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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades  no.29 Rio de Janeiro jan./abr. 2021

 

TEMAS EM DESTAQUE TEMAS SOBRESALIENTES

 

Meninos não choram: estudo sobre um caso de abuso sexual infantil

 

Boys don't cry: study on a case of child sexual abuse

 

Los niños no lloran: estudio sobre un caso de abuso sexual infantil

 

 

Leonardo Ribeiro Gonçalves de OliveiraI; Leonardo CâmaraII; Fernanda CanavêzIII

IUniversidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil. Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRRJ e especialista em saúde mental (IPUB/Universidade federal do Rio de Janeiro). E-mail: leonardorgo@gmail.com
IIUniversidade Federal de São Carlos, Brasil. Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos (DPsi/UFSCar), mestre e doutor em Teoria Psicanalítica (Universidade Federal do Rio de Janeiro), membro do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi (GBPSF). E-mail: lcpcamara@gmail.com
IIIUniversidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil. Professora do Instituto de Psicologia da UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRRJ. Coordenadora do Marginália - Laboratório de Psicanálise e Estudos sobre o Contemporâneo. E-mail: fernandacanavez@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo tem o objetivo de discutir as dificuldades que podem surgir no acompanhamentoa crianças envolvidas em relações abusivas. Para tanto, apresentou-se estudo de caso realizado com o intuito de responder como se deu o acompanhamento de um caso de criança vítima de abuso sexual atendido pelo CREAS em um município de médio porte do Estado do Rio de Janeiro. Esse estudo, de um único caso, foi elaborado segundo os fundamentos do caso revelador. Utilizou-se como referencial teórico para análise dos dados a teoria ferencziana do trauma. O estudo indicou a importância de reuniões para discussões de casos em rede como forma de diluir, por meio do debate a respeito das diversas percepções, os mecanismos de defesa dos profissionais diante do horror da violência. A leitura de Ferenczi aponta que, no atendimento a crianças que sofrem abusos, uma postura de reconhecimento da vulnerabilidade é fundamental, porém, aparenta não ser o suficiente. O caso concreto estudado indicou que não é possível falar em reconhecimento do sofrimento dos infantes sem que isto esteja articulado a tentativas urgentes de reparações que interrompam, de forma definitiva, o ciclo de violência.

Palavras-chave: abuso sexual infantil, política pública, psicanálise, teoria do trauma, Ferenczi.


ABSTRACT

This article aims to discuss the difficulties that may arise in the follow-up of children involved in abusive relationships. To this end, a case study was carried out in order to answer how the case of a child victim of sexual abuse attended by CREAS (specialized service of the Childhood Protection Public Policy) was followed up in a medium-sized municipality in the state of Rio de Janeiro. This study, of a single case, was elaborated according to the foundations of the revealing case. Ferenczian trauma theory was used as a theoretical framework for analysis of the data. The study pointed out the importance of meetings to discuss cases on the network as a way of diluting, through the debate about the different perceptions, the defense mechanisms of professionals in the face of the horror of violence. Ferenczi's reading points out that, in caring for children who are abused, a stance of recognizing vulnerability is fundamental, but it appears not to be enough. The specific case studied indicated that it's not be possible to speak of recognizing the infants suffering without this being linked to urgent attempts at reparations that permanently interrupt the cycle of violence.

Keywords: child abuse. public policy, psychoanalysis, trauma theory, Ferenczi.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo discutir las dificuldades que pueden surgir em el seguimiento de los niños involucrados en relaciones abusivas. Para ello, se realizo um estudio de caso conelfin de dar respuesta a cómo se seguiria un caso de um niño víctima de abuso sexual tratado por el CREAS (servicio especializado de la Política Pública de Protección Infantil) em um municipio de tamaño mediano em el Estado de Río de Janeiro. Este estudio, de un solo caso, se elaboró de acuerdo com los fundamentos del caso revelador. La teoria del trauma ferencziano fue utilizada como marco teórico para el análisis. El estúdio señaló la importancia de las reuniones para discutir casos en la red como una forma de diluir, a través del debate sobre las diferentes percepciones, los mecanismos de defensa de los profesionales frente al horror de la violencia. La lectura de Ferenczi señala que, al cuidar a lo sniños que sufren abusos, una postura de reconocimiento de la vulnerabilidad es fundamental, pero parece no ser suficiente. El caso específico estudiado indicó que no sería posible hablar de reconocer el sufrimiento de los infantes sin que esto se vincule a intentos urgentes de reparación que definitivamente interrumpirían el ciclo de violencia.

Palavras clave: abuso sexual infantil, política pública, psicoanálisis, teoría del trauma, Ferenczi.


 

 

Recentemente, viralizou na Internet e chegou a virar notícia nos telejornais o vídeo1 de uma criança síria de três anos, residente em zona de guerra, que, estimulada por brincadeira criada pelo pai, tinha ataques de risos cada vez que ouvia o som de bombardeios. Esse vídeo é ilustrativo da radicalidade da concepção de mediação das instâncias parentais em relação ao sentido do que se passa com o sujeito durante a infância, conforme formulada por Ferenczi (1992a/1912). Como é possível observar nesse caso curioso, a estimulação mecânica do impacto das bombas em locais próximos não era suficiente para provocar automaticamente nenhuma sensação de terror, tendo em vista a mediação simbólica da brincadeira proposta pelo pai. Longe de querer depositar sobre os ombros dos pais a responsabilidade dos traumas provocados nas crianças pelo horror da guerra na Síria, o que se pretende destacar aqui é como se torna fácil perceber, a partir desse exemplo extremo, aspectos da vulnerabilidade da criança na relação com os adultos. Esse exemplo parece ser adequado para introduzir uma discussão sobre a dificuldade de se discernir as necessidades de um sujeito criança envolvido em uma relação abusiva.

