacionadas a modelos hegemônicos de masculinidade e feminilidade.
Nesse sentido, a experiência do abuso sexual para os meninos parece acarretar maiores conflitos em relação à construção de sua própria sexualidade, uma vez que esses abusos costumam ser internalizados como sua primeira experiência sexual, o que pode ter como consequência não somente a subnotificação, como também a normalização de comportamentos sexuais abusivos (Plummer; Cossins, 2016). No entanto, importa ressaltar que, independentemente do sexo da vítima, o modelo construído da vítima de um estupro continua sendo feminino, posto que os corpos de meninos abusados passam a ser feminizados pela sua passividade e fragilidade diante do poder do homem adulto, de forma que se tornam, como os corpos femininos, "meros" objetos sexuais (Campos et al., 2017).
Ainda sobre a caracterização do agressor, a maioria são homens adultos entre 25 e 59 anos, resultado também encontrado no estudo de Martins e Jorge (2010) e Pincolini e Hutz (2014). No entanto, jovens entre 10 a 19 anos também foram identificados como agressores, com percentual mais expressivo para meninos que para meninas, em especial quando a vítima está na faixa etária de 6 a 10 anos, quando o número de adolescentes agressores ultrapassa o de adultos.
De acordo com Levenson, Willis e Prescott (2016) e McKillop, Rayment-McHugh e Bojack (2020), abusos sexuais cometidos por adolescentes costumam vitimar crianças mais jovens, fato que pode decorrer, de um lado, de uma experimentação sexual (Martins; Jorge, 2010), funcionando como um alerta para o tipo de abordagem que o adolescente está desenvolvendo acerca do comportamento sexual - abordagem essa que provavelmente está impregnada dos valores invasivos advindos da socialização masculina - ou como sinal de que essa criança/adolescente que inflige abuso pode também estar sendo abusada por adultos (Furniss, 1993).
Outro aspecto que pode ser discutido é o aumento significativo no número de namorados e cônjuges como agressores de meninas entre 11 a 14 anos, representando o segundo maior agressor para essa faixa etária. De acordo com Saffioti (1997), no período da adolescência, a menina não está somente sujeita ao domínio e autoridade do pai/padrasto, mas também subordinada ao poder de um companheiro, quando estas iniciam suas relações afetivas. O estudo de Spinola (2020), realizado no município de Santarém-PA, Brasil, identificou que 59% das participantes tiveram sua primeira relação sexual entre 12 e 15 anos de idade, sendo que 49% delas declaram terem sido pressionadas pelo parceiro, mais velho que elas em 63% dos casos. Este dado expõe a erotização precoce de meninas e a naturalização social destas práticas, visto que menores de idade são frequentemente associadas a imagens sensuais e eróticas (Libório; Castro, 2010).
Nesse sentido, segundo o Artigo 217-A da Lei 12.015/2009 do Código Penal brasileiro (Brasil, 2009), tratando-se de vítimas menores de 14 anos de idade, todo ato sexual considera-se estupro de vulnerável, sujeitando o agente a pena de reclusão de 8 a 15 anos, ainda que se tenha o presumido consentimento da vítima. No entanto, alguns autores (Arantes, 2009; Junior; Toneli; Beiras, 2020; Matta; Correia, 2008) chamam atenção para o exercício dos direitos afetivo-sexuais de crianças e adolescentes, especialmente entre adolescentes de faixas etárias aproximadas, onde se faz necessária a averiguação de casos notificados como violência sexual, mas que podem ter a intencionalidade de regular a sexualidade de adolescentes em prol de uma moralidade, e não como forma de resguardar a defesa de seus direitos e promover orientação e educação sexual adequadas.
A partir da análise realizada nas informações adicionais das notificações em que a mãe aparece enquanto responsável pela agressão sexual, pôde-se averiguar que estas eram na verdade possíveis agentes de negligência com a situação revelada, apresentando-se enquanto "coniventes" com a violência cometida por possuírem algum grau de parentesco e/ou afetividade com o suposto agressor. A literatura aponta que, especialmente em casos de violência intrafamiliar, a mãe tende a silenciar-se diante dela, ainda que a perceba (Silva, 2020; Pfeiffer; Salvagni, 2005).
