SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.28 número53Sigmund Freud e as interseções entre psicanálise e culturaVisibilidade, transitoriedade e complexidade: a clínica psicanalítica no ambulatório hospitalar índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Reverso

versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso v.28 n.53 Belo Horizonte set. 2006

 

HOMENAGEM AOS 150 ANOS DO NASCIMENTO DE SIGMUND FREUD

 

O legado de Freud1

 

Freud's legacy

 

 

Wagner Siqueira BernardesI

Universidade Federal do Rio de Janeiro
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A proposta deste artigo é discutir as conseqüências das teorizações de Freud sobre a sexualidade e o inconsciente. É possível formular que os escritos de Freud produziram efeitos tais como a resistência e a aversão. Conforme meu ponto de vista, um profundo mal-estar é o principal legado de Freud.

Palavras-chave: Mal-estar, Resistência, Inconsciente, Sexualidade, Eu.


ABSTRACT

The purpose of this article is to discuss the consequences of Freudian theory concerning sexuality and unconscious. It's possible to propose that the writings of Freud have produced effects such as resistance and aversion. According to the author's point of view, Freud's main legacy is deep discontent.

Keywords: Discontent, Resistance, Unconscious, Sexuality, Ego.


 

 

Há 150 anos do nascimento de Sigmund Freud é oportuno pensarmos sobre o seu legado. O que ele nos teria deixado?

Digamos que Freud reabriu a ferida que a ânsia progressista e tecnológica, apoiada na promessa de felicidade, sempre insistiu em fechar. O seu legado foi ter-nos reenviado ao mal-estar inerente ao homem e continuamente negado pelo avanço cultural.

Disso decorrem as reações ao próprio material dessa herança, o texto freudiano. Este gerou mal-entendidos, desmentidos, resistências e oposições.

Na primeira da suas "conferências introdutórias", ao falar para os próprios interessados em psicanálise sobre as dificuldades de sua transmissão, Freud discorre sobre as resistências com as quais a psicanálise se depara. Segundo ele, duas das assertivas psicanalíticas básicas revelaram-se como um insulto ao mundo inteiro, despertando profunda antipatia.

A primeira, que encerra uma ofensa a um preconceito intelectual, declara que os processos anímicos são em si mesmos inconscientes. Freud desestabiliza a convicção, por longo tempo acalentada, da identidade entre o psíquico e a consciência sustentando que existe um pensar inconsciente e um querer que se ignora.

Nas suas palavras a psicanálise, ao fazer esta afirmação,

"...perde a simpatia de todos os amigos do pensamento científico solene e incorre abertamente na suspeita de tratar-se de uma doutrina esotérica, fantástica, ávida de engendrar mistérios e de pescar em águas turvas."2

A segunda afirmação, que se choca contra um preconceito estético e moral, destaca que as pulsões sexuais desempenham papel fundamental na causação das doenças mentais asseverando ainda que essas mesmas pulsões também fornecem contribuições às mais elevadas criações culturais, artísticas e sociais do homem. Contra isso se elevam as mais importantes resistências à psicanálise.

Uma vez que a civilização foi criada e se desenvolveu sob a pressão das exigências da vida, ela se constrói à custa da coerção da satisfação pulsional. Sendo as pulsões sexuais renuentes a qualquer tentativa de jugo há sempre o risco de se rebelarem.

Assim, conforme assinala Freud, a sociedade acredita não haver maior ameaça que possa se levantar contra sua civilização do que a possibilidade de as pulsões sexuais serem liberadas e retornarem às suas finalidades originais.

Por esta razão a sociedade "não quer ser lembrada dessa parte precária de seus alicerces"3, não tendo interesse em reconhecer a força das pulsões sexuais e muito menos em demonstrar a importância da vida sexual para o indivíduo.

Nessa medida, a sociedade recusa-se a aceitar a importância desse achado e prefere qualificá-lo como algo esteticamente repulsivo, moralmente repreensível ou, ainda, perigoso.

Conforme Freud, é inerente à natureza humana a tendência a considerar como falsa uma coisa de que não gosta. Assim, a sociedade transforma o desagradável em falso, desmentindo os pressupostos freudianos sobre a sexualidade.

