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versão impressa ISSN 0102-7395
Reverso vol.32 no.59 Belo Horizonte jun. 2010
TEORIA PSICANALÍTICA
Parcerias amorosas sintomáticas
Love symptomatics partnerships
Malvine Zalcberg
Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle
Resumo
Por que aquele homem? Por que aquela mulher? Foi o que Freud chamou de Liebesbedingung, a condição de amor, a causa de desejo. É um traço particular – ou conjunto de traços – que tem uma função decisiva para a escolha da pessoa amada. Essa escolha é única para cada sujeito, e se escreve em sua história singular. Entre um homem e uma mulher nada é escrito antes, não há relacionamento preestabelecido. Seu encontro é contingente. Segundo Lacan, não existe a relação sexual propriamente dita.
Palavras-chave: Significante, Fantasia, Sintoma, Desejo, Amor, Gozo, Parceiro-sintoma.
Abstract
Why that guy? Why that girl? There's what Freud called Liebesbedingung, the condition for love, the cause of desire. It's a particular trait – or a set of traits – that have a decisive function in a person for the choice of the loved one. This totally escapes determination because it's unique to each person, it's down to their singular, intimate history. Between any man and any woman, nothing is written in advance, there's no pre-established relationship. Their encounter is contingent. According to Lacan there is no such thing as a sexual relationship.
Keywords: Significant, Fantasy, Symptom, Desire, Love, Jouissance, Partner-symptom.
"Não há relação sexual", a fórmula de Lacan, já é hoje bastante conhecida para que a possamos tomar como ponto de partida1. Há um mal-entendido entre os sexos, nos diz Lacan. Há dois que não se compreendem nem se ouvem. Dois dizeres que não se recobrem.
A cura psicanalítica recolhe, sessão após sessão, palavras que testemunham a existência dessa questão – insuportável às vezes – da não relação entre os sexos.
O germe desta ideia da não relação sexual como tal pode ser encontrado em Freud quando já nos "Três Ensaios" sustenta que há desde o início, para um sexo e outro, uma diferença na constituição do psiquismo quando confrontado com a anatomia do sexo feminino: o menino reage com a angústia de castração e a menina com o penisneid2. Não é sem razão que anos mais tarde Freud menciona as consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos, título de seu texto de 19253.
Esse texto representa, de fato, a grande virada dada por Freud quanto ao complexo de Édipo com a conclusão de que o Édipo da menina não era propriamente igual ao do menino, como pressupusera. Dois aspectos marcantes atravessam essa retomada a respeito da sexualidade feminina: a mãe se revelar o primeiro objeto de amor da menina e não o pai, como as suas primeiras pacientes histéricas lhe haviam feito crer, e o fato de que o sexo feminino parece nunca descoberto. Estas duas observações o levam a introduzir uma substituição da primazia do pênis pela primazia do falo. Já não se trata da falta do órgão em si, o pênis, na mulher e sim da falta de um símbolo do sexo feminino. Freud dá-se conta então que a mulher era tanto quanto o homem submetidos à lógica fálica. Formulou-a ao sustentar que o falo está presente na mulher mesmo sob a forma da ausência, enquanto que no homem se manifesta pela presença. Se Freud vê a saída feminina pela condição da maternidade, isto implica a mulher receber do homem o falo em forma de criança pela equação simbólica que ele pressupõe existente no psiquismo feminino4. Primeira fórmula freudiana da parceria estabelecida entre os sexos sob a regência do falo.
Embora o pênis constitua apenas um suporte imaginário para o falo, ele é bastante consistente para o homem ter um representante de seu sexo no inconsciente e poder subjetivar seu sexo como "eu tenho", quando na realidade ninguém efetivamente "tem o falo". O fato de a mulher não ter nenhum órgão com o qual possa constituir um símbolo de seu sexo no inconsciente determina que ela subjetive seu sexo sob a forma de um "não tenho". "Ter" ou "não ter" constituem as duas formas pelas quais os sexos erigem sua subjetividade, isto é, como experimentam o processo de sexuação. Estes são os fundamentos para Lacan começar, em textos dos anos 1958-19605, a elaborar a diferença entre a sexualidade masculina e a feminina a partir da relação específica de cada sexo com o falo e de como este fato repercute na forma como se estabelecem parcerias entre eles6. Este é o primeiro momento da concepção da parceria homem-mulher no ensino de Lacan. Outras se seguirão.
A parceria em nível do significante fálico
Os sexos, determinados que são pela lógica fálica, se relacionam, segundo Lacan, através de um parecer. Parecer que se apresenta diferentemente no homem e na mulher: o homem querendo proteger seu "ter" o falo (quando na realidade ninguém o "tem") recorre à ostentação viril – ostentação viril que é o parecer do lado masculino. Já a mulher, acreditando que teria de "tê-lo", esconde sua falta sob a chancela da mascarada – mascarada que é o parecer do lado feminino. Na medida em que os sexos se relacionam com o falo através de um parecer ter ou parecer não faltar, a relação dos sexos passa a constituir uma verdadeira "comédia"7 – ideia que antecipa precisamente a versão lacaniana da inexistência da relação sexual.
Não há, portanto, nesse nível, que diríamos do ser, uma relação significante com o Outro, e sim uma relação significante com o falo. Mais do que "ser", esse sujeito lacaniano, por ser representado por um significante para outro significante, é essencialmente falta-a-ser8.
As fórmulas do desejo de um e de outro dos sexos refletem a busca de homens e mulheres pelo que complementa seu ser.
No desejo do homem (que segundo Lacan apenas acentua o desejo perverso), os objetos são tomados no parêntese do que se escreve , para significar que é onde o homem pode encontrar algo com o que sustentar seu ser: (a). É a primeira forma pela qual Lacan escreve o desejo masculino onde figura o objeto a, objeto parcial, objeto amalgamático9.
A mulher é elevada a esse lugar de objeto causa de desejo do homem pelo seu esforço de condescender à fantasia do homem para provocar seu desejo.
O que Lacan chamou de ser o falo como solução para a feminilidade é a forma pela qual a mulher que sofre de "não ter" encontra uma maneira de compensar sua falta, se fabricando um "ser" do nada: em vez de tentar preencher o furo, ela o metaboliza e o dialetiza. O furo que ela é, pela falta de identidade do sexo feminino, ela o leva para o outro lado, para o lado do homem. A esse Outro viril, "falta" um furo, ela o força a ter um, isto é, ela o força a aceitar a castração: aceitar dar precisamente o que ele não tem, o dom do seu ser10.
Ao se identificar pelo amor à castração do homem – castração que libera nele o desejo –, ela se encontra também em posição de desejar. É desejo de desejo. É por essa via que a mulher passa do amor ao desejo. Por um lado, portanto, a mulher dirige sua demanda de amor ao homem no qual ela pode encontrar o significante de seu desejo, o órgão fetichizado, por outro, ela, ao impor a castração ao homem, encontra uma suplência na ordem do ser. É o que explica a fórmula do desejo feminino propriamente dito. No desejo feminino que Lacan escreve A barrado constatamos a relação deste desejo com A barrado de um lado e com o falo, suposto objeto genital, com de outro.
Nesse plano do ser, a vigência do significante mortifica o gozo no corpo do sujeito masculino e feminino. Essa formulação se insere nos primeiros estudos de Lacan sobre a formação do inconsciente como discurso do Outro, explicitado no conceito de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem11. Mais tarde, o estatuto do inconsciente assume nova vertente: para além da estrutura da linguagem, o inconsciente encontra – pode-se dizer – um real.
Parceria em nível de fantasia
No desenvolvimento de seu ensino em que figura particularmente a introdução do conceito de gozo e seu correlato objeto a, Lacan começa, em textos que ocupam o final dos Escritos, a elaborar a segunda das parcerias que homens e mulheres estabelecem entre si: pela fantasia.
O que particulariza a fantasia é que através dela Lacan enlaça significante e gozo até então mantidos desenlaçados em seu ensino. Na fantasia é onde a libido aparece unida ao efeito do significante e é o que sua fórmula expressa: .
Trata-se de uma escrita que torna presente um elemento do simbólico (o S barrado que implica o corpo mortificado de gozo pelo significante) e o objeto a (que é o resíduo de gozo como produto da operação do significante sobre a Coisa).
Embora a fórmula da fantasia se aplique a ambos os sexos, há uma diferença em cada um deles quanto à inscrição do objeto. A fórmula da fantasia se apresenta diferentemente nos dois sexos porque é outra a forma de lidar com a falta-a-ser e é outra também a maneira da inscrição da vontade de gozo. Pelo lado feminino, embora a fórmula se aplique, , ela pede uma modificação em seu último termo: em vez de a, trata-se de A barrado.
O parceiro da mulher é A barrado, aquele ao qual falta alguma coisa e que essa falta faz falar conforme a fórmula do desejo feminino: A barrado .
Mais tarde em seu ensino, Lacan desenvolve que a relação do desejo da mulher com A barrado, com o objeto erotomaníaco, com o Outro que não é Um, é uma relação com o Outro que fala. Na relação sexual, a mulher certamente quer o órgão, mas mais ainda, ela quer o falo como significante do desejo, do desejo que fala, o que faz com que o homem venha a dizer seu ser ("não é senão lá de onde o homem a vê que a querida mulher pode ter um inconsciente")12 e cifrar seu gozo (isto é, trazer um limite para o seu gozo feminino). Esse suplemento de ser é um ser de significância, isto é, ligado ao gozo. É assim que o homem a «diz-mulher» (la dit femme) para além do falo13. O gozo feminino como tal tem relação então com o Outro sob a forma de S de A barrado e com o.
Na segunda parceria formulada por Lacan – parceria do desejo –, parceria que a fórmula da fantasia escreve, não há também uma relação direta do sujeito com o Outro, mas somente por via do objeto a.
Parceria em nível de sintoma
A terceira parceria que podemos deduzir do ensino de Lacan – parceria que os sexos estabelecem pelo gozo –, é uma parceria que só pôde começar a ser pensada a partir dos novos desdobramentos teóricos que ele introduziu nos anos 70.
A começar pelo novo estatuto ao sujeito que Lacan formula.
O que muda no conceito de sujeito?
Até então prevalecia o sujeito da cadeia significante – aquele que se apresenta em fading – aparecendo num lampejo de um instante: "O sujeito não é outra coisa – quer ele tenha ou não consciência de que significante ele é efeito – senão o que desliza numa cadeia de significantes"14. A indeterminação imposta pela articulação significante faz da falta-a-ser a essência do sujeito: o sujeito não é outra coisa [...] senão o que desliza numa cadeia de significantes. A verdade articulada à cadeia significante S1 – S2 como tal implica a exclusão do corpo. Exclusão do corpo que resulta num sujeito destituído de gozo, um sujeito mortificado em seu gozo pelo significante15. Por isso fizera-se necessário, a esse sujeito apresentando-se como esvaziado de gozo, agregar-lhe uma relação com um resto de gozo que é precisamente a função da fantasia. Como se tratava ainda, na fantasia, do gozo mortificado do significante, era o mesmo conceito de sujeito que vigorava. No entanto, quando Lacan passa a considerar o corpo implicado no gozo, ele não se refere mais ao mesmo sujeito. Como falar em gozo sem considerar a dimensão do corpo?
É o que Lacan nos leva a considerar: o sujeito mais a dimensão do corpo, isto é, o sujeito mais a dimensão do gozo do corpo.
O corpo tornando-se uma substância gozante e não mais somente uma dimensão imaginária, há um outro enlaçamento do corpo com o inconsciente. O que muda é que o estatuto do inconsciente não mais tem sua consistência independentemente da pulsão.
Essas considerações estão no fundamento de Lacan ter alterado o estatuto do sujeito para o de falasser e de ter tido, em decorrência, de mudar o estatuto do Outro também.
O que muda no conceito do Outro?
Este Outro não é mais o Outro do significante, embora este não deixe de ter sua importância. Afinal, é neste Outro da fala que o sujeito tem sua origem. É bem o que Lacan diz desde "Uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose": o estatuto do sujeito (neurose ou psicose) depende do que se desenrola no Outro16.
O que neste Outro se desenrola articula-se como um discurso: o inconsciente é o discurso do Outro, do qual Freud procurou inicialmente definir a sintaxe relativa aos fragmentos que nos chegam em momentos privilegiados, sonhos, lapsos, chistes. Nesse discurso, como estaria o sujeito implicado, se dele não fosse parte integrante? – pergunta Lacan17.
É este Outro do código que se desdobra em Outro como lugar do gozo do sujeito. O Outro passa a ser representado por um corpo sexuado. Para além do gozo do corpo, delineia-se o gozo da palavra: "ali onde se fala, isso goza"18. Lacan passa a considerar a dimensão do gozo da fala, da linguagem e para além dela, de alingua (lalangue) para indicar que a palavra tem efeito de gozo sobre o corpo do Outro e sobre o corpo próprio.
Por que Lacan forjou o termo alingua? Esse termo foi pensado por Lacan para designar a linguagem da qual goza o ser falante19. Ele o quis tão próximo quanto o termo lallation (balbucio), emissão de sons mais ou menos articulados na criança que ainda não fala; isto é, a criança brinca e goza da linguagem bem antes de saber utilizá-la.
É pela palavra do Outro que os pais, por exemplo, à força de falar à criança, lhe insuflam ao mesmo tempo a verdade deles de sujeito com o signo de seus desejos, e os restos verbais que permanecerão ligados às primeiras experiências de gozo. No encontro de palavras (do Outro) com seu corpo – isto é, no modo singular de inscrição do significante no corpo – é que algo do gozo se determina. Se Lacan não empregou o termo que existia – lallation – é porque visava nomear um fenômeno que não se limitava à infância, mesmo se é na infância que ele se constata mais facilmente. Com efeito, essa alingua não é abolida pela educação, seja pelos aprendizados das regras e dos usos da língua comum, mas ela é deslocada, subsistindo em um outro lugar, aquele que Freud chamou de inconsciente ou ainda de outra cena: "O inconsciente, não é que o outro pense [....] o inconsciente, é que o ser, em falando, goze e, eu acrescento, não queira saber de nada mais", diz Lacan em Mais, ainda20. Não é mais o lugar de um querer dizer, mas de um querer gozar.
É o que diz Lacan em uma conferência em Genebra sobre o sintoma: "É certo que é da maneira pela qual lalangue foi falada e também entendida por tal ou qual em sua particularidade, que alguma coisa, mais tarde, aparecerá em sonhos, em todos os tipos de vacilações. Em todos os tipos de maneiras de dizer. É, se me permitem utilizar pela primeira vez, o termo motérialisme no qual reside a tomada do inconsciente do sujeito"21. No motérialisme reside a tomada do inconsciente, onde há encontro do sujeito com a realidade sexual sobre seu corpo próprio.
Quando Lacan menciona o gozo da fala, ele sustenta não mais se tratar do inconsciente cadeia do discurso (do inconsciente transferencial), mas do inconsciente que, no seu último ensino, assume o status de inconsciente real, o que inclui o irredutível da letra. Então, nessa última parte do seu ensino, o caráter de semblante do inconsciente é concebido como "saber fazer com lalangue". Enquanto linguagem, o inconsciente é uma elucubração de saber sobre alingua. Alingua se constitui, pois, através das identificações que ordenam a sexuação a partir da relação à função fálica e à castração, seja .
Quanto à inscrição na função fálica, há diferença entre os sexos: o homem totalmente inscrito, a mulher só em parte. Ela é não-toda. Essa diferença de inscrição caracteriza a relação diferente do homem e da mulher com a castração. Esta diferença de inscrição na castração determina uma relação diferente de homens e mulheres primeiro com o significante, depois com o desejo e, finalmente, como estamos vendo, com o gozo.
O sujeito representado por um significante para um outro significante ceder o lugar ao falasser quer dizer que se trata de um falasser envolvido com lalangue, onde o que prevalece não é mais a representação, mas o modo de gozo do sujeito. Não há nada na lalangue que diga o que é a diferença sexual. Para o sujeito, a relação sexual é condicionada pelo fato de ser tomado na prática da linguagem e, portanto, a menos de se livrar da faculdade de falar, a falha constituída pela relação sexual impossível não pode ser preenchida. As fantasias, os delírios, os sintomas vêm se situar precisamente nesse vazio.
As fórmulas da sexuação de Lacan dão conta de um impossível que funda a posição do sujeito relativamente ao sexual22. Este impossível a partir do qual se determina a posição do sujeito exige de cada um a invenção de um dizer singular.
Os desenvolvimentos posteriores do ensino de Lacan mostram, cada vez mais, que devemos nos confrontar ao impossível da representação do sujeito e à impossibilidade da representação do gozo mais além do falo como tal, do gozo Outro. Então, este Outro do código que se transforma em Outro como lugar do gozo do ser falante é o Outro que, para Lacan, se torna parceiro-sintoma23. Por que falar em parceiro-sintoma mais do que em Outro, simplesmente?
Para enfatizar que o parceiro não é somente o Outro, o da comunicação e do desejo, mas também o do pequeno a da pulsão. O objeto pulsional, objeto a é inseparável da definição de gozo enquanto que satisfação de uma pulsão.
A mulher e o homem serão sempre enviados à significação última e absoluta de seu objeto pequeno a. Ter acesso ao Outro, ao Outro sexo, só é possível por via das pulsões parciais. Se não é ao Outro realmente que se tem acesso e sim ao objeto a, como objeto das pulsões parciais, o parceiro fundamental para os dois sexos é então aquele que será capaz de lhe dar acesso ao objeto a. E porque o Outro dá acesso ao objeto da pulsão, ele entra no circuito de seu modo de gozo. E se falamos em parceiro-sintoma é porque o sintoma é definido por Lacan como o modo de gozo do sujeito.
A partir do momento em que a tese da relação sexual como in-existente é postulada, a função do sintoma muda no ensino de Lacan. O sintoma não é somente mensagem e metáfora, mais ele é, também, e sobretudo, função de gozo desse elemento de inconsciente que é a letra reduzida a ela mesma, fora sentido e, por isso, condensador de gozo.
Assim, o sintoma não é mais pensado como uma simples disfunção que é preciso curar, uma mensagem que veicula alguma significação, mas, ao contrário, mais além dos remanejamentos terapêuticos, ele é uma solução que, para cada sujeito, supre a relação sexual que não há, por uma formação de gozo originada de seu inconsciente. Não se trata, portanto, para a psicanálise, de produzir um sujeito sem sintoma. O sintoma contém o traço mais singular que faz do sujeito um sujeito particular e diferente de todo outro sujeito.
A verdadeira identidade sexual do sujeito não é, portanto, aquela que deriva de seu pertencimento a um gênero sexual, mas ela reside no que pode se produzir de mais autêntico nele, seu sintoma. O sintoma é um modo de gozar, na articulação entre significante e gozo. Para o que é do sexo, a relação de parceria supõe que o Outro se converta em sintoma do sujeito, isto é, um meio de gozo.
Temos, então, os elementos para compreendermos os termos da nova parceria se apresentando entre falasser/parceiro-sintoma, para além da parceria sujeito/Outro (nível de significante) e o sujeito/objeto pequeno a ou A barrado (nível de fantasia).
O que define a dupla falasser/parceiro-sintoma é o fato de o gozo sempre se produzir no corpo do Um, mas por meio do corpo do Outro. Se o gozo é sempre autístico, autoerótico, ele é também sempre aloerótico porque inclui o Outro. O gozo pulsional, aparentemente "autoerótico" se refere sempre ao Outro e é isto que faz com que o sujeito goze sempre de modo sintomático.
É um modo de gozo sintomático porque o falasser deve incluir o Outro em seu circuito de gozo, isto é, converter o Outro em instrumento de seu gozo24.
Trata-se, então, de saber de que maneira o falasser, para gozar, se serve do Outro enquanto este é representado por seu corpo? Ou dito de outra forma: como fazer o Outro entrar em seu circuito de gozo?
O sintoma como modo de gozar se apresenta em forma dupla:
1. por um lado, é um modo de gozar do inconsciente, da articulação significante;
2. por outro, é um modo de gozar do corpo do Outro que se divide entre:
a) o corpo do próximo como um meio de gozo do corpo próprio;
b) o corpo próprio que sempre tem uma dimensão de alteridade.
O que quer dizer que o corpo próprio tem sempre uma dimensão de alteridade?
Como mencionei, o gozo é sempre autoerótico, autístico, mas, ao mesmo tempo, é aloerótico porque sempre inclui o Outro. Inclui o Outro mesmo na masturbação masculina, na medida em que o órgão do qual se trata está "fora do corpo" e está marcado de alteridade. Na mulher não encontramos este "fora do corpo" que encontramos no homem. O gozo dela está contido no corpo próprio, considerando que este corpo próprio é outro mesmo para ela.
Isto deixa dois acessos ao Outro: 1. através do gozo e que vai desembocar no objeto a; isto é, que vai desembocar no gozo do corpo próprio. 2. o segundo acesso ao Outro é um acesso por meio do amor que deixa de lado o corpo e se aferra à palavra.
