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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.38 no.60 São Paulo jul./dez. 2015
EM PAUTA | SEGREDO
Casulos: sobre os segredos de Judith Scott
Cocoons: about the secrets of Judith Scott
Solange de Oliveira
Mestre em Sociologia da Moda pelo Programa "Têxtil e Moda" da Escola de Artes, Ciências e Humanidades; doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da Arte no Instituto de Psicologia, ambos da Universidade de São Paulo
RESUMO
O presente trabalho pretende propor uma reflexão sobre a experiência estética na feitura e na leitura das obras de Judith Scott, artista considerada outsider ou bruta. Seu fazer é marginal. É um fazer livre e anárquico, cujo projeto espontâneo e descompromissado resiste ao assujeitamento normativo. A artista coloca em situação um vivido encoberto ou segredado por fios. Seus objetos demandam um perfazer artístico que supra a completude e a indeterminação suscitadas pela infinita capacidade de mobilização a que essa obra nos desafia. Assim, interpretar o acervo é se implicar nas suas tramas tecidas. O exercício de reflexão solicitado por essa obra é importante instrumento de entendimento não só da experiência estética aludida pelo fazer bruto, mas também do olhar crítico, que nos requisita sobre determinados critérios organizadores de conteúdos dentro de um sistema de artes. As obras de Judith Scott convidam a esse esforço de reflexão.
Palavras-chave: Judith Scott. Outsider artist. Experiência estética. Fazer artístico. Segredo.
SUMMARY
This paper proposes a reflection about an aesthetic experience in the process of making and the interpretation of the Judith Scott's work. She is an artist considered outsider or brut. Her work is marginal. It's a free and anarchic work, whose spontaneous and disengaged process resist to a normative submission. The artist brings up a life experience through her threads hidden or whispered by wires, that is, kept in secret. Her objects require an artistic making up that meets the completeness and indeterminacy claimed by it, which is able to attend the infinite capacity of mobilization that this work challenges us. Thus, interpreting this collection is engaged with their woven webs. The reflective exercise requested by this work is an important knowledge tool and it does not only allude the aesthetics experience of the outsider artistic work, but also of the critical examination which is required to us about certain criteria that containts inside the art system. The Judith Scott's work invited us to this careful reflection.
Keywords: Judith Scott. Outsider artist. Aesthetics experience. Artistic work. Secret.
Deu meia noite, a lua faz um claro
Eu assubo nos aro, vou brincar no vento leste.
A aranha tece puxando o fio da teia
A ciência da abeia, da aranha e a minha
Muita gente desconhece [...].
(João do Vale, "Na asa do vento")
Conta o mito que Aracne possuía uma excepcional habilidade de tecer e bordar. Construía tramas de tamanha beleza que até as ninfas iam admirá-las. Mas a vaidade a fez incorrer na tolice de se vangloriar, comparando-se com a deusa Atena, que a desafiou. Aracne teceu uma tapeçaria, relatando os amores dos deuses, enquanto Atena, os feitos gloriosos dos seres Olímpicos e dos heróis. Ao fim da disputa, desesperada com o ciúme de Atena, Aracne, atrapalhada, enforca-se nos fios. Segundo uma das versões do mito, a deusa apiedou-se e, visando preservar sua bela aptidão, transformou-a em aranha, fadada a tecer eternamente.
Além de Aracne, existe na Grécia toda uma tradição de fiandeiras: Pandora aprendeu a arte com a própria deusa, cujo epíteto é "Atena Penitis, a tecelã", daí a indignação com a ousadia que levou Aracne a seu destino. Ariadne deu a Teseu um novelo de fio com o qual escapou do labirinto (Meneses, 2002, p. 75). Pelas mãos das Parcas ou Moiras são entrelaçadas as tramas do destino dos homens. Encarregam-se de embaraçar os fios, cada uma em sua incumbência própria: Cloto, a fiandeira, tece o fio da vida desde o nascimento; Láquesis, a fixadora, determina-lhe o tamanho, enrola e estabelece a qualidade de vida que terão. Por último, Átropos, a irremovível, corta o fio quando julga ser o momento, completando o ciclo de vida e morte (Civita, 1973). Penélope teceu sua trama esperando a volta de Ulisses. Seu nome em grego, Penelopeia, significa "aquela que tece": pene, fio de tecelagem, por extensão, trama, tecido; penelope, dor. A dor da nostalgia de Penélope, diz Meneses (2002), ganha outras cores quando descobrimos que, em grego, nostros significa volta; e algia, dor.
