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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) v.32 n.49 São Paulo dez. 2009
ARTIGOS
O Discurso de Roma: ponto de inflexão da psicanálise1
The Rome Discourse: a turning-point in psychoanalysis
Alan Victor Meyer*
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
RESUMO
O Discurso de Roma, apesar de todas as críticas que possam ser feitas, é ainda hoje um texto muito importante para estabelecer o lugar central da linguagem na psicanálise. O autor sublinha a importância atribuída por Lacan ao pensamento de M. Heidegger. O mérito deste filósofo, e particularmente de seu texto “Logos”, está em oferecer um fundamento para pensar a dimensão ontológica da linguagem que convém à psicanálise.
Palavras-chave: J. Lacan, M. Heidegger, Psicanálise, Fala, Linguagem, Serpara-a-morte.
ABSTRACT
Despite the criticism to which it has been subjected, the Rome Discourse remains a crucial text in so far as it establishes the central place of language in psychoanalysis. The author underlines the importance attributed to Heidegger by Lacan. His point is that Heidegger and in particular his work “Logos”, offers a foundation for the ontological dimension of language that is pertinent to psychoanalysis.
Keywords: J. Lacan, M. Heidegger, Psychoanalysis, Speech, Language, Being-for-death.
Apesar de todas as críticas que possam ser feitas ao Discurso de Roma, tanto no que se refere ao seu estilo quanto ao uso que faz dos filósofos, dos linguistas, do lado ”manifesto” etc., é ainda hoje um texto indiscutivelmente fundamental. Com efeito, é em relação à questão da fala e da linguagem que se coloca a problemática da transmissão da psicanálise e que vai estabelecer uma oposição entre duas concepções da cura e da formação. Neste sentido devemos ser fiéis a esta posição de Lacan, como disse Pierre Fédida em São Paulo em um seminário sobre a linguagem. E se o título do Discurso é “Função e campo da fala e da linguagem na psicanálise”, talvez devamos lê-lo como função da fala no campo da linguagem.
Conhece-se a influência de Saussure sobre Lacan, entretanto parece-me que para Lacan nenhum modelo linguístico pode dar conta da atividade de linguagem na psicanálise. Deste ponto de vista, a afinidade profunda de Lacan com o pensamento de Heidegger é muito mais importante do que querem admitir muitos autores lacanianos. A publicação da tradução que ele fez da primeira parte do texto “Logos” de Heidegger, no número 1 da publicação La Psychanalyse, junto com o Discurso, é, neste sentido, muito significativa. É justamente nesse texto que Heidegger recorre a Heráclito para pensar a essência da linguagem. Ele escreve sobre a origem do verbo legein, no sentido de “reunir” e de “pôr a repousar”. Nesse nível, a linguagem está próxima de phusis, sentido que foi perdido, tornando-se meramente uma afirmação de alguma coisa sobre outra coisa. Eu trago esta referência, pois creio que a linguagem em Lacan não é nem absolutista, nem solipsista, crítica feita a ele com frequência. Acredito, nesse sentido, ser importante pensar a noção de “linguagem primeira”, sublinhando a referência que Lacan faz a Ernst Jones no seu artigo fundamental sobre o simbolismo: “O Dr. Jones, ali pela página 15, observa que, embora existam milhares de símbolos, no sentido como a análise as entende, todos se relacionam com o próprio corpo, com as relações de parentesco, com o nascimento, a vida e a morte” (Lacan, 1998, p. 295).
O mérito de Heidegger e desse texto em particular está em nos dar uma base para pensar a dimensão ontológica da linguagem que convém à psicanálise. Mas a importância desse autor vai mais longe: percebemos, com efeito, que suas reflexões sobre a estrutura e a temporalidade do Dasein (Ser-aí) estão presentes no texto do Discurso, sobretudo na terceira parte: “As ressonâncias da interpretação e o tempo do sujeito na técnica psicanalítica” (p. 290). Heidegger faz a crítica do termo “sujeito”, que é oposto ao termo “objeto”: quanto mais objetivamos o mundo, tanto mais o homem torna-se subjetivo. O processo de objetivação do mundo é o triunfo da dominação tecnocientífica que Heidegger denomina Gestell. Mas, para Lacan, a noção de sujeito não corresponde ao seu emprego habitual. Em primeiro lugar por diferenciar-se do ego, que é referido ao imaginário, enquanto o sujeito faz parte do simbólico e, nesse sentido, não é equivalente à consciência; bem ao contrário, o sujeito é o sujeito do inconsciente. E, em segundo lugar, o sujeito é marcado pela sua singularidade e escapa a toda objetivação, está fora da Gestell de Heidegger e próxima da noção de Dasein, na medida em que consideramos o sujeito como ser falante (parlêtre).
Quando Lacan escreve: “O que está em jogo numa psicanálise é o advento, no sujeito, do pouco de realidade que esse desejo sustenta nele em relação aos conflitos simbólicos e às fixações imaginárias, como meio de harmonização destes...” (Lacan, 1998, p. 281), ele vai falar a seguir dos três paradoxos, consequência das “relações no sujeito da fala e da linguagem”. Os dois primeiros paradoxos se referem à psicose e à neurose; o terceiro, que aqui me interessa, refere-se à objetivação. Lacan escreve: “O terceiro paradoxo ... é o do sujeito que perde seu sentido nas objetivações do discurso”. E continua: “Pois nisso está a alienação a mais profunda do sujeito da civilização científica...” (p. 282). Em seguida: “Para fornecer disso uma formulação exemplar, não poderíamos encontrar terreno mais pertinente do que o uso do discurso corrente, fazendo notar que o ‘isso sou’ [ce suis-je] da época de Villon inverteu-se no ‘sou eu’ [c’est moi] do homem moderno” (p. 283). Nesta citação de Villon, podemos escutar a interpretação que Lacan faz da famosa frase de Freud: “Wo Es war, soll ich werden”: em que Isso (Id, Ça) era é meu dever vir a ser.
Esta alienação do homem moderno nos lembra a argumentação de Heidegger na “Carta sobre o Humanismo”, na qual ele diz que Marx (!) fez a mais profunda experiência da alienação e que o homem se perdeu do seu fundamento no ser (para Lacan, o sujeito). Em outro texto de Heidegger, tirado de seu livro Holzwege (Caminhos na floresta), no capítulo “Wozu Dichter?” (Por que poetas?), ele começa citando a questão de Hölderlin: “... por que poetas em tempo de carência?” (... und wozu Dichter in dürftiger Zeit?) (Heidegger, 1946/1950). A questão do poeta refere-se à nossa época, na qual nós não chegamos a compreender o sentido no qual nós nos perdemos de nós mesmos. E Lacan cita o poema “The Hollow Men” (Os homens ocos) de T. S. Eliot (Lacan, 1998, p. 284):
We are the hollow men
We are the stuffed men
Leaning together
Headpiece filled with straw. Alas!2
Lacan fará um paralelo entre este paradoxo e a alienação da loucura: “... o sujeito é mais falado do que fala, ressalta evidentemente da exigência, suposta pela psicanálise de uma fala verdadeira” (Lacan, 1998, p. 284). Nesse sentido, existe o perigo do empobrecimento e da perda da experiência da fala no mundo contemporâneo, com a dominação de uma linguagem instrumental e consequentemente pela perda da singularidade do sujeito. O paradoxo refere-se à linguagem que opera contrariamente à libertação da fala no sintoma, constituindo um “muro de linguagem”.
Quando Lacan utiliza a expressão “fala verdadeira”, ele se inspira na análise feita por Heidegger sobre a verdade nos présocráticos. O termo verdade tira seu sentido da palavra grega alethéia como desvelamento e jamais no sentido de adequatio, como correspondência da ideia à coisa. É algo que surge, que aparece na análise pela interpretação ou quando há uma falta na fala, seja em um lapso, seja em um chiste. Lacan utiliza a palavra “revelação” quando ele escreve: “A ambiguidade da revelação histérica ... ela nos apresenta o nascimento da verdade na fala e, através disso, esbarramos na realidade do que não é nem verdadeiro ou falso” (p. 257). E ele continua:
Pois a verdade dessa revelação é a fala presente, que a atesta na realidade atual e que funda essa verdade em nome dessa realidade. Ora, nessa realidade, somente a fala testemunha a parcela dos poderes do passado que foi afastada em cada encruzilhada em que o acontecimento fez a sua escolha. (Lacan, 1998, p. 257)
Quanto ao acontecimento relatado, o sujeito “o fez passar para o verbo, ou, mais precisamente, para o épos onde relaciona com o momento presente as origens de sua pessoa” (p. 256). Esta citação situa a noção de acontecimento na análise com o épos e a fala verdadeira. Freud refletiu no Moisés sobre o épos, ao definir a psicanálise como um processo de civilização (Geistlichkeit).