A teoria da sexualidade proposta por Freud foi por muitos considerada como uma agressão à dignidade da raça humana. Sua sugestão de que a arte, a religião e a ordem social em parte se originaram de uma contribuição das pulsões sexuais foi tomada por eles como uma degradação dos mais elevados valores culturais. Esqueceram-se das próprias observações de Freud de que "nada pode ser alterado no valor de uma realização cultural por demonstrar-se que ela derivou de fontes pulsionais elementares e animais".4

Assim como a teoria darwiniana da descendência pôs abaixo a barreira arrogantemente erguida entre os homens e os animais, a afirmativa freudiana de que "o ego não é o senhor da sua própria casa"5 desferiu um golpe no amor-próprio do homem, em seu narcisismo.

Se para a sociedade em geral o legado de Freud transformou-se em aversão, faz-se agora necessário perguntar sobre o quê os seus supostos seguidores fizeram dessa herança.

Em "A Coisa Freudiana" Lacan afirma que o sentido do retorno a Freud é um retorno ao sentido de Freud. Aponta para os desvios sofridos pelos fundamentos freudianos ressaltando que a prática da psicanálise na esfera norte-americana degradou-se sumariamente a um meio de obter sucesso e a um modo de exigência de felicidade. Isto, segundo ele, constitui-se numa renegação da psicanálise, pelo fato de nunca ter se querido saber da descoberta freudiana.

Lacan refere-se ainda, em "A Psicanálise e Seu Ensino", ao retorno dos analistas ao mais primário egocentrismo. O eu do analista, ao ser tomado como função de síntese e autonomia, passa a ser o parâmetro da realidade. Isso traz como conseqüências a concepção da saúde como adaptação a uma realidade e a necessidade de fazer aliança com a parte sadia do eu a fim de reduzir as discordâncias com a realidade. Leva também a uma modalidade de final de análise obtida mediante a identificação com o eu do analista.

Lacan ressalta que é na via de um reforço do eu que a psicanálise de hoje pretende inscrever seus efeitos

"... por um contra-senso total em relação ao móvel pelo qual Freud fez o estudo do eu entrar em sua doutrina, isto é, a partir do narcisismo, e para denunciar nele a soma das identificações imaginárias do sujeito."6

A insistência no reforço do eu só nos faz lembrar aquilo que Lacan assinala como presente em comunidades psicanalíticas, ou seja, "o efeito de aversão"7 em relação a tudo aquilo que vem de Freud.

Se Lacan propôs um retorno a Freud não teria sido para que resgatássemos, em sua radicalidade, a letra do texto freudiano para aí podermos assumir as conseqüências que essa radicalidade impõe na nossa prática?

150 anos depois, esse que veio à luz trazendo ao mundo uma verdade fulgurante, ainda continua obscurecido... até mesmo para os seus seguidores, que fizeram da psicanálise seu legado.

 

Bibliografia

FREUD, S. Introdução. In: ___. Conferências introdutórias sobre psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p.27-37 (Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 15).        [ Links ]

FREUD, S. Uma dificuldade no caminho da psicanálise. In:___. Uma neurose infantil e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p.171-179. (Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 17).        [ Links ]

FREUD, S. As resistências à psicanálise. In:___. O ego e o id e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p.265-275. (Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 19).        [ Links ]

LACAN, J. A coisa freudiana. In:___. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.438-460.         [ Links ]

LACAN, J. A psicanálise e seu ensino. In:___. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.438-460.        [ Links ]

LACAN, J. Posição do inconsciente. In:___. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.843-864.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Professor Morais, 562/208 - Funcionários
30150-903 - Belo Horizonte - MG
Tel.: (31) 3225-2524
E-mail: wsbernardes@pucminas.br

Recebido em 30/05/2006
Aprovado em 03/07/2007

 

 

IPsicanalista. Professor da PUC Minas. Doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ.
1 Trabalho apresentado pelo CPMG no evento "O trem da psicanálise: 150 anos de Freud", promovido pelo Curso de Psicologia / Coração Eucarístico – PUC Minas, em 23/05/2006.
2 FREUD, S. Conferências introdutórias sobre psicanálise. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.XV, p.35.
3 FREUD, S. Conferências introdutórias sobre psicanálise. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.XV, p.36.
4 FREUD, S. As resistências à psicanálise. In: Obras s completas, v.XIX, p.271.
5 FREUD, S. Uma dificuldade no caminho da psicanálise. In: Obras completas, v.XVII, p.178.
6 LACAN, J. A psicanálise e seu ensino. In: Escritos, p.456.
7 LACAN, J. Posição do inconsciente. In: Escritos, p.846.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons