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versão impressa ISSN 0102-7395
Reverso vol.32 no.59 Belo Horizonte jun. 2010
CLÍNICA PSICANALÍTICA
As jogadoras: uma viagem sem droga?1
The gambling women: a trip without drug?
Zorka Domic
Tradução: Carlos Antônio Andrade Mello
Universidade de Moscou
Resumo
Os costumes e as práticas se transformam num mundo onde o virtual cria novas formas, tanto de laço quanto de solidão. Assim também, mudam as práticas do jogo. Elas incluem os jovens, as mulheres e os idosos. Tornam-se mais solitárias, menos socializadas, envolvem diversas camadas sociais. A compulsão ao jogo parece mais determinante e frequente. O jogo patológico situa-se então entre os outros transtornos aditivos. O interesse pelas especificidades da mulher jogadora só vem esclarecer e aprimorar o conhecimento dessa forma de dependência de nosso tempo globalizado. A mulher que joga é um "homem-jogador"? De fato, para que ela joga? Vamos tentar esclarecer estas perguntas ao longo do texto, mas o fato de que uma pessoa possa tornar-se dependente do jogo permanece como um dos enigmas da dependência humana. O sofrimento psíquico provocado por esse estado de dependência situa-se no âmago de uma subjetividade que oscila entre o razoável e o excessivo. O jogo pode tornar-se uma paixão frenética e destrutiva, predominando a última.
Palavras-chave: Jogo patológico, Mulher, Dependência humana, Sofrimento psíquico, Paixão, Autoerotismo, Perda, Luto, Abolição de valores na modernidade.
Abstract
Behaviors and practices are transformed in today's world where virtuality generates new forms of linkages and solitude. In consequence, the practices of gambling change. They include youth, women and the elderly. They have become more lonesome, less socialized, a condition that involves all social classes. Gaming compulsion seems more frequent and determinant. Pathological gaming is one among other addictive disorders. The interest in the specificities of the gambling woman is useful to elucidate and enhance our knowledge about this form of addiction in our globalized era. Is the gambling woman a "gambling-man"? Why does she gamble? I will try to answer these questions but the fact that a person may become addictive to gambling is one of the enigmas of human addiction. The psychic suffering generated by this form of addiction is located within the heart of a subjectivity that oscillates between what is reasonable and what is excessive. Game may become a paroxistic and destructive passion, with a dominance of the latter.
Keywords: Pathological gambling, Women, Human addiction, Psychic suffering, Passion, Self-eroticism, Loss, Mourning, Value changes in modernity.
O jogo é a vida! É sinônimo de boa saúde e de bem-estar de toda sociedade, toda cultura e toda idade. Essa é uma atividade da criatividade humana, através da qual a criança descobre o mundo, suas capacidades, seus desejos e suas mágoas. Nada é mais inquietante do que quando a criança manifesta indiferença por uma atividade cujo caráter lúdico é o motor da aprendizagem. Para Winnicott, o jogo é a prova da criatividade que representa a vida. O adulto permanece como essa criança que não para de se lembrar que "a vida não é um jogo", mas não concebe viver sem criar, inventar, divertir-se. Existe atividade humana que não contenha essa dimensão lúdica?
Porém, assim como Janus, o Homem é atraído pelo outro lado. O jogo pode tornar-se uma paixão frenética e destrutiva. O jogador patológico mostra a fisionomia de profunda tristeza, de abatimento beirando a decadência, do apagamento dos sentidos e de si...
O fato de que uma pessoa possa tornar-se dependente do jogo permanece como um dos enigmas da dependência humana. O sofrimento psíquico provocado por esse estado de dependência situa-se no âmago de uma subjetividade que oscila entre o razoável e o excessivo.
A mulher que joga é um "homem jogador". De fato, para que ela joga? Para ganhar, responde. O dinheiro e o poder não são mais, parece, o monopólio dos homens. Na sociedade moderna, a igualdade de oportunidades (nos jogos) está no centro dos debates. O século XXI é o século da mulher, declara Alain Touraine, o sociólogo, que constata que a mulher encontra-se no lugar que, antes, fora reservado aos homens. Os costumes e as práticas mudam em um mundo onde o virtual cria novas formas de laços e de isolamentos. As práticas do jogo também mudam. Elas incluem os jovens, as mulheres e os idosos. Tornam-se mais solitárias, menos socializadas, atingem camadas sociais diversas e a compulsividade ao jogo parece mais determinante e mais frequente. A dependência do jogo consta da classificação de doenças há cerca de vinte anos. Atualmente, é considerada como um verdadeiro problema de saúde pública. O jogo patológico encontra-se então listado entre os outros transtornos de adição.
A partir de algumas vinhetas clínicas tentarei fazer uma reflexão sobre as relações do sujeito com o acaso, com a sorte, com a imprudência, com a morte. Escolhi, de propósito, casos de mulheres jogadoras, porque tenho a impressão que os serviços de saúde não estão muito interessados nas especificidades dos transtornos aditivos na mulher.
O interesse por tais especificidades na jogadora só pode esclarecer e aprimorar o conhecimento dessa dependência e sua abordagem global.
As jogadoras...
O fato de que o jogo a dinheiro (o jogo patológico, em geral) seja, antes de tudo, masculino, não impede de levantar certo número de questões. É preciso considerar o fato de que a cultura, a história e os mecanismos sociais de regulação do jogo são de capital importância, e cuja influência se estende, ao mesmo tempo, ao contexto dos estudos e das concepções dos pesquisadores.
Mulheres não jogam em ambientes interditados a elas. Mesmo que, nas culturas atualmente dominantes, as segregações tendam a tornar-se obsoletas, um acréscimo de estigmas pode continuar ligado ao jogo, quando praticado por mulheres. Também, poderia tratar-se de uma atitude precipitada a de buscar as razões, no campo da fisiologia ou da psicologia, dessa predominância masculina.
Mary Mark e Henry Lesieur assinalam que a maior parte da literatura baseia-se no estudo de sujeitos masculinos e que, por outro lado, o jogo feminino é analisado por simples transposição das pesquisas a partir do jogo dos homens. É nesse viés proposto por esses autores que pretendemos marcar nossa pesquisa, por uma modificação do enfoque, baseado em um estudo crítico da literatura, por abordagens específicas, privilegiando a observação do jogo das mulheres.
Segundo Begler, não há a mínima diferença entre as razões e os determinantes psíquicos que levam uma mulher ou um homem a jogar. Outro psicanalista de língua francesa e orientação lacaniana segue o mesmo caminho. Assim escreveu: "Que também as mulheres coloquem seu falo em questão não me parece constituir um obstáculo a essa interpretação. Se uma mulher de fato é jogadora, constata-se, sem dúvida, que, por não ter jamais renunciado completamente a possuir o pênis, a questão de ser o falo possa colocar-se para ela nesses termos".
Se a demanda de ajuda dirigida a uma estrutura médico-psicológica nunca é fácil para o jogador em conflito, a dificuldade de tal atitude para a mulher jogadora representa, em si, uma provação particular. Desde a Idade Média e o Período Clássico, o imaginário tradicional considera mulheres e jogo em uma representação única atribuída à mulher: por um lado como objeto de consumo, a cortesã da casa de jogos, lugar de libertinagem e perdição; por outro, como vítima, vitimada pela paixão pelo jogo do marido, do pai... (Anna Grigorievna Dostoïeskaia foi o exemplo. Porém, seus relatos nos esclarecem sobre uma experiência bem diferente em sua relação com o jogo e com o jogador).
É meu marido que pensa que devo consultar. Diz que sou louca. Estas são as primeiras frases de uma mulher que se queixa de não poder voltar para casa depois do trabalho. Precisa sempre parar num café e jogar enquanto espera por seu marido. Ele sai do trabalho depois da meia-noite. O casal joga junto antes de voltar para casa. Essa jovem mãe de família declara, sem hesitação, que não vê o que poderia fazer de bom em sua casa. Diz que não tem esse hábito.
