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versão impressa ISSN 0102-7395
Reverso v.30 n.56 Belo Horizonte out. 2008
CORPO E ANGÚSTIA
Do corpo imaginário ao corpo marcado pelo objeto a no ensino de Lacan: uma torção
From the imaginary body to the body marked by the object a in Lacans teachings: a torsion
Alinne Nogueira Silva Coppus
Universidade Federal de Juiz de Fora
RESUMO
O artigo tem como objetivo abordar no ensino de Lacan o estádio do espelho em que o corpo aparece como imagem a ser construída e o esquema óptico no qual se destacam o Outro na aquisição dessa imagem e a presença do objeto a no corpo pulsional. Mais interessante que ver esses dois momentos de forma separada e excludente, propomos uma torção, inspirada na banda de Moebius, na abordagem do corpo no ensino de Lacan, ou seja, um corpo imaginário que não deixa de apontar para um resto irrepresentável representado pelo objeto a.
Palavras-chave: Estádio do espelho, Imaginário, Corpo, Esquema óptico, Objeto a.
ABSTRACT
The article discusses Lacans mirror stage in education in which the body appears as an image to be built and the optical scheme which highlights the Other in the acquisition of the image and the presence of the object a in the instinctual body. More interesting than seeing these two moments in an isolated and exclusionary form, we propose a torsion, inspired by the Moebius band, in the approach of the body in education as elaborated by Lacan, an imaginary body that doesnt fail to point to an unrepresentable rest represented by the object a.
Keywords: Mirror stage, Imaginary, Body, Optical scheme, Object a.
O falasser adora seu corpo porque ele crê que ele o tem.
Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência (...).1
Começamos este artigo com uma indagação: como o corpo é progressivamente introduzido no ensino de Lacan? Retomamos essa questão fazendo um percurso pelos momentos de seu ensino em que o estádio do espelho e o esquema óptico são abordados, a fim de extrairmos algumas questões essenciais para uma abordagem pertinente do corpo no ensino de Lacan.
Vale destacar que mais interessante do que ver esses dois momentos de forma separada, optamos por uma abordagem inspirada na banda de Moebius, ou seja, o corpo do estádio do espelho bem como o do esquema óptico se complementam, não sendo possível separá-los completamente tal qual a banda de Moebius destaca em relação a um exterior e a um interior.
Sabemos que o sujeito da psicanálise é vazio. Tanto não tem um significante que o represente, visto ser necessário ao menos dois para que isso ocorra, quanto não está ligado a um objeto específico que determine seu modo de gozo. O registro do imaginário vem, em resposta a essa ausência, dar uma forma ao corpo, ao eu do sujeito. Extremamente valorizado, o eu é definido por Freud (1923) como uma projeção de superfície, sendo, sobretudo, corporal. O eu [moi] é uma superfície, mas, diz ele, é a projeção de uma superfície. Portanto é em termos topológicos de pura superfície que o problema deve ser colocado2. Qual problema o eu, ao ser definido como projeção de superfície, destaca? Respondemos a essa questão ressaltando sua possibilidade de representação: o que se representa do corpo? Quais são seus limites e pontos cegos? É esse o impasse que Lacan marcará com o conceito de objeto a.
O imaginário corresponde à nomeação do registro psíquico referente aos desenvolvimentos freudianos sobre o narcisismo e a libido, o eu e a agressividade (Jorge & Ferreira, 2005), revelando a importância da imagem corporal como fonte de investimentos libidinais. Lacan nos diz: A idéia imaginária do todo tal como é dada pelo corpo como baseada na boa forma da satisfação, naquilo que, indo aos extremos, faz esfera foi sempre utilizada...3.
É no texto O estádio do espelho como formador da função do eu (1949) que podemos localizar um dos momentos em que Lacan aborda o processo da apropriação da imagem do corpo próprio. Imagem construída a partir de uma outra, a do semelhante. É o corpo despedaçado, demarcado pela pulsão, que dá sinal de sua existência. A imagem, nesse momento inicial em que o estágio do espelho é apresentado, vela mais do que desvela: ... através da forma i(a), a minha imagem, minha presença no Outro, não tem resto. Não consigo ver o que perco ali. É esse o sentido do estádio do espelho4.
Por mais que a imagem vele alguma coisa, servindo de anteparo ao real, ela fornece efetivamente uma forma ao sujeito. Lacan sempre destacou o estádio do espelho como uma tentativa de amarração do corpo desconexo através do eu, tentativa que aponta para a desordem do corpo pulsional.
Sabemos que o corpo imaginário é o corpo do Um, da totalidade imaginária, diz de uma unidade, ainda que falaciosa. O estádio do espelho (1949) vem apontar a existência de uma hiância entre o organismo biológico e a imagem própria do corpo, há aí uma abertura, um percurso a ser construído. Nesse momento inicial, o que concerne ao corpo, para Lacan, é o narcisismo, ou seja, a constituição de uma imagem própria capaz de ser investida de libido. Em suas palavras, ... a função do investimento especular situa-se no interior da dialética do narcisismo, tal como Freud a introduziu5.
Ao localizar no estádio do espelho a constituição de uma imagem própria, via imagem de um outro, Lacan ressalta que essa vivência é possibilitada por uma alienação na imagem do outro. O estádio do espelho vem nos apontar, dentre tantas coisas, que a materialidade do corpo só pode ser subjetivada a partir de um processo de identificação com o semelhante no qual se produz um engano primordial e estruturante que podemos chamar de eu...6. Ele aponta para a relação com a imagem do outro, para a possibilidade de se tomar a imagem do corpo próprio como outra, e mais, para o fato de o corpo surgir a partir de um processo de libidinização da imagem, de investimento e de construção desta.
Mas para que essa imagem do eu seja constituída e se abra a uma dialética, é preciso que intervenha, mais além do imaginário, o registro do grande Outro, e é isso que exprime o esquema óptico. É na medida em que o terceiro, o grande Outro, intervém na relação do eu com o pequeno outro que algo pode funcionar, algo que acarreta a fecundidade da própria relação narcísica (Lacan, 1960/61).
Em 1953/54, em seu primeiro seminário, Lacan retoma o tema do estágio do espelho, dando-lhe um tratamento diferente. Passa a ressaltar a importância do universo simbólico no acesso à imagem especular, propondo, nessa retomada, o que chama de estádio do espelho corrigido, o que posteriormente será chamado de esquema óptico. Através da construção de um modelo óptico composto de dois espelhos, Lacan vai localizar na palavra o que propicia a constituição da imagem especular. Situa, então, o Outro o simbólico na figura de um espelho plano como única via por meio da qual se dará, no modelo óptico, o acesso a essa imagem (Fernandes, 2000).
É importante destacarmos que na unidade corporal adquirida pela assunção dessa imagem, Lacan situará a fundação do eu, reservando-lhe por isso um estatuto de ficção pois o que existe de fato é o corpo despedaçado, a imagem não passando de miragem, um destino da alienação uma vez que tal unidade se apóia na imagem de um outro.
A primeira versão do esquema óptico é uma reprodução direta de uma experiência da física extraída da obra de H. Bouasse, Optique et photométrie dites géometriques, citada por Lacan em Observação sobre o relatório de D. Lagache7, conhecida como o experimento do buquê invertido. Há um ponto diferencial neste esquema em relação ao estádio do espelho apresentado em 1949: Lacan explicita as condições do acesso à imagem, que não se dá mais de forma automática, pela mera visão de um semelhante. É necessário um olho, que no esquema representa o Outro, situado no cone de emissão. A este olho, Lacan faz corresponder o lugar do sujeito no mundo simbólico, o que se condensa no nome e nas relações de parentesco...8. Ou seja, no movimento de virada da cabeça da criança, que se volta para o adulto, como que para invocar seu assentimento, e depois retorna à imagem, ela parece pedir a quem a carrega, e que representa aqui o grande Outro, que ratifique o valor dessa imagem9.
Sabemos com Freud e Lacan que é possível uma captura narcísica, um fascínio pelo enquadramento que a imagem fornece ao sujeito. Há, porém, um limite muito preciso introduzido pela própria captura narcísica quanto ao que se pode investir no objeto.
Destacamos que o esquema óptico, apresentado e trabalhado por Lacan em O Seminário, Livro 10 (1962-63), de forma inovadora, vem apontar que, além de ser necessário o Outro para a constituição de uma imagem, nem todo investimento libidinal passa pelo imaginário, existe um resto10. A função do resto é privilegiada na forma do falo. Falo que se apresenta aqui como um a menos (-φ), uma lacuna na imagem especular. O que escapa à imagem especular original é o objeto a. O objeto a é definido, então, como um elemento esquivo a qualquer atribuição de sentido, elemento real que não implica uma significação ou referência previamente reconhecível. É a perda irreparável destinada ao falante por ele estar submetido à ordem significante.
Localizamos, então, nesse momento de seu ensino, 1962/63, um dos primeiros lugares onde Lacan detalha a relação do objeto a com o corpo. Ele introduz o objeto a no esquema óptico relacionando-o com o desejo, com a falta e com a angústia e, no decorrer do seminário, trabalha-o em sua articulação ao medo de que a falta falte e ao encontro com o desejo.
Em um primeiro momento, Lacan destaca a relação que o objeto a tem com a função de corte, de separação, ou seja, é o objeto a sendo colocado como causa de desejo, aquele que presentifica a falta. O objeto a é o resto da ligação do sujeito ao campo do Outro, única prova do irredutível do Outro. Lacan chega a relacionar os objetos que ocupam de forma privilegiada esse lugar de vazio que o objeto a vem representar seio, fezes, voz, olhar com a anatomia, pois eles teriam um certo caráter artificial, por estarem agarrados ali11, e, por isso mesmo, poderiam ser destacados.
Quanto à ligação entre o corpo e o objeto a, Lacan nos diz que nessa entidade tão pouco apreendida do corpo há alguma coisa que se presta a esta operação de estrutura lógica que leva a nos determinar. É o seio, as fezes, o olhar, a voz: essas peças separáveis enquanto que profundamente religadas ao corpo12. Pretendemos destacar que além de ser tomado como imagem, arrumação mínima do eu, o corpo também é abordado em sua articulação com o desejo e o gozo via objeto a. Se por um lado sabemos quanto a constituição de uma imagem própria tem uma função essencial para o sujeito, seja através de um contorno que ela equipa o corpo despedaçado, seja pela possibilidade de fornecer uma localização subjetiva para conflitos e impasses ligados ao eu, por outro, temos que destacar a existência de um corpo pulsional. É esse o corpo que vem apontar para a presença do objeto a. De forma moebiana, dialética, corpo imaginário e corpo habitado pelo objeto a se complementam sem se equivalerem.
Sem deixar de ser causa de desejo, o objeto a também possibilita um mais-de-gozar e é esse o corpo que a clínica vem nos mostrar em seu cotidiano. A questão que se impõe então para o analista é como trabalhar com esse corpo de gozo e desejo, que não deixa de ser imagem, se operamos com o significante, instrumento valorizado por Lacan do início ao fim de seu ensino. E ainda, como o ato e a interpretação do analista poderiam tocar nesse ponto que não se reflete na imagem do corpo próprio, no real que o gozo nos apresenta. Para tanto, parece-nos inevitável que articulemos o significante ao gozo.
Bibliografia
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Endereço para correspondência
Rua Fernando Lobo, 102/303 - Centro
36016-230 - Juiz de Fora/MG
Tel: (32) 3224-5945
E-mail: alinnerj@terra.com.br
Recebido em: 04/08/2008
Aprovado em: 11/08/2008
Sobre a Autora
Alinne Nogueira Silva Coppus
Doutoranda em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Professora da Pós-graduação em Psicanálise Subjetividade e Cultura pela UFJF. Diretora do Corpo Freudiano de Juiz de Fora.
1 LACAN, J. (1975-76) O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p.64.
2 LACAN, J. (1962-63) O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.109.
3 LACAN, J. (1969-70) O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p.29.
4 LACAN, J. (1962-63) O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.277.
5 LACAN, J. (1962-63) O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.48.
6 PEREIRA, L. O espelho de procusto: corpo, imagem e desejo. In: O corpo da psicanálise Escola Letra Freudiana, Rio de Janeiro, ano XIX, n.27, 2000, p.102.
7 LACAN, J. (1960) Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: psicanálise e estrutura da personalidade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.680.
8 FERNANDES, L. O olhar do engano autismo e Outro primordial. São Paulo: Escuta, 2000, p.105.
9 LACAN, J. (1962-63) O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.41.
10 LACAN, J. (1962-63) O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.49.
11 LACAN, J. (1962-63) O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p.184.
12 LACAN, J. (1966-67) O seminário, livro 14: a lógica da fantasia. Inédito, lição de 16/11/66.