O presente artigo tem o objetivo de discutir as dificuldades que podem surgir no acompanhamento a crianças que sofreram abuso sexual. Ele deriva da pesquisa intitulada Sobre o acompanhamento do CREAS a crianças vítimas de abuso sexual: um estudo a partir de Ferenczi2. Nesse estudo, procurou-se investigar como se deu o acompanhamento de um caso de criança que sofreu abuso sexual atendido por um Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) de um município de médio porte no Estado do Rio de Janeiro. O CREAS é um dos serviços que operacionalizam a Política de Assistência Social no Brasil. Uma de suas principais atribuições é atender famílias nas quais há situações de violência ou grave ameaça.

Para realizar a pesquisa, foi utilizada metodologia qualitativa que contemplou o estudo de um único caso segundo os fundamentos do "caso revelador" (Yin, 2001, p. 63). A pesquisa de caso único justifica-se, tendo em vista o pesquisador - que também é trabalhador da rede de proteção social do município pesquisado - estar, de forma oportuna, em posição favorável para a investigação aprofundada de fenômenos de difícil acesso e observação (Yin, 2001). Nessa investigação, seguiu-se as pistas encontradas em pesquisa anterior que indicaram o caso concreto ter como uma de suas funções principais realçar as contradições e questionar as teorias e as diretrizes de trabalho nas políticas públicas (Oliveira; Guljor; Verztman, 2015). Para a realização do estudo, procedeu-se da seguinte forma: primeiro, escolheu-se o caso revelador tendo como critério ser uma criança atendida no CREAS em decorrência de abuso sexual, e que tenha sido indicada pela equipe como caso gerador de grande dificuldade no acompanhamento; depois, realizou-se a análise do prontuário do caso e entrevistas com três profissionais que o atenderam, a saber: um conselheiro; uma psicóloga do Conselho Tutelar e uma assistente social do CREAS. Como forma de balizamento teórico para análise dos dados, debruçou-se sobre a obra de Ferenczi e sua concepção própria de trauma, particularmente sobre a cena da desautorização do relato de sofrimento da criança, que será melhor explicada adiante. Escolheu-se a concepção de trauma segundo Ferenczi, pois sua ênfase relacional favorece um melhor discernimento das necessidades do sujeito envolvido em relações abusivas. Em outras palavras, podemos ler na ênfase dada por esse autor um clamor para que se discuta a política dos adultos em relação aos infantes - a qual pode ser, muitas vezes, produtora de silenciamento.

Sándor Ferenczi (1873-1933), psicanalista nascido na Hungria, mesmo nunca tendo atendido crianças, ganhou notoriedade por suas observações a respeito das consequências emocionais verificadas clinicamente em adultos traumatizados na infância. A sua formulação sobre a traumatização é conhecida como o "mito do trauma ferencziano" (Pinheiro, 1995, p. 74) por ser usualmente explicada com o auxílio de uma pequena história que pode ser dividida em duas cenas. Em síntese, temos a primeira cena de comoção psíquica na qual um adulto comete abuso sexual contra uma criança que, mesmo opondo certa resistência, acaba sucumbindo ao poder desproporcional do agressor. Nessa cena, prevalece a autoridade do ofensor diante de um ser cuja personalidade ainda está em formação e, por isso, tende a se submeter facilmente, mesmo em pensamento. Tal evento afeta a criança de forma que "a confiança no testemunho de seus próprios sentidos está desfeita" (Ferenczi,1992c/1933, p. 102). Além disso, é decisivo para a traumatização a existência de uma segunda cena de desautorização social, a saber: na sequência dos fatos, após o abuso, o relato da criança sofre uma "negação" [Verleugnung] (Ferenczi,1992b/1931, p. 79), ou seja, ele não é reconhecido como válido por nenhum adulto de confiança que a criança procura para falar sobre o ocorrido (Ferenczi, 1992c/1933, p. 103).

No presente artigo, em consonância com Kupermann (2015) e Figueiredo (2018), em vez de "negação" (Ferenczi,1992b/1931, p. 79), preferimos traduzir o termo Verleugnung, na obra de Ferenczi, por "desautorização" (Kupermann, 2015, p. 42). Alguns comentadores utilizam outras traduções como desmentido ou descrédito, porém, o termo escolhido realça o sentido da "desapropriação subjetiva promovida no sujeito em estado de vulnerabilidade pelo encontro traumático" (Kupermann, 2015, p. 42). Essa compreensão tem a vantagem de evidenciar que, no processo traumático, ocorre uma não autorização de nuance social, impossibilitando que o sujeito converta o episódio de abuso em uma experiência de sua própria autoria (Figueiredo, 2018).

É importante ressaltar que não apreendemos da obra de Ferenczi o sentido da vulnerabilidade da criança enquanto uma questão universal definida exclusivamente pela faixa etária. Mesmo sendo possível encontrar em seus textos termos referentes à imaturidade psíquica da criança enquanto fator agravante, em sua obra Confusão de Língua entre os Adultos e a Criança (1933), verifica-se que seu foco principal de interesse está em discernir um sujeito criança em situação de vulnerabilidade, tendo em vista a incidência de relações abusivas com adultos próximos responsáveis pelos seus cuidados. O que está em jogo aqui são os efeitos clínicos de uma quebra radical de confiança, situação traumática, aliás, em qualquer idade. Estudos referentes à "traição institucional" [institutionalbetrayal] (Smith; Freyd, 2014, p. 575) corroboram a relativização da faixa etária no campo de discussão sobre a vulnerabilidade. Esses estudos versam sobre os efeitos traumáticos da relação entre sujeitos adultos e instituições, que ocorrem quando há, por exemplo, a quebra de confiança por conta da conivência institucional com práticas violentas como o machismo, o racismo ou abusos sexuais (Smith; Freyd, 2014).

Na obra de Ferenczi, é possível verificar a atenção dada aos sujeitos em situação de vulnerabilidade em diversas faixas etárias. O autor se refere tanto às crianças na relação com os adultos, quanto ao cidadão na relação com as instituições e, até mesmo, aos pacientes na relação com os analistas. Porém, é importante fazer a ressalva de que Ferenczi nunca dirigiu diretamente suas análises para o plano social ou político, e se limitou ao microcosmo da clínica dos sujeitos traumatizados e retraumatizados por relações marcadas pela "hipocrisia" (Ferenczi,1992c/1933, p. 100), ou seja, em decorrência da quebra de confiança na relação com pessoas próximas que não reconhecem e nem tentam reparar as suas falhas.

Essa apreensão da vulnerabilidade do sujeito criança enquanto uma questão destacada da faixa etária, que podemos ler em Ferenczi, está afinada a estudos de caráter antropológico que se debruçaram sobre a desconstrução de uma infância universal (Ariés, 1981; Couto; Borges, 2018). Esses estudos são de grande importância, pois, ao romperem com a lógica científica de pretensão universalista, que é historicamente eurocêntrica e, posteriormente, norte-americanocêntrica, contribuem para a construção de políticas públicas capazes de enfrentar problemas com os quais a lógica universalista não é capaz de lidar (Arantes, 2009; Couto; Borges, 2018). O acompanhamento a crianças vítimas de abusos com o intuito de interromper, em cada situação, o ciclo de violência3, é um exemplo desses problemas que não podem ser enfrentados apenas com pretensões de universalidade. Com efeito, o campo de atuação do CREAS revela, de maneira contundente, como a ficção de um saber universal sobre o que é violência e como se deve intervir sobre ela se choca com as particularidades das famílias acompanhadas e dos contextos em que se inserem. Nesse campo de atuação profissional, passamos inevitavelmente para o campo do caso concreto. Campo no qual deve imperar a escuta dos sujeitos, de suas singularidades e estranhezas.

A vulnerabilidade das crianças em relação aos adultos é ilustrada por Ferenczi (1992c/1933) com a expressão húngara katonadolog [a sorte do soldado], cujo sentido em português está próximo da sentença meninos não choram. Com essa expressão, o autor faz alusão à política de silenciamento dos adultos em relação às crianças - chamada em sua obra de desautorização - e realça, ao apelar para esse ditado popular, como ela não é incomum. Discerne também em sua análise como essa política opera, fazendo recair exigências de um grau de heroísmo frente à dor que é insuportável para os vulneráveis. Quando se trata de infantes, as consequências da relação com as pessoas amadas para a estruturação do Eu são profundas. A imagem corporal ainda frágil e eminentemente adaptável ao seu ambiente, por falta de outros recursos para reagir de forma a modificar o mundo, é a razão de as crianças serem suscetíveis aos mais diversos adoecimentos psicossomáticos (Dolto, 1984/2002).

É possível afirmar que, a partir da obra de Ferenczi, pode-se desvelar os efeitos da política que os adultos estabelecem sutilmente em relação às crianças no cotidiano. Ferenczi alerta que "[...] os adultos reagem com um silêncio de morte que torna a criança tão ignorante quanto se lhe pede que seja" (Ferenczi, 1934/1992e, p. 111). Em alguns casos, como visto anteriormente, essa política sutil pode fazer uso de um discurso de não reconhecimento da vulnerabilidade da criança, que exige delas um heroísmo intolerável. Porém, eventualmente, pode ocorrer o seu oposto. Em consonância com Arantes (2009), o discurso a respeito de uma vulnerabilidade universal pode também instituir de forma camuflada uma cultura excessivamente tutelar de alienação do direito das crianças de serem escutadas.

Apesar de aparentarem serem opostas, em ambas as situações, não se colocam em discussão as dinâmicas de poder e a qualidade das relações estabelecidas com o infante na situação concreta. Sem querer desmerecer os avanços referentes aos marcos legais gerais como a Declaração Universal dos Direitos da Criança4, parece ser importante, quando se está diante de um caso de violência, não pensar que tudo já foi dito sobre esse assunto. É importante reconhecer a necessidade de debater no presente as relações que são estabelecidas com as crianças com o objetivo de estar sempre produzindo, em cada caso que é tão singular e imprevisível, reparações que engendrem mudanças reais em relações abusivas.

 

O campo

Atualmente, o acompanhamento às crianças vítimas de violência deve ser realizado pelo CREAS em articulação com outros serviços que compõem o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) (Brasil, 1990), o qual se convencionou chamar "rede de proteção" (Brasil, 2017). Quando detectada alguma situação de violência, essa rede se organiza conforme o fluxograma abaixo (Figura 1). Nesse fluxograma padrão, que não tem a pretensão de ser exaustivo, pode-se verificar, conforme indicado pela seta, o lugar do CREAS:

Em um lugar discreto na rede, o CREAS entra em cena apenas após uma série de medidas prioritárias serem tomadas ou, se necessário, para garantir a atenção a essas medidas e aos direitos das crianças. Segundo o manual editado pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS, 2011), intitulado Orientações Técnicas: Centro de referência especializado de Assistência Social - CREAS, esse serviço de atendimento especializado deve acolher as crianças vitimadas ou em situação de risco por violência e suas famílias, oferecendo-se como ponto de referência em determinado território, escutando-as de forma profissional, sigilosa e qualificada, e ofertando informações sobre serviços, benefícios disponíveis e direitos. Isso de forma atenta às demandas e aos projetos de vida singulares e com respeito à autonomia individual e familiar (MDS, 2011).

Observa-se, ainda hoje, que as crianças que se queixam de abusos são alvo de grande desconfiança. Segundo estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas 2% dos casos de abuso sexual são registrados (Scmickler; Rech; Gomes, 2003). Essa grande taxa de subnotificação condiz com os estudos que apontam que, por motivo de "temor pessoal" (Scmickler; Rech; Gomes, 2003, p. 78), parte das pessoas próximas ao infante tomam partido do agressor, principalmente quando ele faz parte da família ou é uma pessoa influente. Estudos também revelam que o ambiente familiar é extremamente hostil às mulheres, e que a violência intrafamiliar, efetuada pelo parceiro, é a forma mais comum de violência praticada contra elas (Acosta; Gomes; Barlem, 2013). Recentemente, com o advento da quarentena domiciliar em decorrência da pandemia de Covid-19, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, registrou um acréscimo de 18% no número de denúncias registradas pelos serviços Disque 100 e Disque 180 entre os dias 1° e 25 de março de 2020 (Vieira; Garcia; Maciel, 2020). Esses fatores podem contribuir para o silenciamento da violência nas famílias e para a grande taxa de subnotificação de violências contra crianças. Além desses fatores, cabe ainda atentar para a possibilidade de que, mesmo nos casos nos quais há algum familiar com o intuito de registrar a queixa da criança, pode ocorrer de o relato ser desautorizado nos locais de denúncia. Sendo assim, esse contexto de dependência emocional ou econômica, temor pessoal e pouco acesso às políticas públicas contribui para que, em alguns casos, haja um verdadeiro "complô do silêncio" (Scmickler; Rech; Gomes, 2003, p. 77).

Em consonância com as considerações de Ferenczi (1992c/1933), verifica-se no manual do Conselho Federal de Psicologia, intitulado Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) na rede de proteção às crianças e adolescentes em situação de violência sexual (CFP, 2020), que é necessário para a efetivação da proteção da criança que ela seja escutada sem julgamento. Apesar de a escuta acolhedora ser fundamental para o atendimento de qualquer sujeito em situação de violência, para a clientela infantil esse cuidado assume lugar de destaque, pois, ao evitar a desautorização do relato da criança, pode-se, em alguns casos, impedir que a traumatização ocorra. Na atualidade, a política pública para o enfrentamento do abuso contra crianças preconiza que seja garantido ao infante um atendimento multiprofissional e em rede com o objetivo de promover a interrupção urgente e definitiva do ciclo de violência a partir da identificação da situação de abuso e de suas causas, bem como o envolvimento de parceiros profissionais e institucionais (CFP, 2020).

 

Ferenczi e a desautorização da experiência de abuso

Como visto anteriormente, o trauma, segundo Ferenczi, se dá em dois tempos. Primeiramente ocorre um choque, situação de difícil elaboração, também chamada de comoção psíquica. Posteriormente, para que se efetive o trauma, é necessária a incidência da desautorização social do sofrimento do sujeito.

A comoção psíquica é resultado de um desprazer repentino que não pode ser superado por meio de uma ação de transformação do mundo pelo afastamento do perigo através de reação de defesa física (reação aloplástica). Com o fracasso da reação aloplástica, são iniciadas reações eminentemente adaptativas em relação à realidade violenta a fim de conter a dor (reação autoplástica). Sendo assim, podem se dar, portanto, o investimento em representações que remetem a um prazer futuro ou prazer in spe (expectativa de prazer) (Ferenczi,1992d/1934). Essa expectativa de um bem maior no futuro, ou de articulação da dor como um mal necessário para aquisição de algo valorizado, pode tornar em alguns casos o desprazer suportável, como ocorre, por exemplo, na extração de um dente cariado. Nessa situação, reações musculares e psíquicas substitutivas que podem ser qualificadas de "ilusionais" (Ferenczi,1992d/1934, p. 110) tornam a dor da extração tolerável. Quando isso ocorre, não há traumatização.

Nos casos nos quais há traumatismo, estabelece-se uma incapacidade de superar a situação de desprazer por meios próprios e, em decorrência disso, com o objetivo de conter a forte reação de angústia, ocorre o acirramento da reação autoplástica no sentido de uma autoaniquilação. É também fundamental para a traumatização que se instaure uma total falta de esperança em decorrência da solidão provocada pela desautorização do sofrimento do sujeito, aspecto que será melhor delineado adiante. Essa situação extrema de autodestruição acarreta uma cisão do Eu que elimina, por meio de alucinação negativa, qualquer resquício de incômodo ou indignação em relação à situação dolorosa (Ferenczi,1992d/1934). Tal processo pode gerar de imediato uma desorientação psíquica e, a longo prazo, a aflição da angústia pode ser substituída por miríades de sintomas como medo de enlouquecer, mania de perseguição, megalomania, tendência a proteger-se excessivamente ou a instalação de um estado de passividade e incapacidade de opor resistência (Ferenczi,1992d/1934).

Esses sintomas são acompanhados pela compulsão à repetição inconsciente da cena traumática que é normalmente manifesta em sonhos dolorosos. Porém, a forte reação de desorientação psíquica utilizada para contenção da dor no momento do trauma produz um estado de incapacidade de percepção que faz com que, de fato, não haja na memória resquícios perceptivos da cena traumática além da dor (Ferenczi, 1992d/1934). A repetição inconsciente por meio dos sonhos parece se apresentar como uma tentativa solitária de cura, mas que só é capaz de produzir uma repetição desse estado de comoção dolorosa sem memórias que se apresenta como um momento que ficou congelado no tempo. Para ilustrar esse mecanismo de compulsiva insistência, Ferenczi (1992d/1934) faz alusão ao sprit d'escalier (espírito da escada da tribuna), expressão francesa que se refere ao ato mental infrutífero, porém irresistível, de se retomar, tarde demais, tentativas de elaborar respostas mais satisfatórias para uma determinada discussão que já se encerrou.

Na proposição relacional ferencziana, o momento decisivo para a traumatização é a segunda cena que instaura a solidão em meio à dor por meio da desautorização [Verleugnung], que se dá posteriormente ao tempo da comoção psíquica (Pinheiro, 1995). Na cena da desautorização, nos casos de abuso sexual infantil, a criança violentada - cuja fase de maturação produz um acirramento de sua condição de vulnerabilidade em relação às palavras dos adultos de confiança - dirige-se a eles para que tenha uma confirmação a respeito do que se passou e que ela não compreendeu bem. Entretanto, seu relato é desmentido (Pinheiro, 1995). Segundo Kupermann:

O não reconhecimento por parte do outro da narrativa de sofrimento de um sujeito em condição de vulnerabilidade implica uma "desautorização" da sua experiência (e do seu testemunho) no campo social, sendo esta "desautorização", ela mesma, primordial na constituição do trauma (Kupermann, 2015, p. 39).

Nesse sentido, a direção de tratamento proposta por Ferenczi segue rumo à produção de condições mais favoráveis para que haja, aos poucos, revisitações à cena traumática com a elaboração de sucessivas diferenças, de forma que se possa ir produzindo, de fato pela primeira vez, a percepção do que houve e as descargas motoras necessárias que ficaram paralisadas e cindidas em uma espécie de congelamento temporal (Ferenczi,1992d/1934). Essa condição mais favorável para a elaboração da cena traumática é referente à produção de um contexto a partir do qual o sujeito não esteja mais completamente só e que possa obter ajuda na realização do luto de tudo que perdeu com o trauma de maneira definitiva e que, portanto, não pode mais reaver. Além disso, é importante a tentativa de fornecer ao sujeito traumatizado incentivo - e por que não também condições - para uma nova vida que possa ser construída a partir do que ainda pode obter alguma reparação e a partir de outras coisas inteiramente novas que possam valer a pena em sua existência (Ferenczi,1992d/1934). No contexto específico da clínica de Ferenczi com adultos traumatizados na infância, as relações abusivas tinham se dado contingencialmente em um passado distante, porém, nada parece se opor à transposição das ideias do psicanalista para casos nos quais a violência é atual, como é o caso das crianças atendidas pelo CREAS e que, portanto, demande providências concretas e urgentes, como o fornecimento de condições materiais e intervenções diretas no sentido de produzir a interrupção do ciclo de violência.

Segundo Dal Molin (2016), pode-se entender que o recurso ao reconhecimento e ao auxílio por parte de outras pessoas é o último reduto de esperança para os sujeitos em situação aflitiva. A atribuição de maior importância etiológica a essa cena, na qual está em jogo a relação com os objetos externos, é a contribuição original do analista húngaro à teoria psicanalítica sobre o trauma. É nessa cena em que existe o risco da desautorização, mas também a possibilidade de se pedir auxílio na elaboração de vivências excessivas (Dal Molin, 2016). Ou seja, existe também como possibilidade de desfecho para a segunda cena o antônimo da desautorização, que é a possibilidade de se reconhecer socialmente a vulnerabilidade do sujeito que relata ter sido abusado e a realidade de suas percepções e sentimentos (Gondar, 2012). É possível especular se não é essa esperança nos efeitos benéficos do reconhecimento do sofrimento e da vulnerabilidade de quem vive uma realidade abusiva a característica mais importante, de um ponto de vista clínico, da perspectiva ferencziana.

 

Estudo de caso

Primeiro tempo: um choque silencioso ou soldados não choram

Foi recebido em atendimento, no CREAS, um menino de quatro anos encaminhado pelo Conselho Tutelar. Ele veio acompanhado de sua avó paterna que, muito emocionada, disse que os apelos do neto não estavam sendo ouvidos. Ela relatou que já havia procurado o Conselho Tutelar e a Delegacia, e apresentou cópia de registro de ocorrência sobre a situação que afligia a criança. O menino se queixava de que um primo de dez anos de idade estava fazendo brincadeira desagradável, na qual colocava o pênis em seu traseiro. A avó relatou, inconformada, que por diversas vezes percebia que o ânus do neto estava machucado e o pênis esfolado, até a situação-limite, na qual os ferimentos foram tão graves que a criança precisou ser levada ao hospital para ser socorrida. Apesar de ter apenas quatro anos, o menino apresentava ótima dicção e vocabulário. Ademais, trazia com frequência colocações desconcertantes a respeito dos adultos, principalmente em relação à sua mãe, sempre com um ar cômico, um verdadeiro enfant terrible5. Uma frase proferida em uma das entrevistas com os profissionais deu voz ao sentimento que paralisou o caso durante um tempo: "Mas eu não vejo... assim... na minha percepção... uma questão de sofrimento dele com isso, né"6. Porém, a respeito disso, Ferenczi teria dito com precisão: katonadolog ou meninos não choram.

O solitário soldado de apenas quatro anos se encontrava impossibilitado de deserção ante a situação traumática intrafamiliar. Constrangido pelo contexto que o expunha a uma situação excessiva, desenvolveu uma forma de protesto que oscilava entre ações silenciosas autoplásticas e a manifestação de protestos contra o primo e a mãe através de falas contundentes e agressividade. Em entrevista com o primo de dez anos, o mesmo se mostrava cabisbaixo e pouco falante, negava estar sofrendo ou praticando qualquer tipo de abuso e trazia como única queixa a agressividade da criança de quatro anos que às vezes batia nele com um cabo de vassoura.

O pequeno soldado era filho de pais separados e vivia em regime de guarda compartilhada após decisão judicial que estipulou que a criança deveria alternar quinze dias consecutivos na casa da mãe com cinco dias na casa do pai e da avó paterna. Em atendimento com o pai, o mesmo informou que a iniciativa em relação à regulamentação da guarda foi dele, e que precisou apelar para a Justiça, tendo em vista a proibição da mãe em permitir o contato com seu filho. Prossegue afirmando que só conseguiu registrar o filho quando este já contava um ano de idade, e que só pôde começar a visitá-lo quando a criança tinha dois anos. O pai alegava que, de fato, nunca foi casado com a mãe da criança, e que ela nunca o perdoou pelo abandono. A criança relata que o abuso ocorria na casa da mãe, onde o primo de dez anos frequentava. A mãe, ciente da queixa, sustentava que os relatos do filho eram mentiras e que ele estava sendo manipulado pela avó paterna com objetivo de prejudicá-la. Em uma visita domiciliar, a mãe recebeu a equipe do CREAS na calçada de forma impaciente e não compareceu aos atendimentos agendados.

A criança parecia cindida diante de uma situação de difícil elaboração. A vivência sexual com o primo nem sempre era vivida imediatamente como um sofrimento. Outro profissional relatou: "mas ele trazia... relatava com muita tranquilidade o que acontecia", "como se fosse brincadeira com o outro primo"7. Porém, havia algo que o assombrava com frequência, um espírito aterrorizante que o impelia pela busca de um interlocutor que o ajudasse - com a oferta de um tempo de escuta - na sua luta solitária rumo a alguma elaboração do ocorrido. Era o sprit d'escalier, que o puxava pelo pé de volta à cena perturbadora com o primo, exigindo o impossível para um menino de quatro anos, a saber: uma resposta satisfatória diante de um encontro sexual incestuoso e que o desembaraçasse dos sentimentos paradoxais de prazeres e dores insuportáveis ou, o que também é possível, que o permitisse superar os lapsos de memória típicos das vivências traumáticas (Ferenczi,1992d/1934). Aqui é possível discernir em Ferenczi, enquanto direção de tratamento, uma política da escuta em relação às crianças que é distinta da política do silenciamento; na primeira, o silêncio do adulto não é "silêncio de morte" (Ferenczi, 1934/1992e, p. 111) que produz ignorância, mas silêncio de vida que cria um tempo de escuta.

Verificou-se que, diante da postura da mãe que desautorizava seu relato, o menino dizia sem meias palavras que "não gostaria de viver mais naquela sujeira". Ao mesmo tempo, afirmava com surpreendente sobriedade que gostava da mãe e "sentia saudades e gostaria de visitá-la durante apenas dois dias" e não durante quinze dias consecutivos, pois considerava tempo em demasia. Além do mal-estar em relação ao primo, o menino trazia também outras queixas: "A minha mãe não passeia comigo". Queixava-se também de outras negligências na casa da mãe, como pouca alimentação e falta de atenção. Além disso, a avó paterna e a escola denunciavam falta de higiene e de cuidados de saúde em relação ao menino.

A demanda por uma maior atenção familiar para a criança se destacou, segundo os profissionais, enquanto uma das causas da relação abusiva entre as crianças. Nesse sentido, a situação de abuso pôde ser interpretada como um sintoma de um ambiente familiar no qual as crianças eram deixadas muito sozinhas. Desse diagnóstico, decorreu a demanda pelo acompanhamento da família, principalmente da mãe em suas dificuldades pessoais em escutar e cuidar de seu filho. Certa vez, o menino trouxe fotos para o atendimento no CREAS e apresentou seus parentes um a um, o que foi entendido como uma demanda para que as relações familiares se tornassem presentes em seu atendimento.

Diante da desautorização do seu sofrimento, as queixas do pequeno soldado solitário em relação ao comportamento de sua família mostravam uma desconcertante maturidade e uma noção precisa do mal que o acometia, que era a falta de uma presença familiar significativa no cuidado das crianças, que estavam, de fato, abandonadas a si próprias.

Segundo tempo: uma desautorização em curso

O CREAS procedeu no sentido de reforçar o encaminhamento da avó e do pai à Defensoria Pública a fim de que solicitassem revisão da guarda. Ademais, notificou o Conselho Tutelar e a Promotoria de Justiça sobre as recorrentes situações de violência e negligência, enfatizando a passagem pelo hospital, tendo em vista os ferimentos no corpo do menino, bem como sobre os desejos da criança em relação à situação da guarda compartilhada.

Dois dos três profissionais entrevistados alegaram desconhecimento a respeito da passagem da criança pelo hospital. O único que admitiu saber do fato, quando perguntado, o trouxe desarticulado de sua apreensão do caso, como se fosse uma informação pouco relevante. Apesar de não ser possível afirmar, supõe-se que tenha ocorrido aqui um processo defensivo de recusa perceptiva quanto à relevante passagem da criança pelo serviço de emergência. Recusa [Verleugnung] que, como apresentado anteriormente, pode ter sido posta em ação pelos profissionais como uma forma arcaica de defesa contra o embaraço provocado pelos relatos chocantes da criança e de seus familiares, assim como contra o seu próprio sofrimento diante da situação.

Para além de se admitir ou não a passagem da criança pelo hospital, o que está em jogo é o estranhamento diante do pouco peso dado a esse acontecimento pelos profissionais. É importante ter em vista que existem documentos que comprovam o fato (Boletim de Atendimento Médico - BAM), bem como relatos de familiares que indicam que a passagem pela emergência foi reportada pessoalmente a todos os profissionais por uma avó em estado de desespero que, tendo em vista sua queixa principal e o próprio desenrolar dos fatos, verificou-se não ter sido ouvida em um momento inicial. A capacidade de reconhecer o sofrimento da criança parece estar para além de uma verificação fria dos fatos. Trata-se aqui da capacidade de reconhecimento da natureza embaraçosa da situação da criança, de sua vulnerabilidade, tendo em vista o caso concreto. Isso revela a importância da inserção da reunião de estudo de caso enquanto metodologia de trabalho que contemple não apenas uma discussão teórica ou técnica, mas uma troca e suporte mútuo entre os profissionais no que tange às suas dificuldades e angústias frente à estranheza e à imprevisibilidade que advêm das singularidades em jogo no caso em tela (CFP, 2020).

Parece ser preciso reconhecer e, no mesmo momento, criar um tempo de elaboração no qual não se saiba o que fazer, pois caso contrário o imperativo de resolução pode gerar como resposta defensiva imediata uma brusca e violenta intervenção protocolar, ou o seu negativo, a recusa da percepção de que alguma coisa não está conforme o esperado. Porém, constatou-se, no caso estudado, que esse tempo de espera precisou ter um limite, tendo em vista o imperativo ético de proteção da criança. Nesse sentido, o reconhecimento da vulnerabilidade da criança precisou ser construído em articulação com tentativas urgentes de reparações concretas da situação de abuso a fim de promover ações de proteção capazes de interromper de forma diligente e definitiva o ciclo de violência. Primeiramente, de uma forma mais imediata, produziu-se em articulação com a rede - enquanto reparações concretas - a retirada da criança do local onde sofria abusos. Posteriormente, efetivou-se a revisão da guarda, a fim de torná-la mais de acordo com os desejos da criança. Observou-se que a dimensão da reparação parece ser fundamental para apreensão do sentido de reconhecimento em sua plenitude, e para que não se caia na "hipocrisia" (Ferenczi,1992c/1933, p. 100), conforme denunciada pelo psicanalista húngaro. No texto de 1933, o termo hipocrisia assume o sentido próprio de um mecanismo defensivo baseado na simulação e na ausência de ações concretas no sentido de tentar reparar suas próprias falhas.

A pesquisadora, artista plástica e ativista Grada Kilomba (2019) indica a inseparabilidade entre reconhecimento e reparação na relação com sujeitos em situação de vulnerabilidade. Em sua pesquisa sobre o racismo, usou como ilustração um discurso público do historiador e ativista negro Paul Gilroy. Este descreve cinco diferentes formas de defesa que o sujeito branco percorre ao aderir a um processo reflexivo sobre a violência do racismo, que seriam: recusa; culpa; vergonha; reconhecimento e reparação. Na primeira forma de defesa descrita pelo ativista negro, o sujeito branco está diante da recusa em reconhecer um fato, situação na qual seriam comuns expressões do tipo: não sou racista, não temos docentes negros porque eles não se esforçaram o suficiente (Navasconi, 2018). Na culpa, segunda forma de defesa, a tentativa de projeção sobre os outros daquilo que se quer recusar em si não existe mais e emerge no sujeito que praticou o racismo a preocupação com as consequências de sua infração e a tentativa de racionalizações, como na expressão: Devemos enxergar as pessoas como pessoas e não como negros ou brancos (Navasconi, 2018). O terceiro momento, referente ao aparecimento do afeto da vergonha, diz respeito ao processo no qual o sujeito branco - que antes se defendia por trás de uma percepção de si enquanto pessoa no geral - passa a assumir a sua branquitude privilegiada (Navasconi, 2018). No quarto momento, o do reconhecimento, a vergonha deixa de ser apenas um afeto e passa a ser encarada e reconhecida, e expressões críticas, como no exemplo a seguir, se tornam possíveis: A disciplina que eu ministro está construída a partir de uma única voz branca eurocêntrica (Navasconi, 2018). No último momento, o da reparação, o caminho de autocrítica do sujeito branco finalmente desemboca em ação negociada na realidade, no sentido de criar mudanças de estruturas, agendas e vocabulários rumo a um abandono de privilégios (Navasconi, 2018).

Ocorre nessa última etapa o abandono, em termos ferenczianos, da paralisia em jogo na postura defensiva de hipocrisia diante da violência. Pode-se especular se os mecanismos de defesa utilizados pelo sujeito branco como forma de recusar o racismo não seriam análogos aos do sujeito adulto em relação à recusa da situação de vulnerabilidade da criança que sofre abusos. Uma distorção perceptiva relatada por um profissional a respeito da faixa etária das crianças do caso estudado parece confirmar a analogia proposta acima. O erro perceptivo parece funcionar como uma forma de recusar a vulnerabilidade da criança que tinha quatro anos de idade na época, em relação ao primo, que já tinha dez anos:

Já pegamos um caso que a criança ficava muito mais abalada, aparentemente, do que ele, mas ele trazia... relatava com muita tranquilidade o que acontecia. Como se fosse brincadeira com o outro primo, que é praticamente da mesma idade, né? A respeito dele, nós ficamos até preocupados tendo em vista como a família paterna colocava. Como se ele sofresse abuso sexual... por parte de quem? De um outro primo da mesma faixa de idade da criança, né. De 5 ou 6 anos de idade [o primo tinha 10 anos na época]? Duas crianças pequenas. Nem adolescente o menino era. O suposto abusador, se é que assim a gente pode chamar...8

O acolhimento da criança e de sua família pelo CREAS, com o auxílio da rede, contribuiu para a reunião de relatos aprofundados da situação, bem como de documentos confirmatórios como o BAM e os relatos da escola que, em conjunto, conseguiram tornar visível junto ao Ministério Público a situação de sofrimento e vulnerabilidade da criança. Sendo assim, após nova decisão judicial, a guarda do menino foi transferida para o pai e a criança passou a ver a mãe apenas de forma acompanhada no Fórum. Em decorrência disso, verificou-se mais protestos da criança. Parecia que a situação ainda não estava de acordo com o seu desejo. Manifestou-se aqui uma demanda pelo direito ao convívio familiar.Ele começou a apresentar enurese noturna e dificuldade de dormir. Porém, logo em seguida, decidiu-se que a criança ficaria três fins de semana do mês sob a responsabilidade da mãe. Após a mudança, a avó paterna relatou melhora no neto e ele passou a vir alegre da casa da mãe.

Em atendimento, a criança disse que estava satisfeita com a nova divisão da guarda. Apesar de continuar tendo contato com o seu primo, o menino afirmou que as brincadeiras de que não gostava não estavam sendo mais feitas. Ao mesmo tempo, a avó paterna passou a relatar, bastante preocupada, ter percebido outra brincadeira do neto, agora em sua própria casa, no qual ele oferecia o seu "bumbum" em troca de algo, apresentando em ato e de forma ativa o que antes ele tinha relatado do lugar de vítima. A avó foi orientada a intervir junto ao menino, explicando que a brincadeira de barganhar o próprio corpo é inapropriada, pois existem formas melhores de conseguir as coisas. Após essa orientação, os atos descritos cessaram. Com o tempo, uma queixa antiga da escola da criança a respeito de constantes diarreias também cessou.

Nesse caso, que provocou grande mobilização na rede de proteção, verificou-se que a criança foi criada em um contexto familiar de grande tensão devido aos conflitos entre a família materna e paterna e em decorrência da falta de atenção dos adultos, que deixavam as crianças por si próprias. Por conta disso, é possível pensar que, muito novo ele deve ter desenvolvido, muito antes da fala, uma forma de protesto por meio do aparelho digestivo (Dolto, 1984/2002). Porém, a pulsão de autoconservação do soldado solitário era grande, assim como o poder dos seus desejos. O desenvolvimento da sua fala se deu de forma surpreendente e atingiu nível acima do satisfatório para a sua idade. Durante um tempo, várias formas de protesto - por meio dos órgãos excretores, pela agressividade e através da denúncia pela fala - manifestaram-se paralelamente.

Pode-se supor que o encontro sexual incestuoso com o primo não encontrou interdição eloquente na cultura da família. Porém, como na peça de Shakespeare na qual o príncipe Hamlet era assombrado pelo fantasma do pai assassinado, apesar das aparências de normalidade, o menino também sabia que algo ia mal no reino da Dinamarca - o sprit d'escalier puxava sua perna, fazendo-o retornar à cena do abuso sexual, sinalizando que uma situação traumática estava se estabelecendo. A forma contundente com que a avó paterna pedia ajuda leva a crer que alguma interdição familiar incidia sobre a criança, mas não o suficiente para preservá-la objetivamente da situação excessiva. Sozinho diante da relação com o primo e sem interlocução, estabeleceu-se, provavelmente ainda na casa da mãe, o ato de barganhar o próprio corpo como forma de tornar a passividade à qual era submetido suportável através da adição de uma barganha ativa. Dessa aparência de jogo estabelecida com o primo, do qual nosso pequeno soldado shakespeariano também participava ativamente, decorreram as impressões iniciais da rede de que era tudo apenas brincadeira, de que a criança não demonstrava sofrimento, e que não era algo grave. Porém, as informações a respeito da passagem pelo hospital caíram como uma bomba de realidade, e a rede não poderia mais sustentar a tese da "brincadeira" sem efetuar uma recusa perceptiva do Boletim de Atendimento Médico. O apelo à Promotoria de Justiça e a atuação da Defensoria Pública provocada pela família paterna contribuiu para a dissolução dessa recusa.

A revisão da guarda que gerou efeitos de interdição na relação da família materna com as crianças causou grande alívio ao menino, mas não foi suficiente para encerrar o jogo da barganha do corpo. Na casa da avó paterna, a "brincadeira" ressurge diante de uma interlocutora com uma roupagem de atividade inédita para ela. Porém, agora não foi necessária a atuação direta da rede de proteção, pois a criança já contava com a mediação de um adulto cuja atenção havia sido despertada.

 

Considerações finais

A partir do estudo de caso apresentado, verificou-se que a concepção relacional de trauma em Ferenczi instrumentaliza a discussão a respeito do acompanhamento dos casos específicos de crianças que sofrem abuso sexual. Isso porque a sua ênfase teórica favorece o reconhecimento da vulnerabilidade do infante acometido por relações abusivas e, portanto, cria condições para melhor discernir, nesse contexto, as necessidades da criança.

Verificou-se a impossibilidade de se enfrentar o problema concernente à proteção de crianças envolvidas em relações abusivas, utilizando-se de uma lógica universalista, pois, tendo em vista a estranheza e a imprevisibilidade em jogo na escuta de sujeitos crianças singulares, assim como as particularidades dos contextos em que vivem, faz-se necessário que se atue inevitavelmente no campo do caso concreto. Ferenczi oferece recursos para a atuação do profissional encarregado da proteção dos vulneráveis, pois a sua perspectiva de trauma chama a atenção para as nuances abusivas inesperadas e muitas vezes veladas que só podem ser percebidas a partir da análise de relações concretas e que são produzidas por dinâmicas de poder, contextos culturais e momentos históricos particulares. Exemplos paradigmáticos disso são os casos de abusos produzidos ou agravados pela quebra de confiança e silenciados pela "hipocrisia" (Ferenczi,1992c/1933, p. 100) que podem ser encontrados - como apontado pelo próprio Ferenczi - na relação entre analista e paciente, cidadão e instituição ou entre pais e filhos.

Observou-se também a partir da investigação de um caso concreto a importância de discussões de caso em rede como forma de diluir, por meio do debate sobre as diversas percepções, os mecanismos de defesa dos profissionais diante do horror provocado pelas histórias de violência contra crianças. Além disso, a rede tem como função fornecer suporte mútuo aos profissionais, bem como garantir uma melhor resposta à complexidade das demandas. No caso estudado, foi possível identificar projetos de intervenção concorrentes; porém, as discordâncias não inviabilizaram o trabalho em rede e nem a construção de um desfecho satisfatório para o caso. Pelo contrário, elas se mostraram fundamentais para a elaboração de uma intervenção mais precisa.

A leitura de Ferenczi chama atenção, por fim, para os riscos de uma postura de desconfiança em relação ao relato da criança pelos profissionais. Observamos que essa postura de desautorização da criança que pede ajuda pode provocar um excesso tão traumático quanto a própria cena familiar de abuso e desautorização. Com as populações em situação de vulnerabilidade, uma postura de reconhecimento do sofrimento é fundamental, porém não o suficiente. O caso concreto estudado indicou que não é possível falar em um reconhecimento do sofrimento dos infantes que vivenciam relações abusivas sem pensar em tentativas de reparações urgentes que interrompam de forma definitiva o ciclo de violência.

 

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Data de recebimento/Fecha de recepción: 10/09/2020
Data de aprovação/Fecha de aprobación: 05/01/2021

 

 

1 O Canal de Jornalismo da Band, disponível no site Youtube, vinculou o vídeo com o título "Amor em meio à violência: pai incentiva filha a rir com sons de ataques aéreos na Síria" (Band, 2020).
2 Esta pesquisa resultou em uma dissertação de mestrado defendida em 2020 no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Ela foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFRRJ (processo: 23083.037263/2019-15).
3 É importante que, em primeiro lugar, seja interrompida a violação identificada, mas é preciso que também haja a intervenção nos fatores causadores da violência para que ela não se repita (CFP, 2020).
4 A Declaração Universal dos Direitos da Criança é um documento internacional que afirma o direito dos infantes e que foi adotado pela ONU a partir de 1924.
5 Termo em francês utilizado para se referir à criança que, por sua inteligência acentuada, habitualmente diz coisas embaraçosas para os adultos. Esse termo é utilizado também para se referir a profissionais de vanguarda que obtiveram sucesso agindo de forma não ortodoxa.
6 Fala extraída de entrevista com os profissionais.
7 Fala extraída de entrevista com os profissionais.
8 Fala extraída de entrevista com os profissionais.

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