Ninguém sabe que vim procurá-la, revela uma mulher que se diz segura da confidencialidade de nosso encontro. Ela já é avó. Aliás, o único dia em que não joga é o dia da semana dedicado a seu neto. Começou a jogar durante a doença de seu pai, um pai muito amado e respeitado, um verdadeiro patriarca. Ela não sabe decidir. Sua vida e a de suas irmãs foram orientadas nas mínimas escolhas pessoais por esse pai dominador.
Depois de sua morte é que ela se empenhou no jogo de maneira quase compulsiva. Transformou-se, notadamente, naquilo que diz respeito a seu aspecto físico. Perdeu todo interesse por sua feminilidade. Ela se diz isenta de toda preocupação em se mostrar bela, atraente, bem vestida, sedutora. Ao contrário, sente-se liberada e descobre enorme satisfação em não atrair o olhar dos outros. Quanto mais passo despercebida, melhor me sinto... O jogo lhe traz muito apaziguamento. O retorno à minha vida é que me faz sofrer.
Meus filhos não me julgam. Estão contentes por eu ter vindo vê-la, me diz essa outra mulher que se aposentou há pouco tempo. É divorciada há muitos anos e descobre o jogo logo após uma decepção amorosa. Essa atividade lhe permitiu ter o comando de alguma coisa. Durante toda sua vida foi desvalorizada: de início por seu pai, um desconhecido que voltou ao lar quando ela tinha quatro anos. Há um marido que não se importa com sua opinião e um chefe que só espera dela nada mais que obediência. Por nada desse mundo ela desejaria que sua mãe sofresse por sua tolice. Ela não sabe de seu problema. Sua mãe a ama muito, o que é recíproco. Recebe, regularmente, um pouco de dinheiro que sua mãe decidiu oferecer-lhe. A ideia de que sua mãe possa saber que ela joga a dinheiro a aterroriza. Ela a vê como correta e sensata...
Ela joga em tempo integral, e vem procurar-me por recomendação de seu psiquiatra. Tem 77 anos e descobriu o jogo com a idade de 20, com seu marido que jogava pôquer. Também ela joga pôquer, ginrummy de 15 a 20 h, depois até a meia-noite, todos os dias, exceto sexta-feira (shabbat). Havia se submetido à psicanálise por cerca de cinquenta anos, em períodos de cinco a sete anos (que não serviram para nada, afirma), e tinha experimentado álcool, tabaco, entorpecentes para aplacar suas angústias e as tensões que a atormentavam há muito tempo. Apenas o jogo pode me acalmar e impedir-me de morrer. Quando sai de férias – sabendo que poderá jogar –, participa de uma partida de poker-rummy na praia e conclui que esse jogo não a acalma. É levada de volta a Paris, e hospitalizada em estado depressivo. Foi aí que percebi onde estava o erro. Essa jogadora "anciã" descreve o prazer que lhe proporciona o jogo como uma excitação orgásmica que apenas a idade pôde atenuar um pouco. Há uma sensação de poder e de possessões da ordem do gozo que lhe dão a impressão de ser outra pessoa. Ela se sente masculina.
A Senhora dos Cavalos
Ela não estava nem aqui nem ali. Seu mundo era aquele da ilusão e do jogo. Desde a infância ela omitia a realidade. Sua dimensão era interior, uma vibração contínua de intimidade e fulgor. Não podia, então, viver no curso razoável das horas, dos dias e do tempo. Precisava de uma vida sem medida, insensata, embriagadora. Uma vida que não fosse secreta, mas inacessível ao olhar dos passantes ou à curiosidade das pessoas próximas. Porque uma mulher misteriosa é sempre mais amada, concluía ela, com uma pontinha de maldade.
De fato, sua história poderia ser a de uma criança mimada, de uma adolescente com desejos de mulher, de uma mulher tornada amante, de uma mãe dispersa e angustiada. Mas, faltava-lhe ainda o calor de uma paixão. A tensão de uma emoção silenciosa, em que a alma maturasse por uma felicidade semelhante à crueza da adversidade. Uma felicidade feita de fatalidade e dependência e era bem o que a aguardava num dia de dezembro fascinante, quando ela associou o turbilhonar de seu sangue ao rumor estrondoso de um hipódromo.
Cavalos de espuma, cavalos de vento, cavalos de prata. Eles haviam preenchido o vazio de seus silêncios, ela vibrava ao suspirar os seus nomes, ardente com suas vitórias, humilhada por suas falhas. Havia ganhado, havia perdido no mesmo ciclo de humor que faz surgir o riso nesse desafio vociferante com o Acaso.
Acaso, sorte, especulação, escolhas de cifras, superstições de datas, delírio de combinações. Conjugações do impossível. Pequenos ga-nhos dos que jogam em bolões, grandes ganhos dos jogadores solitários. Ela tinha escolhido. Uma vez rompida a dificuldade, jamais vencida.
Seguir no sentido do Acaso, abater o uso da razão. Ter o poder dos videntes, a intuição dos poetas. Volúpia das cifras, fetichismo do 2 e do 4; bilhetes volumosos em seus bolsos que não sentiam o suor do trabalho, mas o prazer da liberdade. Liberdade a alto risco, vida em infração que se torna a única necessária, aquela que dá sentido a outra, banal, repetitiva.
Música do corpo e da alma, retirada do efêmero.
Catorze horas um dia ou outro, na arena do turfe. Impressões singulares: uma brotação de suores humanos, em meio ao dinheiro dos vendedores ambulantes de sonho. Dança de bilhetes, quantias jogadas ao Acaso como vísceras. Tensão extrema. Olhares atravessados de clarões dementes. Erotismo das respirações que se misturam.
"Três minutos. Em posição".
Ritual das corridas. A cena se abre com a púrpura dos vencedores. Eles largam a corrida. Beleza dos cavalos ao esforço, virtuosidade dos jóqueis, disputando o espaço de seus corpos graciosos, velocidade desdobrada sob o chicote dos clamores, casacos flamejantes ao galope do vento.
Dois minutos de vida em suspense.
Silenciam-se os gritos. O cortejo dos vencedores e perdedores abre a cerimônia. Mar de bilhetes rasgados, concerto de desolações, vozes triunfantes que lhes respondem, primeiros olhares sobre a multidão, traços imperceptíveis de camaradagem.
Senhora, eu lhe disse para jogar no oito. Quem me interpela assim? Um homem pequeno e grisalho, de roupa apertada e olhar radiante. Ele ganhou, então se exalta em conselhos intempestivos. Não respondo. Em uma hora, terá perdido tudo.
17h30: Última corrida, última esperança. As ideias estão cada vez mais confusas, a pressa se mescla à inquietação. A volúpia dos nervos me abandonou.
Estou entregue e decepcionada.
A Senhora das Cartas
Cinquentona, casada, dois filhos, ela não trabalha. Ilude-se facilmente, mas muitas vezes como uma menina maliciosa, divertida ou abatida. É uma mulher de presença agradável, bem cuidada, expressiva e sorridente. Esta não é sua primeira busca de ajuda psicoterápica. Expressa mais curiosidade e empatia do que desagrado pelo fato de encontrar-se em um local de tratamento, onde cruza com jovens que, a priori, não pertencem ao seu mundo. Ela gosta de agradar, causar satisfação. Essa busca de prazer parece encontrar-se entre as questões situadas na origem de demanda de ajuda em um dispositivo de cuidados para toxicômanos. Ela me acostumou à escuta de um relato que começa pelos acontecimentos que a fizeram sofrer, pela repetição de momentos de infortúnio com que ela se depara há muito tempo. Progressivamente, seu relato torna-se superficial, banal, concluindo por relatar historietas dispersas em sua vida quotidiana.
Ela joga todos os dias, há vários anos: nas corridas, no rapido. Frequentava os cassinos. Acontece-lhe ganhar e perder. A partir de agora, algo lhe parece claro: ela ama "o jogo... pelo jogo". Nunca deu grande importância ao dinheiro. Os bens materiais não lhe interessam. O que interessa é a liberdade que o dinheiro proporciona: presentear, comprar joias, objetos de luxo. R. Tostain lembra que "apenas o dinheiro ganho no jogo será gasto na festa". Ela nos confia que não há nada comparável entre retirar o dinheiro com um cartão e a excitação e o prazer de se apossar do dinheiro ganho no jogo.
Esta é a sua história:
Pai judeu do leste europeu: um ser taciturno, atormentado pela angústia de sobrevivente (família exterminada nos campos de concentração). Sentiu-se apagado precocemente, "não possuía existência própria". Ele faleceu quando ela tinha 19 anos. Ela se lembra de que conhece a angústia da morte com a idade de 13 anos. "É um alerta, ouve dizer". Seu pai havia sofrido uma crise cardíaca.
A mãe é descrita como uma angustiada bulímica da vida (judia de origem maghrebiense). Nós herdamos a angústia dos pais, ela diz: eu, a angústia de minha mãe, meu irmão, a do meu pai. Sua mãe faleceu de um câncer após moléstia prolongada quando a paciente tinha 39 anos. Um luto muito doloroso, a morte de sua mãe está presente em sua vida. Ela experimenta um sentimento de amor, de admiração por essa mulher "bulímica da vida". Sentiu-se muito amada por ela, com quem, de início, frequentou o cassino onde a mãe amava aquele ambiente de luxo, de refinamento e de encontros. Jogava sem ser apaixonada pelo jogo. Sua paixão era fazer dinheiro, ela era jogadora nos negócios. Uma mãe, uma esposa e uma mulher de negócios. Tinha o comércio no sangue. Toda negociação lhe rendia dinheiro e enriqueceu... A paciente e seu irmão são os herdeiros. A herança, sua própria herança, é totalmente administrada pelo irmão. Aceita essa situação desconfortável porque não tem nenhuma possibilidade de mudá-la. É o destino: sua mãe e seu irmão, relação fusional.
A relação com o irmão que é mais velho é marcada por tensões e conflitos.
O destino de Aléxis Ivanovitch (personagem de O Jogador de Dostoiévski), consumido por duas paixões análogas, o jogo e o amor, revela a imagem de uma humanidade plena de desejos insensatos e aspirações descontroladas, condenado à eterna nostalgia da felicidade ou à esperança de redenção.
A frustração, o vazio, a angústia, a solidão, a morte são as palavras que surgem quando tentamos refletir sobre o lugar da atividade do jogo em sua vida, sobre o sentido dessa prática.
É, muitas vezes, à tarde, com a chegada da noite, que a angústia se instala, esse vazio que é como uma ausência de vida. Eu prefiro o vício, diz ela, já é uma presença. Ela se lembra de sua mãe em seu leito de enferma, quando lhe acariciava os cabelos. Sua respiração era inaudível, o silêncio se instalava, era o vazio... Não consegue ficar em casa, precisa sair. Se fica, é para conferir os resultados das corridas na televisão. Lamenta muito não poder empregar esse tempo em outras atividades. Mas é assim. Nenhuma outra atividade lhe acalma a angústia.
É a paixão pelo jogo que a mergulha no sofrimento, que é a busca do impossível e que Georges Bataille vê representada por um halo de morte.
"Eu juro que o atrativo do ganho nada tem a ver com o jogo, embora saiba Deus como tenho necessidade premente de dinheiro", escreveu Dostoiévski, para quem a paixão do "jogo pelo jogo" era uma conduta irracional e impulsiva.
Uma leitura psicanalítica propõe que essa conduta corresponda a um método de autopunição do escritor. De fato, uma vez que seu sentimento de culpa estivesse satisfeito, depois de perder tudo, a inibição que o impedia de avançar na produção literária desaparecia e ele podia dedicar-se a escrever.
O jogo pelo jogo, nos diz a Senhora dos Cavalos
Três minutos. Em posição! Não tenho mais a força de sonhar. Joguei na minha data de nascimento. Como uma declaração de identidade nesse mundo sem referências.
Quem está na frente? Olho em meu jornal. É bem o nome do meu cavalo: War Prince nº 12. Eis então que o nº 2 passa à frente. Ah, eu lhe suplico, não esmoreça. A linha de chegada ainda está longe?
Quanto sofrimento nessa espera infinita. Os últimos metros, os últimos segundos. Enfim, eu grito. Meu corpo sobressalta, meu sangue exulta. O esgotamento e a embriaguez se juntam em um ritmo de tristeza que faz dançar minhas pálpebras. Os outros não existem mais.
Só contam o Acaso e esse combate vitorioso.
I8 h.: Retorno ao mundo ordinário, às alegrias dos vivos, às frustrações do real, às chagas da memória.
Mas esta tarde, estou feliz. Poderia dizer a meu filho que ele ganhou duzentos francos de sonhos. Um mal e um bem que ele fará confrontar na tela ruidosa de seu imaginário. Faltam-lhe ainda as palavras, mas, o tom de sua voz basta para a sua história.
A minha termina assim.
"Hoje, amanhã, manhã, noite. Estou apaixonada.
Por um galope de cavalo nas raias do tempo".
Essa mulher é casada, com um bom marido, um bom pai. Ele lhe deu tudo. É normal demais, diz ela. "Às vezes, para as mulheres, basta o excesso", diz um aforismo misógino, atribuído aos irmãos Goncourt e que é, de fato, de La Bruyère, Christian David.
As coisas seriam bem diferentes se ela amasse o marido, como sua mãe amou seu pai. Seus pais viveram como verdadeiros amantes até a morte.
Ele é normal demais, diz ela a propósito de seu marido. Ela é desmesurada, sem propósito, diriam outros, utilizando o linguajar moderno das ruas, para se referirem a essa mulher que manifesta sem cuidado sua falta de moderação, seu gosto pelo interdito e pela transgressão. Ela foge da norma como sinônimo de tédio, de vazio e de morte, como se a monotonia do cotidiano a fizesse sentir-se "demais". É invadida pela angústia no conforto de sua vida familiar. Minha casa não é minha morada, diz ela. Refugia-se na rua.
Sete horas da manhã: primeiro passo no ar fresco de um dia, que mal amanhece. Primeiras palavras trocadas com a vendedora da banca de jornais. Sonolência estampada no olhar que nos aproxima e no sorriso inexpressivo. Paris Turf em minhas mãos, tremores de prazer. Histórias de cavalos bem-sucedidos e de perdedores indesejáveis. Tórrida dialética.
8 h: Acordam as crianças. Estou feliz, disposta, cheia de planos sobre minhas apostas do dia. Já uma hora, tomada de felicidade, beijo e faço carinhos nas crianças.
Mamãe não se esquece. A partir de 500 francos, são 10%!
Jeito divertido de ensinar cálculo mental a seus filhos...
Aos oito anos, ele calcula bem. Sabe dar um valor a suas aspirações de jogos eletrônicos e monstros verdes e vermelhos. Dois beijos na boca em troca do papel de presente e o trato está feito. Como todos os dias, no caminho de volta, ele me fará a pergunta. Quanto ganhei?
Nada.
Ele fica amuado. Só dois segundos. Seu olhar já está ávido de outras promessas: balas, livros, colegas. Em cinco minutos, ele me esgotou.
Mundo do jogo, mundo da infância... tão próximos. A mesma embriaguês, a mesma inquietação, o mesmo desejo de novas sensações, que se acelera numa vertigem de risos e gritos.
O jogo, como tentativa ilusória de eliminar os descontentamentos ligados ao princípio da realidade, em benefício do único princípio do prazer, é uma operação que obriga o retorno à ficção da onipotência infantil. No jogador, a rebelião latente contra a lógica remete à rebelião contra a lei parental e a agressão inconsciente contra os representantes da lei e da realidade é seguida de uma necessidade de autopunição psicológica.
Assim também, o "misterioso arrepio", prazer e excitação provocados pelo jogo, que é, ao mesmo tempo, uma tensão inevitável (pleasurable painful tension), seria ligado ao prazer da retomada de toda potência infantil, associada à angústia pela expectativa de punição. É preciso assinalar que Bergler publica a respeito desse tema em 1936, na revista psicanalítica Imago. Foi um dos primeiros a elaborar uma definição do jogador patológico, distinguindo-o do jogador lúdico.
Segundo Freud, a paixão de Dostoiévski pelo jogo tem a função psíquica de uma conduta autopunitiva: sequência cíclica e repetitiva de entregas ao jogo, frenéticas e destrutivas, seguidas por fases de remorsos e autoflagelação, até o renascimento, enfim, da criatividade literária.
Quais são as fontes profundas do sentimento de culpa? Em Dostoiévski e o parricídio, Freud aborda a complexidade do assunto: "Na rica personalidade de Dostoiévski poder-se-ia distinguir quatro aspectos: o escritor, o neurótico, o moralista e o pecador." A respeito do escritor, Freud contenta-se em pontuar a importância "do aspecto do mistério na criação artística: só resta à psicanálise depor as armas diante do problema do criador literário."
A necessidade de punição é reinvocar os fantasmas edipianos e a masturbação. O "vício" do onanismo é substituído pela paixão pelo jogo. Em 1897, Freud havia formulado a hipótese segundo a qual o alcoolismo ou a morfinomania seriam uma substituição do primeiro "grande hábito", ou adição original (Ursucht), a masturbação.
A conduta de autopunição e o sentimento consciente ou inconsciente de culpa de Dostoiévski viriam também de outra vertente da estrutura edipiana: a ambivalência em relação ao pai, que inclui a agressividade assassina.
A ameaça de castração articula-se em torno de duas posições diferentes do moi: por um lado a ameaça direta ligada ao ódio ao pai, o desejo de suprimi-lo e tomar seu lugar. Por outro lado, efeito da bissexualidade universal, uma posição passiva de submissão, fantasia de assumir o lugar de objeto sexual do pai, que despertaria a angústia de castração.
Feminilidade, masculinidade, bissexualidade, psicossexualidade, culpa, masoquismo, pulsão, gozo e ordálio são alguns dos termos que se apresentam.
Os jogos de azar tanto são atemporais quanto múltiplos e variados. Conteriam sempre uma dimensão de aposta, quer dizer: um lance inicial, uma perda ou um ganho.
Há então uma ligação entre esses jogos e os ordálios, procedimentos nos quais, originalmente, o sujeito colocava sua vida em jogo para provar sua boa fé ou sua inocência, submetendo-se ao veredicto de potências superiores. As apostas lúdicas comportam lances iniciais menos trágicos, ainda que o dinheiro não seja um elemento secundário da vida social. O jogador passional almeja mais que sua vida. Ele declara ter "perdido tudo", se diz perdido. Esse tudo é o dinheiro. Daí, ou suicida-se ou, pelo menos, tenta.
Na classificação de R. Callois, o acaso constitui o campo de nosso interesse: é o dos jogos de azar, os jogos a dinheiro.
Jacques Lacan enfoca a questão do jogador em seu Seminário sobre a Carta Roubada: "Que és tu, imagem de dado que lanço em teu encontro (tyché) com minha sorte? Nada, a não ser essa presença da morte que faz da vida humana esse sursis obtido a cada manhã"... "Marcar as seis faces de um dado, lançar o dado; desse dado que rola surge o desejo. Não me refiro ao desejo humano porque, no fim das contas, o jogador de dados já está cativo do desejo, colocado assim em jogo. Ele não sabe a origem de seu desejo que rola com o símbolo escrito em suas seis faces".
Jogadora dependente
Ela apresenta-se em uma primeira entrevista para informações a respeito da terapia para jogadores porque está cansada de jogar e, sobretudo, de perder tanto dinheiro. É de manhã. Chega com toda sua pompa, vestida de um elegante casaco preto de seda, combinando com calças de fino veludo e sapatos brilhantes. Colares de ouro e anéis incrustados de pedras ornamentam realmente esta mulher. Deixando-me estupefata com esta elegância e refinamento a essa hora da manhã, ela me confidencia que está resolvida a ir, no fim do dia, ao cassino de Namur.
Depois de quarenta anos de estudos da alma feminina, Freud formulava sua pergunta: "O que quer uma mulher?", questão quase sempre masculina, onde se fazem sentir a impaciência e a raiva, ligadas à impossibilidade de compreender e à impotência em satisfazer, experimentadas por tantos homens diante das mulheres.
O prejulgado freudiano havia feito da Mãe o ideal da mulher: a situação feminina instalava-se na saída do Édipo, via desejo do pênis ou do filho, quer dizer, afinal, pela identificação à mãe.
É com o Jacques Lacan levistraussiano que a psicanálise abandona essa hipótese, a mãe como ideal da mulher, para tornar-se, por excelência, objeto causa do desejo dos homens e seu desejo de ser desejada. Quais são as incidências dessa divergência no que concerne à teoria do coletivo? Para Freud, a mulher está mais "casada" com seus filhos do que com seu marido, por isso, é uma espécie de garantia da instituição familiar. A humanidade pode então contar com a mulher para defender seus descendentes e seu cônjuge. Para Lacan, a verdadeira mulher, ao contrário, é Medeia que não hesita em matar seus próprios filhos para atingir o coração daquele que a traiu no leito conjugal. Ela testemunha que seu bem mais precioso não são os filhos, e sim, ser objeto de desejo do amante... Isso retrata as mulheres como militantes do desejo e não guardiãs da ordem familiar.
É verdade que é preciso levar em conta uma tendência de autodepreciação por parte das próprias mulheres. "Sou excessivamente mulher pela ignorância, pela inconse-quência de ideias, pela falta absoluta de lógica". É o temor de perder sua feminilidade: a força e a persistência da ligação entre submissão à ordem estabelecida pelos homens, resignação às desigualdades injustas, ausência de agressividade declarada e manutenção da própria identidade sexual. Como se uma mulher que protesta não fosse mais uma mulher, e sim, um vigaro, uma imitação de homem.
É que as mulheres, pela condição que lhes foi imposta – e não por sua realidade biológica própria –, também por sua vontade de seduzir os homens e, talvez, mais ainda, por sua divisão interior, prejudicam a clareza de suas ideias sobre elas mesmas.
Como, do ponto de vista psicanalítico, compreender essa dificuldade tenaz sem invocar a "inveja do pênis", já presente na menina, com o sentimento misto de vergonha e de culpa que ela carrega e ativa sempre no psiquismo feminino adulto sob a forma derivada, simbólica, de reivindicações fálicas? É a ocultação da ligação entre a representação inconsciente da apropriação violenta do aparelho genital paterno, em um ato sangrento de castração ativa, e as exigências que engendram o mal-estar e alimentam uma surda resistência à mudança, simultaneamente aguardada no sofrimento e na impaciência.
"Eu sou sua mulher" – estranha declaração de um amante. Ela vai ao encontro desse homem todos os dias e, muitas vezes, esse encontro dura apenas alguns minutos. Ela tem necessidade de vê-lo, de sentir o toque de sua pele, suas mãos acariciando os cabelos. Ele é sua alma gêmea. Ela não esconde que aquilo que procura no homem é a feminilidade. Não é atraída pela virilidade, nem no corpo, nem na alma.
Endereço para correspondência:
38 Bis rue Fontaine
75009 Paris - France
Tel.: 06 89 29 24 29
E-mail: domickster@gmail.com
RECEBIDO EM: 01/04/2010
APROVADO EM: 01/05/2010
Sobre o Autor
Zorka Domic
Psiquiatra pela Faculdade de Medicina na Universidade de Moscou. Psicanalista. Autora do livro L'état cocaïne (Paris, PUF, 1992).
1 Palestra proferida no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais em 25/03/2010.