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versão impressa ISSN 0102-7395
Reverso vol.33 no.62 Belo Horizonte set. 2011
Impasses do amor cortês
Impasses of courtly love
Carlos Antônio Andrade Mello
Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
RESUMO
A expressão “amor cortês”, cunhada pelo escritor Gaston Paris, a partir das posturas que regiam os relacionamentos amorosos na Europa medieval, é tomada por Lacan como a única saída para o homem, diante da ausência da relação sexual. Baseado no que dispõe Freud a propósito da sublimação e da idealização, o autor pretende verificar, neste texto, as possíveis motivações para os desfechos de violência nas ligações amorosas, ao longo do tempo, em especial, na contemporaneidade.
Palavras-chave: Amor cortês, Erótica, Erotismo, Falta, Sublimação, Idealização, Gozo, Desejo, Posição feminina.
Abstract
The terms “courtly Love, coined by the writer Gastón Paris, from the attitudes governing the relationship during medieval times in Europe, is taken by Lacan as the only way out for man, given the absence of sexual relation. Based on what Freud was written about sublimation and idealization, the author pretends to verify, in this text, the possibles motivations for violence when the love affairs end, trough out time, in special, nowadays.
Keywords: Courtly love, Erotic, Eroticism, Lack, Sublimation, Idealization, Pleasure, Desire, Woman position.
Do erotismo pode dizer-se que é a aprovação da vida até na própria morte1
Como ponto de partida, tomamos as considerações de Freud a respeito do amor, quando trata dos destinos da pulsão no que se refere aos pares de opostos, amor e ódio:
“É impossível duvidar de que exista a mais íntima das relações entre esses dois sentimentos opostos e a vida sexual, mas naturalmente relutamos em pensar no amor como sendo uma espécie de instinto componente específico da sexualidade, da mesma forma que os outros que vimos examinando. Preferiríamos considerar o amor como sendo a expressão de toda a corrente sexual de sentimento...”2
O amor cortês é considerado por Lacan como a única saída, para o homem, diante da ausência da relação sexual. Essa expressão, amor cortês, foi cunhada por Gaston Paris em 1883, referindo-se a um conjunto de atitudes praticadas no período medieval, por volta do século XI, no estabelecimento de relações amorosas, visando enaltecer o amor, como forma mais elevada que o estrito envolvimento sexual.
Antes de iniciar a abordagem proposta, vamos considerar a elaboração de Lacan, a respeito da erótica. Ao longo da obra freudiana, esse termo é usado sempre como atributo, ao passo que Lacan, mesmo em poucas referências, o destitui dessa condição, tomando-o pelo caráter de substantivo, porém sem formalizá-lo, precisamente, como um conceito. A esse propósito, afirma Ana Lúcia Lutterbach Holck:
“Como não há em Freud e Lacan uma definição para erótica, deduzi uma formulação provisória. Ou seja, uma vez que não haja nada pré-escrito para as relações entre a satisfação, o objeto e os fins da sexualidade, chamarei eróticas as diferentes estratégias do gozo na abordagem do objeto. Com base nessa formulação, procuro estabelecer três eróticas a partir da doutrina do gozo em Lacan, em dois momentos diferentes de seu ensino, e o enlace de cada uma delas com o feminino”3.
Segundo a autora, do gozo impossível, abordado no Seminário da Ética, gozo este situado no campo da Coisa (das Ding), derivam duas eróticas, a do amor cortês e a do espaço trágico, e suas respectivas estratégias, sublimação e transgressão. Por fim, a terceira erótica extrai-se do Seminário 20, a erótica do não todo, a partir do gozo da não relação sexual. Prossegue a autora:
“Lacan demonstra, assim, que o passo dado por Freud com a Coisa foi dizer que não há o Bem supremo, o único bem é um bem proibido, a Coisa. Transgredir a lei e encontrar esse objeto seria abolir o que estrutura mais profundamente o inconsciente do homem, um gozo impossível. Existem no Seminário 7 duas estratégias subjetivas em relação à das Ding: a sublimação e a transgressão. Na sublimação, o objeto é cingido, de onde se deduz uma erótica do amor cortês; na transgressão, há uma tentativa de encontro com a Coisa e encontra-se a erótica do espaço trágico”4.
