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versão impressa ISSN 0102-7395
Reverso v.29 n.54 Belo Horizonte set. 2007
AULA INAUGURAL
Freud: a fundação da práxis e seus destinos
Freud: The foundation of the practice and its destinies
Ana Boczar
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
Este artigo, apresentado na Aula Inaugural de 2007, articula elementos da metapsicologia freudiana à clínica, especialmente à constituição do psiquismo.
Palavras-chave: Metapsicologia, Clínica, Sujeito.
ABSTRACT
This article, presented in the opening class in 2007, relates Freudian metapsychological elements to clinical aspects, specially to psychism constitution.
Keywords: Metapsychology, Clinical practice, Subject.
Um convite para tratar da clínica em Freud – o que se revelou, num primeiro momento, motivo de muito prazer e orgulho – mostrou-se algo complexo e nada óbvio, ao sentar-me para colocá-lo em um número determinado de linhas.
Articular metapsicologia aos artigos técnicos de Freud é um bom roteiro para pensarmos acerca da práxis psicanalítica.
Proponho uma metáfora para o texto freudiano. Trata-se da fundação de um modo específico de se compreender a constituição do psiquismo e seus possíveis e sempre esperados curtos-circuitos. Acerca da constituição fala a metapsicologia. Quanto aos curtos-circuitos, é preciso que a metapsicologia faça interseção com a psicopatologia freudiana, muitas vezes impressa nas entrelinhas dos textos metapsicológicos.
Freud funda um novo modo, um novo crivo acerca do mal-estar que acomete o pequeno animalzinho humano. Essa construção, com vigas e pilares, é a condição sine qua non de exercício da prática psicanalítica.
Já em 1895, ao escrever o "Projeto para uma Psicologia Científica", Freud fala das marcações no aparelho psíquico, advindas de um Outro, não um qualquer, mas um Outro experimentado, que abrirá caminhos, passagens, num psiquismo, até então, inexplorado.
Pensemos uma mata virgem, que começa a ser atravessada por motoqueiros, os traileiros. Essas trilhas serão a passagem de outros traileiros, abrindo-se assim uma facilitação. Esses trilhamentos, "bahnungen" para Freud, terão papel crucial na constituição do psiquismo.
Ainda levando-se em conta os textos iniciais de Freud, deparamo-nos com a famosa carta a Fliess, a de número 52. Nesse artigo, Freud propõe a construção do aparelho psíquico por um processo de estratificação – o material se rearranja de tempos em tempos, e naturalmente com uma complexificação da constituição do sujeito, que, de pequeno animalzinho humano, pode vir a se tornar sujeito do inconsciente.
Poder vir a se tornar sujeito implica não um destino certo, mas uma conquista na organização do aparelho psíquico.
Trago uma vinheta clínica que nos explicita o que chamamos se "tornar sujeito". Nesse caso clínico, ao contrário, a pequena Carolina se apresenta inicialmente, apesar de seus quatro anos, como uma pequena sem a "constituição esperada do psiquismo".
Vamos ao caso: Carolina, em sua primeira sessão, não pára, não me olha, não olha para os brinquedos postos na mesa – nada a interessa. Por outro lado, não pára. Corre, sem qualquer temor, como um pequeno animalzinho, como se a janela, o sofá, a mesa de vidro não existissem. Pára sim, só para fazer o que seus pais acabaram me dizendo que fazia sistematicamente em casa: ela come sem parar as unhas, a pele dos dedos e a própria língua, até sangrar. Eis aí um exemplo clínico de uma criança que ainda não se tornou sujeito, cujo aparelho psíquico corporifica um caos pulsional. Faltam limites entre as instâncias psíquicas. Essa é a hipótese.
Hipótese confirmada quando a escola se queixa que Carolina não se relaciona com as outras crianças, não distingue o que é representação de letras, isola-se no recreio, machucando seus próprios dedos. Seu olhar "vazado" aponta para uma pequena menina que precisa ainda constituir-se como sujeito. Mais adiante, em nossa apresentação, retomaremos esse caso clínico em outro momento do tratamento.
Se ao fundador da psicanálise couberam as marcações acerca da constituição do psiquismo, tem cabido aos seus releitores, a partir de um crivo próprio, destacar, hachurear, enfatizar determinadas passagens do texto freudiano, criando textos próprios com todas as implicações clínicas que daí advêm.
Bem, mas a nossa tarefa é a de tratarmos da clínica em Freud. Vamos retomá-la.
Como dizíamos inicialmente, é do encontro entre a metapsicologia, a psicopatologia nela implícita e os artigos técnicos que podemos pensar acerca da práxis psicanalítica.