Penélope teceu por vinte anos, prometendo que, ao fim de sua tecelagem, desposaria um de seus pretendentes. Tecia durante o dia e destecia à noite, na esperança de que Ulisses voltasse, dando fim a seu tormento. Sua tecelagem "[...] tem tudo a ver com a fidelidade: essa trama feita e desfeita é seu ardil com vistas a reservar-se para a volta de Ulisses. E sua fidelidade é condição para o reencontro. Penélope: a fidelidade por um fio" (Meneses, 2002, p. 75). Durante a espera, a "trama" de Penélope traz à luz sua dupla acepção: a trama de tecido entrelaçado por fios; e a trama, procedimento ardiloso, portanto, um tecido de enganos.
A imagem da mulher que fia e tece o devir povoa nossa imaginação. E por que só as mulheres se dedicam aos fios? Meneses explica que Freud, em um estudo sobre a feminilidade, discorre sobre a tecelagem e sugere que seria uma invenção de mulheres, inspirada pelo pudor feminino, dissimulando suas partes íntimas: "[...] com a arte das tecelãs, o fendido torna-se defendido" (Meneses, 2002, p. 75). Com Penélope, a tessitura do manto falhou; ela não o finaliza e é justamente esse o seu ardil. Assim, a rainha ganhou tempo, recusando-se secreta e silenciosamente aos pretendentes até que, enfim, Ulisses retorna. Eis o segredo de Penélope.
Quem tece, aguarda, mergulhado no repouso dos seus pensamentos. De fato, o silencioso ato de tecer é espaço privilegiado, berço de solilóquios. Assim é o tecido de uma certa artista tecelã...
Judith Scott tem expressão calma e pacífica, conta MacGregor (1999). Os olhos azuis, às vezes vagos e claramente transparentes, são perturbados pelo hábito de forçar repetidamente as mandíbulas quando concentrada, alternando momentos de relaxamento e contração. Com o tempo de sua estadia no Creative Growth Center, atenuou esse ritmo. A afetação foi o resultado de um longo e tedioso período de asilo em uma grande instituição. Foi apresentada aos têxteis, quando retornou já adulta e frequentou uma instituição vizinha da casa que sua irmã gêmea dividia com a mãe. Judith Scott toma objetos díspares: ventilador, guarda-chuva, revistas, e faz deles o coração de sua criação. Depois de montá-los e atá-los com barbantes, envolve-os - protegendo e escondendo - integralmente com fios, cabos e fibras diversas. Ela descobriu sua vocação para os têxteis tão tardia quanto espontaneamente. A evidência da Síndrome de Down desviou a atenção de todos sobre o problema da surdez, motivo que a levou a viver distante do convívio familiar e sob cuidados pouco escrupulosos em uma instituição. Sua conformação corpórea reitera seus dons:
A aparência física de Judith Scott é, até certo ponto surpreendente, moldada por seu trabalho [...].
A pessoa que vemos hoje, aplicando-se com profunda concentração, deve diferir de forma significativa do paciente institucionalizado de anos atrás, embora elementos que habitam aquela personalidade persistem em certos maneirismos inextirpáveis. A intensidade de foco, os gestos lentos e cuidadosos, derivam do fato de que Judith sabe exatamente o que está fazendo. O senso de propósito tão evidente, em sua forma de trabalho e gestos, transfere-se para tudo o que ela faz. Uma mulher pequena, quatro pés e nove e cinco polegadas de altura1, ela é magra e forte da cintura para cima, nomeadamente bulbosa abaixo. O contraste marcante pode ser explicado pela tendência quase invariável de Judith para trabalhar sentada, onde o aumento constante e redução de seus braços, necessárias em seu trabalho, refina e molda apenas sua parte superior do tronco. Quando sentada, seus pés não tocam o chão. Judith é bem cuidada, impecavelmente arrumada com seu cabelo arranjado em constante mudança de estilos. Ela gosta de joias e sempre usa alguns colares de grandes contas multicoloridas, bem como pulseiras e pequenos grampos. (MacGregor, 1999, p. 30, tradução nossa)
No trabalho, Judith Scott era completamente automotivada. Iniciava cedo, logo que chegava no Art Center, e prosseguia com o trabalho ao longo de todo o dia até o momento em que decidisse parar. Sentava-se virada para a parede, em algum ponto da extensa mesa, provavelmente por não querer sustentar os olhares e desconcentrar-se. Prescindia de incentivo ou guia em seu projeto. Quando começava, era resoluta, sabia exatamente aonde chegar, demonstrando considerável independência: "O que é evidente, é que nenhuma questão externa a ocupava remotamente tanto quanto sua intensa relação com o trabalho. Essa relação tornou-se o centro de sua existência" (MacGregor, 1999, p. 33, tradução nossa). Afora os momentos de envolvimento absoluto com o trabalho, por exemplo, quando na rua, a fragilidade emergia: no mundo real ela era "[...] totalmente incapaz de levar a vida por si mesma ou até de suprir as necessidades humanas basilares" (p. 33, tradução nossa).
Em seu trabalho há um conteúdo retido que não revela explicitamente um determinado fato. As memórias fragmentadas da infância têm caráter de "lembranças encobridoras" (Freud, 1974). Em outras palavras: suprime o relevante, retém o irrelevante. Há "segredos" escondidos no interior dos casulos que, encobertos por fios, são talismãs sob o tecido de sua metamorfose. A estrutura no interior das peças é gradativamente recoberta por tramas retorcidas que atingem quase três metros. Tanto o vivido de Judith Scott quanto certos aspectos formais do seu trabalho guardam similitude com o sergipano Arthur Bispo do Rosario2. Relevado, porém, o caráter inelutavelmente pessoal e intransferível de suas especificidades.
Mas qual é o segredo contido nos casulos que Judith Scott faz crescer para além de sua própria estatura física? E o que nos intriga e nos impele a fruir algumas das mais exuberantes for-mas de expressão que surgem justamente das mais duras condições humanas? A beleza estaria supostamente fundada em uma mórbida atração pelo trágico ou por manifestações de dor física ou psíquica? Qual é o fio que une e traspassa as obras de outsider artists, como o que se oculta sob as tramas dos casulos de Judith Scott?
Para além das evidentes dificuldades que tenha enfrentado - vividas entre o asilo e o alheamento familiar -, o fio conduz inelutavelmente outsider artists a encontrar espaço de legitimidade no conforto de uma arte que é docilmente doutrinada aos salões, que obedece às normas e aos desmandos do sistema e do mercado de arte. Há inúmeros episódios registrados na história em que a grande arte pretende ser tão ou mais convincente do que as próprias coisas, buscando ansiosamente atingi-las, "[...] impondo a nossos sentidos um espetáculo irrecusável" (Merleau-Ponty, 1991, p. 49, grifo do autor).
Mas, basta um olhar mais atento para percebermos que, muito provavelmente, o que nos encanta nessas expressões artísticas é justamente o desregramento e a anarquia, explicitadas em uma "[...] necessidade de fixar a vida e de se demitir dela" (Merleau-Ponty, 1980, p. 114), que alguns raros artistas conseguem esbanjar em suas obras. Seria talvez um átimo de humanidade presente na penúria ou no gozo das experiências vividas, sempre pronto a habitá-las ou - bem ao contrário - residiria na oculta evasão do mundo humano, na "alienação de sua humanidade" (p. 114). Algumas obras têm a capacidade de transbordar uma completude de sentidos, paradoxalmente proveniente de uma incompletude de possibilidades adiadas, plenas de indecisão ou ocultamento, entre o êxito e o fracasso, nas várias tentativas fadadas ao abandono, ou nas retomadas que se oferecem à indeterminação que surge em face de novas investiduras.
Mas as cruéis experiências não implicam necessariamente inexorabilidade ou fatalidade como um sentido reto na obra de arte. Não é lícito inferi-la de eventos explícitos de decadência, de crenças ingênuas sobre supostas inépcias técnicas, de perturbações sensórias ou tropismos psíquicos. Esses eventos milagrosamente constituem a obra sem, no entanto, determiná-la.