Recorrendo à estratégia da transgressão, são transpostas todas as barreiras que cercam o objeto, levando ao encontro inevitável com a Coisa, ultrapassando o princípio do prazer. Apesar da instigação provocada pelo desenvolvimento habilidoso que a autora realiza em torno das três eróticas, este trabalho vai limitar-se àquela que objetiva o amor cortês, e sua respectiva estratégia da sublimação:
“...a sublimação seria uma forma paradoxal de satisfação, pois o gozo é obtido pelas vias aparentemente contrárias ao gozo. O alvo do gozo subsistiria e, em certo sentido, seria realizado sem recalque, sem apagamento, cingindo a Coisa; e sua forma exemplar é a erótica do amor cortês, que se mantém no princípio do prazer”5.
Assim, a mulher, no envoltório da Dama, é deslocada de sua posição de objeto para a de representação da Coisa, o que a estratégia da sublimação faz circunscrever como um ideal inatingível.
No Seminário 20, Lacan afirma que o “amor cortês é uma maneira inteiramente refinada de suprir a ausência de relação sexual, fingindo que somos nós que lhe pomos obstáculo”.6
Essa forma de amor, cultuada no século XI, é tipificada pelo exercício dos trovadores provençais que, através da poesia, cercavam a mulher de um halo protetor, cujo interior era destituído de corporeidade, de toda substância real, “protegendo o sujeito do encontro com o inominável”7. Mais adiante afirma:
“Entra em jogo aqui a função ética do erotismo, aludida continuamente por Freud, mas nunca formulada. As técnicas em questão no amor cortês se articulam, por exemplo, com os prazeres preliminares dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, certas maneiras intermediárias de se relacionar com o objeto que antecedem o coito e são prazerosas em si mesmas. O ato de cortejar engendra a beleza, esteio do desejo, a regra do obstáculo necessário, da interdição que não é recalcamento do desejo, mas, ao contrário, o possibilita”8.
Numa consideração apressada, o amor cortês pode ser tomado como uma recusa do ato sexual, confundindo a castidade cortês com a continência sexual, para o que nos alerta Philippe Julien. “Com efeito, para que o ‘fato’, a conjunção carnal, não seja violência de um sobre o outro, é preciso o tempo do bem-dizer, que permite o nascimento do desejo... E mais, por que o joi, o gozo sexual, faria perecer o amor?”9.
Já sob o ponto de vista da sublimação, essa interdição torna-se propícia à prática sexual, “permite um jogo de sedução prévio, uma preparação de onde nasce com a fantasia o suporte do desejo. O gozo é domesticado pela beleza que o recobre com seu brilho”10.
Assim, o amor cortês realiza ao mesmo tempo a idealização do objeto e a sublimação da pulsão, sublimação esta sob forma de elevação do objeto à dignidade da Coisa, ao inscrever o significante Dama. Esta é a Mulher esvaziada de substância real e tomada como objeto de desejo. E esse vazio passa a ser ocupado pelas mais diversas formações imaginárias, lembrando que o fantasma é o suporte do desejo e a idealização do objeto garante também a impossibilidade de seu acesso, consequentemente, a vigência desejante.
A respeito dessa dualidade, sublimação e idealização, Freud estabeleceu distinções importantes:
“A idealização é um processo que diz respeito ao objeto; por ela, esse objeto, sem qualquer alteração em sua natureza, é engrandecido e exaltado na mente do indivíduo. A idealização é possível tanto na esfera da libido do ego quanto na libido objetal. Por exemplo, a supervalorização sexual de um objeto é uma idealização do mesmo. Na medida em que a sublimação descreve algo que tem que ver com o instinto, e a idealização, algo que tem a ver como o objeto, os dois conceitos devem ser distinguidos um do outro”11.
Apesar das diferenças, essas instâncias parecem aproximar-se no desencadeamento de certas consequências do amor cortês nos relacionamentos contemporâneos, como veremos mais adiante.
Nesse sentido, pode-se refletir sobre uma questão que surge quando um trovador dirige-se à Dama, com versos como estes, por exemplo:
Quisera saber-te minha
Na hora serena e calma
A sombra confia ao vento
O limite da espera12.