O que é a clínica? Qual é a sua bússola? Sem dúvida é a angústia. Se o mal-estar é algo inerente à condição humana, por outro lado, seus excessos, transbordamentos, rupturas fazem com que os sujeitos batam às nossas portas.
Poderíamos ponderar que em nossos tempos, trata-se de queixas difíceis, corporificadas por sujeitos desatinados com freqüência, e bastante perdidos em um tempo de aceleração constante e pouca pausa para um processo que, como sabemos, implica em investimento de tempo e dinheiro, objetos escassos na modernidade tardia. Ainda assim procuram-nos. E continuamos a nos debruçar sobre a teoria e a práxis analítica.
Voltemos à pergunta: qual é a bússola da clínica? Sim, a angústia, com todas as dicotomias que ela implica, é essencial para pensarmos o sujeito. O dualismo que Freud mantém ao longo de toda a sua obra permite-nos pensar que essa divisão funda a condição humana.
Livrar nossos analisandos dessa condição seria a direção de uma análise? Não. Por outro lado, um rearranjo da maneira como o sujeito lida com sua angústia, bem como a construção de destinos pulsionais mais satisfatórios para esse sujeito – está aí a função da clínica.
Fazendo um resumo bastante indicativo de como situar essa construção freudiana, proponho pensarmos dois movimentos em Freud.
Senão, vejamos:
O primeiro, denominado Primeira Tópica, inclui textos chamados por alguns de pré-psicanalíticos e o que se convencio-nou chamar de textos metapsicológicos propriamente ditos. Entre outros, podemos citar:
• Projeto para uma Psicologia Científica
• Carta 52
• As Neuropsicoses de Defesa
Apesar de alguns desses textos apresentarem uma linguagem marcadamente neurológica, já apresentam conceitos cruciais na construção da teoria e da práxis analítica.
Em 1900, com "A Interpretação dos Sonhos", Freud marca um divisor de águas em sua obra, com um modo de articular a psicanálise como um campo de saber cada vez mais específico.
Encontramos, então, o que Freud intitulou a "feiticeira", sua metapsicologia, sustentada, na verdade, desde o início de sua obra, mas, aqui, concentrada e desdobrada de maneira mais sistemática nos artigos:
• Dois Princípios do Funcionamento Psíquico
• Sobre o Narcisismo
• Pulsão e seus Destinos
• Recalque
• O Inconsciente
Temos como interlocutor, nesse período, um Freud hermeneuta, que busca transformar representações de um território dificilmente alcançável em algo consciente. Trata-se de um Freud tradutor, arqueólogo, que busca, através da interpretação de lembranças recalcadas, fazer o sujeito avançar clinicamente.
Recentemente, uma cliente buscando análise disse: "Compreendo absolutamente tudo a respeito do meu sofrimento, mas isso não me faz sofrer menos".
Curiosamente, Freud se deparou com o mesmo impasse já às voltas com a construção da Primeira Tópica.
Em seu artigo "O Inconsciente", diz: "Ter ouvido algo e tê-lo vivido são duas coisas de natureza psicológica totalmente distintas, mesmo possuindo igual conteúdo".
Freud, que funda na sua clínica o ponto de partida e de interlocução com a teoria, já se dera conta de impasses em sua práxis. Ao longo da década de 1910, em seus artigos sobre a técnica, presenteia-nos com o conceito de transferência e o outro lado da mesma moeda, a resistência.
Assim, são desse período os artigos:
• A Dinâmica da Transferência;
• Recomendações aos Médicos que Exercem a Psicanálise
• Sobre o Início do Tratamento
• Recordar, Repetir e Elaborar
• Observações sobre o Amor Transferencial
Em "Recomendações aos Médicos que Exercem a Psicanálise", Freud contrapõe o saber clínico ao saber teórico e nos adverte de maneira polêmica: "Casos que são dedicados, desde o princípio, a propósitos científicos, e assim tratados, sofrem em seu resultado; enquanto os casos mais bem-sucedidos são aqueles em que se avança, por assim dizer, sem qualquer intuito em vista, em que se permite ser tomado de surpresa por qualquer nova reviravolta neles, e sempre se os enfrenta com liberalidade, sem quaisquer pressuposições. A conduta correta para um analista reside em oscilar, de acordo com a necessidade, de uma atitude mental para outra, em evitar especulação ou meditação sobre os casos, enquanto eles estão em análise, e em somente submeter o material obtido a um processo sintético de pensamento após a análise ter sido concluída".
Vale, no entanto, ponderarmos sobre a observação freudiana. Se nos deixarmos ser levados sem uma direção de escuta determinada, ficaremos perdidos como cegos em tiroteio, nas profundezas de um oceano sem demarcações.
