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versão impressa ISSN 0102-7395
Reverso v.26 n.51 Belo Horizonte dez. 2004
ARTIGOS
Perversão: uma clínica possível
Alberto Henrique Azeredo CoutinhoI; Ana Cristina Teixeira da Costa SallesII; Berenicy Raelmy SilvaIII; Eliana Maria DelfinoIV; Eliane Mussel da SilvaV; Geraldo de MoraesVI; Marília Brandão Lemos MoraisVII; Suzanne Beaudette DrummondVIII
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
A clínica da perversão apresenta inúmeras dificuldades à psicanálise, seja pelas características próprias da estrutura perversa, fundada no mecanismo da recusa da castração, seja pela ineficácia da neutralidade e associação livre neste trabalho. Revendo a literatura existente e recorrendo à própria experiência clínica, os autores propõem uma estratégia diferente para o manejo da transferência, buscando viabilizar o trabalho clínico e uma saída para a posição paralisante de moralista e/ou voyeur na qual o analista é colocado pelo perverso a fim de desestabilizar o processo analítico. Propondo uma posição alternativa ao "semblant" de "sujeito-suposto-saber", os autores apostam numa possível clínica da perversão, podendo daí advir um sujeito menos cativo de sua cena fantasmática.
Palavras-Chave: Clínica da perversão, Transferência, Estratégia, Tática, "Sujeito-suposto-saber", "Sujeito-suposto-saber-fazer", Desejo de analista
ABSTRACT
Clinical work with perverse patients presents numerous difficulties to psychoanalysis, be that due to the characteristics typical of the perverse structure, which is founded on the mechanism of disavowal, or be that due to the inefficiency of neutrality and free association in this kind of practice. A study of existent literature on the subject and a thorough examination of their own clinical findings led the authors to propose a different form of strategy for dealing with transference that would make clinical work with these patients plausible and indicate options for the paralyzing position which is imposed on the analyst by the perverse patient in order to derange the analytic process. By proposing an alternative for the "semblance subject-supposed knowledge", the authors defend the idea that clinical work with perverse patients is possible, resulting in a subject less captive of the phantasmagoric scene.
Keywords: Clinical work with perverse patients, Transference, Strategy, Tactics, Subject-Supposed-Knowledge, Subject-Supposed-Knowledge-on-doing, Analyst's wish
Introdução
A escolha da palavra perversão para nomear uma estrutura clínica caracterizada por um desvio sexual, denota um sentido pejorativo próprio de sua origem em latim: "ato ou efeito de perverter(-se); corrupção, depravação e desmoralização" (Aurélio:1318)1 Embora em psicanálise se fale da perversão apenas em relação à sexualidade, o sentido moral e ético ainda é marcado pelo conceito de perversidade.
No entanto, Freud já dizia (1905) que na vida sexual todos nós transgre-dimos os estreitos limites do que se considera normal. São suas as palavras: "As perversões não são bestialidades nem degenerações no sentido patético dessas palavras. São o desenvolvimento de germes contidos, em sua totalidade, na disposição sexual indiferenciada criança...". Mais adiante, acrescenta: "Todos os psico-neuróticos são pessoas de inclinações per-versas fortemente acentuadas, mas recal-cadas e tornadas inconscientes no curso do seu desenvolvimento. Por isso suas fan-tasias inconscientes exibem um conteúdo idêntico ao das ações documentadas nos perversos"...2
Assim, concluímos que a presença do ato perverso na vida sexual não implica a existência de estrutura per-versa. O sujeito neurótico pode apresen-tar uma montagem perversa para solu-ção do problema edipiano, ou como forma de evitar a dor psíquica revelando com isso traços perversos. O processo analítico com este tipo de paciente difere radicalmente do trabalho realizado com pacientes de estrutura perversa, propó-sito deste trabalho.
No trabalho clínico com pacientes perversos, deparamos-nos com manifes-tações hostis e desqualificativas que dificultam nossa função de escuta psicanalítica, pois repetidamente o analista se encontra enlaçado como objeto real de gozo.