Segundo Gilligan (1982), as mulheres são mais amplamente responsáveis pelo cuidado das crianças mais novas no contexto do lar, tendo como consequência a associação da identidade feminina à relação e cuidado com o outro, enquanto a identidade masculina é definida pela independência. Esta relação tem como consequência, segundo a autora, o desenvolvimento de uma dificuldade masculina à intimidade e de uma dificuldade feminina à individualização. Dessa forma, em uma situação de violência no seio familiar, a mulher tenderia a manter a ordem preestabelecida, de forma que sentimentos ambíguos em relação ao agente da violência e à vítima podem emergir e incapacitá-la de enfrentar adequadamente a violência revelada (Araújo, 2002).
Outros fatores que podem contribuir para o silenciamento das mães de vítimas de violência são: a crença de que devem suportar o seu destino de sujeição ao marido; a falta de apoio social/econômico diante da revelação da violência e a possibilidade de também serem violentadas física ou psicologicamente pelo agressor de seus filhos/filhas (Saffioti, 2004; Lavoratti; Silvestre, 2013). Nessa teia de relações desiguais construídas a partir das linhas do sistema de gênero, a revelação da violência sexual dentro da família exige uma total ruptura do equilíbrio doméstico, sendo a mãe a principal responsável por iniciar essa ruptura, assim como dar conta dos destroços e demandas deixados por ela (Pfeiffer; Salvagni, 2005; Cunha, 2019).
A análise do local de ocorrência da violência demonstra que a maioria dos casos de violência sexual em ambos os sexos ocorre na residência, que deveria ser sinônimo de acolhimento provido por figuras protetivas, como os pais, mas acaba por se configurar como o lugar de maior vulnerabilidade para crianças e adolescentes. Esta constatação expõe, segundo Lavoratti e Silvestre (2013), a precariedade do modelo assimétrico e adultocêntrico de construção de relações de afetividade dentro do contexto do lar, visto que tais relações são mediatizadas pelo uso do poder, e este é exercido por quem possui maior força e autoridade dentro da relação estabelecida.
Finalmente, é importante salientar que as condições atuais impostas pela Pandemia de Covid-19 podem estar exercendo impacto significativo nas violências cometidas com base nas desigualdades de gênero e geração. É o que sugerem dados apresentados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020), onde o índice de denúncias de crime de estupro de vulnerável no estado do Pará apresentou variação de 28% entre o primeiro semestre do ano anterior e o primeiro semestre de 2020, seguindo uma tendência nacional. Essa variação significa que crianças, adolescentes e mulheres estão encontrando dificuldades ainda maiores para terem acesso à rede de proteção e denúncia, uma vez que a convivência familiar intensificada pelas medidas restritivas de isolamento pode acirrar conflitos familiares já existentes, assim como limitar as possibilidades de suporte fora do alcance do provável agressor, que muitas vezes compartilha com a vítima o mesmo ambiente doméstico.
Em uma sociedade capitalista, onde as crises sociais, de saúde, econômicas e políticas tomam espaço, a manutenção da violência contra crianças e adolescentes e da violência de gênero durante todo o ciclo de vida de meninas e mulheres deve servir como agente de reflexão sobre as diversas experiências de ser criança e de ser mulher em uma sociedade segmentada, em que as desigualdades de raça e classe tornam ainda mais complexas as relações entre gênero, infância e violência. O fato de que meninas negras e periféricas são as mais vulneráveis a toda sorte de violências (Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, 2020) torna imprescindível rebater discursos de universalização e normatização desses conceitos, de forma a garantir a crianças e adolescentes pobres a sua condição de infância (Marchi; Sarmento, 2017), assim como reafirmar a meninas e mulheres sua condição de pessoas.