Essa proposta de posse, atenuada pela calma e serenidade, admitindo um tempo de espera, estampa bem os pressupostos característicos do amor cortês. Porém, se o endereçamento feito à Dama circunscreve-a no interior desse espaço esvaziado de substância real, contornando o objeto, tomado como algo idealizado, ao mesmo tempo, o que ocorre com o trovador? Qual a posição que passa a ocupar esse homem, seresteiro, poeta e cantor?
Sem dúvida sua estratégia também denuncia sua condição desejante, como todo aquele que se confessa em busca daquilo que lhe falta. Posição feminina?
Como já afirmamos em outro trabalho, “Quando aborda a questão do feminino, Barthes ressalta que, ao longo da história, é a mulher quem sustenta o discurso da ausência; quem lhe dá forma, enquanto tece, enquanto canta e espera”13. Em suas palavras: “De onde resulta que todo homem que fala a ausência do outro, feminino se declara: esse homem que espera e sofre, está milagrosamente feminizado. Um homem não é feminizado por ser invertido sexualmente, mas por estar apaixonado”14.
Teria surgido daí a forma da moral introduzida em nossa cultura, que norteia para o homem as estratégias de conquista da mulher, dando-lhes um semblante diverso da dominação e da truculência? Ao mesmo tempo em que, para a mulher, esse recurso lhe acena com uma promessa de preenchimento de sua condição faltosa, para o homem funciona como engodo, levando-o, tantas vezes, a tomar como realidade o objeto de sua idealização. Se, como cita Lacan “o amor, certamente, faz signo, e ele é sempre recíproco”15, para ambos traz o risco enorme de deparação com o engano, resultante da queda das idealizações. Esta seria uma das razões para explicar as consequências trágicas da violência entre os parceiros amorosos, em sua maioria praticada pelo parceiro masculino.
Embora todas as épocas tenham sido modernas em seu tempo, só podemos falar com alguma certeza de nossa modernidade, onde assistimos à evolução da corte ao flerte, ao cantar e ao ficar, iniciativas culturalmente masculinas, antecedendo um relacionamento bem estabelecido entre pessoas que, supostamente, se desejam.
Isso nos leva a refletir sobre o quantum de amor cortês que existiria no vasto campo das relações amorosas em geral e que, sem dúvida, é a estratégia contingente à aproximação e à conquista do objeto desejado. Porém, se o sujeito, o homem, se apega em demasia às prerrogativas expectantes e idealizadoras dessa forma de amor, é daí que podem surgir as consequências a que já nos referimos, ou perde a Dama ou perde a cabeça.
Bibliografia
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Endereço para correspondência:
Av. Brasil, 283/1502
30140-000 - BELO HORIZONTE/MG
E-mail: andrademello@terra.com.br
RECEBIDO EM: 01/07/2011
APROVADO EM: 12/07/2011
Sobre o Autor
Carlos Antônio Andrade Mello
Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.
1 BATAILLE, Georges. O Erotismo. Lisboa: Antígona, 1988, p.11.
2 FREUD, Sigmund. O instinto e suas vicissitudes, v. XIV. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1969, p.154.
3 HOLCK, Ana Lúcia L., Patu: a mulher abismada. Rio de Janeiro: Subversos, 2008, p.24.
4 Idem, p.28.
5 Idem, p.29.
6 LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda, Rio de Janeiro: J.Zahar, 1988, p.94.
7 HOLCK, Ana Lúcia L., Patu: a mulher abismada. Rio de Janeiro: Subversos, 2008, p.30.
8 Idem, p.30/31.
9 JULIEN, Philippe. O estranho gozo do próximo: ética e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1966, p.117.
10 HOLCK, Ana Lúcia L., Patu: a mulher abismada. Rio de Janeiro: Subversos, 2008, p.31.
11 FREUD, Sigmund. Sobre o narcisismo: uma introdução, v.XIV. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1969, p.111.
12 VILLA-LOBOS, Heitor; VASCONCELOS, Dora. Melodia sentimental. in A Floresta do Amazonas (1958), João Carlos Assis Brasil, Ney Matogrosso, Wagner Tiso, Jacques Morelembaum e Jurim Moreira, Gravadora Quarup Discos, 1987.
13 MELLO, Carlos A. A., A mulher ausente e o feminino sobrepujante em Sarapalha. In Reverso. Belo Horizonte, jun./2008, n.55, p.73.
14 BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2000, p.28 (grifo do autor).
15 LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, p.12.