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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.32 no.60 Belo Horizonte set. 2010

 

Sexualidade na adolescência - o despertar de Anne

 

Sexuality in adolescence - the awakening of Anne

 

 

Cristina Gaoni Medioli

Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O diário de Anne Frank, documento histórico sobre a guerra e as persecuções raciais, tem valor também de precioso relato sobre as problemáticas da adolescência. Anne, na viagem de ida ao anexo onde viveu escondida por mais de dois anos, tinha falado de rumo ao grande desconhecido, grande Outro desconhecido que Anne tenta desmascarar, mas frente ao qual ela só consegue se posicionar representando, desconhecido do real do sexo, que não é possível desvendar, e desconhecido do real da morte, que não nos permite acrescentar mais palavras, mas só um ponto final.

Palavras-chave: Fantasias edípicas, Grande Outro desconhecido, Desconhecido do real do sexo, Desconhecido do real da morte.


ABSTRACT

Anne Frank: The Diary of a Young Girl, a historical document about the war and racial harassment, is also valuable as an important report about the issues of adolescence. Anne, on her one-way journey to the annexe, where she lived hidden for over two years, talked about "going into the great unknown". The unknown great Other that Anne tries to unmask, but before which she can only stand if acting. The unknown of the real of sex, which is not possible to unveil, and the unknown of the real of death, to which we cannot add anymore words, only a full stop.

Keywords: Oedipal fantasies, Unknown great Other, Unknown of real of sex, Unknown of real of death.


 

 

Anne Frank, judia, nascida em 1929 na Alemanha, com quatro anos de idade, junto com sua família e por causa da perseguição nazista, é obrigada a se mudar para a Holanda.

Em 1942, devido à invasão alemã é obrigada a esconder-se no sótão do escritório do pai dela e ficará aí até quando, em 1944, ela e os outros sete moradores do sótão serão delatados.

Desta temporada no anexo, ficará como valioso testemunho o "Diário de Anne Frank", um documento histórico sobre a guerra e a violência das perseguições raciais.

Para todos os interessados no estudo da adolescência o diário tem valor inigualável, pelo precioso relato das problemáticas da adolescência.

Trata-se de um contexto em que, devido à privação da liberdade e do movimento e sendo obrigadas a confinar a própria vida e os próprios horizontes dentro de um reduzido contexto habitacional, as pessoas podem às vezes reagir com uma regressão, manifestada nos contrastes e na dificuldade de convivência, pois frequentes são as discussões e as brigas no anexo.

Diferente é o caso de Anne, ela vive as revoluções da adolescência dentro de si, mas no desamparo pela queda dos ideais paternos, ela precisa, para não ser arrastada, segurar-se em um ponto simbólico de contenção da sua angústia esmagadora.

Anne começa assim, para contornar a fixidez e a aspereza da realidade, a escrever o seu diário.

A escrita toma consistência imaginária também, pois ela chama o diário de Kitty, colocando-o no lugar de amiga imaginária, mais do que isto, a escrita faz borda de contenção a uma realidade de outra forma impossível de ser contornada.

Longe dos bens materiais Anne é levada a essencializar-se, ela se detém então nas suas questões mais íntimas, acelerando o processo de crescimento e chegando a elaborações profundas, na tentativa de responder à avalanche de novas questões que a adolescência desvenda.

É um despertar difícil o de Anne, pois ela referindo-se à inocência infantil declara: "Sei que nunca mais poderei ser tão inocente de novo, nem se eu quisesse..." O véu da fantasia está levantando e já é possível dar uma piscadela aterrorizante à coisa.

Que mais poderia fazer Anne a não ser escrever e deslocar o seu amor edípico para cima de um rapaz, que como ela vive os tormentos da adolescência?

Anne afirma sentir explodir a primavera dentro dela, em todo o seu corpo e alma, e apesar de tentar se comportar normalmente, sente vontade de chorar e ela escreve: "Só sei que está faltando alguma coisa..." Começa assim um jogo de sedução e uma aproximação a Peter, 16 anos, único filho da outra família hospedada no anexo.

É importante para Anne formular as primeiras questões sobre a sexualidade, pois o real do sexo está agora mostrando de forma doida a sua falta de significação, ao ponto de Anne exclamar: "Afinal o que eu sei disto?"

É nesse momento que Anne descobre também a alteridade entre os sexos, pois ela escreve no diário: "Sou sentimental, sei disto, sou dependente e boba, sei disto também. Ah, me ajude".

Ao descobrir Peter, Anne declara ter um novo objetivo na vida e começa a se encontrar com ele nos fins da tarde, no 2º andar do anexo onde na escuridão é mais fácil falar, pois a realidade quase desaparece e o imaginário enlaça os dois jovens.

Anne afirma ter mudado de um jeito radical, por dentro e por fora, e que tudo mudou da noite para o dia. Depois de anos adorada pelos pais e depois de ter perdido a majestade do bebê, Anne desabafa que é difícil se ajustar à realidade e à censura dos adultos. Ela culpa os pais por ter que aguentar muita coisa e afirma que agora sabe que eles também erram e que a verdade está meio a meio.

A desidealização dos pais é importante para favorecer uma segunda mudança. Anne, já capturada em um movimento de investimento libidinal em objetos externos, tem um sonho revelador no qual descobre que deseja um rapaz.

Agora é o olhar acolhedor de Peter que a faz sentir maravilhosa por dentro e ela só quer ser olhada e ouvida por ele.

Apesar disto o pai é chamado em causa outra vez, pois Anne pede "autorização" para se encontrar com Peter.

O pai dá conselhos, mas não proíbe os encontros e Anne, ainda confusa sobre o verdadeiro objeto do seu amor, declara que um conselho suave do pai não vai impedi-la de encontrar Peter. Ela gostaria de uma posição mais definida do pai e escreve: "Ele terá que proibir, ou confiar cegamente, faça o que quiser, mas me deixe em paz...", pedindo assim ajuda para se libertar das fantasias edípicas.

Na tentativa de desmistificar os pais, Anne os acusa de silenciar um suposto saber. "Mamãe realmente gosta de bancar a imbecil quando lhe convém... Sexo é uma grande barreira para os adultos, pois eles não falam tudo, se as mães não contam tudo, os filhos ficam sabendo aos pedaços e isso não pode dar certo". Continua: "Esmagados pela realidade, somos forçados a imaginar uma solução... me agarro aos meus ideais... perguntei para as amigas, li livros, imaginei sozinha... ainda existem perguntas sem respostas... aquele vazio, aquele vazio enorme está sempre presente..."

É tortuoso e ambivalente o percurso da adolescência para Anne, pois afirma que existem duas Anne dentro dela, ela nunca desiste de procurar a verdade, mas chegará, poucos meses mais tarde, a afirmar: "Papai e mamãe não me entendem... todo filho tem que se criar sozinho..." e ela não mede esforço na tentativa de se fortalecer.

Com o objetivo de ressignificar a relação com os pais, Anne se pergunta se existem pais que fazem os filhos completamente felizes, pois observa que eles se contradizem... e afirma ter que se tornar uma boa pessoa por conta própria, sem ninguém para lhe servir de modelo, pois ela não é mais um bebê sempre mimado, mas sempre incompreendido, tem as ideias próprias, só não consegue verbalizá-las, mas no fim, tudo isso a tornará mais forte.

Anne, que agora está se posicionando na cena familiar, afirma ter se curado sozinha, entendendo seus erros. O pai não entendeu que a luta dela para triunfar sobre as suas dificuldades era mais importante para ela que qualquer outra coisa. Ela não consegue mais se sentir íntima dele e se pergunta: "Por que será que papai alguma vez me incomoda tanto?... preferiria que ele me ignorasse por algum tempo, até que eu tivesse certeza do que quero quando falo com ele".

É nesse momento de desmoronamento da imagem do pai que a imagem de Peter vacila também, pois parece perder o valor de substituto que lhe tinha sido atribuído pelo deslocamento.

Assim ela declara: "Alguma força misteriosa nos puxa para trás, não sei o que é, às vezes acho que o desejo terrível que sinto por ele foi exagerado, sinto falta da coisa verdadeira e sei que ela existe".

Anne sonha com Peter e no sonho o deslocamento é mais evidente. Sonha que estava beijando Peter, mas o rosto dele foi uma frustração, pois não era tão macio quanto parecia, era mais parecido com o rosto do pai dela, um rosto de um homem que já se barbeia.

A trama edípica ainda não totalmente superada mostra, aqui, o seu rastro, acima do qual uma fantasia com o pai ainda pode ser construída.

A confusão sobre o objeto de investimento é evidente também quando Anne, de manhã, ao receber um beijo do pai, declara que ela quase quis gritar: "Ah, se você fosse Peter..."

Anne declara que sempre teve ciúme da relação da irmã com o pai e depois também afirma: "Os pais não sabem o mais essencial sobre os filhos... desejo mais do que afeto de papai... mais do que seus abraços e beijos..."

Ao perceber falida a sua tentativa de substituição de objeto de investimento libidinal, Anne começa a questionar a sua relação com Peter. Reconhece que ele foi uma conquista dela e não o contrário. Ela construiu uma imagem dele perfeita, pois precisava se abrir com alguém e conseguir atraí-lo devagar, mas, com firmeza na direção dela. Quando finalmente conseguiu que ele se tornasse amigo, a coisa automaticamente se transformou em uma intimidade que ela declara ser revoltante. Afirma então ter vontade de recomeçar tudo de novo e queixa-se, entretanto, de nunca conseguir tocar nos assuntos que quer esclarecer, pois o vazio enorme está sempre presente e nada pode ser mais esmagador do que esta ansiedade.

Assim como no sótão existem dois andares, um onde a intimidade pode ser vivida e outro onde tem que ser escondida, existe o lado de Anne, o mais superficial, mas que ela pode mostrar sem medo de derrisões, e o outro mais autêntico, mais íntimo, mas que ela se obriga a esconder atrás da máscara, no palco só um pode aparecer. Assim continua a representação da vida e outras personagens ocupam o lugar da protagonista, que fica presa no sótão da sua vida. Anne percebe-se dividida e declara: "Sou partida em duas, só um feixe de contradições... ninguém conhece o meu lado melhor. Tenho medo que as pessoas que me conhecem descubram que tenho outro lado, um lado melhor e mais bonito. Tenho medo de zombarem de mim, de pensarem que sou ridícula e sentimental, de não me levarem a sério..." Anne reflete aqui mais uma vez a fragilidade narcísica e o desconforto comum nos adolescentes, pois outras vezes já tinha se queixado: "Os adultos riem de nós quando estamos sérios e ficam sérios quando estamos brincando", e continua: "tento um jeito de me transformar no que gostaria de ser e no que poderia ser se... não houvesse mais ninguém no mundo."

No dia 4 de agosto de 1944, Anne fez a última viagem rumo ao lugar onde não havia mais ninguém... No meio da manhã a polícia chegou ao anexo e levou os oito moradores.

Em 1945, Anne morreu de tifo no campo de concentração. Alguém delatou e o destino, tanto mais cruel enquanto provocado pela ganância dos homens que traíram, levou os oito moradores do anexo para uma viagem sem retorno.

Na viagem ao anexo, Anne tinha falado do rumo ao desconhecido, grande Outro desconhecido que Anne tenta desmascarar, mas frente ao qual ela só consegue se posicionar representando, desconhecido do real do sexo, que não é possível desvendar, e desconhecido do real da morte, que agora não nos permite acrescentar mais palavras, mas só um ponto final.

 

Bibliografia

CURI, Thereza Christina G. Bruzzi. O real na clínica com adolescentes: inventar um certo "saber fazer" com isso. Inédito.         [ Links ]

OTTO, H. Frank e PRESSLER, Mirjam. O diário de Anne Frank. Edições Best Bolso, 2009.         [ Links ]

SALIBA, Ana Maria Portugal. Identidade, sexo e diferença. In: Reverso, n.25. Publicação do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1986.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Rua Pisa, 499 - Bandeirantes
31340-690 - BELO HORIZONTE/MG
Tel.: + 55 (31)3492-4142
E-mail: crimedioli@terra.com.br

RECEBIDO EM: 08/07/2010
APROVADO EM: 29/07/2010

 

 

Sobre o Autor

Cristina Gaoni Medioli
Advogada. Psicanalista. Participante do Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG.

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