A noção de revelação deve ser pensada junto à palavra “ressonância”. Em uma referência a Freud e na maneira como ele trabalha a resistência, Lacan escreve que ele “serve-se dela como uma disposição propícia ao acionamento das ressonâncias da fala” (p. 292). Lacan nos oferece a bela imagem da partitura musical, nos dizendo: “A análise consiste em jogar com os múltiplos alcances da divisão que a fala constitui nos registros da linguagem” (p. 292). A revelação e a ressonância dão para Freud seu sentido à anamnese, que é para ele história. E Lacan afirma:
Sejamos categóricos: não se trata, na anamnese psicanalítica, da realidade, mas de verdade, porque o efeito de uma fala plena é reordenar as contingências passadas dando-lhes o sentido das necessidades por vir, tais como as constitui a escassa liberdade pela qual o sujeito as faz presente. (Lacan, 1998, p. 257)
Para o sujeito, a realização de sua história, ligada ao seu desejo, pela liberação da fala plena, constituirá o objetivo mesmo da análise.
A fala vazia, pelo contrário, está ligada ao muro da linguagem e à impossibilidade da revelação. Esta oposição entre fala vazia e fala plena é tributária da distinção que faz Heidegger entre “Rede” (discurso) e “Gerede” (falatório). A palavra “Rede” implica uma fala que detém uma possibilidade autêntica da compreensão do ser. Na sua análise do Dasein, Heidegger fala da queda (“Verfall”) do Dasein na sua quotidianidade, que corresponde à queda da fala no falatório. Característica da mediocridade de “todo mundo” (“man”, “on”), sem nenhuma possibilidade de originalidade. Para Heidegger, a única possibilidade de sair dessa situação alienante é a angústia e a antecipação da morte. A morte manifesta-se na angústia e introduz o Dasein na sua finitude e na sua essencial historialidade (“Geschichtlichkeit”) que é estabelecida pela sua complexa temporalidade. Esta análise, aqui apresentada de maneira extremamente sucinta, visa introduzir um termo de Heidegger muito presente no texto de Lacan: trata-se da possibilidade factual do Dasein escolher o seu ser-para-a-morte (sein-zum-Tod) autêntico. Desse ponto de vista, a identificação à quotidianidade e a palavra vazia podem ser considerados como um refúgio em um sentimento de “estar no aconchego”. Para Lacan, a palavra vazia está ligada ao ego e às identificações imaginárias, correspondendo ao falatório que deve ser perfurado pelo silêncio do analista. É pelo abismo do silêncio que o sujeito pode aparecer e ser conduzido a uma fala originária (fala plena). O momento do silêncio é um momento da fala e pode ser concebido como momento da escansão. Mas, ao mesmo tempo, a fala é sempre constituída por uma multiplicidade de registros que dão à palavra e à fala a sua ambiguidade (Zweideutigkeit) sobre a qual a escuta atenta do analista poderá efetuar sua interpretação.
A dimensão da morte introduz o nada, a negatividade constitutiva do homem. Quando um animal morre, ele é esquecido e a espécie continua, mas o homem, quando ele morre, deixa uma história e a história só existe em um mundo de sentido. Lacan escreve:
Os símbolos envolvem a vida do homem numa rede tão total que conjugam, antes que ele venha ao mundo, aqueles que irão gerá-lo “em carne e osso”; trazem ... o traçado do seu destino; fornecem as palavras que farão dele um fiel ou um renegado, a lei dos atos que o seguirão até ali onde ele ainda não está e para-além de sua própria morte; e, através deles, seu fim encontra sentido no juízo final, onde o verbo absolve seu ser ou o condena & a menos que ele atinja a realização do seu ser-para-a-morte. (Lacan, 1998, p. 280)
As últimas páginas do Discurso são consagradas à questão da morte e à dimensão da negatividade presente no interior do símbolo e da linguagem. Mesmo o instinto de morte é considerado como “o limite da função histórica do sujeito” (Ibid., p. 319), e este limite é considerado no sentido de Heidegger, que ele cita diretamente, como “possibilidade absolutamente própria, incondicional, insuperável, certeira e, como tal, indeterminada do sujeito” (p. 319). Lacan retorna ao jogo do carretel para falar da negatividade do discurso da criança e de sua relação com a ausência. “Foram esses jogos de ocultação que Freud, numa intuição genial, produziu, a nosso ver, para que neles reconhecêssemos o momento em que o desejo se humaniza é também aquele em que a criança nasce para a linguagem” (p. 320). As três figuras da morte & a sepultura como primeiro símbolo do homem, a intermediação pela morte entre o homem e a história e, finalmente, a liberdade que está inscrita nas fronteiras da morte & conduzem a esta afirmação de Lacan: “Aquilo que é primordial no nascimento dos símbolos vamos encontrá-lo na morte, de onde sua existência retira tudo o que tem sentido” (p. 321). Esta relação está presente na obra de Freud, sobretudo no Totem e tabu e no Moisés, e pensamos no assassinato do pai como mito fundador da psicanálise. Mas é também a influência de Hegel lido por Kojève, sobretudo na dialética do senhor e do escravo, e também a referência ao mestre absoluto: a Morte (Das Tod). Por fim, Heidegger no Acheminement vers la parole (A caminho da fala) escreve: “Os mortais são aqueles que têm a possibilidade de experimentar a morte enquanto morte. O animal não é capaz. Mas o animal também não pode falar. A relação entre a morte e a fala, um relâmpago se ilumina: mas é ainda impensável” (Heidegger, 1976, p. 201). É uma questão polêmica, mas muito importante para diferenciar as orientações na psicanálise da atualidade. Para mim, é uma dimensão inevitável e que não esquece a dimensão trágica do homem presente no Mal-estar na cultura (Unbehagen der Kultur).
Para terminar, gostaria de lembrar o que é o famoso “retorno a Freud”. Lacan precisa: “Para resgatar o efeito da fala de Freud, não é a seus termos que recorremos, mas aos princípios que a regem” (Lacan, 1998, p. 293). Diria que esse retorno é um retorno à importância da linguagem na obra de Freud, da sua “talking cure”. Mas é também uma postura que recusa a teoria como doutrina, e pensa sempre a teoria como metapsicologia na sua referência clínica de metáfora e na restituição da condição poética da linguagem. Nesse sentido, é desejável fazer um “retorno a Lacan”, para pensar nos princípios, mas sem ideologia, sem espírito de grupo e também sem preconcepções. Esse congresso e os dois excelentes relatos são um reconhecimento de nossa dívida para com Lacan.
Referências
Heidegger, M. (1950). Wozu Dichter? In M. Heidegger, Holzwege (pp. 269-320). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, Gmbh. (Texto original de 1946). [ Links ]
Heidegger, M. (1976). Le déploiement de la parole. In M. Heidegger, Acheminement vers la parole (pp. 141-202). Paris: Gallimard. [ Links ]
Lacan, J. (1998). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In J. Lacan, Escritos (pp. 238-324). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. [ Links ]
Endereço para correspondência
Alan Victor Meyer
Rua João Moura, 647/132
05412 911 & São Paulo & SP
Tel.: 11 30629810
E-mail: avmeyer@uol.com.br
Recebido: 25/10/2009
Aceito: 30/10/2009
* Psicanalista, membro associado da SBPSP.
1 Este trabalho foi apresentado em Paris por ocasião do 67º Congrès des Psychanalystes de Langue Française com o tema “La cure de parole”, em maio de 2007, e publicado na Revue Française de Psychanalyse, v. 71, Décembre 2007.
2 Tradução dessas linhas de T. S. Eliot na edição citada de Lacan: “Somos os homens ocos/ Somos os homens empalhados/Todos encostados/ Com o capacete cheio de palha. Aí de nós!”.