Sabe-se, ainda, que o perverso verdadeiro dificilmente busca a psicaná-lise, mesmo porque a prática perversa lhe garante o acesso ao gozo. Como Freud nos ensina, o objeto fetiche, além de assegurar o prazer sexual, ainda é considerado salutar e propício ao fetichista. Quando, porventura, acon-tece dele procurar um analista, não é em função da sua prática sexual. Se na neurose o sujeito se questiona a respeito do seu desejo - "Que queres?", "Que quero?" -, na perversão não existe uma pergunta, mas uma resposta sobre o desejo.
Na perversão, o desejo aparece como vontade de gozo e o ato é viven-ciado como vitorioso triunfo isento de qualquer sentimento de culpa. O perver-so sabe o que quer e isto é a base da sua arrogância, já que está convencido de saber a verdade sobre o gozo. Desta forma, ele não está à mercê das apre-ensões, inibições, recriminações, auto-acusações e frustrações que angustiam o sujeito neurótico. Pelo contrário, o perverso não se penaliza e ainda vê o sofrimento do neurótico com desprezo. Para ele o neurótico é um indivíduo que não sabe o que quer, que não sabe gozar.
Jacques-Alain Miller (1989:356-357) ressalta que "o perverso é aquele que tem a resposta que demonstra o real do seu gozo como constante, assegurado e sempre pronto para ser utilizado"3. Ele está constantemente a postos para o ato, agindo sempre na hora certa. Por sua vez, o neurótico mede o tempo e selecio-na criteriosamente sua hora de agir, pois ele é um sujeito de falta, de desejo; a ele são impostos os intervalos do véu da alienação.
De acordo com o que foi assinalado, se o que está em jogo é o gozo, não há demanda de análise. O sujeito perverso sabe o que fazer, não se interroga, realiza o ato e o repete reiteradamente. Quan-do a relação com o gozar é perturbada (como, por exemplo, ocorre com o rom-pimento de contrato por parte do par-ceiro ou, ainda, quando se deu o advento da Aids e suas mortais conseqüências), a ruptura da montagem perversa desestabiliza o sujeito possibilitando o surgimento da angústia, da loucura ou da depressão. Nesses momentos o perverso pode buscar um analista, mas como será sua relação com ele? Como se manifesta a transferência no sujeito perverso?
A posição subjetiva do perverso na relação analítica
O que o perverso quer do analista? Aliviar-se de algum mal-estar momentâneo, sem que esteja disposto a abrir mão de seu gozo mortífero? Utilizar-se da análise como um álibi contra possíveis implicações médico-legais de seus atos eventualmente criminosos, deles fazendo o analista um cúmplice? Como mestre da retórica, apropriar-se do discurso analítico para refinar sua tarefa inesgotável de desafiar a lei, através da busca do gozo a qualquer custo? Reverenciar essa mesma lei (representada pelo analista), confessando-lhe suas condenáveis "encen-ações reais", só para poder desafiá-la novamente a cada relato interminável e, assim, fantasmaticamente triunfar sempre sobre a castração? Formar um par perverso com o analista, deslocando-o do lugar da escuta e reduzindo-o a um mero ouvinte e voyeur de seu monólogo exibicionista?
Em qualquer dessas demandas, a transferência é minada em sua função de suporte para a interpretação, dando lugar a uma relação estéril com o analista, da qual o perverso busca sempre auferir algum lucro que atenda seu propósito de manter o controle. As regras da associação livre e da neutralidade revelam-se inúteis para o trabalho analítico; a primeira por ser sistematicamente desrespeitada pelo analisando e substituída pelo relato compulsivo e inflexível de suas "encenações reais", e a segunda por instalar o analista exatamente no lugar de ouvinte passivo e de cúmplice que o perverso lhe aponta e manobra para mantê-lo. Assim, o perverso desafia o psicanalista em sua práxis e em sua ética, reeditando no real de suas "encen-ações" a recusa à castração que a análise ameaça impor-lhe pela via do simbólico.
Essa recusa é sustentada à custa de um imenso e desgastante investimento psíquico que se defronta porém com uma realidade da qual eventualmente o perverso pode perceber que, mesmo ele, não pode escapar: a inexorabilidade do tempo. A decadência física e a falibilidade do corpo, do qual se utiliza impiedosamente na repetição de suas encenações na busca compulsiva pelo gozo, acabam por confrontá-lo com o horror inconsciente de não poder depender delas indefinidamente para escapar da angústia, da loucura e da melancolia, que a perversão manteve afastadas até então. Este ponto limite - que ocasionalmente pode levar o perverso a procurar um analista ou que pode surgir no curso de sua análise - é exatamente a possível fenda que abala toda sua estrutura defensiva e através da qual pode-se entrever alguma possibilidade de subjetivação e de uma verdadeira demanda de trabalho analítico.
