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versão impressa ISSN 0102-7395
Reverso v.29 n.54 Belo Horizonte set. 2007
CLÍNICA PSICANALÍTICA
O excessivamente gordo de um corpo: o que fazer com isto?
The excessive fat of a body: what can be done with this?
L'Excessivement gros d'un corps: qu'est ce qu'on peut faire avec cela?
Belmira Helena Hollanda Santos
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
Este texto traz relatos clínicos de sujeitos que vão se submeter à cirurgia bariátrica. Sabemos que esta é uma solução radical que pode implicar em perdas e ganhos. Perdas no corpo, ganhos na imagem corporal. Os conceitos de pulsão e narcisismo primário, introduzidos por Sigmund Freud, e as contribuições de Jacques Lacan, relativas às pulsões escópica e invocante e às operações de alienação e separação, podem nos ajudar a trabalhar tais questões.
Palavras-chave: Pulsão, Gozo, Narcisismo, Alienação, Separação.
ABSTRACT
This article presents cases of individuals who are going to be submitted to bariatric surgery. We are aware of the fact that this radical solution implies both losing and gaining... losing in one’s body and gaining in one’s body image. The concepts of instinct and primary narcissism, introduced by Sigmund Freud and Jacques Lacan’s contributions on the scopic and invocative drives together with the operations of alienation and separation, can help us better understand this subject.
Keywords: Instinct, Drive, joy, Narcissism, Alienation, Separation.
RESUMÉ
Ce texte met en relief des récits cliniques des sujets qui vont se soumettre à la chirurgie bariatrique. Nous savons qu’il s’agit d’une solution radicale qui implique en pertes et profits. Pertes dans le corps, profits à l’image corporelle. Les concepts de pulsion et de narcissisme primaire introduits par Sigmund Freud et les apports de Jacques Lacan concernant les pulsions scopique et invocatrice et les opérations d’aliénation et de séparation peuvent nous aider à travailler ces questions.
Mots-clés: Pulsion, Jouissance, Narcissisme, Aliénation, Séparation.
"Mas – que espelho? Há-os ‘bons’ e ‘maus’, os que favorecem e os que detraem (...)"1
Trabalho com uma equipe, coordenada pelo Dr. Sérgio Campos, psicanalista da Escola Brasileira de Psicanálise, que se originou como um projeto do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais do Campo Freudiano, articulado à Escola Brasileira de Psicanálise, em parceria com a equipe de cirurgia bariátrica do Hospital Governador Israel Pinheiro, tendo como proposta preparar pessoas que vão se submeter a esta cirurgia.
Trata-se de um trabalho multidisciplinar, em que a área médica e a área psicanalítica têm como objetivo a devida assistência àquele que vem buscar uma séria intervenção no real do corpo.
Assim, muito mais que preparar e assistir tal paciente, tento descobrir onde lhe dói, o que lhe dói, o que o causa como sujeito para além daquele corpo. Este é um percurso, porque muitas vezes eles chegam com queixas orgânicas, com encaminhamentos médicos. No entanto, sabemos que esses sujeitos sofrem de formas variadas com sua obesidade. Além das dores do corpo, as dores da alma: sentem-se diferentes, são excluídos pelos ditos normais.
Vejamos o que dizem:
CASO A – "O Doutor me encaminhou porque tenho pressão alta, porque sou diabético, porque tenho artrose... Acho que posso melhorar estes sintomas se fizer a cirurgia". Alienados que estão na demanda médica, têm certa crença naquele trabalho, naquele sujeito em frente a eles, mas na verdade nem sabem bem de que se trata... Trata-se, no caso, para o analista, de fazer uma torção nessa demanda: "e você, o que busca, como é isto para você?" Isto é, a partir do orgânico, que é a sua primeira queixa, estabelecer um mais além, pois tal queixa só não basta.
Para que haja análise, é necessário, para cada sujeito, que seu sintoma se torne um enigma, uma questão endereçada a um outro que ele imagina que saiba a resposta de sua pergunta – o seu analista. É necessário que se estabeleça a transferência. Teremos, então, de um lado um sujeito dividido, que porta um sintoma, agora analítico, do outro, o sujeito suposto saber, que tem por tarefa favorecer, do lado do analisante, o aparecimento das formações do inconsciente.