Os dois acessos são válidos para os dois sexos, mas o primeiro é, sobretudo, o acesso macho ao Outro; enquanto que do lado da mulher, o acesso ao Outro se realiza mais comumente pelo lado do amor. O parceiro se apresentar como sintoma do falasser, como meio de seu gozo, conduz a uma nova consideração da vida amorosa de homens e mulheres por repercutir na maneira como cada um dos seres sexuados impõe sua forma de amar a seu parceiro.
O macho permanece mais encadeado ao autoerótico da pulsão, no máximo sendo capaz de fazer do Outro um objeto a que lhe serve para a satisfação pulsional: "O sexo da mulher não lhe diz nada, a não ser por intermédio do gozo do corpo"25.
Na mulher, seu gozo, ao contrário, é muito mais independente da exigência pulsional e está enganchado ao Outro; é deste lado de onde a demanda de amor se faz ouvir na clínica com sua exigência inabalável. O amor pode, então, surgir numa função inédita, um amor em nível do real que descompletando o gozo pulsional pode abrir as portas do desejo.
Com o parceiro sexual, trata-se essencialmente de um encontro contingente que põe em jogo tudo o que em cada sujeito marca o traço de seu exílio da relação sexual. Encontro de dois inconscientes, de duas solidões, de dois sintomas onde se escreve o real em jogo – o real da relação sexual que não existe.
Endereço para correspondência:
Rua Visconde de Pirajá, 414/914-915 - Ipanema
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Tel.: (21)2521-0948
E-mail: zalcbergrio@domain.com.br
RECEBIDO EM: 01/04/2010
APROVADO EM: 01/05/2010
Sobre a Autora
Malvine Zalcberg
Psicanalista de origem belga, formada em Psicologia, com pós-graduação em Psicologia Clínica. Sua tese de Doutorado foi elaborada na PUC-Rio e na Université Paris VII, contemplada com uma bolsa da CAPES. Na qualidade de Prof. Adjunto, afastou-se recentemente de suas atividades de ensino e pesquisa exercidas prioritariamente no Serviço de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto e no Instituto de Psicologia da UERJ.
É Membro Psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle (SPID) onde exerce atividades didáticas, tendo artigos publicados em jornais e revistas especializadas em psicanálise. É autora de A Relação Mãe e Filha (Campus) e de Amor Paixão Feminina (Campus).
1 LACAN, J. 1972-1973. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982.
2 FREUD, S. (1905). "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade". Standard Edition. London: Hogarth Press, v.VII.
3 FREUD, S. "Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre sexos". Standard Edition. London: Hogarth Press, v.XIX.
4 FREUD, S. (1917). "Transposição das pulsões principalmente da pulsão anal". Standard Edition. London: Hogarth Press, v.XVII, p.129.
5 "A significação do falo" (1958), "A direção do tratamento e os princípios de seu poder" (1958). "Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina" (1960), "Observações sobre o relatório de Daniel Lagache" (1960). Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
6 LACAN, J. 1975-1976. O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p.114.
7 LACAN, J. 1958. "A significação do falo". Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.701.
8 LACAN, J. 1957. "A instância da letra no inconsciente freudiano". Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.524.
9 LACAN, J. (1960) "Observações sobre o Relatório de Daniel Lagache". Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
10 LACAN, J. (1956-1957) O seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
11 LACAN, J. 1957-1958. "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose". Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.549.
12 LACAN, J. 1972-1973. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar,1982, p.133.
13 LACAN, J. Ibid, p.14. "A gente a dif...ama, a gente a diz fama".
14 LACAN, J. Ibid, p.68.
15 LACAN, J. Ibid.
16 LACAN, J. 1957-1958. "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose". Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.549.
17 LACAN, J. Ibid, p.555.
18 LACAN, J. 1972-1973. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982, p.156.
19 LACAN, J. Ibid, p.188.
20 LACAN, J. Ibid, p.143.
21 LACAN, J. (1974). Le symptôme, Conférence à Genève. Opção lacaniana, Rio de Janeiro, n.23, 1998.
22 LACAN, J. 1972-1973. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1982.
23 Miller, J.-A. El partenaire-síntoma. Buenos Aires: Paidós, 2008.
24 MILLER, J.-A. Ibid, p.408.
25 Lacan, J. (1972-1973). O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982, p.15.