Entretanto, esse trabalho pode ser intolerável para o perverso por implicar sofrimento psíquico, sempre por ele negado por meio do mecanismo da recusa. Quando a crença ilusória é colocada à prova pela realidade, surge uma imensa angústia pois, como disse Flavio Ferraz (2000:98), "não é só sua vida sexual que foi construída sobre o alicerce da clivagem, mas sim toda sua superfície identificatória"4.
O trabalho de subjetivação o obrigará a abandonar, pelo menos parcialmente, o gozo proveniente do seu ato impostor. Como ilusionista, o perverso é mestre em posicionar o outro de forma a se impor ao seu olhar. Seu intento, ao designar ao analista o lugar de espectador, é o de paralisá-lo. O êxito da análise, num primeiro momento, depende de o analista tolerar o discurso de um paciente que se mantém no mundo da ilusão. O sexo explícito e o horror reluzente, próprios do discurso perverso, fascinam e ameaçam quem o ouve, colocando o "desejo de analista" à prova, fazendo com que o analista se sinta questionado em seu saber.
Na relação analítica é comum escutarmos o perverso utilizando o vocabulário psicanalítico, contudo sem a intenção de estabelecer uma interlocução. Sua fala, como bem apontou François Perrier (Clavreul, 1900:154)5, permanece "inarticulável", podendo ser vista como um desafio, uma manobra de redução do terceiro ou uma sedução. A transferência por ele montada é de ordem narcísica, ele nega ao analista o pedestal do "sujeito-suposto-saber". As intervenções do analista que desnudam a clivagem do perverso são declinadas visto que, para ele, é primordial se manter fora do campo do Outro, pois é lá que reside a angústia - portão de entrada do desejo.
O discurso do perverso é uma fala vazia de sentido que exclui a angústia e condena o desejo a circular fora da cadeia discursiva. Ele sustenta seu desejo pelo gozo, sustenta sua vontade de gozo com o ato. No confronto entre a palavra e o ato prevalece, no perverso, "a ostentação demonstrativa da sua aposta em ato"6. Este permite que ele alcance o próprio gozo, ao mesmo tempo em que sustenta o gozo do Outro. Ou seja, o perverso se faz objeto a serviço do gozo do Outro, ele se dedica a tamponar a falta, o furo do Outro para que exista como sujeito não barrado ( aS ). Assim, o gozo do perverso depende do não-consentimento do outro e advém da dor provocada no parceiro.
Da mesma forma como age com seu par, o perverso reedita na cena analítica sua vontade de gozo. Por privilegiar uma Lei recusada que o persegue, uma cultura narcisista que o determina, ele procura definir as regras do jogo e manter o controle do setting analítico. A conjunção dos elementos que caracterizam a relação transferencial na análise do perverso acaba por encurralar o analista entre duas possíveis posições polarizadas, ambas dissonantes com a ética da Psicanálise: a de moralista e regulador (S2) ou a de cúmplice e voyeur (a). Assim, a transgressão e o desafio contumaz à lei por parte do perverso, o sistemático desrespeito à "regra fundamental" da associação livre e sua substituição pela confissão repetitiva e monótona de suas "encen-ações", e o seu absoluto desprezo pelo "sujeito-suposto-saber" dificultam ou impossibilitam ao analista ocupar sua posição. Em vez de semblant de objeto, o analista é tomado pelo perverso como mais um objeto real de gozo (a), ao ser por ele instalado na posição masoquista de ouvinte passivo, cúmplice e voyeur do seu discurso exibicionista. Ou, na tentativa de escapar desta posição paralisante e diante da pobreza simbólica e fantasmática do discurso perverso, o analista pode flagrar-se na posição sádica de moralista e regulador (S2), o que estimula o desafio da transgressão perversa e alimenta a perpetuação do gozo.
Basculando entre estas duas posições, o analista é destituído de seu lugar e portanto de sua função, havendo o risco de estabelecer uma relação dual com o perverso na qual desaparece o "desejo de analista". É precisamente neste ponto que ele desmonta o dispositivo analítico e questiona seu arcabouço teórico.