Toda dificuldade com esses pacientes é a de instalar-se esta operação do sujeito suposto saber, operação que contém de um lado o analista, do outro o inconsciente, isto é, instalar neles a crença no inconsciente. Eles não acreditam no inconsciente, na exata medida em que não têm um corpo, eles "são" um corpo. Ora, "ter um corpo" significa que existe um corpo (o ser), e um sujeito que o habita. "Ser um corpo" importa em carregar este corpo em seu ser, na sua materialidade, no seu eu. Há como que uma identificação, uma colagem a este corpo. O sujeito citado no CASO A, por exemplo, acredita muito mais nas suas queixas orgânicas: "Sou um diabético". Certamente, tem um inconsciente que opera, mas de maneira precária. Percebemos então uma carência simbólica e um excesso de real do corpo, dificultando o trabalho analítico, o deslizamento da cadeia. É necessário então colocá-lo a trabalho, a falar. E no que fala, começa a se embaraçar nos significantes, emergindo a divisão do sujeito. A linguagem começa a falar por ele. Começa então a trazer os significantes mestres que norteiam sua vida e o petrificam num lugar de gozo. Ao falar, instala-se o inconsciente, o sujeito do inconsciente. Cabe ao analista saber escutar, e intervir, no ponto certo, com pontuações, interpretações, escansões, com o ato analítico, com o seu silêncio...
CASO B – "Não me vejo tão gorda assim", diz Maria, uma mulher de 1,56m e 110kg. Ela não se vê comer, ao comer ela como que apaga: "Quando vi já tinha comido um pacote inteiro de biscoitos! Só me vi comendo o primeiro!"
Interessante que o excessivamente gordo não se vê como tal. Ele é visto, percebido pelos olhos do outro: "Ê, gordura, ê, saúde", ouve na rua. Nesse momento, é pelo espelho do outro que ele se vê.
CASO C – "Quero emagrecer, não para diminuir a glicose, a pressão. Quero, sim, para voltar a trabalhar, a namorar!" Ela, que chegou a chefe de cozinha e teve que parar suas atividades devido ao excesso de peso, vem nos dizer, em seu desejo, as duas saídas propostas por Freud em O Mal-Estar na Civilização2: Amar e trabalhar.
CASO D – Lúcia, paciente com quem venho mourejando há um bom tempo, diz num momento de lucidez: "Quem me ama é quem me destrói!" Refere-se à mãe que "lhe dá de um tudo", mas chama-lhe de nomes como: "Você é uma bipolar louca! Você nunca vai sair de casa!" Neste momento, ela percebe como está presa nas teias desta aranha mortífera.
Para que haja sujeito é necessária a presença de um Outro que assim o constitua. O infans, em seu desamparo, recebe sensações de fora; algumas ele as quer de novo, outras, repele. Fragmentariamente, ele vai se formando a partir deste Outro, este fora, bom /mau. Neste fora, ele se adentra. Ali vão se formando imagens, a imagem do Outro, a sua imagem, refletida no Outro. Um dia, um espelho... Ocorre uma unidade na imagem, tempo de desconcerto; ele se reconhece na imagem, a princípio como o outro do espelho e depois como ele mesmo. Tempo de júbilo!
Também de maneira fragmentária, escuta sons. Estes sons que lhe vêm do Outro vão lhe significando, dizendo quem ele é. Ele mergulha então no que chamamos a "alíngua", linguagem que lhe é apresentada por este Outro primordial e por um terceiro termo que humaniza essa linguagem, apazigua esse sujeito, e o inscreve na comunidade dos humanos.
Em Freud, chamamos este primeiro momento de constituição do sujeito de Narcisismo Primário. E ele diz que a criança "se torna o centro e o âmago da criação – Sua Majestade o Bebê, como outrora nós mesmos nos imaginávamos. A criança concretizará os sonhos dourados que os pais jamais realizaram – o menino se tornará um grande homem e um herói em lugar do pai, e a menina se casará com um príncipe como compensação para sua mãe.3"
No entanto, Lúcia, que porta um corpo excessivamente gordo, escuta constantemente de sua mãe que ela nunca vai gratificá-la como esta provavelmente esperava que isto acontecesse, em compensação pelas duras exigências de sua vida. Como isto é passado para Lúcia? Como ela se apropria dos significantes que lhe vêm deste Outro? Existe ali algum banho narcísico, ou puro campo da pulsão de morte, como se lhe fosse constantemente dito: "Você não é nada para mim/você está presa a mim, porque também eu não tenho nada que não seja você". Alienação/ alienação. Torna-se difícil o movimento de separação. Mãe e filha estão em tratamento. Nos atendimentos, a mãe fala da filha, a filha fala da mãe...
CASO E – Alice está em atendimento comigo há um ano e meio. Desde o início, percebe que ali teria a chance de rever muitas questões de sua vida. Vem descobrindo em sua análise, e acho que posso dizer que ela está em análise, que sempre ocupou o lugar que a mãe deixou vazio no desejo do pai, sendo a filha querida, sua confidente. Lugar de muito brilho, lugar de muito gozo. Ocorre, porém, que esse pai funciona como o eixo central em seus relacionamentos com os homens. Ora ela é filha, ora é mãe de seus possíveis pretendentes. O único homem que a colocou cruamente no lugar de mulher, ela o repeliu, com força. Até então, tinha um manto de gordura/gozo que a colocava a salvo dos embates da sexualidade. Hoje, bastante mais magra, já a caminho de uma cirurgia plástica, debate-se com possibilidades amorosas: o desejo e suas vicissitudes.
No último atendimento, diz: "Na minha casa sempre havia muita fartura. Às vezes sobrava um pedaço de bolo, eu comia. Não estava mais fazendo isto. Agora estou sentindo que voltei a fazer. Comendo os restos! Isto não é uma lata de lixo!"
Quando ela diz isto, eu pergunto: "Não?" E interrompo o atendimento, pois ela sabe muito bem que é ali que goza; emprestando seus ouvidos para ouvir os queixumes, "os lixos" de seus amigos, patrões, etc., é a maneira que tem de cativá-los. Modelo este que aprendeu com um Outro primeiro, primitivo. Ela é Alice, a grande ouvinte, a grande conselheira, que, hoje, tenta sair, se-parar-se deste lugar. Se-parere, se parir, engendrar um novo sujeito, o sujeito do desejo, que pode almejar gozar de formas outras. Sair desse lugar, no entanto, importa em riscos, em se descobrir faltante, e que o Outro pode faltar.
No Seminário 11, Lacan citando Freud nos diz que a pulsão "não tem dia nem noite, não tem primavera nem outono, que ela não tem subida nem descida. É uma força constante."4 A ela só interessa o seu alvo, e voltar ao seu alvo é voltar a um estado de satisfação encontrado que deixou marcas, e mais profundamente, como Freud mesmo nos diz em "Além do Princípio do Prazer", a um estado de equilíbrio, de homeostase, em que não haveria mais necessidade de trabalho, e esse estado seria a inércia, a morte.
Voltando a Maria, CASO B, ela não se vê comer um pacote inteiro de biscoitos. Podemos dizer que ali não há sujeito e resta somente a pulsão em seu infindável trajeto rumo à demanda, ao gozo. Maria ali morre como sujeito, tornando-se objeto da pulsão. Na clínica, é como se apresenta a pulsão: na compulsão à repetição.
Ao trabalhar os circuitos da pulsão, Lacan chama-nos a atenção para suas três formas: ativa, passiva e reflexiva. Assim, na pulsão escópica teríamos:
– Voz ativa: ver
– Voz passiva: ser visto
– Voz reflexiva: se dar a ver
Pensando nos pacientes que não se vêem gordos, poderíamos dizer que nesse momento estão alienados no espelho enganador do olhar do outro. Também ali não se apresentam como sujeitos e novamente só resta a pulsão.
O difícil desta clínica é levar esses pacientes a assumirem uma posição desejante, e portanto de sujeito, o que implica neste circuito reflexivo da pulsão – se dar a ver para alguém que o deseje.
Podemos dizer que existe uma mudança de posição de um sujeito em análise que já se apercebe acossado pela pulsão: "Olha eu novamente me deixando ser espancado!"
Ou no final de análise em que podemos esperar de Maria que, um dia, ela diga: "Olha aquele pacote de biscoitos querendo me devorar... só que eu não vou me deixar devorar por ele!"
Bibliografia
ANOTAÇÕES do Seminário A gramática pulsional, com Nilsa Ericson. Belo Horizonte, 2005/2006. [ Links ]
ANOTAÇÕES da Supervisão do NEO (Núcleo de Estudos de Obesidade), supervisão de Sérgio Passos Ribeiro Campos. Belo Horizonte, 2004/2006. [ Links ]
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v.XXI, p.81-171. [ Links ]
FREUD, Sigmund. Sobre o narcisismo: uma introdução. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1974, v.XIV, p.89-119. [ Links ]
LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. [ Links ]
ROSA, J. G. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. [ Links ]
Endereço para correspondência
Rua da Bahia, 1345/609
30160-011 - BELO HORIZONTE - MG
Tel.: (31)3237-2453
E-mail: belsantos@terra.com.br
Recebido em 15/06/2007
Aprovado em 27/06/2007
SOBRE A AUTORA
Belmira Helena Hollanda Santos
Participante do Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG.
1 ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias, 2005, p.113.
2 FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização (1925). ESB, v.XXI, p.98 e 121.
3 FREUD, Sigmund. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). ESB, v.XIV, p.108.
4 LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, 1985, p.157.