No confronto com obras misteriosamente desconcertantes, o primeiro ímpeto do observador é se confortar na segurança das razões externas, como linhagem, fonte inspiradora ou semelhanças familiares, sejam elas visuais ou culturais (Frota, 1978; Bay, 2006). A filosofia moderna incentivou-nos a aderir a um olhar sobre o mundo que é orientado pelo pensamento já instalado. Esse cacoete recusa o fato de que o mundo existe antes mesmo de que possamos sobre ele depositar nossas conjecturas. De modo semelhante, negligenciando juízos, opiniões e operações, nossa experiência é um "habitar o mundo" (Merleau-Ponty, 2009, p. 38), não se enraíza no que a antecede, nem estritamente nos ambientes físico e social, mas os sustenta de modo que todos esses aspectos possam coabitá-la. Assim, buscar ascendência é um reflexo que neutraliza o desconhecido, tornando-o forçosamente próximo, como um método comparativo para subsidiar hierárquica e hipoteticamente uma inspiração alienada.
Suas fontes são subsidiadas por suas experiências que, por sua vez, constituem o conjunto de fenômenos que determinam o nascimento e a formação de mitos pessoais, às vezes apresentando até mesmo traços comuns entre eles - a exemplo do cotejamento com Arthur Bispo do Rosario -, trançados nas fibras do tecido da obra, como instrumentos de sua fala e visão de mundo. Seus protagonistas são mediadores que, ao lançar seu olhar peculiar sobre o mundo, se expressam em um surto de pensamento com repertório próprio. O termo introduzido por Frota (1987) parece precisar o sentido dessas expressões: Arte Ínsita provém da definição do termo em latim insitus, inato.
1. Os fios da arte embaraçados aos da vida
No delicado ensaio "A dúvida de Cézanne", Merleau-Ponty (1980) observa que os estudos do artista são menos um esforço técnico emparedado no ambiente do ateliê do que "um trabalho de natureza" (p. 115). Essa arte paradoxal é a procura da "[...] realidade sem abandonar as sensações, sem ter outro guia senão a natureza na impressão imediata, sem delimitar os contornos, sem enquadrar a cor pelo desenho, sem compor a perspectiva ou o quadro" (p. 115). O artista inaugura a possibilidade de descrever-se a si mesmo, e de indicar correlações entre pensamento e imaginário, transformadas, então, em uma realidade na qual a fonte suprema do aprendizado e da certeza é ele próprio. A verdade sobre o mundo surge no contato, na frequentação do mundo: uma compreensão entranhada, cujo sentido surge nos vãos, na intersecção e no intervalo, um espaço privilegiado onde a expressão não é reduzida a mero ajustamento. O campo em que o artista trabalha é perceptivo, campo repleto de reflexos e impressões efêmeras que não estão rigorosamente ligadas ao contexto que, tão logo percebido, situo no mundo, apesar de minhas divagações. As coisas que imagino não se confundem com o mundo, ainda que não sejam incompatíveis com seus contextos. Se basearmos nossa percepção na coerência das representações, o fundamento é um risco. Hesitantes, seguiremos à deriva, abandonados em ponderações, em probabilidades e em conjecturas lógicas: "Quando volto a mim a partir do dogmatismo do senso comum, ou do dogmatismo da ciência, encontro não um foco de verdade intrínseca, mas um sujeito consagrado ao mundo" (Merleau-Ponty, 2006, p. 6).
Muitos comentários sobre as obras no campo da arte privilegiam a razão sobre a expressão. A atividade categorial não deixa de ser uma maneira de se relacionar com o mundo, mas o faz sob a condição da correlação com uma configuração preestabelecida da experiência. É um procedimento anormal, à medida que denega a relação essencial entre linguagem e pensamento, em préstimo da relação entre pensamento e linguagem amputados de seu sentido mais agudo, de um gesto desencarnado. Assim, é ilusão suprir o conhecimento sobre determinado artista pelas suposições da História da Arte. De modo semelhante, reportar-se a procedimentos e depoimentos sobre as obras, tampouco garantem maior acesso à sua expressão (Merleau-Ponty, 1980, p. 114). O sentido de uma obra não é determinado pela vida do artista ou pelo contexto em que viveu, não obstante sejam componentes imprescindíveis para que exista como obra. O sentido não está em algum lugar colocado, segredado, não está nas coisas, nem sua concepção pode preceder a execução. O sentido exige da obra a sua existência. E a beleza reside em seu mais caro e precioso bem: a liberdade. É o espaço de ação que surge a partir da possibilidade de inaugurar um gesto completamente inédito e, ao mesmo tempo, coerente com seu projeto em curso, desde sua chegada ao mundo. Sobre a liberdade, Merleau-Ponty afirma:
Duas coisas são certas a respeito da liberdade: que nunca somos determinados e que não mudamos nunca, que, retrospectivamente, poderemos sempre encontrar em nosso passado o prenúncio do que nos tornamos. Cabe-nos entender as duas coisas ao mesmo tempo e como a liberdade irrompe em nós sem romper nossos elos com o mundo. (Merleau-Ponty, 1980, p. 123)
Merleau-Ponty (1980) explicita, em seu ensaio, a retomada de uma noção na arte, que é a do homem acrescentado à natureza (p. 119). Mas esse acúmulo não se estabelece - no caso de Cézanne - à custa da recusa da ciência ou da tradição e, ainda assim, o artista permanece imerso no mundo do qual é parte. É justamente o modo como se dá a relação entre a obra e a constituição esquizoide de Cézanne - da qual se apropria -, que o move a transformar em "[...] projeto de um Logos infinito" (p. 121). Essas são partes de um todo que se doa à decifração, realizada no sentido de uma vida que se interpreta livre e reiteradamente, abrindo-se à indeterminação:
As criações do artista, como aliás as decisões livres do homem, impõem a este dado um sentido figurado que antes delas não existia. Se nos parece que a vida de Cézanne trazia em germe sua obra, é porque conhecemos sua obra antes e vemos através delas as circunstâncias da vida, carregando-as de um sentido que tomamos à obra. Os dados de Cézanne que enumeramos e de que falamos como condições prementes, se devessem figurar no tecido de projetos que era, só o poderiam propondo-se-lhe como o que tinha a viver, deixando indeterminada a maneira de o viver. (Merleau-Ponty, 1980, p. 122)
Como ocorre com a vida que se interpreta em obra, a postura sobre a interpretação da obra também deve observar o vão sutil de atuação entre fidelidade (dever) e liberdade (fato) para, só então, se colocar diante dela no momento de perfazê-la. É uma urgência interposta entre a "reevocação" respeitosa, devota, impessoal, e a implicação do intérprete, cuja situação é intransponível e da qual não se escapa (Pareyson, 1993). A obra é a presença silenciosa do outro que ecoa em mim:
O intérprete não pode não considerar a própria interpretação como aquela que se deve dar, como aquela que é exigida pela própria obra: quanto mais o intérprete se esforçou para alcançar a essência da obra e penetrar-lhe os segredos e dar-lhe vida, uma vida que não lhe seja estranha nem acrescentada, que essa obra se deve entender assim, que justamente nessa execução ela se mostra em sua plena realidade e em sua vida autêntica. Mas ao mesmo tempo sabe muito bem esse intérprete que essa interpretação é precisamente a sua naquele momento, e que outros ou até ele mesmo já lhe deram ou ainda irão dar outras interpretações diferentes dessa. E isso é bem verdade quando se lembra que o impulso para dá-la pode ter vindo de outras interpretações, que lhe pareceram boas mas não bastante penetrantes, e se lhe ocorrer uma outra que lhe pareça melhor que a sua, ela a usará para melhorar a própria ou até para substituí-la. Em suma, a sua própria experiência como intérprete lhe impõe a tomada de consciência de uma sempre nova e diversa multiplicidade de interpretações. (Pareyson, 1993, p. 218)
Assim, a interpretação deve guardar algo de inventivo e vivo no perfazer da obra. Ao implicarmo-nos nesse processo, trazemos conosco nossas experiências. Nessa afluência, entre duas realidades, se instala a surpreendente mágica que cria a possibilidade de alcance, de amplitude e de perenidade de uma obra: "[...] a fidelidade não pode ser resultante de uma impersonalidade [...] e a personalidade do intérprete, longe de ser um obstáculo para a verdadeira e autêntica interpretação, por estar demasiadamente empenhada em querer exprimir-se, é ao invés a sua única condição possível" (Pareyson, 1993, p. 221). O perfeito equilíbrio, a dosagem entre o querer exprimir-se per si e a consciência de não dever renunciar-se a si mesmo é a combinação suficiente para que a obra seja (per-)feita de maneira honesta e íntegra, tendo em mente que nada que daí resulte é absolutamente imperturbável ou último.
Entretanto, é sempre possível permanecer numa zona aquém do visível e nos ocuparmos somente do que é visto, ignorar o residual que nos olha e negligenciar o que transborda de cada obra de arte: "[...] Mas há também nessa atitude um verdadeiro horror e uma denegação do vazio: uma vontade de permanecer nas arestas discerníveis do volume, em sua formalidade conexa e simples" (Didi-Huberman, 2010, pp. 38-39). Nesses mitos fabris, a condição e a dor de seus protagonistas se colocam em situação. Porém, um comportamento que refuta implicar-se faz do exercício do olhar uma verdade rasa, uma recusa ao trabalho que o tempo talhou os objetos e a obsessão desses olhares. A rica experiência do ver deve ser um exercício de crença mais amplo:
Seja como for, o homem da crença verá sempre alguma coisa além do que vê, quando se encontra face a face com uma tumba [...]. O homem da crença prefere esvaziar os túmulos de suas carnes putrefatas, desesperadamente informes, para enchê-los de imagens corporais sublimes, depuradas, feitas para confrontar e informar - ou seja, fixar - nossas memórias, nossos temores e nossos desejos. (Didi-Huberman, 2010, p. 48, grifo do autor)
É insuficiente e frustrante buscar palavras que preencham o sentido. É preciso acreditar que existe algo além da materialidade aparente, algo que resgate um sentido metafísico. É a vitória da linguagem sobre o olhar puro e simples. Produzir imagens é frequentemente escape. O que vemos, nos olha, diz Georges Didi-Huberman, e o faz a partir de nossas expectativas, crenças e anseios.
2. epopeias bordadas: Judith Scott, Arthur Bispo do Rosario, Louise Bourgeois
Judith Scott desconhece ou ignora a dimensão artística dos seus trabalhos, "[...] não há um nome para o que ela faz" (MacGregor, 1999, p. 30), mas ela o fez por dez anos, seis horas por dia, todos os dias - sua metamorfose está bem encaminhada. Realiza o mais licencioso exercício de liberdade na superação da situação de partida, vivendo-a em obra, no interior da qual guarda um segredo. Seus casulos são memórias colocadas em situação. A vocação tardia catapultou e intensificou seu comprometimento e transformou-se em projeto de vida. Se em Arthur Bispo do Rosario a morte é iminente, em Judith Scott, a vida o é.
Os nomes bordados, ocultos na bainha encoberta pelo franjado do Manto da apresentação de Arthur Bispo do Rosario e o segredo escondido nos casulos de Judith Scott provêm de raízes semelhantes. O Manto da apresentação é invólucro, sudário, superação da finitude corpórea. É ressurgimento ou retomada -a ressureição. Em Judith Scott, o casulo é possibilidade de realização da vida ou de uma corporeidade renovada.
A artista Louise Bourgeois (2000) - legatária da alta cultura -, cujos traumas de infância conduziram a obra e o discurso ácido, é herdeira de restauradores tecelões. A preferência confessa pelos têxteis, a exemplo dos traumas, a acompanha desde a infância: "Pessoalmente, tenho uma ligação de longa data com tapeçaria. Quando crianças, nós a usamos para nos esconder. Essa é uma das razões pelas quais espero que sejam tão tridimensionais - porque sinto que deveriam ser de uma tal altura e peso e tamanho que daria para você se envolver nelas" (Bourgeois, 2000, p. 89). Não obstante Louise Bourgeois tenha vivido em confortável condição material, constrói sua obra à base de dor transmutada em poética. A artista diz que o casulo transforma a vida que urge em morte. Fim e começo, vida e morte, mostram suas diferentes faces: "As meadas de lã são um refúgio amistoso, como uma teia ou um casulo. A larva tira a seda da boca, constrói o casulo e quando termina ela morre. O casulo exauriu o animal. Eu sou o casulo. Não tenho ego. Sou meu trabalho" (Bourgeois, 2000, p. 173).
Arthur Bispo do Rosario veste seu Manto, é abraçado por ele, o Manto o contém. Ele aguarda o Dia do Juízo, quando tudo será nivelado: vales e montanhas. Arthur Bispo do Rosario e Judith Scott não se contrapõem. Em Judith Scott, a vida está em vias de surgir, em Arthur Bispo do Rosario, o Manto da apresentação é possibilidade de renascimento. Sua mitologia é tecida nas tramas de suas experiências, cujas adversidades não se limitam a indivíduos vitimados pela exclusão ou pelos preconceitos. A série "Maman", aranha gigante, protagoniza o trabalho de Louise Bourgeois e nos desafia a refletir sobre as fendas que se abrem entre um inexorável destino e sua própria reinvenção, postos em situação na obra. E tampouco o ofício dos fios é privilégio estritamente feminino. Contrariando o que sugere o mito grego, na tradição das festividades folclóricas de Japaratuba, cidade natal de Arthur Bispo do Rosario, no Nordeste, os bordados e ornamentos trajados nos folguedos são tarefa masculina.
De qualquer maneira, entre Aracnes e Reisados o destino se cumpre: uns fadados a carregar a fatura de uma vida de traumas infantis, e outros, de sucessivos abandonos e exclusões. Ambos em atitude de resistência silenciosa que se realiza na arte. As obras nos despertam para o que impregna seus fios que pretendemos desembaraçar cada vez que nos colocamos diante delas.
A pergunta com que iniciamos nossa incursão pelo emaranhado das fibras é própria das expressões artísticas: qual o segredo das poéticas de artistas cujas experiências heterogêneas encontram uma fresta de destino em comum? O que há nos fios e nas tramas que os enredam nos enigmas da arte?
Se para Louise Bourgeois (2000), artista do circuito das artes, a obra é o "trabalho de si" e o engendrar de um mundo a partir de uma visão bastante pessoal, talvez o ponto de tangência com mundos tão diversos esteja no fato de que a arte marginal pressente possibilidades de expressão ao alcance de quaisquer indivíduos, e, democratizando o gesto criador a todo homem, traz à tona questões ontológicas.
Os objetos de Bispo nos olham com a força da memória da Colônia e da tradição sergipana de "catolicismo rústico" (Sevcenko, 1998). Os casulos de Judith Scott, de seu exílio, de seu alheamento familiar, neles estão impregnados os vazios de suas histórias e de seus pesares. Essa carga de sentidos está obsessivamente depositada em cada linha desfiada, em cada fio entornado, retorcido e bordado, ansiando pela cumplicidade de alguém disposto a com ela implicar-se. Os objetos se colocam para além das evidências de seu volume, nos olham e perturbam a capacidade de vê-los: "[...] o modo como o objeto se torna uma variável na situação não é senão um modo de se colocar como quase sujeito" (Didi-Huberman, 2010, p. 67, grifo do autor). Sujeito de sua história e da nossa, pois dar a ver é sempre inquietar-se, já que cada olhar carrega a sua própria névoa.
Bispo do Rosario, com os fios do destecimento dos uniformes e lençóis da Colônia manicomial, onde viveu por 50 anos, bordou seus artefatos sob leis divinas. Incluiu, na parte interna do Man-to da apresentação, os nomes dos eleitos que, como ele, seriam dignos de habitar o Reino de Deus. O franjado sobre a bainha, no acabamento das bordas externas da peça, segreda nomes de personagens de seu enredo de vida, inventariados na sua biografia. Encobertos, só são avistados quando a franja é suspensa. Já os nomes da parte interna são visíveis quando o Manto é exposto, pendurado com o lado interno aparente. Nas peças antropométricas de Bispo, o ato de trajar confere mobilidade por meio da concretude do objeto figural. Mas também seu oposto: o objeto não vestido expõe o vazio: a ausência de uma presença. Essa perspectiva suscita um diálogo com o túmulo. O Manto da apresentação é uma obra sacra na qual a experiência da morte é disseminada por todas as fibras dos tecidos e linhas de seu bordado.
Judith Scott prepara seus prêmios. Surda-muda, teve seu desenvolvimento precarizado pelo diagnóstico tardio, e a Síndrome de Down foi enfrentada como inviável para o convívio familiar3. A solução adotada foi o asilo. Judith fazia esculturas em tramas entornadas, meio que encontrou para se expressar silenciosamente. Livre dos princípios tradicionais de tecelagem, bordado ou costura, sua técnica é única: produz redes complexas em que fios de tons sutis se sobrepõem e se misturam de maneira refinada. As obras - mais de duzentos coccon-like esculturas - são finalizadas sob resoluta determinação. Começam pequenas, vão ganhando volumetria de grandes proporções, chegando a atingir aproximadamente 2,7m. No núcleo de cada uma, por baixo dos fios, Judith Scott esconde talismãs especiais, cujo significado só a ela pertence.4 O casulo é invólucro, ventre. E como é próprio dos casulos, aguardam na esperança de que esse gestar se torne, talvez, um metamorfosear.
Os artistas põem em situação as tramas de suas vidas - esvaziadas e depois preenchidas, na superação e na resistência. O que experimentam constitui a integralidade do ser pelo acordo tácito que travam com sua própria existência: uma mitologia de vida, morte e transcendência. É um abraço ou um mergulho profundo em harmonia com as forças do universo, renovado e pleno de cores e sentidos. Perguntamo-nos com frequência se a vida imita a arte ou o contrário. O mais sublime nessas expressões é que vida e obra conformam um todo coeso. Se a vida do artista é insuficiente para explicar a obra, tampouco lhe é alheada: a obra exige determinada vida para desvelar sua verdade interposta e, nesse sentido, a patologia perde o sentido caricato. Uma vez verdade instaurada, não há diferença entre ser artista, esquizoide ou portador de uma síndrome, qualquer que seja (Merleau-Ponty, p. 122).
Temos por norma, no mundo social, manter a privacidade. E esse é realmente um direito caro. O direito ao segredo é preservado no solilóquio das horas mais sombrias, na intimidade da solidão. O que na cotidianidade banal é deliberadamente ocultado, nessas obras é posto de modo sutil e delicado, mas não abnegadamente, pois é desvelado sob a condição de nosso empenho. A garantia de sua beleza está na liberdade da qual desfrutam ao movimentar elementos de sua história, sem pudor. Essa enorme dose de humanidade da artista exige a presença da nossa humanidade diante da obra, fazendo-nos cúmplices e implicados. Juntos, esses mundos formam uma vida prestes a superar o silêncio do casulo que a gestava. A vida nasce da morte, mas, a certa altura, também terá seu dia de casulo.
Bispo veste seu Manto da apresentação e aguarda o Dia do Juízo, quando tudo será igualado: vales e montanhas. Judith Scott abraça seu casulo. O casulo está contido. Ela abraça, ele é abraçado. O casulo contém, no entanto, no abraço é contido. No interior, o segredo também está contido. Intimidades não desveladas: o fio esconde, a bainha encobre.
A vida do artista não nos revela a obra, mas se soubermos investigá-la em sua completude, repleta de oportunidades perdidas, de tentativas, de acertos e de erros, nela tudo encontraremos, a beleza está na abertura para a impermanência. A obra proporciona um mistério ou um grau de instabilidade ou de indeterminação que solicita sempre um novo cúmplice. Sem o elemento impreciso, indefinível, jamais seria possível a miríade de possibilidades interpretativas que grandes obras despertam, atravessando o tempo e, ainda assim, renovadas em sua vigorosa potência. Para que isso aconteça, o segredo da obra se resguarda.
REFERÊNCIAS
Bay, D. M. D. (2006). Nhô Caboclo e o Elo Perdido. M. C. Martins e G. Picosque (Coordenação). Realização: Instituto Arte na Escola. [ Links ]
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Endereço para correspondência:
SOLANGE DE OLIVEIRA
Rua Apinagés, 930/88
05017-000 - São Paulo - SP
tel.: 11 98404-7225 / 11 3868-3886
sololiveira@usp.br
Recebido 01.05.2015
Aceito 16.05.2015
1. A medida em pés equivale a cerca de 1,50 m.
2. Como procedimento metodológico, assumo a data de nascimento imprecisa e o nome do artista Arthur Bispo do Rosario sem acento, conforme estabelecidos por Hidalgo (1996).
3. Disponível em: http://www.artbrut.ch/fr/21004/1027-3/auteurs/scott-judith. Recuperado em 15 Abr. 2015.
4. Informações colhidas em: http://www.judithandjoyce.com. Recuperado em 15 Abr. 2015.