Assim, o grande desafio que se impõe ao analista no trabalho com o perverso é o de achar uma posição que lhe permita aproveitar aquilo que o sujeito traz além do relato de suas "encen-ações". Desafio que passa necessariamente por um posicionamento teórico e técnico diverso daquele consagrado no trabalho analítico com o neurótico.
Uma clínica possível
Lacan teorizou que a direção do tratamento psicanalítico, em analogia às guerras, comporta os níveis da política, da estratégia e da tática. Neste sentido, ética, manejo da transferência e interpretação são, respectivamente, os princípios que devem nortear o analista no embate que se trava, no setting analítico, entre o "desejo de analista" e as resistências do paciente. Se para a análise do neurótico obtemos uma satisfatória eficácia clínica, no trabalho com o perverso as questões técnicas são frontalmente questionadas e minadas pela posição ocupada pelo paciente e por aquela na qual ele busca manter o analista. Este, se for aprisionado pelo discurso perverso nas posições de moralista/regulador ou de cúmplice/voyeur, se verá incapaz de interpretar e será manejado na transferência, incorrendo no risco de perder até mesmo o princípio ético central de seu trabalho: o amor à verdade.
Qual seria a estratégia adequada à análise na perversão?
Se para o neurótico a estratégia analítica se baseia na instalação de uma neurose de transferência que permite a interpretação ao longo do deslizamento da cadeia significante, na análise do perverso a estratégia é outra. No lugar do material simbólico (sintomas, sonhos, associações), ele oferece ao analista o real de suas "encen-ações", que carecem do duplo sentido que propicia a intervenção interpretativa pela palavra. Intitulando-se mestre do gozo e lutando por manter a angústia no campo do Outro, o perverso recusa ao analista o pedestal do "sujeito-suposto-saber". Esse paciente não busca uma cura para seu sintoma, tampouco um saber sobre seu desejo, a ele só interessa fazer o outro gozar. Portanto, a "moeda de troca" na relação transferencial com perversos não pode se situar preferencial ou exclusivamente no plano simbólico como na análise com neuróticos.
A perspicaz observação de Jean Claude Maleval (1998:22), ao confrontar as estruturas clínicas em suas relações com o gozo, nos indica um caminho para o manejo da transferência com perversos. Esse autor pontuou que, se o psicótico tem uma relação de certeza quanto ao gozo do Outro e o neurótico mantém uma posição de suposição sobre esse gozo, o perverso testemunha um saber fazer so-bre o gozo em sua interação com o outro7.
A idéia, aqui defendida, é de se buscar, na análise do perverso, a instalação do "Sujeito-suposto-saber-fazer". A atribuição de um "saber fazer" propiciaria ao analista intervir do lugar de detentor de um saber sobre o que o perverso deseja: gozar. Tal atribuição possibilitaria a emergência de uma relação transferencial que, se configurada, permitiria ao perverso supor que há um sujeito para além do seu "saber fazer". Conseqüentemente, haveria uma transformação da posição do sujeito com seu saber, até então absoluto. Um efeito da instalação da transferência seria a de levantar a suspeição sobre seu ato, deslocando para o que há de verdade no sujeito - a falta, desta maneira possibilitando-lhe o ingresso no campo do Outro.
As situações especialmente difíceis impostas ao trabalho analítico com o perverso exigem recursos táticos, diferentes da interpretação, que visem instaurar o "sujeito-suposto-saber-fazer" na posição do analista. Embora a Psicanálise seja uma clínica do singular, a experiência adquirida com a clínica da perversão permite prever uma gama de desafios endereçados ao analista pelo paciente, aos quais se deveria sempre responder de forma a sustentar a posição estratégica aqui defendida. Entre os possíveis recursos táticos para o manejo da transferência com perversos apontamos: a trivialização, a "douta ironia", o paradoxo, o humor, o ato analítico, o desvelamento da angústia, a atribuição de sentido e a restauração histórica.
As respostas do analista ao perverso na direção da cura dependem diretamente da posição que este ocupa em relação ao Outro. Assim, quando o perverso se posiciona enquanto encarnação do saber fazer gozar, é necessário que o analista suporte o jogo perverso no qual ele é chamado como parceiro, acolhendo o relato de suas encen-ações sexualizadas e violentas, confrontando o horror do gozo a partir do que podemos chamar da "trivialização na transferência". Recurso utilizado para atestar o caráter "prosaico" de suas encen-ações, levando o perverso a se questionar sobre este saber rígido e implacável que o escuda da desilusão, da angústia e, ainda lhe garante fazer o Outro gozar.
A mensagem que se pretende transmitir ao perverso, ao remeter seu discurso reluzente de horror à triviali-dade, é a de que seus atos não comportam a originalidade que ele lhes atribui, seja por sua repetição monótona denunciada pelo analista, seja porque este os escuta com o aparente desinteresse de quem "já sabe" sobre o que é relatado. Só se pode tratar como trivial aquilo que se domina. Agindo desta maneira em relação ao gozo, o analista esvazia o caráter precioso que o perverso dá às suas encen-ações, convidando-o a se questionar sobre elas e a perceber sua função de defesa contra a angústia.
A ironia pode constituir para o analista um valioso instrumento para lidar com o discurso paralisante do perverso. Proveniente do grego eiróneia e significando 'interrogação', a palavra denota um "modo de exprimir-se que consiste em dizer o contrário daquilo que se está pensando ou sentindo, ou por pudor em relação a si próprio ou com intenção sarcástica e depreciativa em relação a outrem" (Aurélio: 969). Porém, o sentido que pretendemos aqui utilizar se encontra na expressão ironia socrática, definida como um "modo de interrogar pelo qual Sócrates levava o interlocutor ao reconhecimento de sua própria ignorância" (idem), técnica que passou a ser conhecida como socratismo.
Lacan postulou que o analista escutasse o neurótico com "douta ignorância" sobre o que é dito. Tomando-lhe emprestado a expressão, sugerimos que na perversão o analista escute e construa suas intervenções sobre o conceito de "douta ironia" em relação ao ato perverso. Sem responder ao escárnio desafiante com que o paciente trata o saber do analista, o que se pretende, na mesma direção apontada pela "trivialização", é deslocar o discurso perverso da repetição de suas "encenações", abrindo espaço para um saber além do fazer gozar e para a verdade do sujeito.
Para que se vença o impasse analítico entre uma escuta acolhedora e conivente e a atitude moralista de denúncia de uma prática, propomos que o analista opere com um paradoxo: quando localizado pelo perverso na posição de cumplicidade, o analista deve fazer semblant do grande Outro, assim representando um saber fazer, porém com um poder que não subjugue o perverso e nem dele goze. Por outro lado, quando o perverso localizar o analista como moralista, detentor da lei, estrategicamente, este faria semblant do objeto, causa de desejo. Da posição de objeto, o analista apontaria para Outra cena, buscando a instalação do duplo sentido da dimensão simbólica: "o que quer com isso?".
Em se falando de recursos táticos, não podemos nos esquecer do humor, que por sua própria natureza é extremamente adequado ao trabalho com o perverso. Como bem apontou Freud, o humor utiliza o mecanismo de recusa para propiciar um deslocamento da dor. Intervir com humor, além de desarmar o confronto analítico, interpela a relação imaginária de cumplicidade do perverso, introduzindo uma relação outra de parceria. Ao compartilharem da jocosidade inerente ao humor, ocorre um reposicionamento do par e, conseqüentemente, um certo redimensionamento da angústia que se transfere em parte ao campo do paciente por não ser mais exclusiva do campo do outro. O dispositivo humorístico bem demonstra que a interdição do gozo não é decorrência de qualquer tipo de proibição por parte do analista; ela está articulada à função de regulação da lei na própria dimensão discursiva. A lei da qual falamos é a lei que regula o desejo; naturalmente ela barra o acesso do sujeito ao gozo, pois é o prazer como ligação à vida que barra o gozo.
O ato analítico é outro recurso indispensável à análise do perverso, pois por se situar praticamente fora do simbólico, no registro do real, o perverso manifesta em atos (encen-ações) aquilo que teria que ser dito em palavras. Considerando a primazia da clínica do real na perversão, faz-se necessário o trabalho com o tempo lógico e o corte de sessões a fim de deslocar o controle, privando o perverso do domínio da relação, tão essencial a ele. Sugerimos, ainda, o estabelecimento de um contrato flexível, com o uso opcional e/ou alternado do divã, procedimento que visa retificar a presença ou ausência do olhar do analista enquanto objeto fetichizado. Quando o perverso se posiciona enquanto objeto que instrumentaliza o nosso gozo e nos convoca como sujeito barrado para garantir - com a presença de nosso olhar - o seu gozo, devemos produzir um corte com nosso ato, criando um espaço vazio de qualquer significação, sustentando uma posição ética para fazer emergir algo da verdade encoberta por seu saber fazer. Contudo, a fragilidade da borda representacional exige que esse corte seja muito bem calculado a fim de evitar um colapso de seus limites de identidade e/ou uma fuga da análise.
Buscamos, com os recursos mencionados, uma subjetivação da posição perversa, ao preço da eclosão da angústia e de sua própria fragmentação, pois o risco de desmontagem da sua recusa fundamental sinaliza o perigo iminente de se haver com o desamparo absoluto vivenciado diante do "não saber".
De acordo com os princípios éticos que norteiam o nosso trabalho, enfatizamos que a posição do analista não é de mestria. Ao contrário, para a instalação da transferência na sua dimensão real, cabe ao analista emprestar palavras, boca e corpo - distintos do conjunto de órgãos com o qual o perverso costuma gozar - para delinear uma borda de contenção ao gozo mortal. É necessário que o analista, em seu trabalho, desempenhe o papel de escriba, ou seja: de registrar e testemunhar o trabalho que realiza o paciente para além da narrativa de suas encen-ações, resgatando a função da escuta. Enquanto escriba e testemunha, o analista deve religar os cacos da história relatada, construir juntamente com o sujeito e acompanhá-lo nessa construção para atribuição de um sentido. Para sustentar o desejo de analista, é imprescindível que se ofereça a via discursiva e um laço social que permita circunscrever o gozo do perverso, possibilitando, assim, um trabalho com o Inconsciente. Isto poderá levá-lo a construções que regulem, de certa forma, seu dilema com o gozo, o que não significa trocar o modo de gozar.
Podemos dizer que a estratégia do analista deve ser, além de desfazer a dessimetria da relação, a de devolver ao perverso uma certa autonomia ao libertar o sujeito de sua certeza quanto ao Outro que goza de pleno poder sobre ele. Diante do perverso que vem à análise contabilizar seu gozo, o analista deve administrar, em doses pequenas e suportáveis, o sentido de suas "encenações", costurando em sua história algo da sua verdade. Se o analista conseguir acenar-lhe com a possibilidade do desejo, que é uma articulação entre o gozo e o amor, pode ser que ele faça valer o "desejo de analista".
O trabalho analítico com o perverso deve propiciar uma saída pela vertente do amor: uma mudança na sua posição subjetiva que acarrete um movimento do pólo de gozo em direção ao pólo de amor. A circunscrição do gozo abre uma janela em seu cárcere gozoso, permitindo o advento de um sujeito não mais cativo de sua cena fantasmática.
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I Médico. Participante do Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG.
II Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG.
III Psicóloga. Participante do Forum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG.
IV Psicóloga. Participante do Forum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG.
V Médica. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG.
VI Engenheiro. Participante do Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG.
VII Médica. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG.
VIII Médica. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG.
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2 FREUD, Sigmund. Fragmento da análise de um caso de histeria, ESB, v. VII, 1989, P. 53-54.
3 MILLER, Jacques Alain. Patologia da ética. In Lacan Elucidado - Palestras no Brasil, 1997, p. 356-357.
4 FERRAZ, Flávio Carvalho. Perversão. Coleção Clínica Psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicó-logo, 2000. p. 98.
5 CLAVREUL, Jean et al. O desejo e a perversão. Campinas: Papirus, 1990. p. 154.
6 GEREZ-AMBERTÍN, Marta et al. Supereu: clínica diferencial neurose-perversão. In Rev. Letra Freudiana - Pulsão e gozo, ano XI, n. 10/11/12, p. 192. Publicação da Escola Letra Freudiana. Rio de Janeiro: Dumará.
7 MALEVAL, Jean Claude. Lógica Del delírio. Barcelona: Ediciones Del Serbal, 1998. p. 22.