Conclusão
Os dados obtidos por meio do Sistema de Informação de Agravos de Notificação sinalizam, portanto, um padrão de vitimização diferenciado para meninos e meninas em relação à violência sexual, em que o sexo feminino apresenta maior percentual de vitimização em todos os anos analisados. Meninas estão mais vulneráveis à violência sexual em uma faixa etária superior aos meninos, sendo que, para ambos, a maior parte dos agressores eram homens adultos não alcoolizados no momento da violência e que eram conhecidos da vítima. Em âmbito intrafamiliar, o padrasto aparece como maior agressor de meninas, seguido de desconhecidos e namorados, enquanto que nos meninos, familiares sem vínculo parental estão nessa posição.
A caracterização desses dados aponta para um atravessamento das questões de gênero em todas as características do fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes, permeando tanto as suas motivações, como a consolidação do ato violento, a sua tipologia, o sexo e idade das vítimas, o processo de revelação, suas consequências e desdobramentos. Tal atravessamento perpassa as imagens sociais, símbolos culturais, conceitos normativos, instituições e subjetividades construídas sobre o masculino e sobre o feminino como modo de regulação social.
Ressalta-se que a análise da violência contra crianças e adolescentes pela perspectiva de gênero não se pretende única, posto que se tem clareza sobre a importância de considerar a multicausalidade de fatores que levam à ocorrência e perpetuação desse fenômeno, inclusive àqueles referentes a condições situacionais e à ontogenia das vítimas e dos agressores. No entanto, reitera-se que essas características estão sob a influência do sistema de gênero, que delimita possibilidades de desenvolvimento de crianças e adolescentes inseridos em contextos que perpetuam um modo relacional assimétrico e violento transmitido de geração em geração por diversas instituições, tal como a instituição familiar.
A despeito das limitações decorrentes da análise de dados quantitativos e em geral subnotificados das fichas de notificação de violência, a relevância do presente estudo está no resgate da categoria de gênero na análise da violência contra crianças e adolescentes. Espera-se que este estudo possa contribuir para esse debate, alertando para a repetição de práticas cotidianas que reproduzem discriminações e preconceitos enraizados nesse sistema.
Essa necessidade dá-se principalmente em um cenário nacional de retrocessos em relação aos direitos de crianças, adolescentes e mulheres, em que se entende que discutir relações desiguais de gênero e educação sexual nas escolas é propagar uma "ideologia de gênero", ou ainda como no caso da criação da Portaria Federal do Ministério da Saúde nº 2.282/2020 de 27 de agosto de 2020 (Brasil, 2020), que trata da obrigatoriedade de notificação à polícia no caso de interrupção de gravidez de meninas e mulheres vítimas de estupro, além de reforçar a necessidade da apresentação de um boletim de ocorrência para que o aborto legal em caso de violência sexual seja autorizado no serviço público de saúde, transformando um procedimento de cuidado em uma injustificada investigação judicial.
Dessa forma, sugere-se que mais estudos nesse sentido sejam desenvolvidos, incluindo a análise das demais tipologias de violência e a associação entre elas, pois se acredita que as implicações do sistema de gênero no desenvolvimento dos indivíduos podem torná-los mais suscetíveis a determinados tipos de violência e, portanto, mais propensos a desenvolver sequelas psicológicas advindas do sofrimento dela decorrente.
A construção de imagens sociais pautadas no sexo e baseadas em um sistema de dominação-exploração faz com que meninas sejam violentadas e meninos sejam brutalizados para encarnar a experiência da feminilidade e da masculinidade. Entende-se que o caminho para a construção de uma sociedade menos violenta em relação ao gênero perpasse a transformação das relações sociais e a reflexão sobre as condições em que se produz/reproduz a violência contra grupos sociais mais vulneráveis. Para tanto, faz-se imprescindível a implementação de uma educação questionadora dos papéis comumente atribuídos a mulheres e homens. Esta ação pode ser efetivada através da inserção transversal da abordagem acerca da violência sexual e da sexualidade em diversos ambientes institucionais, como forma de estimular práticas protetivas de autocuidado para essa parcela da população, contribuir para e emancipação coletiva de mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos e, consequentemente, para a prevenção da violência cometida com base nessa desigualdade histórica.
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Data de recebimento/Fecha de recepción: 24/09/2020
Data de aprovação/Fecha de aprobación: 06/11/2020