Por outro lado, se portarmos o vírus "interpretosis dosis repetatum", afogaremos nossos analisandos antes que abram suas bocas para proferir suas histórias.
Usar o texto teórico referencial para guiarmo-nos na escuta clínica, fazendo do encontro com o texto singular do analisando um encontro produtivo – assim construiremos algo novo, que é o que se espera de uma análise.
Por falar em novo, voltando ao nosso percurso, gradativamente o Freud hermeneuta, da Primeira Tópica, vê-se impelido, obrigado a construir uma Segunda Tópica, que de maneira nenhuma exclui a anterior.
Estamos diante do que denomino um Freud "trágico", um Freud menos crédulo de que a tradução de representações recalcadas seria o suficiente para promover mudança na clínica.
É esse Freud, que já não acredita no que denomino "romantismo da interpretação/tradução" como chave para cura, é esse Freud que nos presenteia com os seguintes artigos, entre outros:
• Para Além do Princípio do Prazer
• O Ego e o Id
• O Problema Econômico do Masoquismo
• Inibição, Sintoma e Angústia
Levar em conta a insistência do sujeito em sua repetição, a postulação da Pulsão de Morte, bem como a formalização clara de um campo sem representações no psiquismo, de um caldeirão fervilhante de pulsões, levar tudo isso em conta nos faz pensar nisso que denominamos aqui um "Freud trágico".
Façamos uma pequena pausa para retomarmos a vinheta clínica citada anteriormente, a da Carolina. Já com algum tempo de análise, mais trilhada em seu campo pulsional, de repente Carol some de meus olhos. De repente, escuto um barulhinho de dentro do armário de brinquedos. Não deu outra: Carolina, com seus quatro anos e sete meses decidira brincar de simbolizar. E não uma simbolização qualquer – tratava-se do fort/da, como fizera o neto de Freud com seu oooó, aaaá, tentando não só repetir a experiência da ausência da mãe, mas procurando elaborá-la. Hoje posso dizer que Carolina tem se constituído como sujeito.
Ela tem um júbilo especial em repetir essa brincadeira e ela sim, empurrar a porta do armário, perguntando imediatamente: a sessão acabou?
Recentemente a escola me comunicou que Carolina já interage com os colegas, participando da rodinha.
Mas voltemos ao percurso freudiano, à Segunda Tópica.
É como se a leitura anterior da práxis levasse em conta a crença no domínio da luz sobre as trevas e agora o cenário se complexificasse. "O Estranho", o Unheimlich, que faz coro com esse conjunto de artigos da Segunda Tópica, deixa claro: o assustador atrai. Que nos digam as crianças apavoradas e seduzidas por filmes de terror, com um olho fechado e o outro bem aberto...
Com certeza, para além da tradução, para além do tornar consciente o inconsciente da Primeira Tópica, Freud nos abre um caminho árduo que faz até hoje, da clínica, um desafio.
Como, levando em conta a constituição do psiquismo, sua história construída e seus destinos, fazer não só o sujeito falar, mas agir a seu favor?
Este é um ofício que exige do analista ser paciente.
Sermos pacientes para com a história que aquele sujeito construirá a seu modo e estarmos dissimetricamente ao seu lado, para que ele construa saídas de seus labirintos, de sua repetição, tendo a certeza da singularidade dessa travessia – este é nosso ofício.
Como disse uma analisanda: "Penso às vezes que minha vida é como um mar. Sempre tentei me aproximar, mas tinha pavor de enfrentar as ondas. Vejo diferente agora: elas não param, é natural do mar ter ondas. Às vezes elas estão altas, perigosas, eu as furo com muito cuidado; se estão mais baixas, relaxo e aproveito. Só não quero deixar de aproveitar o mar, já que não posso me livrar das ondas".
Bibliografia
FREUD, Sigmund. Projeto para uma psicologia científica (1895). ESB, 3.ed, v.I. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p.385-529. [ Links ]
FREUD, Sigmund. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912). ESB, v.XII. Rio de Janeiro: Imago, 1969, p.146-159. [ Links ]
FREUD, Sigmund. A dinâmica da transferência (1912). ESB, v.XII. Rio de Janeiro: Imago, 1969, p.130-143. [ Links ]
FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II) (1914). ESB, v.XII. Rio de Janeiro: Imago, 1969, p.189-203. [ Links ]
FREUD, Sigmund. O inconsciente (1915). ESB, v.XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1969, p.191-245. [ Links ]
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Recebido em 15/06/2007
Aprovado em 27/06/2007
SOBRE A AUTORA
Ana Boczar
Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG.